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A PRINCIPIOLOGIA NORMATIVA E A FABRICAÇÃO DE PRINCÍPIOS NA PRAXE

FORENSE

THE NORMATIVE PRINCIPLE AND THE MANUFACTURE OF PRINCIPLES IN


FORENSIC PRACTICE

Lorena Hermenegildo de Oliveira1


Universidade Fumec

RESUMO
A Constituição da República Federativa de 1988 elencou os princípios que estruturam o ordenamento
jurídico, especialmente no âmbito penal e processual penal. Por isso, o presente estudo se debruça na
acerca da incompatibilidade do frequentemente invocado princípio da verdade real com os princípios
penais e processuais penais do Estado Democrático de Direito promulgado em 1988. Para tanto, utiliza-
se o método utilizado é o indutivo, adotando-se a linha crítico metodológica e a técnica bibliográfica.

PALAVRAS-CHAVE
Princípios; Constituição Federal; Verdade Real; Sistema acusatório.

ABSTRACT
The Constitution of the Federativa Repulic of 1988 listed the principles that structure the legal system,
especially in the criminal and riminal procedure scope. For this reason, the present study focuses on the
incompatibility of the frequently invoked principle of real truth with the Democratic State of Law enacted in
1988. For this purpose, the method used is the inductive one, adopting the critical methodological line
and the bibliographic technique.

KEYWORDS
Principles; Federal Constitution; Real truth; accusatory system.

I INTRODUÇÃO

Os princípios fundamentam o conhecimento da ciência jurídica e, no contexto


brasileiro, assumem com relevância a função de serem pressupostos básicos do
sistema jurídico, orientando a aplicação e a interpretação das normas, bem como
conferindo validade às legislações. Dada a sua natureza jurídica de norma, os
princípios incorporados à ordem jurídica brasileira foram previstos na Constituição da
República Federativa do Brasil, indicando a opção político-jurídica adotada pelo povo.
Considerando o constituinte ter encampado princípios penais expressos que
denotam a adoção do sistema processual acusatório, a exemplo da separação das
funções de acusar (artigo 129, I) e de julgar (princípio do juiz natural inscrito no artigo

1
Mestranda em Direito Público pela Universidade FUMEC. Especialista em Direito Militar pela
Universidade Cândido Mendes. Especialista em Advocacia Penal pela Universidade FUMEC.
Especialista em Direito Digital pela Universidade São Judas Tadeu. Advogada. Coordenadora de
Relações Institucionais da Comissão de Direito Militar da OAB/MG. Membro da Comissão Nacional de
Direito Militar da Associação Brasileira dos Advogados (ABA). Delegada de Prerrogativas da OAB/MG.
Professora de Direito Penal Comum e Militar, Direito Processual Penal Comum e Militar, Direito
Administrativo. E-mail: lorena.advocacia.e@gmail.com. Endereço para acessar o Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/3249409887116169.
1
5º, LII), a obrigatoriedade do devido processo legal mediante a garantia do contraditório
e ampla defesa ao acusado (artigo 5º, incisos LIV e LVI)2, discute-se a recepção e a
compatibilidade do historicamente invocado princípio da verdade real com a ordem
democrática instaurada pela Constituição da República Federativa de 1988, no âmbito
penal e processual penal.
O estudo aprofundado da temática mostra-se fulcral para a correção de
equívocos terminológicos e uso inapropriados de conceitos opostos aos erigidos pela
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, buscando-se adequar o uso
dos princípios e valores emanados pela Constituição, bem como pelas demais normas
jurídicas pertinentes.
A pesquisa adere ao método indutivo, o qual tem como objetivo ampliar o
alcance dos conhecimentos, se caracterizando por “um processo mental que parte de
dados particulares e localizados e se dirige a constatações gerais. Assim, as
conclusões do processo indutivo de raciocínio são sempre mais amplas do que os
dados ou premissas dos quais derivam”. (GUSTIN; DIAS, 2013, p. 22).
A pesquisa segue a linha crítico metodológica, de forma que as normas, as
decisões judiciais e o entendimento da doutrina são analisados com a devida
criticidade e argumentação, com o afã de alcançar os objetivos propostos. A técnica
adotada é a bibliográfica.
Em um primeiro momento, demonstrou-se como os princípios estão
correlacionados no ordenamento jurídico brasileiro, por meio de sua conceituação,
distinção de regras e seu status na Constituição da República Federativa de 1988,
especialmente no que tange à seleção dos princípios a serem aplicados na esfera
penal. Em um segundo momento, discutiu-se a compatibilidade do frequente e
historicamente invocado “princípio da verdade real” no processo penal frente à
Constituição da República Federativa do Brasil, por meio da análise de suas raízes
históricas e a eventual recepção do princípio pelo Constituinte.

II OS PRINCÍPIOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Os princípios podem ser conceituados como sendo “verdades ou juízos


fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de
juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade” 3.
E, também, podem se revelar como “proposições que, apesar de não serem evidentes
ou resultantes de evidências, são assumidas como fundantes da validez de um sistema
particular de conhecimentos, como pressupostos necessários”4.
Em outras palavras, os princípios são “normas gerais e fundantes que fornecem
os pilares de determinado ramo do pensamento científico ou do ordenamento jurídico”,
assumindo a função de informar os fundamentos do conhecimento científico5.
Na lição de Robert Alexy6, os princípios “são normas que ordenam que algo seja
realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas
existentes”, podendo ser satisfeitos em diferentes graus.

