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FORENSE
RESUMO
A Constituição da República Federativa de 1988 elencou os princípios que estruturam o ordenamento
jurídico, especialmente no âmbito penal e processual penal. Por isso, o presente estudo se debruça na
acerca da incompatibilidade do frequentemente invocado princípio da verdade real com os princípios
penais e processuais penais do Estado Democrático de Direito promulgado em 1988. Para tanto, utiliza-
se o método utilizado é o indutivo, adotando-se a linha crítico metodológica e a técnica bibliográfica.
PALAVRAS-CHAVE
Princípios; Constituição Federal; Verdade Real; Sistema acusatório.
ABSTRACT
The Constitution of the Federativa Repulic of 1988 listed the principles that structure the legal system,
especially in the criminal and riminal procedure scope. For this reason, the present study focuses on the
incompatibility of the frequently invoked principle of real truth with the Democratic State of Law enacted in
1988. For this purpose, the method used is the inductive one, adopting the critical methodological line
and the bibliographic technique.
KEYWORDS
Principles; Federal Constitution; Real truth; accusatory system.
I INTRODUÇÃO
1
Mestranda em Direito Público pela Universidade FUMEC. Especialista em Direito Militar pela
Universidade Cândido Mendes. Especialista em Advocacia Penal pela Universidade FUMEC.
Especialista em Direito Digital pela Universidade São Judas Tadeu. Advogada. Coordenadora de
Relações Institucionais da Comissão de Direito Militar da OAB/MG. Membro da Comissão Nacional de
Direito Militar da Associação Brasileira dos Advogados (ABA). Delegada de Prerrogativas da OAB/MG.
Professora de Direito Penal Comum e Militar, Direito Processual Penal Comum e Militar, Direito
Administrativo. E-mail: lorena.advocacia.e@gmail.com. Endereço para acessar o Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/3249409887116169.
1
5º, LII), a obrigatoriedade do devido processo legal mediante a garantia do contraditório
e ampla defesa ao acusado (artigo 5º, incisos LIV e LVI)2, discute-se a recepção e a
compatibilidade do historicamente invocado princípio da verdade real com a ordem
democrática instaurada pela Constituição da República Federativa de 1988, no âmbito
penal e processual penal.
O estudo aprofundado da temática mostra-se fulcral para a correção de
equívocos terminológicos e uso inapropriados de conceitos opostos aos erigidos pela
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, buscando-se adequar o uso
dos princípios e valores emanados pela Constituição, bem como pelas demais normas
jurídicas pertinentes.
A pesquisa adere ao método indutivo, o qual tem como objetivo ampliar o
alcance dos conhecimentos, se caracterizando por “um processo mental que parte de
dados particulares e localizados e se dirige a constatações gerais. Assim, as
conclusões do processo indutivo de raciocínio são sempre mais amplas do que os
dados ou premissas dos quais derivam”. (GUSTIN; DIAS, 2013, p. 22).
A pesquisa segue a linha crítico metodológica, de forma que as normas, as
decisões judiciais e o entendimento da doutrina são analisados com a devida
criticidade e argumentação, com o afã de alcançar os objetivos propostos. A técnica
adotada é a bibliográfica.
Em um primeiro momento, demonstrou-se como os princípios estão
correlacionados no ordenamento jurídico brasileiro, por meio de sua conceituação,
distinção de regras e seu status na Constituição da República Federativa de 1988,
especialmente no que tange à seleção dos princípios a serem aplicados na esfera
penal. Em um segundo momento, discutiu-se a compatibilidade do frequente e
historicamente invocado “princípio da verdade real” no processo penal frente à
Constituição da República Federativa do Brasil, por meio da análise de suas raízes
históricas e a eventual recepção do princípio pelo Constituinte.
2
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 25 ago. 2023.
3
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2002, p.60
4
REALE, op. cit., p.60.
5
FIUZA, César; SILVA, Sávio, Lúcio Matos da. Principiologia do Direito de Família: instrumento para a
efetivação dos direitos fundamentais. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César (orgs.).
Direito privado e contemporaneidade: desafios e perspectivas do Direito Privado no século XXI. Vol. II.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p.422.
2
Os princípios, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, são “mandamento
nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia
sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata
compreensão e inteligência”7.
Na concepção do Professor Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias8,
6
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2008, p. 90.
7
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. São Paulo: Malheiros,
2003, p.818.
8
DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. 5 ed.
