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Margarida Gonçalves

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE DIREITO I


Regente: José Lamego
Manual: Miguel Teixeira de Sousa

I. ESTUDO DO DIREITO

1. Perspetivas de análise
O direito pode ser considerado em duas perspetivas: a perspetiva dinâmica (o direito é um
conjunto de consequências ou de efeitos jurídicos) e a perspetiva estática (o direito é um conjunto
de regras).
De acordo com a análise dinâmica, o direito socorre dos conceitos de facto jurídico, de regra
jurídica e de consequência/efeito jurídico.
O facto jurídico é todo o facto cuja verificação desencadeia a produção de efeitos jurídicos.
Este, é um “facto bruto” que o direito transforma em “facto institucional”.

Por sua vez, o facto jurídico pode ser:


• Um ato jurídico – facto humano e voluntário juridicamente relevante.
P.E: um negócio jurídico, uma conduta criminosa, um ato legislativo, um ato
administrativo ou a decisão de um tribunal.

• Um facto jurídico stricto sensu – é um facto não humano e não voluntário que seja
juridicamente relevante.
P.E: o nascimento, a morte, um terramoto, uma inundação.

A regra jurídica é o significado de uma fonte de direito. É através destas que se determina a
relevância jurídica dos factos, uma vez que somente os factos integráveis na previsão dessas
regras podem ser qualificados como factos jurídicos. Essa integração permite qualificar o facto
como jurídico, podendo-se afirmar que a qualificação é a operação que possibilita a transformação
de um “facto bruto” em facto jurídico.

O efeito jurídico é o resultado da aplicação de uma regra jurídica a um facto jurídico,


podendo esta traduzir-se na constituição, modificação e extinção desse efeito. Todo o efeito
constitutivo decorre de um título, ou seja, de um facto a que uma regra jurídica atribui a função
de constituir efeitos jurídicos.
P.E: o direito de propriedade pode ter por título um contrato, a sucessão por morte, a usucapião
ou a acessão (art 1316 e 1317).

Assim, um exemplo que ilustra e se aplica à análise dinâmica do direito é: o sujeito A emprestou
1000 euros ao sujeito B; o facto de A ter emprestado uma certa quantia a B integra-se na previsão
de uma regra jurídica, sendo, por isso, um facto jurídico; a aplicação da regra jurídica define os
efeitos jurídicos, que são neste caso a obrigação de restituição da quantia mutuada.

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Regra jurídica Efeitos jurídicos

Facto jurídico
Resultado da aplicação de uma regra
jurídica a um facto jurídico.
Que se pode traduzir em:
- constituição
- modificação Efeitos jurídicos
- extinção

Quando se utiliza uma perspetiva estática, considera-se o direito em si mesmo,


independentemente dos efeitos jurídicos que resultam da aplicação das regras jurídicas a certos
factos jurídicos. Significa isto que as regras jurídicas são analisadas e estudadas como tal, sem
haver preocupação de determinar as consequências e as situações que decorrem da sua aplicação.
É preferível seguir a perspetiva estática de análise do direito. A preocupação deve incidir sobre o
direito considerado em si mesmo.

A palavra “direito” pode ser aplicada num sentido objetivo – direito objetivo – e num sentido
subjetivo – direito subjetivo.
O direito objetivo, law, pode ter vários significados:
• Corresponde ao sistema/ordenamento jurídico.
P.E: direito português, direito francês, direito europeu.
• É sinónimo de lei ou de fonte de direito.
P.E: a Assembleia da República tem competência para produzir direito.
• Equivalente a regra jurídica.
P.E: a proibição da pena de morte é direito vigente em Portugal.

As regras jurídicas que se referem a uma mesma realidade sócio-jurídica constituem um instituto.
P.E: o instituto da propriedade é regulado pelas regras respeitantes à aquisição, modalidades,
efeitos e extinção da propriedade.

O direito subjetivo, right, alude-se à posição de um sujeito – o titular do direito – quanto a


um determinado modo de atuar. Neste sentido, ele é concebido de diferentes maneiras, entre elas
destacam-se aquelas que o entendem como um “poder de vontade”, um “interesse juridicamente
protegido”, ou como um “direito de exigir e de construir”.

O direito subjetivo pode ser definido como a situação subjetiva que resulta de uma permissão de
ação ou de omissão. Este não esgota o elenco das situações subjetivas – quando estas se referem
a um poder, a situação que decorre da permissão é uma faculdade ou uma competência.
(O direito subjetivo foi uma emanação das ideologias liberais do século XIX e garante ao seu
titular um espaço de liberdade).

Dado que os direitos subjetivos são uma das consequências possíveis da aplicação das regras
jurídicas, a adoção daquela metodologia significa que, nesta introdução ao direito, se analisa
apenas o direito objetivo.