2
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 25 ago. 2023.
3
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2002, p.60
4
REALE, op. cit., p.60.
5
FIUZA, César; SILVA, Sávio, Lúcio Matos da. Principiologia do Direito de Família: instrumento para a
efetivação dos direitos fundamentais. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César (orgs.).
Direito privado e contemporaneidade: desafios e perspectivas do Direito Privado no século XXI. Vol. II.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p.422.
2
Os princípios, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, são “mandamento
nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia
sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata
compreensão e inteligência”7.
Na concepção do Professor Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias8,

Em noção ampla, os princípios de direito devem ser entendidos como normas


jurídicas que exprimem, sob enunciados sintéticos, o conteúdo complexo de
ideias científicas e proposições fundamentais informadoras e componentes do
ordenamento jurídico. Tomando-se por base esta concepção tradicional, pode-
se dizer que os princípios jurídicos se caracterizam como diretrizes gerais
induzidas e indutoras do direito, porque são inferidas de um sistema jurídico e,
após inferidas, se reportam ao próprio sistema jurídico para informa-lo, como
se fossem os alicerces de sua estrutura.

Para Humberto Ávila9, a definição de princípios perpassa pela distinção de sua


finalidade do objeto de conhecimento do qual é originado. Partindo de três principais
variantes, como classifica o autor, os princípios podem ter seu conceito extraído por
meio da distinção como axioma, postulado e norma.
Como axioma, o princípio revela um conhecimento aceito por todos, em que seu
conteúdo é extraído por decorrência lógica. Por exemplo, o princípio da supremacia do
interesse público sob o particular, “definido como um axioma justamente porque seria
autodemonstrável ou óbvio”10.
O princípio também pode ser compreendido por meio dos postulados, ou seja,
pelos pressupostos necessários à compreensão do seu objeto, classificados como
normativos e ético-políticos. Segundo Humberto Ávila, “os postulados normativos são
entendidos como condições de possibilidade do conhecimento do fenômeno jurídico” 11,
referenciados pela doutrina de “princípio como ideia normativa geral” que, dado o seu
caráter de indeterminação, ostentam apenas o caráter normativo, eis que ausentes
determinação de comportamento para serem enquadradas como normas de
comportamento.
Diferentemente, os postulados ético-políticos partem de pressupostos
necessários ao convívio social e buscam explicar os fundamentos da criação das
normas, e não necessariamente o seu conteúdo na sistemática jurídica12.
Como norma, o princípio assume papel orientador na interpretação e na
aplicação do direito, caracterizando-se por ser “estruturalmente concretizável em vários
graus: seu conteúdo depende dos outros princípios, que podem derroga-lo em
determinado caso concreto”13.

6
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2008, p. 90.
7
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. São Paulo: Malheiros,
2003, p.818.
8
DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. 5 ed.
Belo Horizonte, Editora Del Rey: 2022.
9
ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. In:
SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio
da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 176.
10
ÁVILA, op. cit., p.177.
11
ÁVILA, op. cit., p.177.
12
ÁVILA, op. cit., p.179.
13
ÁVILA, op. cit., p.180.
3
Considerando sua natureza jurídica de norma, faz-se necessária a distinção de
regras e princípios. José Joaquim Gomes Canotilho distingue os princípios das regras
pelo seu grau de abstração, eis que “os princípios são normas com um grau de
abstracção relativamente elevado, enquanto as regras possuem uma abstracção
relativamente reduzida”14.
Para Robert Alexy15, as regras possuem conteúdo determinado e sua
aplicabilidade está condicionada ao preenchimento de seus pressupostos, possuindo a
subsunção como forma de aplicação. Em sentido diverso, os princípios não possuem
um conteúdo determinado, mas sim um dever-prima-facie, “eles exigem que algo seja
realizado em medida tão alta quanto possível relativamente às possibilidade fáticas e
jurídicas”16.
Como mandamentos de otimização17, os princípios atingem aplicabilidade
prática em níveis diferentes, podendo haver colisões entre eles18, que serão
solucionados por meio da aplicação do método da ponderação19. Diferentemente, as
regras são mandamentos definitivos, “só podem ser cumpridas ou não cumpridas” 20,
sendo eventual colisão resolvida pela declaração de nulidade de determinada regra ou
pela criação de exceção, que ensejaria a uma nova regra.
De modo distinto, Gilmar Mendes21 explica a distinção dada por Dworkin por
meio da aplicação qualitativa. As regras se aplicam “segundo o modo do tudo ou nada;
de maneira, portanto, disjuntiva”. No caso de colisão, deverão ser utilizados os critérios
de hierarquia, especialidade e cronologia para soluciona-los.
Os princípios, porém, não possuem a mesma consequência jurídica das regras.
A sua aplicabilidade está condicionada à situação concreta e à dimensão do peso
conferido a cada princípio na circunstância analisada, eis que “os princípios, como
delineados por Dworkin, captam os valores morais da comunidade e os tornam
elementos próprios do discurso jurídico”22.
Em sentido oposto às regras, Gilmar Mendes Ferreira23 indica que os princípios
também desempenham uma função argumentativa:

Por serem mais abrangentes que as regras e por assinalarem os standards de


justiça relacionados com certo instituto jurídico, seriam instrumentos úteis para
se descobrir a razão de ser de uma regra ou mesmo de outro princípio menos
amplo. Assim, o princípio da igualdade informaria o princípio da acessibilidade
de todos aos cargos públicos, que, de seu turno, confere a compreensão