Belo Horizonte, Editora Del Rey: 2022.
9
ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. In:
SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio
da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 176.
10
ÁVILA, op. cit., p.177.
11
ÁVILA, op. cit., p.177.
12
ÁVILA, op. cit., p.179.
13
ÁVILA, op. cit., p.180.
3
Considerando sua natureza jurídica de norma, faz-se necessária a distinção de
regras e princípios. José Joaquim Gomes Canotilho distingue os princípios das regras
pelo seu grau de abstração, eis que “os princípios são normas com um grau de
abstracção relativamente elevado, enquanto as regras possuem uma abstracção
relativamente reduzida”14.
Para Robert Alexy15, as regras possuem conteúdo determinado e sua
aplicabilidade está condicionada ao preenchimento de seus pressupostos, possuindo a
subsunção como forma de aplicação. Em sentido diverso, os princípios não possuem
um conteúdo determinado, mas sim um dever-prima-facie, “eles exigem que algo seja
realizado em medida tão alta quanto possível relativamente às possibilidade fáticas e
jurídicas”16.
Como mandamentos de otimização17, os princípios atingem aplicabilidade
prática em níveis diferentes, podendo haver colisões entre eles18, que serão
solucionados por meio da aplicação do método da ponderação19. Diferentemente, as
regras são mandamentos definitivos, “só podem ser cumpridas ou não cumpridas” 20,
sendo eventual colisão resolvida pela declaração de nulidade de determinada regra ou
pela criação de exceção, que ensejaria a uma nova regra.
De modo distinto, Gilmar Mendes21 explica a distinção dada por Dworkin por
meio da aplicação qualitativa. As regras se aplicam “segundo o modo do tudo ou nada;
de maneira, portanto, disjuntiva”. No caso de colisão, deverão ser utilizados os critérios
de hierarquia, especialidade e cronologia para soluciona-los.
Os princípios, porém, não possuem a mesma consequência jurídica das regras.
A sua aplicabilidade está condicionada à situação concreta e à dimensão do peso
conferido a cada princípio na circunstância analisada, eis que “os princípios, como
delineados por Dworkin, captam os valores morais da comunidade e os tornam
elementos próprios do discurso jurídico”22.
Em sentido oposto às regras, Gilmar Mendes Ferreira23 indica que os princípios
também desempenham uma função argumentativa:
14
CANOTILHO, José J. G. Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p.1160.
15
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução Luís Afonso Heck. 3. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2011, p.37.
16
ALEXY, op. cit., p.37.
17
ALEXY, op. cit., p.64.
18
Malgrado Robert Alexy tenha utilizado o termo “colisão” entre princípios, mostra-se mais técnico o
termo “tensão”, utilizado pelo Professor Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias (2022, p.149), eis que,
considerando a coexistência harmônica dos princípios no ordenamento jurídico, não haveria que se falar
em colisão, sentido mais próprio às regras. A tensão seria, então, a aparente contrariedade de dois ou
mais princípios, que assume aplicabilidade na análise do caso concreto por meio da ponderação.
19
A esse respeito, completa Robert Alexy, 2011, p.64: “Princípios e ponderações são dois lados do
mesmo objeto. Um é do tipo teórico-normativo, o outro, metodológico. Quem efetua ponderações no
direito pressupõe que as normas, entre as quais é ponderado, têm a estrutura de princípios e quem
classifica normas como princípio deve chegar a ponderações. O litígio sobre as teorias dos princípios é,
com isso, essencialmente, um litígio sobre a ponderação.”
20
ALEXY, op. cit., p.64
21
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p.34.
22
MENDES, op. cit., p.34.
23
MENDES, op. cit., p.34.
4
adequada da norma, que exige o concurso público para o preenchimento
desses cargos.
Já que os princípios estruturam um instituto, dão ensejo, ainda, até mesmo à
descoberta de regras que não estão expressas em um enunciado legislativo,
propiciando o desenvolvimento e a integração do ordenamento jurídico. Aqui,
cabe pensar no princípio da moralidade e no princípio da publicidade como
determinantes da proibição de que um concurso público possa ter prazo
sumamente exíguo de inscrição de interessados, em horários e localidades
inadequados.
