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Teoria Geral do Direito

Civil
Parte I
Notas Introdutórias
O estudo da Teoria Geral do Direito Civil pode ser avançada em duas partes:
a teoria geral da norma jurídica civil ou teoria geral do ordenamento jurídico
civil e a teoria geral da relação jurídica.
Teoria Geral do
Direito Civil

Teoria Geral da Teoria Geral da


Norma Jurídica Relação Jurídico
Civil Civil
Ambas as partes são, com inteira propriedade, teoria geral
do direito. Na verdade, circula de manual em manual,
como moeda corrente, a afirmação de que a palavra direito
assume, para os leigos como para os juristas, um duplo
sentido. Por vezes assume a palavra direito um significado
objectivo — sinónimo de conjunto de princípios
regulamentadores, de regras de conduta, de normas de
disciplina social; assim, quando se fala no direito
comercial, no direito administrativo ou se afirma que o
nosso direito civil reconhece a propriedade horizontal
(corresponde à expressão inglesa The Law)
Outras vezes o termo direito expressa um sentido subjectivo — é
sinónimo de poder ou faculdade; assim, quando se diz que o credor
tem o direito de exigir uma indemnização ao devedor que não
cumpre a obrigação, que certa pessoa tem o direito de servidão de
passagem através de prédio alheio (Dir-se-ia, em expressão inglesa,
the right).
Quer dizer a teoria geral da norma jurídica civil é teoria geral do
direito objectivo e a teoria geral da relação jurídica é teoria geral
do direito subjectivo (o estudo da estrutura e dos elementos
deste), pois o lado activo das relações jurídicas é integrado pelo
direito subjectivo em sentido amplo (direitos subjectivos
propriamente ditos e direitos potestativos).
Direito • Conjunto de princípios
Objetivo(The regulamentadores, de regras de
conduta, de normas de disciplina
Law) – teoria social – ex: o direito
geral da norma administrativo, o direito comercial
jurídica etc

• Sinónimo de poder ou faculdade –


Direito Subjetivo Ex: quando uma pessoa diz eu
(the right) – teoria tenho o direito de gozar a minha
geral da relação casa (propriedade)
jurídica
Pergunta-se então, qual é a justificação da utilização, como critérios
de arrumação e referência dos problemas e soluções, das duas
categorias fundamentais do conhecimento do Direito: a norma
jurídica e a relação jurídica?
No fundo, a questão é, como é que justificamos a utilização dessas
duas categorias (a norma e a relação jurídica) na
arrumação/sistematização da matéria da teoria geral do direito
civil?
Vamos primeiro a questão da norma jurídica:
A norma ou regra jurídica é uma dimensão fundamental do
Direito — é um veículo imprescindível da realização dos
valores jurídicos.
O direito visa, na sua função de meio da disciplina social,
realizar determinados valores, eles:
 a certeza (dessa disciplina) e a
 segurança da vida dos homens, por um lado,
 a «rectidão» ou razoabilidade das soluções, por outro,
abrangendo com estes termos (rectidão, razoabilidade) a
justiça, a utilidade, a oportunidade e a exequibilidade prática.
Ora, uma verdadeira «regra de ouro» da justiça, ou melhor, da razoabilidade é a
ideia de igualdade de tratamento para situações iguais — está aí, na ideia de
igualdade, um momento essencial da ideia de justiça. Ou seja para alcalçarmos a
justiça é preciso, antes de mais, tratar todas as situações de forma igual. E Para
que tal suceda é preciso então que a norma juridica seja concebida de forma
geral.
Então, a norma jurídica deve ser concebida de forma a poder abarcar um grupo
de situações do mesmo tipo ou género. Ou seja, a estatuição prescrita pelo direito
deve poder ser aplicada a todas as situações do mesmo tipo ou género (formando
a hipótese da norma).
A estrutura da norma jurídica completa integra sempre dois elementos: a previsão
e a estatuição.
A previsão refere a situação da vida típica cuja verificação em concreto
desencadeia o efeito ou a consequência jurídica estabelecida na estatuição. A
norma jurídica estabelece uma relação de causalidade entre a situação da vida
representada na previsão e os efeitos jurídicos estabelecidos na estatuição.