14
CANOTILHO, José J. G. Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p.1160.
15
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução Luís Afonso Heck. 3. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2011, p.37.
16
ALEXY, op. cit., p.37.
17
ALEXY, op. cit., p.64.
18
Malgrado Robert Alexy tenha utilizado o termo “colisão” entre princípios, mostra-se mais técnico o
termo “tensão”, utilizado pelo Professor Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias (2022, p.149), eis que,
considerando a coexistência harmônica dos princípios no ordenamento jurídico, não haveria que se falar
em colisão, sentido mais próprio às regras. A tensão seria, então, a aparente contrariedade de dois ou
mais princípios, que assume aplicabilidade na análise do caso concreto por meio da ponderação.
19
A esse respeito, completa Robert Alexy, 2011, p.64: “Princípios e ponderações são dois lados do
mesmo objeto. Um é do tipo teórico-normativo, o outro, metodológico. Quem efetua ponderações no
direito pressupõe que as normas, entre as quais é ponderado, têm a estrutura de princípios e quem
classifica normas como princípio deve chegar a ponderações. O litígio sobre as teorias dos princípios é,
com isso, essencialmente, um litígio sobre a ponderação.”
20
ALEXY, op. cit., p.64
21
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p.34.
22
MENDES, op. cit., p.34.
23
MENDES, op. cit., p.34.
4
adequada da norma, que exige o concurso público para o preenchimento
desses cargos.
Já que os princípios estruturam um instituto, dão ensejo, ainda, até mesmo à
descoberta de regras que não estão expressas em um enunciado legislativo,
propiciando o desenvolvimento e a integração do ordenamento jurídico. Aqui,
cabe pensar no princípio da moralidade e no princípio da publicidade como
determinantes da proibição de que um concurso público possa ter prazo
sumamente exíguo de inscrição de interessados, em horários e localidades
inadequados.

Por meio das conceituações doutrinárias, pode se entender os princípios como


sendo pressupostos básicos do sistema jurídico, que orientam a aplicação e a
interpretação das normas e, na mesma medida, conferem validade às normas do
ordenamento jurídico2425.
Nesse sentido, a Constituição da República Federativa de 198826 destacou a
relevância normativa dos princípios para o ordenamento jurídico ao descrever, no Título
I, os “princípios fundamentais” da República Federativa do Brasil, dentre outros, a
cidadania e, no caput, o Estado Democrático de Direito.
Em que pese a discordância de parcela da doutrina, que compreende o Estado
Democrático de Direito como sendo forma de Estado, brilhante a concepção do
Professor Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias ao identificar que a Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 articulou os princípios de Estado de Direito e
do Estado Democrático, “obtida pelo entrelaçamento técnico e harmonioso das normas
constitucionais”27.
Todas as normas-princípios incorporadas pela Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 estão elencadas em seu texto, exteriorizando a opção
política do povo, a exemplo do princípio da legalidade e anterioridade penal (artigo 5º.
XXXIX), do princípio da irretroatividade da lei penal maléfica (artigo 5º, XL), do
contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, LV), do estado de inocência (artigo 5º,
LVII)28.
É dizer, então, que, em matéria penal, a Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988 elencou os seus pressupostos básicos que orientarão a aplicação e a
interpretação de suas normas, tendo como fundamento essencial e indissociável o

24
Interessante a contextualização de Roberto Henrique Pôrto Nogueira, 2009, p.24: “Os princípios, na
ordem de coisas atual, interpenetram-se, subdividem-se, apresentam-se em aspectos sortidos, num
único catálogo aberto, ou, por melhor dizer, numa única comunidade aberta. Com o afastamento da ideia
de princípios fundantes, que é redutiva, tem-se que a comunidade de princípios estende-se no compasso
da complexidade social, relacionada à experiência jurídica e, lado outro, compõem, todos os princípios, o
sistema jurídico”. NOGUEIRA, Roberto Henrique Pôrto. A comunidade principiologica aberta no direito
privado: um estudo a partir da proposta de Ronald Dworkin em "o império do direito". In: FIUZA, César;
SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coords.). Direito Civil: atualidades III
- princípios jurídicos no Direito Privado. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p.1-36.
25
Relevante a concepção de Marcelo Campos Galuppo: “Portanto, se tivermos em mente a exigência de
Integridade do direito (que se cumpre, antes de mais nada, de forma interpretativa), os princípios devem
ser concebidos como direitos decorrentes do pluralismo constitutivo das sociedades contemporâneas,
que não podem ser nem enumerados previamente a uma situação específica, nem hierarquizados em
qualquer circunstância, e que podem excepcionar a aplicação de outros direitos, vez que, não podendo
permanecer em concorrência uns com os outros no caso concreto, se desejamos respeitar a Integridade
do direito, às vezes não poderão ser contemporaneamente aplicados”. GALUPPO, Marcelo Campos.
Igualdade e diferença: Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo
Horizonte: Melhoramentos, 2002, p. 189.
26
BRASIL, op. cit., 1988.
27
DIAS, op. cit., p. 158.
28
BRASIL, op. cit., 1988.
5
princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), em que todas as
normas devem observância, dada a sua característica de eixo valorativo do
ordenamento jurídico.
Embasado no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (artigo 1º,
inciso III), o constituinte definiu os parâmetros estatais do sistema processual penal a
ser adotado pelo Estado, por meio da separação das funções de acusar (artigo 129, I,
CRFB/88) e julgar (princípio do juiz natural inscrito no artigo 5º, LII, CRFB/88), a
obrigatoriedade do devido processo legal mediante a garantia do contraditório e ampla
defesa ao acusado (artigo 5º, incisos LIV e LVI, CRFB/88).
Por meio da análise de suas normas-princípios, resta evidente que a opção
política do povo exteriorizada pela Constituição da República Federativa de 1988 foi a
adoção do sistema acusatório de processo penal, em que o indivíduo acusado é tido
como sujeito de direitos a serem tutelados, obrigatoriamente, pelo Estado-Juiz, que
deve imparcial e o principal garantidor dos direitos individuais do acusado.
Desse modo, sendo a Constituição Federal elemento estruturante do
ordenamento jurídico brasileiro, inexiste a possibilidade de se sustentar qualquer
norma-princípio que destoe do que fora previsto constitucionalmente, razão pela qual
se faz necessária a análise do frequentemente invocado “princípio da verdade real” em
matéria penal.