24
Interessante a contextualização de Roberto Henrique Pôrto Nogueira, 2009, p.24: “Os princípios, na
ordem de coisas atual, interpenetram-se, subdividem-se, apresentam-se em aspectos sortidos, num
único catálogo aberto, ou, por melhor dizer, numa única comunidade aberta. Com o afastamento da ideia
de princípios fundantes, que é redutiva, tem-se que a comunidade de princípios estende-se no compasso
da complexidade social, relacionada à experiência jurídica e, lado outro, compõem, todos os princípios, o
sistema jurídico”. NOGUEIRA, Roberto Henrique Pôrto. A comunidade principiologica aberta no direito
privado: um estudo a partir da proposta de Ronald Dworkin em "o império do direito". In: FIUZA, César;
SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coords.). Direito Civil: atualidades III
- princípios jurídicos no Direito Privado. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p.1-36.
25
Relevante a concepção de Marcelo Campos Galuppo: “Portanto, se tivermos em mente a exigência de
Integridade do direito (que se cumpre, antes de mais nada, de forma interpretativa), os princípios devem
ser concebidos como direitos decorrentes do pluralismo constitutivo das sociedades contemporâneas,
que não podem ser nem enumerados previamente a uma situação específica, nem hierarquizados em
qualquer circunstância, e que podem excepcionar a aplicação de outros direitos, vez que, não podendo
permanecer em concorrência uns com os outros no caso concreto, se desejamos respeitar a Integridade
do direito, às vezes não poderão ser contemporaneamente aplicados”. GALUPPO, Marcelo Campos.
Igualdade e diferença: Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo
Horizonte: Melhoramentos, 2002, p. 189.
26
BRASIL, op. cit., 1988.
27
DIAS, op. cit., p. 158.
28
BRASIL, op. cit., 1988.
5
princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), em que todas as
normas devem observância, dada a sua característica de eixo valorativo do
ordenamento jurídico.
Embasado no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (artigo 1º,
inciso III), o constituinte definiu os parâmetros estatais do sistema processual penal a
ser adotado pelo Estado, por meio da separação das funções de acusar (artigo 129, I,
CRFB/88) e julgar (princípio do juiz natural inscrito no artigo 5º, LII, CRFB/88), a
obrigatoriedade do devido processo legal mediante a garantia do contraditório e ampla
defesa ao acusado (artigo 5º, incisos LIV e LVI, CRFB/88).
Por meio da análise de suas normas-princípios, resta evidente que a opção
política do povo exteriorizada pela Constituição da República Federativa de 1988 foi a
adoção do sistema acusatório de processo penal, em que o indivíduo acusado é tido
como sujeito de direitos a serem tutelados, obrigatoriamente, pelo Estado-Juiz, que
deve imparcial e o principal garantidor dos direitos individuais do acusado.
Desse modo, sendo a Constituição Federal elemento estruturante do
ordenamento jurídico brasileiro, inexiste a possibilidade de se sustentar qualquer
norma-princípio que destoe do que fora previsto constitucionalmente, razão pela qual
se faz necessária a análise do frequentemente invocado “princípio da verdade real” em
matéria penal.
29
AMBOS, Kai. El Principio Acusatorio y El Proceso Acusatorio: um intento de comprender su
significado actual desde la perspectiva histórica. In: WINTER, Lorena Bachmaier. (Coord.). Processo
Penal y Sistemas Acusatorios. Madrid, 2008, p.50.
30
AMBOS, op. cit., p.51.
6
juramento do acusado de não ter cometido o crime por ser íntegro (juramento
purgador), o uso de sua boa reputação para ser absolvido (jurados de apoyo), e o
socorro a Deus (juicios de Dios). Mesmo com a institucionalização do processo penal
nos crimes de percidium e perduellio, ainda não se tinha um processo inquisitorial, já
que não se buscava a verdade material, mas tão somente a determinação da
culpabilidade do acusado31.
Foi no Direito Canônico que o princípio da verdade real surgiu como condição
intrínseca ao sistema inquisitorial. Papa Inocêncio III, enfrentando o desprestígio da
Igreja em razão dos frequentes escândalos de vendas de cargos eclesiásticos, para
aumentar o controle disciplinar contra os clérigos, criou o denominado “processo de
difamação”. Este processo poderia ser instaurado a partir do mero rumor ou informação
de má-fama, buscando-se averiguar o que se denominou à época – e ecoou na
eternidade – de verdade material32.
A denominação de princípio da verdade real não foi fruto da coincidência. Dado
o objetivo de buscar o oculto ou o escondido, o termo se mostra apropriado ao
processo inquisitorial que, na sua etimologia, caracteriza-se pela “averiguação
minuciosa e indagação”, em uma relação indissociável com a verdade real33.