Previsão - a situação da vida típica cuja verificação em concreto


desencadeia o efeito ou a consequência jurídica estabelecida na
estatuição
• Ex: Quem matar outra pessoa…

Estatuição – é precisamente o efeito ou a consequência jurídica que se


desencadeia quando se verifica previsão

• Ex: …é punido com uma pena de prisão de 10 a 16 anos.


Olhando para aquilo que dissemos atrás (a norma juridica tem de
ser geral) e pegando no exemplo que nós demos, podemos dizer que
pena de 10 a 16 anos deve ser aplicada a todas as situaçoes de
homicídio simples.
Contudo estas situações generalizas previstas nas hipóteses das
normas devem permitir distinguir elementos diferenciadores para
que possa haver soluções adequadas sob pena de se correr o risco de
tratar de forma igual, situações desiguais. A norma consagra pois
uma igualdade formal que reclama depois uma consideração
igualitária no plano material (igualdade material).
Isto significa que, pegando outra vez no exemplo, que a norma do
art. 122º do código penal contém elementos diferenciadores que
permitem que não seja aplicavel a todas as situações de homicídio.
Por outro lado, essas normas gerais não podem ser forjadas
(criadas) pela entidade judicante (a entidade que a aplica) no acto
de aplicação do direito às situações da vida.
A realização dos referidos valores jurídicos, e, até, o respeito pelo
legislador democraticamente eleito, reclamam a verificação da
máxima objectividade possível na aplicação do Direito. A existência
de uma disciplina normativa — de um dado normativo objetivo -
anterior e exterior ao julgamento dos casos concretos é postulada,
desde logo, pelos valores da certeza e da segurança, que implicam
em larga medida a calculabilidade do direito e a máxima garantia
possível contra decisões jurídicas imprevistas.
Não se esgota, porém, na busca necessária da certeza e da segurança a
justificação da norma jurídica como um dado objectivo, que há-de ser ponto de
partida do juiz na sua valoração da situação concreta e limite de legalidade da
solução que ele encontrou. Servir-se-á assim também, em muitos casos, a
rectidão ou razoabilidade das soluções, desde logo, porque nem sempre a
entidade julgadora poderá abarcar, na sua exacta extensão e valor, as razões de
oportunidade ou conveniência prática que legitimam uma solução, nem aliás lhe
cabe, constitucionalmente, definir o planeamento da vida e acção colectivas.
A existência de um direito recto (justo e oportuno) e certo implica, pois, a sua
formalização normativa, a formulação de prescrições gerais. O que não significa,
por um lado, ser o sentido das normas um sentido, desde logo, tido como
explicitamente revelado erigidamente delimitado, que reduza a acção do juiz a
uma actividade mecânica.
Sempre a actividade deste é valorativa, ou seja, consiste em valorar a situação em
concreto, apreciar, ponderar, emitir um juízo de valor sobre a situação a decidir,
mas deve necessariamente compatibilizar-se nos seus resultados com os dados
verbais, sistemático-formais e sistemático-materiais do ordenamento legal — esta
compatibilização é uma exigência do princípio da legalidade e do fundamento
democrático da actividade legiferante. Assim, irá o juiz, em actividade valorativa
e constitutiva por um lado e vinculativa e cognitiva por outro, pondo em relevo
os sentidos albergados na lei, quer os implícitos nela, quer os que ela vai gerando,
como um pano que se vai tecendo, mediante o seu confronto com a realidade,
quer os que ela indirectamente projecta por repercussão no sistema jurídico de
que faz parte
E tal exigência de formalização normativa também não significa, por outro lado,
que o direito objectivo se esgote necessariamente apenas em normas ou regras, de
hipótese e estatuição perfeitamente delimitadas. Ao lado destas tem-se chamado a
atenção para a necessidade de reconhecer uma outra dimensão: a dos princípios
jurídicos, que são igualmente direito vigente. Esses princípios — como a
autonomia privada, a auto-responsabilidade ou a protecção da confiança —
enunciam intenções de regulamentação, explicitam fundamentos das valorações
subjacentes às normas ou regras, e indicam o sentido geral de resolução de
problemas normativos.
Contrariamente às regras, não têm pretensão de exclusividade mesmo no âmbito
da sua hipótese. Antes, pela sua própria natureza de fundamentos de valoração,
admitem, quando confrontados com princípios opostos, uma combinação com
eles, não sendo tão rígidos como os critérios normativos. Mesmo os princípios
entre os quais existe uma relação de tensão acabam, assim, por revelar o seu
sentido e limites apenas numa relação de complementação e restrição recíprocas
entre si.