III O PRINCÍPIO DA VERDADE REAL E A SUA INCOMPATIBILIDADE NO


PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

III.I RAÍZES HISTÓRICAS DO PRINCÍPIO DA VERDADE REAL

A conceituação do princípio da verdade real perpassa, necessariamente, pela


compreensão dos sistemas acusatório e inquisitorial, que ensejou no seu surgimento.
Na lição de Kai Ambos29, o surgimento do sistema acusatório, denominado pelo
autor de “sistema acusatório puro”, remonta à cidade de Atenas, em que aos cidadãos
era permitido formular uma acusação para ser submetida ao julgamento popular,
mediante o pagamento de uma caução para custear eventual falsidade das alegações
do acusador e, também, uma multa de 1.000 dracmas ao acusador que não tivesse
procedência do pedido por, pelo menos, 1/5 dos juízes.
Os juízes eram escolhidos dentre os cidadãos, podendo ser de 501 a 6.000 a
depender da complexidade do caso, estando todos adstritos aos pedidos formulados
pelo acusador privado – cidadão comum. Todo o sistema do processo penal era
privado com vistas a conferir à sentença toda expressão direta da soberania popular e
da democracia30.
No Direito Romano Republicano, também eram admitidas as acusações
privadas, com exceção dos crimes de percidium (abate) e perduellio (alta traição),
sendo os delitos ordinários submetidos a uma assembleia popular. Contudo, quanto
aos crimes de percidium e perduellio, havia uma instrução oficial – denominada de
inquisitio – proposta pelo questor, um funcionário nomeado pelo cônsul.
Regido pela oficialidade, o objetivo da inquisitio era, apenas, determinar a
culpabilidade do acusado, baseando-se em provas de caráter irracional, como o

29
AMBOS, Kai. El Principio Acusatorio y El Proceso Acusatorio: um intento de comprender su
significado actual desde la perspectiva histórica. In: WINTER, Lorena Bachmaier. (Coord.). Processo
Penal y Sistemas Acusatorios. Madrid, 2008, p.50.
30
AMBOS, op. cit., p.51.
6
juramento do acusado de não ter cometido o crime por ser íntegro (juramento
purgador), o uso de sua boa reputação para ser absolvido (jurados de apoyo), e o
socorro a Deus (juicios de Dios). Mesmo com a institucionalização do processo penal
nos crimes de percidium e perduellio, ainda não se tinha um processo inquisitorial, já
que não se buscava a verdade material, mas tão somente a determinação da
culpabilidade do acusado31.
Foi no Direito Canônico que o princípio da verdade real surgiu como condição
intrínseca ao sistema inquisitorial. Papa Inocêncio III, enfrentando o desprestígio da
Igreja em razão dos frequentes escândalos de vendas de cargos eclesiásticos, para
aumentar o controle disciplinar contra os clérigos, criou o denominado “processo de
difamação”. Este processo poderia ser instaurado a partir do mero rumor ou informação
de má-fama, buscando-se averiguar o que se denominou à época – e ecoou na
eternidade – de verdade material32.
A denominação de princípio da verdade real não foi fruto da coincidência. Dado
o objetivo de buscar o oculto ou o escondido, o termo se mostra apropriado ao
processo inquisitorial que, na sua etimologia, caracteriza-se pela “averiguação
minuciosa e indagação”, em uma relação indissociável com a verdade real33.
A incessante busca pela denominada verdade material ganhou contornos ainda
mais severos nos processos contra a bruxaria, nos quais a confissão era elemento
essencial para condenação e teria o condão de reaproximar o pecador de Deus e,
igualmente, servia como a prova mais valiosa do processo, dispensando outros
métodos de apuração34.
A sistemática do Direito Canônico foi mantida na Baixa Idade Média, e a busca
pela verdade material passou a ser validada por meio de provas racionais, instruídas
pelo Estado, sem, contudo, a observância de garantias mínimas ao acusado, que era
obrigado à confissão por meio da utilização de tortura35. Alastrou-se, então, o viés
inquisitorial do processo penal, que admitia a objetificação do indivíduo para se
alcançar “a verdade” que ocorrera no mundo dos fatos.
Nesse contexto, o princípio da verdade real foi invocado para legitimar a prática
de tortura contra os acusados, “pois se supunha que a tortura fosse um meio para
perseguir a verdade”36, em que a confissão do acusado era um meio inquestionável de
se atingir a verdade real.
Após sofrer críticas pela doutrina alemã e francesa, que defendia que o acusado
deveria ter um tratamento condizente a sua condição de sujeito de direitos, o modelo
puramente inquisitorial foi superado. O Código de Instrução Criminal Francês de 1808 e
a Constituição de Paulskirsche de 1849 na Alemanha, foram os expoentes legislativos
para a retomada do sistema acusatório, instaurando um órgão de controle policial,
separando as funções acusatórias e jurisdicionais e introduzindo um processo penal
oral, público e com a participação de jurados37.
Contudo, em que pese a evolução histórica, não se verificou a adoção, após a
Baixa Idade Média, de um sistema processual penal único, havendo coexistência entre
as características acusatórias e inquisitoriais. Especialmente no Brasil em que,

31
AMBOS, op. cit., p.52.
32
AMBOS, op. cit., p.56.
33
PINTO, Felipe Martins. Introdução crítica ao processo penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2016,
p.16.
34
AMBOS, op. cit., p.56.
35
AMBOS, op. cit., p.58.
36
PINTO, op. cit., p.18.
37
AMBOS, op. cit., p.64.
7
frequentemente, os julgadores justificam suas ações inquisitoriais em prol do
denominado princípio da verdade real, sem se debruçarem sobre o seu verdadeiro
conceito e sua completa incompatibilidade com a ótica constitucional democrática.