A incessante busca pela denominada verdade material ganhou contornos ainda
mais severos nos processos contra a bruxaria, nos quais a confissão era elemento
essencial para condenação e teria o condão de reaproximar o pecador de Deus e,
igualmente, servia como a prova mais valiosa do processo, dispensando outros
métodos de apuração34.
A sistemática do Direito Canônico foi mantida na Baixa Idade Média, e a busca
pela verdade material passou a ser validada por meio de provas racionais, instruídas
pelo Estado, sem, contudo, a observância de garantias mínimas ao acusado, que era
obrigado à confissão por meio da utilização de tortura35. Alastrou-se, então, o viés
inquisitorial do processo penal, que admitia a objetificação do indivíduo para se
alcançar “a verdade” que ocorrera no mundo dos fatos.
Nesse contexto, o princípio da verdade real foi invocado para legitimar a prática
de tortura contra os acusados, “pois se supunha que a tortura fosse um meio para
perseguir a verdade”36, em que a confissão do acusado era um meio inquestionável de
se atingir a verdade real.
Após sofrer críticas pela doutrina alemã e francesa, que defendia que o acusado
deveria ter um tratamento condizente a sua condição de sujeito de direitos, o modelo
puramente inquisitorial foi superado. O Código de Instrução Criminal Francês de 1808 e
a Constituição de Paulskirsche de 1849 na Alemanha, foram os expoentes legislativos
para a retomada do sistema acusatório, instaurando um órgão de controle policial,
separando as funções acusatórias e jurisdicionais e introduzindo um processo penal
oral, público e com a participação de jurados37.
Contudo, em que pese a evolução histórica, não se verificou a adoção, após a
Baixa Idade Média, de um sistema processual penal único, havendo coexistência entre
as características acusatórias e inquisitoriais. Especialmente no Brasil em que,
31
AMBOS, op. cit., p.52.
32
AMBOS, op. cit., p.56.
33
PINTO, Felipe Martins. Introdução crítica ao processo penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2016,
p.16.
34
AMBOS, op. cit., p.56.
35
AMBOS, op. cit., p.58.
36
PINTO, op. cit., p.18.
37
AMBOS, op. cit., p.64.
7
frequentemente, os julgadores justificam suas ações inquisitoriais em prol do
denominado princípio da verdade real, sem se debruçarem sobre o seu verdadeiro
conceito e sua completa incompatibilidade com a ótica constitucional democrática.
38
LOPES Jr., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 5. Ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2019, p.162.
39
LOPES Jr., op. cit., p.162.
8
processual. Isto é, malgrado seja característica intrínseca ao sistema inquisitório, não
há como desassociar, no sistema misto, a continuidade pela apuração da verdade
absoluta no curso do processo.
Segundo Felipe Martins Pinto, “a verdade no processo penal ainda está atrelada
a um juízo sobre a relação de conhecimento entre o sujeito que conhece e o fato por
conhecer”. A verdade, então, seria a correspondência “entre a representação do fato
pelo sujeito que busca conhecê-lo e o próprio fato, como realidade ontológica”40.
Contudo, a referida teoria se torna obstada pelos fatores impossibilidade
ideológica, teórica e prática. Na visão de Felipe Martins Pinto41, a busca pela verdade
real possui assento no método inquisitorial, em que o discurso de verdade absoluta
legitimava a violação aos direitos e as garantias do acusado e conduzia o processo
penal como segregador e opressor.
Exatamente por isso, verifica-se o entrave ideológico em se buscar a verdade
real na sistemática do processo democrático, uma vez que esta possui o condão de
mitigar os limites do ius puniendi, relativizando os direitos e as garantias do réu.
Como visto, o sujeito busca conhecer o fato, e o faz por meio da comunicação,
de modo que a verdade real é construída pelo uso da linguagem que, por sua vez, é
permeada de pluralidade cultural, variedade de vocabulários e de distintos
significados42.
Considerando os elementos intrínsecos da própria linguagem, que não é una, o
sentido e a dinâmica dos fatos podem ser sensivelmente alterados, fazendo da verdade
absoluta (ou real) um objetivo inalcançável, dada a sua impossibilidade teórica.