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2. Disciplinas jurídicas

• História do Direito – trata da formação e evolução do direito. Analisa o direito como uma
realidade cultural, tendo como base uma certa homogeneidade cultural.
P.E: a História do Direito Romano ou a História do Direito Português.

• Sociologia do Direito – ocupa-se do direito enquanto facto social, procurando determinar as


funções e o grau de efetividade do direito na sociedade e visando analisar as relações entre a
ordem jurídica e a realidade social.
A validade do direito é vista pela perspetiva do ser.
A realidade social conforma o direito, sendo determinante para a formação do mesmo, dado
que ele pretende responder a problemas sociais. Um direito que não seja observado na
sociedade é um direito ineficaz.

• Filosofia do Direito – é o ramo da filosofia que se ocupa do fundamento, da essência e do fim


do direito. A perspetiva da análise desta disciplina sobre a realidade jurídica transcende o
direito positivo, o que conduz a que ela se ocupe de questões como “o que é o direito?”, “a
que valores este está sujeito?” e “que fatores o podem legitimar?”

Na filosofia do direito, há que distinguir duas correntes:


➢ Corrente jusnaturalista – na qual o direito é definido em função de critérios
suprapositivos (justiça e moral) e a sua legitimação depende da conformidade com
esses critérios. Esta orientação não aceita a separação entre o direito que é e o direito
que deve ser.
➢ Corrente positivista – na qual o direito é definido em função de critérios jurídicos e a
sua legitimação depende de critérios fornecidos pela própria ordem jurídica. Esta
orientação baseia-se na distinção do ser e do dever ser, separando o direito que é –
direito vigente – do direito que deve ser – direito não vigente.

O que é o direito? É direito aquilo que corresponder aos elementos da definição de direito.
Segundo Kant, “Os juristas procuram ainda uma definição para o seu conceito de direito”,
recorrendo aos critérios da justiça, da garantia da liberdade, da produção normativa, da
efetividade social e da coercibilidade do direito.

• Teoria do Direito – analisa o direito vigente e procura construí-lo como sistema. Para atingir
estas finalidades, a teoria do direito recebe contributos de outras áreas do saber, procurando
delimitar a ordem jurídica perante outras ordens normativas, elaborar alguns conceitos
operativos para a análise do direito (fontes do direito e de regras jurídicas) e construir o sistema
jurídico.

• Filosofia do Direito ≠ Teoria do Direito

A Filosofia do Direito é uma reflexão sobre a essência, o fundamento e o fim do direito,


recorrendo a soft concepts (justiça, equidade, liberdade e segurança).
Já a Teoria do Direito é uma reflexão sobre o direito vigente e serve-se de hard consepts (fontes
do direito, princípios jurídicos, regras jurídicas e sistema jurídico).

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• Teoria vs prática
É importante descobrir a teoria do direito que seja relevante para a prática jurídica, evitando o
adágio Bonus theoreticus, malus pratcticus. Como afirmou Savigny, “onde a separação entre a
teoria e prática se torne absoluta, aí corre-se inevitavelmente o risco de que a teoria se degrade
para um jogo vazio e a prática para uma mera atividade braçal”. Se é verdade que um prático
do direito sem teoria é um ignorante, também é verdade que um teórico do direito sem
preocupações práticas não passa de um diletante.

3. Ciência do Direito
A ciência do direito procura orientar a resolução de casos concretos, através da determinação
do significado das fontes do direito e do enunciado de proposições e de teorias que possibilitam
a resolução desses casos.

• A distinção entre a Ciência e a Sociologia do Direito resulta da diferença de perspetivas pelas


quais consideram a realidade jurídica.
A Ciência do Direito analisa o direito como uma realidade normativa (dever ser), considera-o
de um ponto de vista interno (legal point of view) e estuda-o na sua função de resolução de
casos concretos.
A Sociologia do Direito estuda o direito como uma realidade social (ser), considera-o de um
ponto de vista externo e examina-o na sua efetividade social.

• A distinção entre a Ciência e a Filosofia do Direito resulta da perspetiva de análise.


A Filosofia do Direito coloca-se numa perspetiva que transcende o sistema jurídico e procura
responder à pergunta “Quid est ius?”
A Ciência do Direito posiciona-se numa perspetiva imanente ao sistema jurídico e responde à
pergunta “Quid iuris?”

• A distinção entre a Ciência e a Teoria do Direito:


A Teoria do Direito ensina a conhecer o direito, mas não a resolver casos concretos através da
aplicação do direito.
A Ciência do Direito ensina a resolver casos concretos através de critérios jurídicos. Segundo
Windsheid, “nunca se deve esquecer que os fins últimos da ciência do direito são fins práticos”
e que “a ciência do direito é uma ciência prática”.
Assim, a formação na área da Teoria do Direito deve coadjuvar e complementar aquela que é
fornecida na área específica da Ciência do Direito.