III.II LINEAMENTOS SOBRE O PRINCÍPIO DA VERDADE REAL NO CONTEXTO


BRASILEIRO

Historicamente, o princípio da verdade real surgiu na sistemática inquisitorial, em


que a busca pela denominada “verdade dos fatos” se revelava como um objetivo
indissociável do juiz inquisidor, que se valia da prática de tortura para alcançar o que
havia sido escondido, por meio da confissão do acusado.
Nesse aspecto, o processo penal inquisitorial tinha o acusado como mero objeto,
na medida em que, para se alcançar a pretendida verdade, não haveria limites para o
Estado formular provas, sobretudo em se tratando da confissão, considerada a de
maior valor probatório. Justamente por isso, o acusado era apenas o portador de
informações cruciais sobre o fato a ser apurado, podendo ser utilizado qualquer recurso
contra ele para a efetivação do intento estatal.
Inobstante a impropriedade do uso do princípio da verdade real no processo
penal democrático, sustenta parte da doutrina (e mesmo decisões judiciais) a
possibilidade de sua existência na fase pré-processual do sistema processual misto.
Esta sistemática foi criada pelo Code d’Instruction Criminalle de 1808 da França, que
divide as fases pré-processual, mediante investigação com características
predominantemente inquisitorial, e a fase processual, seguindo as características
acusatórias38.
A divisão das fases pré-processual e processual foi adotada no Brasil, sendo
que na fase policial vigora o dito “princípio da verdade real”, como corolário do sistema
inquisitorial, em que não há contraditório e ampla defesa, mas apenas a instrução
estatal para a colheita de provas. A herança dessa solução apresentada por Napoleão
Bonaparte não é imune às críticas.
Na lição de Aury Lopes Jr.39, a criação de um sistema misto para se chancelar o
princípio da verdade real não passou de uma fraude ao sistema acusatório. Isto porque
a prova produzida na fase processual nada mais representa do que a repetição dos
atos da fase inquisitorial, como meio de “imunizar a decisão” produzida ao arrepio da
verdadeira observância do sistema acusatório.
Em outras palavras, a pretensão inquisitorial não foi abandonada pelos
julgadores. A aplicação do denominado princípio da verdade real na fase pré-
processual possui o condão de mascarar a decisão que, muito embora tenha sido
proferida na fase processual, apenas repete os vícios adquiridos na fase inquisitorial.
Não à toa, se fez (e ainda se faz) presente inúmeros atos processuais em que,
antes de iniciadas as perguntas à testemunha na audiência de instrução e julgamento,
era lido seu depoimento em delegacia, seguido da indagação se a testemunha
ratificava as declarações prestadas em sede de análise inquisitorial. Isto é, a fase
inquisitorial apenas era (ou é) confirmada em juízo, sob o aparente contraditório e
ampla defesa.
Considerando a existência de uma fase investigativa inquisitorial, inegavelmente
se verifica a contaminação do dito princípio da verdade real também na fase

38
LOPES Jr., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 5. Ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2019, p.162.
39
LOPES Jr., op. cit., p.162.
8
processual. Isto é, malgrado seja característica intrínseca ao sistema inquisitório, não
há como desassociar, no sistema misto, a continuidade pela apuração da verdade
absoluta no curso do processo.
Segundo Felipe Martins Pinto, “a verdade no processo penal ainda está atrelada
a um juízo sobre a relação de conhecimento entre o sujeito que conhece e o fato por
conhecer”. A verdade, então, seria a correspondência “entre a representação do fato
pelo sujeito que busca conhecê-lo e o próprio fato, como realidade ontológica”40.
Contudo, a referida teoria se torna obstada pelos fatores impossibilidade
ideológica, teórica e prática. Na visão de Felipe Martins Pinto41, a busca pela verdade
real possui assento no método inquisitorial, em que o discurso de verdade absoluta
legitimava a violação aos direitos e as garantias do acusado e conduzia o processo
penal como segregador e opressor.
Exatamente por isso, verifica-se o entrave ideológico em se buscar a verdade
real na sistemática do processo democrático, uma vez que esta possui o condão de
mitigar os limites do ius puniendi, relativizando os direitos e as garantias do réu.
Como visto, o sujeito busca conhecer o fato, e o faz por meio da comunicação,
de modo que a verdade real é construída pelo uso da linguagem que, por sua vez, é
permeada de pluralidade cultural, variedade de vocabulários e de distintos
significados42.
Considerando os elementos intrínsecos da própria linguagem, que não é una, o
sentido e a dinâmica dos fatos podem ser sensivelmente alterados, fazendo da verdade
absoluta (ou real) um objetivo inalcançável, dada a sua impossibilidade teórica.
Ainda que se pretendesse desconsiderar a impossibilidade ideológica e teórica,
ver-se-ia a impossibilidade prática. O juiz que intervém na prova “carrega para o âmago
do exercício jurisdicional as fragilidades inerentes à essência humana”43, violando a
imparcialidade imposta constitucionalmente sob o pretexto da busca da verdade real.
A verdade correspondente, ou verdade real, substancial, material, “é uma
espécie de critério argumentativo que oferece suporte à arquitetura inquisitória
processual”44. Trata-se de um conceito flexível que subsiste na história por séculos,
amoldando-se a diferentes discursos que buscam, em síntese, sobrepor os limites
normativos em detrimento do acusado, em privilégio da acusação.
Mesmo com a nítida impropriedade e contrariedade do pretenso “princípio” da
verdade real com o ordenamento jurídico brasileiro, no julgamento do Agravo
Regimental em Habeas Corpus 171826, em 25 de outubro de 2021, de relatoria do
Ministro Alexandre de Moraes, o Supremo Tribunal Federal, endossou o “princípio” da
verdade real para afastar a nulidade de provas penais colhidas ao arrepio da
sistemática constitucional:

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. ESTUPRO. NULIDADE.


INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. MATÉRIA SUSCITADA
APENAS NAS RAZÕES DO RECURSO DE APELAÇÃO. PRECLUSÃO.
AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE PREJUÍZO. 1. Sem a demonstração de
efetivo prejuízo causado à parte, em atenção ao disposto no art. 563 do CPP,
não se reconhece nulidade no processo penal. Precedentes. 2. Além de não
haver indicação de qualquer ato ou fato sobre o qual a defesa não se

40
PINTO, op. cit., p.80.
41
PINTO, op. cit., p.85.
42
PINTO, op. cit., p.86.
43
PINTO, op. cit., p.89.
44
KHALED Jr., Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. 4.
ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2023, p.41.
9
manifestou e que teria, em virtude disso, gerado prejuízo capaz de invalidar
toda a instrução criminal, o art. 156, II, do CPP autoriza o magistrado a
determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a
produção de provas que entender pertinentes, a fim de dirimir dúvidas
sobre pontos relevantes, por força dos princípios da verdade real e do
impulso oficial. 3. Nulidades apontadas somente no aditamento às razões de
apelação dirigidas ao Tribunal de Justiça local. Nessas circunstâncias, não
pode a defesa, agora, valer-se de suposto prejuízo decorrente de sua omissão,
para invalidar a ação penal (CPP, art. 565). Ainda, a simples mudança de
causídico não justifica, à evidência, o reconhecimento da falta de defesa
anterior e o afastamento da preclusão. 4. Agravo Regimental a que se nega
provimento (BRASIL, 2021). (grifo nosso)

A conceituação da verdade real como um princípio – ainda que no Estado


Democrático de Direito – é posicionamento reiterado (historicamente) de seguidos
julgamentos do Supremo Tribunal Federal:

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. COMPETÊNCIA


TERRITORIAL. DIVERGÊNCIA QUANTO AO LOCAL DE CONSUMAÇÃO DO
CRIME MAIS GRAVE. INCIDÊNCIA DA REGRA DO ART. 70, § 3º, DO CPP.
PREVENÇÃO DE UMA DAS COMARCAS POSSIVELMENTE
COMPETENTES. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL. NÃO
OCORRÊNCIA. INVIBILIDADE DE REEXAME DO CONTEXTO FÁTICO-
PROBATÓRIO NA VIA DO HABEAS CORPUS. AGRAVO REGIMENTAL A
QUE SE NEGA PROVIMENTO. I – O art. 70 do Código de Processo Penal,
que considera como local do crime aquele em que o delito se consumou,
permite o abrandamento da norma, ao enunciar que a competência será,
de regra, a do local em que a infração se consumar, tendo-se em conta os
fins pretendidos pelo processo penal, em especial a busca da verdade
real. II – No caso, o Tribunal de Justiça de origem decidiu que, à luz do que
contido nos autos, “o suposto delito foi cometido na divisa de Sergipe e Bahia,
ficando incerta a competência com base no lugar da infração, razão pela qual
se aplicam as regras de competência da prevenção, do art. 70, § 3º, do CPP”.
III – A prorrogação da competência em favor de uma das comarcas
possivelmente competentes não importa em violação do princípio do juiz
natural. IV – Para se chegar à conclusão diversa da que chegaram as
instâncias antecedentes, como pretende a defesa, haveria a necessidade de
reexame do contexto fático-probatório, o que é inviável na via do habeas
corpus. V – Agravo regimental a que se nega provimento. (BRASIL, 2018) (grifo
nosso)

Inclusive, já se equiparou o princípio da verdade real aos princípios


constitucionais45 do devido processo legal (artigo 5º, LIV), da ampla defesa (artigo 5º,
LV), da inadmissibilidade das provas ilícitas (artigo 5º, LVI), da presunção de inocência
(art. 5º, LVII) e da legalidade e anterioridade penal (artigo 5º, XXXIX), em uma
contradição evidente:
Habeas corpus. - Esta Corte já firmou o entendimento de que o interesse direto
ou indireto da magistratura, a que alude o artigo 102, I, "n", da Constituição é o
que diz respeito ao magistrado como tal, o que, evidentemente, não abarca
filiação a pessoa jurídica do tipo de associação, ainda que de magistrados,
quando a vítima do crime seja ela, não só, e principalmente, porque tem ela
personalidade jurídica diversa da dos seus associados (a desconsideração da
personalidade da pessoa jurídica só é admissível em caso de fraude), como
também, porque, em se tratando de associação, eles nem sequer participam do

45
BRASIL, 1988.
10
capital social, não se rateando entre eles, em qualquer medida, vantagens ou
desvantagens econômicas auferidas ou sofridas pela associação. - Não é o
habeas corpus o instrumento processual idôneo para o exame de alegação de
inocência. - Alegação genérica de que nas demais acusações feitas ao ora
paciente não se levaram em conta os princípios do processo penal, do
devido processo legal, da ampla defesa, da licitude do meio probatório,
da presunção de inocência, da iniciativa das partes e da legalidade e da
busca da verdade real, não pode ser apreciada em habeas corpus.
"Habeas corpus" indeferido (BRASIL, 1996) (grifo nosso)

A resistência de se afastar o princípio da verdade real do ordenamento jurídico


democrático é vista desde os primeiros julgados do Supremo Tribunal Federal após a
promulgação da Constituição Federal. Parecendo ignorar a nova sistemática, os
julgadores continuam a fazer remissão em suas decisões à exposição de motivos do
Código de Processo Penal de 1941, com atualização em 198446, em que previa, como
decorrência lógica do período político da época, a verdade real como um princípio a ser
perseguido pelo juiz:

HABEAS CORPUS. INSUFICIÊNCIA DE PROVA PARA A CONDENAÇÃO.