Ainda que se pretendesse desconsiderar a impossibilidade ideológica e teórica,
ver-se-ia a impossibilidade prática. O juiz que intervém na prova “carrega para o âmago
do exercício jurisdicional as fragilidades inerentes à essência humana”43, violando a
imparcialidade imposta constitucionalmente sob o pretexto da busca da verdade real.
A verdade correspondente, ou verdade real, substancial, material, “é uma
espécie de critério argumentativo que oferece suporte à arquitetura inquisitória
processual”44. Trata-se de um conceito flexível que subsiste na história por séculos,
amoldando-se a diferentes discursos que buscam, em síntese, sobrepor os limites
normativos em detrimento do acusado, em privilégio da acusação.
Mesmo com a nítida impropriedade e contrariedade do pretenso “princípio” da
verdade real com o ordenamento jurídico brasileiro, no julgamento do Agravo
Regimental em Habeas Corpus 171826, em 25 de outubro de 2021, de relatoria do
Ministro Alexandre de Moraes, o Supremo Tribunal Federal, endossou o “princípio” da
verdade real para afastar a nulidade de provas penais colhidas ao arrepio da
sistemática constitucional:
40
PINTO, op. cit., p.80.
41
PINTO, op. cit., p.85.
42
PINTO, op. cit., p.86.
43
PINTO, op. cit., p.89.
44
KHALED Jr., Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. 4.
ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2023, p.41.
9
manifestou e que teria, em virtude disso, gerado prejuízo capaz de invalidar
toda a instrução criminal, o art. 156, II, do CPP autoriza o magistrado a
determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a
produção de provas que entender pertinentes, a fim de dirimir dúvidas
sobre pontos relevantes, por força dos princípios da verdade real e do
impulso oficial. 3. Nulidades apontadas somente no aditamento às razões de
apelação dirigidas ao Tribunal de Justiça local. Nessas circunstâncias, não
pode a defesa, agora, valer-se de suposto prejuízo decorrente de sua omissão,
para invalidar a ação penal (CPP, art. 565). Ainda, a simples mudança de
causídico não justifica, à evidência, o reconhecimento da falta de defesa
anterior e o afastamento da preclusão. 4. Agravo Regimental a que se nega
provimento (BRASIL, 2021). (grifo nosso)
45
BRASIL, 1988.
10
capital social, não se rateando entre eles, em qualquer medida, vantagens ou
desvantagens econômicas auferidas ou sofridas pela associação. - Não é o
habeas corpus o instrumento processual idôneo para o exame de alegação de
inocência. - Alegação genérica de que nas demais acusações feitas ao ora
paciente não se levaram em conta os princípios do processo penal, do
devido processo legal, da ampla defesa, da licitude do meio probatório,
da presunção de inocência, da iniciativa das partes e da legalidade e da
busca da verdade real, não pode ser apreciada em habeas corpus.
"Habeas corpus" indeferido (BRASIL, 1996) (grifo nosso)
46
A exposição de motivos do Código de Processo Penal deixa claro o intuito inquisitorial do códex nos
seus itens: “33. Na determinação dos poderes e deveres do juiz (artigos 59 a 62), o Projeto admite a
iniciativa jurisdicional na perquirição da verdade, dado relevante de todo processo penal, sem afetar,
contudo, a marcada tendência para o sistema acusatório, ora adotado; 42. O Projeto acolhe os
princípios doutrinários que situam o Ministério Público como instituição subordinada exclusivamente aos
princípios da legalidade, da descoberta da verdade e da realização da justiça, extraindo dessa condição
superior as conseqüências lógicas. Assume assim o Ministério Público, em razão da lei, a posição
de dominus litis, cabendo-lhe, contudo, impetrar habeas corpus e interpor recursos em favor do réu
(artigos 501, § 1º e 646). 56. O contraditório domina toda a instrução criminal, com o escopo
de apuração da verdade material, relevando-se, por inteiro, no direito de audiência, ou seja, ‘na
expressão necessária do direito do cidadão à concessão de justiça, das exigências comunitárias inscritas
no Estado de Direito, da essência do Direito como tarefa do homem e, finalmente, do espírito do
processo, como "co-participação" de todos os interessados na criação da decisão’ (JORGE DE
FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, vol. I, pág. 158).” BRASIL, 1983
47
LOPES Jr., op. cit., p.273.