Parece, assim, justificado a utilização do conceito de norma jurídica como


critério de exposição e sistematização da matéria.
Pergunta-se, então, se o mesmo deve acontecer com o conceito de
relação jurídica: é legítimo utilizar como critério de exposição e
sistematização do Direito a noção de relação jurídica?
Parece que sim!
É esse conceito que está na base da sistematização do nosso actual
Código Civil (Parte Geral, Direito das Obrigações, Direito das
Coisas, Direito da Família, Direito das Sucessões), bem como do
plano de estudos das diversas Faculdades de Direito.
Como se sabe o Código Civil está dividido em 5 livros:
Livro I – Parte Geral (artsº. 1º a 396º)
Livro II – Direito das Obrigações (artsº. 397º a 1247º)
Livro III – Direito das Coisas (arts.º 1248º a 1548º)
Livro IV – Direito da Família (arts.º 1549º a 1951º)
Livro V – Direito das Sucessões (arts.º1952º a 2256º)
Estabelece-se uma parte geral que engloba os temas relativos aos elementos comuns às outras quatro partes
e estas, por sua vez, correspondem ao direito aplicável às quatro espécies ou modalidades diversas de
relações jurídicas. Acresce que, na sistematização do Código Civil de 1966, o Título II do Livro I (Parte
Geral) se refere expressamente às relações jurídicas e contém uma regulamentação dividida em quatro
subtítulos, cada um dos quais referente a um dos elementos da relação jurídica (sujeito, objecto, facto
jurídico e garantia).
Esta sistematização é conhecida por sistematização germânica ou plano de Savigny, por ter sido consagrada
no Código Civil alemão (BGB) de 1896, e que entrou em vigor em 1900,, no seguimento da sua adopção,
várias décadas antes, por aquele autor da mesma nacionalidade.
A relação jurídica é utilizada nela como meio técnico de arrumação e exposição
do direito, por se considerar esse conceito um quadro adequado para exprimir a
realidade social a que o ordenamento jurídico se aplica. Não é o único plano de
ordenação da matéria civilística conhecido pelos códigos ou pela doutrina.
Assim, por exemplo, diverso era o plano conhecido por plano de Gaio ou
romano-francês, em virtude da sua utilização por aquele jurisconsulto romano nas
suas institutas, pelo imperador Justiniano, igualmente nas suas institutas, pelo
Código Civil Francês (Code Napoléon, de 1804).. Segundo este plano o Direito
Civil divide-se em três partes: pessoas, coisas e acções ou modos de adquirir. Na
primeira parte abrangem-se a pessoa e a família; na segunda o direito relativo às
coisas (direitos reais) e na terceira as sucessões por morte, as obrigações e os
contratos.
A consideração do conceito de relação jurídica como objecto de uma teoria
jurídica — no plano doutrinal portanto — tem perfeita justificação e a sua
utilização na sistemática de um código é aceitável.
O conceito traduz exatamente aquilo que o Direito disciplina na realidade social.
O Direito não regula o homem isolado ou considerado em função das suas
finalidades individuais, mas o homem no seu comportamento convivente. Não há
Direito na ilha onde apenas habita Robinson. O Direito, mesmo quando atribui
posições ditas «absolutas» sobre bens exteriores ao titular ou sobre aspectos ou
modos de ser da sua pessoa pressupõe sempre a vida dos homens uns com os
outros e visa disciplinar os interesses contrapostos nesse entrecruzar de
actividades e interesses — disciplina que é conseguida dando supremacia a um
interesse e subordinando outro.
Por força dessa disciplina criam-se, portanto, enlaces, nexos, liames entre os