DILIGENCIA DETERMINADA EM REVISÃO CRIMINAL. - A ALEGAÇÃO DE
INSUFICIÊNCIA DE PROVAS PARA A CONDENAÇÃO NÃO PODE SER
EXAMINADA NO ÂMBITO ESTREITO DO HABEAS CORPUS POR
DEMANDAR EXAME APROFUNDADO DE MATÉRIA DE FATO, MAXIMA
QUANDO IDÊNTICA ALEGAÇÃO JA FOI REJEITADA DEPOIS DE LONGA
ANALISE EM PEDIDO DE REVISÃO CRIMINAL. - O PRINCÍPIO DA BUSCA
DA VERDADE REAL QUE EXISTE NO SISTEMA DE NOSSO CÓDIGO DE
PROCESSO PENAL, COMO ACENTUA SUA EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS,
PERMITE QUE, AINDA QUANDO EM REVISÃO CRIMINAL, SE PROMOVAM
DILIGENCIAS PARA A APURAÇÃO DA VERDADE, OU NÃO, DO QUE
ALEGA O REQUERENTE EM SEU FAVOR. HABEAS CORPUS
INDEFERIDO (BRASIL, 1990). (grifo nosso)

Diante do objetivo indissociável do princípio da verdade real com a subjugação


do acusado como mero objeto do processo penal, é impossível admitir como princípio
do ordenamento jurídico brasileiro o da verdade real. Como afirma Aury Lopes Jr. 47, “o
mito da verdade real está intimamente relacionado com a estrutura do sistema
inquisitório; com o ‘interesse público’ (cláusula geral que serviu de argumento para as
maiores atrocidades)”.

46
A exposição de motivos do Código de Processo Penal deixa claro o intuito inquisitorial do códex nos
seus itens: “33. Na determinação dos poderes e deveres do juiz (artigos 59 a 62), o Projeto admite a
iniciativa jurisdicional na perquirição da verdade, dado relevante de todo processo penal, sem afetar,
contudo, a marcada tendência para o sistema acusatório, ora adotado; 42. O Projeto acolhe os
princípios doutrinários que situam o Ministério Público como instituição subordinada exclusivamente aos
princípios da legalidade, da descoberta da verdade e da realização da justiça, extraindo dessa condição
superior as conseqüências lógicas. Assume assim o Ministério Público, em razão da lei, a posição
de dominus litis, cabendo-lhe, contudo, impetrar habeas corpus e interpor recursos em favor do réu
(artigos 501, § 1º e 646). 56. O contraditório domina toda a instrução criminal, com o escopo
de apuração da verdade material, relevando-se, por inteiro, no direito de audiência, ou seja, ‘na
expressão necessária do direito do cidadão à concessão de justiça, das exigências comunitárias inscritas
no Estado de Direito, da essência do Direito como tarefa do homem e, finalmente, do espírito do
processo, como "co-participação" de todos os interessados na criação da decisão’ (JORGE DE
FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, vol. I, pág. 158).” BRASIL, 1983
47
LOPES Jr., op. cit., p.273.
11
Ainda, na lição de Nereu José Giacomolli48:
A verdade real, em qualquer forma ou modelo processual, é um mito, uma
utopia que vem sendo repetida sem que se saiba seu verdadeiro sentido e
alcance, apesar de ser ideologicamente comprometida. Em todo processo, o
que temos é uma verdade processual (intraprocessual), a qual resulta do que
está nos autos, do substrato fático carreado ao processo que está sendo
julgado. Nem com magia é possível transportar a totalidade fática circunstancial
aos autos. Os humanos estão desprovidos (pelo menos até onde se alcança)
de poderes divinos e sobrenaturais para operar tais milagres. [...] o sentido que
se verifica nas entrelhinhas do discurso da verdade real é o da incidência do
ius puniendi a todo custo, a qualquer preço, além da adoção de uma
concepção de necessidade inafastável da condenação de alguém, da
culpabilidade objetiva, ou seja, pelo cometimento do fato, independentemente
da verificação ou não de seus elementos. Essa voracidade pela “verdade real”,
ultrapassa até mesmo os limites do acusador e coloca o sujeito encarregado de
julgar, na cena do crime, lugar próprio da autoridade encarregada da
investigação.