11
Ainda, na lição de Nereu José Giacomolli48:
A verdade real, em qualquer forma ou modelo processual, é um mito, uma
utopia que vem sendo repetida sem que se saiba seu verdadeiro sentido e
alcance, apesar de ser ideologicamente comprometida. Em todo processo, o
que temos é uma verdade processual (intraprocessual), a qual resulta do que
está nos autos, do substrato fático carreado ao processo que está sendo
julgado. Nem com magia é possível transportar a totalidade fática circunstancial
aos autos. Os humanos estão desprovidos (pelo menos até onde se alcança)
de poderes divinos e sobrenaturais para operar tais milagres. [...] o sentido que
se verifica nas entrelhinhas do discurso da verdade real é o da incidência do
ius puniendi a todo custo, a qualquer preço, além da adoção de uma
concepção de necessidade inafastável da condenação de alguém, da
culpabilidade objetiva, ou seja, pelo cometimento do fato, independentemente
da verificação ou não de seus elementos. Essa voracidade pela “verdade real”,
ultrapassa até mesmo os limites do acusador e coloca o sujeito encarregado de
julgar, na cena do crime, lugar próprio da autoridade encarregada da
investigação.
48
GIACOMOLLI, Nereu José. Atividade do juiz criminal frente à constituição: deveres e limites em face
do princípio acusatório. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Coord.). Sistema penal e violência. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.225-226.
12
Por isso, não há guarida para validar o princípio da verdade real como sendo
uma norma que informa os fundamentos do ordenamento jurídico brasileiro, eis que a
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 optou por se fundamentar em
alicerces diametralmente opostos.
Dessa forma, não haveria nem que se cogitar o uso da técnica metodológica de
ponderação de princípios, definida por Robert Alexy49, para se legitimar a aplicação do
princípio da verdade real no Brasil, como se viu a inclinação nos julgados analisados.
Para que fosse viável a ponderação ou o sopesamento do princípio da verdade real
com qualquer outro do ordenamento jurídico brasileiro, antes, o princípio da verdade
real deveria ser considerado integrante da sistemática jurídica penal, para, só então,
analisar qual princípio melhor se amoldará às circunstâncias do caso concreto.
Torna-se essencial, portanto, que a vontade do povo, exteriorizada como
mandamentos ao Estado na Constituição da República Federativa de 1988,
reverberadas pelos princípios penais e processuais penais, seja respeitada e efetivada,
de modo que não haja legitimidade para nenhum discurso sobrepujar, em decisão
judicial, a vontade do povo.
IV CONSIDERAÇÕES FINAIS
49
ALEXY, op. cit., p.64
50
BRASIL, op. cit., 1988.
51
BRASIL, op. cit., 1988.
52
BRASIL, op. cit., 1988.
53
BRASIL, op. cit., 1988.
13
que deve confessar e entregar as provas dos fatos ocultos ou escondidos à qualquer
custo.
Isso implica que o sistema inquisitorial, legitima a repressão desmedida e, por
vezes, para servir aos interesses obscuros de poder, sob o pretexto da aplicação do
princípio da verdade real que, historicamente, foi utilizada como embasamento
juridicamente válido para relativizar direitos e garantias fundamentais do acusado, que
era o objeto do processo penal.
Em razão de sua natureza jurídica pertencer a outro sistema processual –
inquisitorial – que não foi fruto da escolha do povo na Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, a sua aplicabilidade na ordem jurídica brasileira é
inapropriada e violadora dos direitos e garantias fundamentais do acusado.
Por isso, a conscientização do que, de fato, é o princípio da verdade real e a sua
incompatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro é de fulcral importância para
afastar deturpação da vontade do povo nas decisões judiciais em matéria processual
penal, de modo a conferir efetividade à proteção do indivíduo acusado insculpido pela
Constituição da República Federativa de 1988.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, Tradução Virgílio Afonso da Silva.
São Paulo: Malheiros, 2008.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 16. ed., rev.
e ampl. São Paulo: Malheiros, 2003.
14
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Ministro Moreira Alves. Data de julgamento: 11 de junho de 1996. Publicação em 31 de
outubro de 1996. Disponível em:
https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur118428/false. Acesso em 24 ago.
2023.
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Ministro Moreira Alves. Data de julgamento: 04 de setembro de 1990. Publicação em
12 de outubro de 1990. Disponível em:
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2023.
LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 5. Ed. São
Paulo: Saraiva Educação, 2019.
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PINTO, Felipe Martins. Introdução crítica ao processo penal. 2 ed. Belo Horizonte:
Del Rey, 2016.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2002.
15
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