homens, nos termos dos quais a uns são reconhecidos poderes e a outros impostas
vinculações — precisamente essa ligação entre os homens, traduzida em poderes
e vinculações, constitui a relação jurídica. Neste quadro, a situação da pessoa
releva juridicamente apenas enquanto ela está em relação com os outros: como
relação jurídica..
Nem todos os autores concordam que deve-se utilizar o conceito de relação
jurídica como base do Direito Civil e da arrumação da matéria civil, alegando
tratar-se de uma conceitualização anti-humanista, que submerge a noção de
pessoa humana, que deverá ser a primeira realidade institucional para o Direito
Civil, na noção formal e abstracta de sujeito da relação jurídica, tomando-o ao
mesmo nível das pessoas colectivas (que também estão integrados dentro da
noção de pessoas, como sujeitos da relação jurídica)
Contudo, é preciso ver que essa crítica não diz que o sistema de arrumação de
inspiração germânica nega a possibilidade de se realizar uma tutela eficaz da
personalidade e do seu círculo de direitos essenciais. O que se critica é
fundamentalmente a colocação na penumbra da pessoa como única realidade
primária para o Direito, ou seja, dirige-se, pois, a um modo de arrumação, a uma
forma de exposição, mais do que ao conteúdo das soluções expressas.
Dela nos deve ficar, porém, a advertência de que um sistema assente na relação
jurídica — numa estrutura formal, portanto — não nos deve fazer olvidar os
interesses que subjazem às formas jurídicas, designadamente o principal escopo
do Direito Civil: a tutela da personalidade do indivíduo humano.
Há uma outra crítica que tem sido dirigido a esta forma de arrumar e estudar a
matéria que coloca na sua base o conceito de relação jurídica: segundo alguns
autores, uma teoria geral visa formular princípios válidos para todos os tipos de
relações jurídico-privadas. Ora, designadamente na teoria do negócio jurídico (a
mais importante espécie de factos jurídicos), poucos princípios são válidos para
todos os domínios do direito civil. A teoria geral da relação jurídica, no que toca
ao regime do negócio jurídico, é válida, quanto à maioria das soluções, apenas, e
mesmo assim com excepções, para os negócios patrimoniais entre vivos (vendas,
arrendamentos, empreitadas, etc.). Os seus princípios falham para os negócios
pessoais (casamento, perfilhação, emancipação, adopção, etc.) e para os negócios
dirigidos a efectivar uma sucessão por morte (testamento). Uma tal limitação não
inocente deve continuar a fazer-se de facto pois a generalização excessiva,
subjacente à noção e à disciplina do negócio jurídico, perde de vista os
particularismos dos negócios pessoais e dos actos mortis causa.
Contudo, há diversas razões que aconselham a manter a orientação: a tradição no
ensino universitário (a maioria dos juristas cabo-verdianos estudaram em
Portugal e no Brazil e nestes países o ensino tem seguido esta sistematização da
matéria); razões de ordem legal que tem a ver com a arrumação da matéria que
foi assumida pelo código civil; razões que tem a ver com alteridade do Direito
(Como sabem um dos princípios fundamentais da alteridade é que o homem na
sua vertente social tem uma relação de interação e dependência com o outro. Por
esse motivo o “eu” na sua forma individual só pode existir através de um
contacto com o “outro”. É essa realidade que o Direito regula). Por todas estas
razões parece mais razoável e natural manter a sistematização, tomando como
referência o conceito de relação jurídica.

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