O sistema acusatório, incorporado pela Constituição da República Federativa de


1988, não busca a verdade real e não endossa, em nenhum momento de seu texto, a
sistemática inquisitorial, mediante a objetificação do réu e a junção (ou confusão) das
funções de julgar e de acusar.
O que a Constituição da República Federativa de 1988 manifesta é a opção pelo
processo acusatório, que objetiva a reconstrução fática por meio das provas que são
postas pelas partes, em paridade de armas, com contraditório e com ampla defesa, em
um devido processo penal presidido por um juiz imparcial e garantidor dos direitos
individuais do acusado, parte vulnerável da relação jurídica.
Nesse contexto, poder-se-ia buscar a verdade processual, ou seja, a versão dos
fatos construída por meio da análise do conjunto de provas exclusivamente
demonstrada e produzida pelas partes, sob a fiscalização do juiz garantidor, e os
ditames do devido processo penal democrático.
É dizer, o sistema acusatório “é um imperativo do moderno processo penal,
frente à atual estrutura social e política do Estado” (Aury Lopes Jr., 2019, p.152), e
como opção política do Estado a adoção da democracia, a vedação ao sistema
inquisitorial é requisito essencial de validade e observância das garantias do acusado.
Assim sendo, o dito “princípio da verdade real” não pode ser considerado, na
sistemática democrática brasileira, como um princípio do Direito Penal e Processual,
seja porque a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não o previu
(nem expressa nem implicitamente), seja porque a sua adoção não se mostra
harmônico com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso
III), bem como com nenhum outro princípio garantidor do acusado.
O princípio da verdade real, como visto, é alicerce do pensamento científico que
tem como pressuposto o papel centralizado do juiz na busca dos fatos ocorridos, sem
nenhuma limitação legal para cercear o poder do Estado e, principalmente, na ausência
de direitos e garantias individuais do acusado, que possui a obrigação de confessar a
prática da infração a ele imputada.

48
GIACOMOLLI, Nereu José. Atividade do juiz criminal frente à constituição: deveres e limites em face
do princípio acusatório. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Coord.). Sistema penal e violência. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.225-226.

12
Por isso, não há guarida para validar o princípio da verdade real como sendo
uma norma que informa os fundamentos do ordenamento jurídico brasileiro, eis que a
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 optou por se fundamentar em
alicerces diametralmente opostos.
Dessa forma, não haveria nem que se cogitar o uso da técnica metodológica de
ponderação de princípios, definida por Robert Alexy49, para se legitimar a aplicação do
princípio da verdade real no Brasil, como se viu a inclinação nos julgados analisados.
Para que fosse viável a ponderação ou o sopesamento do princípio da verdade real
com qualquer outro do ordenamento jurídico brasileiro, antes, o princípio da verdade
real deveria ser considerado integrante da sistemática jurídica penal, para, só então,
analisar qual princípio melhor se amoldará às circunstâncias do caso concreto.
Torna-se essencial, portanto, que a vontade do povo, exteriorizada como
mandamentos ao Estado na Constituição da República Federativa de 1988,
reverberadas pelos princípios penais e processuais penais, seja respeitada e efetivada,
de modo que não haja legitimidade para nenhum discurso sobrepujar, em decisão
judicial, a vontade do povo.

IV CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os princípios são para a ciência jurídica normas que estruturam e alicerceiam o


ordenamento jurídico, orientando a aplicação e a interpretação das normas, ao mesmo
tempo em que conferem validade a elas. A Constituição da República Federativa de
1988 chancelou os princípios como normas jurídicas ao descrever, no Título I, os
“princípios fundamentais da República Federativa do Brasil”50, estabelecendo as
normas-princípios aplicáveis ao âmbito do direito penal e processo penal.
Assim, partindo do pressuposto de que o eixo valorativo do ordenamento jurídico
brasileiro é o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III51), as normas-
princípios no âmbito penal e processual penal devem perseguir a proteção do acusado,
tido como pessoa vulnerável frente ao poderio do Estado.
Por isso, os parâmetros adotados pelo constituinte de separação das funções de
acusar (artigo 129, I) e julgar (princípio do juiz natural inscrito no artigo 5º, LII), a
obrigatoriedade do devido processo legal mediante a garantia do contraditório e ampla
defesa ao acusado (artigo 5º, incisos LIV e LVI)52, denotam a opção do Estado
Democrático de Direito à adoção do sistema processual penal acusatório.
Nesse sentido, o juiz imparcial, garantidor dos direitos individuais do acusado,
analisa as provas produzidas em juízo pelas partes, observado o ônus acusatório,
preservando-se o estado de inocência do acusado (artigo 5º, LVII)53, para se alcançar,
por meio de decisão, a verdade processual, ou seja, a versão dos fatos posta em juízo
por meio do processo penal democrático.
Não há, por expressa opção do constituinte, a possibilidade jurídica de se
invocar o princípio da verdade real no ordenamento jurídico brasileiro. Como visto, o
princípio da verdade real é pressuposto do conhecimento científico do sistema
inquisitorial, em que o acusado não é indivíduo de direitos e garantias processuais, e

49
ALEXY, op. cit., p.64
50
BRASIL, op. cit., 1988.
51
BRASIL, op. cit., 1988.
52
BRASIL, op. cit., 1988.
53
BRASIL, op. cit., 1988.
13
que deve confessar e entregar as provas dos fatos ocultos ou escondidos à qualquer
custo.
Isso implica que o sistema inquisitorial, legitima a repressão desmedida e, por
vezes, para servir aos interesses obscuros de poder, sob o pretexto da aplicação do
princípio da verdade real que, historicamente, foi utilizada como embasamento
juridicamente válido para relativizar direitos e garantias fundamentais do acusado, que
era o objeto do processo penal.
Em razão de sua natureza jurídica pertencer a outro sistema processual –
inquisitorial – que não foi fruto da escolha do povo na Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, a sua aplicabilidade na ordem jurídica brasileira é
inapropriada e violadora dos direitos e garantias fundamentais do acusado.
Por isso, a conscientização do que, de fato, é o princípio da verdade real e a sua
incompatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro é de fulcral importância para
afastar deturpação da vontade do povo nas decisões judiciais em matéria processual
penal, de modo a conferir efetividade à proteção do indivíduo acusado insculpido pela
Constituição da República Federativa de 1988.

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