A ciência do direito é uma ciência social porque ela considera o direito como uma realidade
social – como ele é legislado, praticado e aplicado.
Esta é uma ciência normativa, uma vez que determina como os casos concretos devem ser
resolvidos de acordo com critérios jurídicos. Não se trata, portanto, de uma ciência descritiva.
Esse carácter descritivo associa-se a outras perspetivas de análise do direito (História e Sociologia
do Direito), que observam o modo como os casos concretos foram resolvidos no passado ou como
são resolvidos no presente.

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Segundo Dilthey, “explicamos a natureza, compreendemos a vida do espírito”.


Torna-se claro que a realidade jurídica não pode ser descoberta e explicada (uma vez que esta não
se situa no plano do ser), mas apenas construída e compreendida (plano do dever ser). A Ciência
do Direito é uma “ciência compreensiva, significativa e interpretativa), integrando-se, por isso,
nas “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften).
Quando passamos do plano da decisão, através do qual se resolve casos concretos de acordo
com critérios jurídicos, torna-se claro que se trata de fundamentar a própria decisão – procura-se
justificar, através de argumentos racionais, um dever ser.
P.E: a obrigação do devedor pagar o que deve ao seu credor.
As decisões jurídicas não se explicam, justificam-se (só podem ser avaliadas pela sua
justificação/fundamentação). A decisão jurídica também reflete a diferença entre o jurídico (dever
ser) e o natural (ser).

A Ciência do Direito tem valores próprios – a justiça, a confiança e a eficiência.


Nas palavras de Larenz, “a ciência do direito procura o sentido de uma regra ou de uma regulação
mais ampla no contexto de uma certa ordem jurídica, mas sempre em referência à adequação de
uma regra no sentido da sua aptidão para possibilitar uma decisão justa”.
Ela continua a estar próxima da fronesis grega e da prudentia latina, respeitantes à sabedoria
prática e à capacidade de raciocinar e de deliberar de forma sensata.
A Ciência do Direito utiliza o método jurídico, que permite a resolução de casos concretos,
através da aplicação de regras jurídicas.
“Que método deve ser utilizado na construção das regras jurídicas através da interpretação das
fontes de direito?”, “que método deve ser seguido na deteção e integração das lacunas do sistema
jurídico?” e “qual o método adequado para a construção da decisão de casos concretos?”.

Funções da Ciência do Direito:


• Função heurística – possibilita a resolução de casos concretos através do enunciado de
proposições jurídicas e da formulação de teorias.
• Função de sistematização – propõe classificações, elabora proposições e formula teorias
coerentes entre si e com os princípios e as regras do sistema jurídico.
• Função estabilizadora – as suas proposições e as teorias fornecem modelos de decisão de casos
concretos que evitam uma constante discussão sobre a solução de novos casos.
• Função crítica/ político-legislativa – chama atenção para as incoerências, as insuficiências e
as lacunas do ordenamento jurídico.

A ciência do direito formula proposições e teorias jurídicas. As proposições jurídicas


descrevem princípios/regras jurídicas – “o direito português orienta-se pelo princípio da
autonomia privada”.
As teorias jurídicas são modelos de decisão de casos concretos – P.E: a obrigação da
indemnização só existe em relação aos danos que o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão.
Porém, não é razoável admitir que o causador do acidente fique responsável pelos prejuízos
causados a todos os automobilistas que sofreram prejuízos por terem ficado retidos no
engarrafamento originado pelo acidento – é preciso formular uma teoria que permita delimitar os
danos que podem ser imputados ao causador do acidente.
Uma teoria jurídica encontra-se corretamente formulada quando puder resolver todos os
casos que por ela devem ser abrangidos. As teorias jurídicas são confirmadas pelas exceções e
infirmadas pelos casos não excecionais.
O resultado decorrente do enunciado de proposições jurídicas e da formulação de teorias
jurídicas, denomina-se doutrina/dogmática jurídica – esta doutrina incumbe orientar o aplicador
do direito.

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A expressão “dogmática jurídica” pretende exprimir uma “opinião jurídica racionalizada” ou


“fornecer a melhor fundamentação racional de uma regra e construir o “sistema interno”.
Os “dogmas jurídicos” são premissas que não são questionadas, como a de que o sistema jurídico
permite solucionar as contradições que nele se verifiquem e a de que esse sistema, qualquer que
seja o grau da sua incompletude, fornece uma solução para todos os casos carecidos de tutela
jurídica.

O direito português integra-se na família romano-germânica, o que comprova que é tributário


da reelaboração do direito romano realizada pela Pandectística alemã do século XIX.
O Direito Comparado realiza uma comparação entre várias ordens jurídicas ou entre
institutos de diferentes ordens jurídicas. No plano da macrocomparação, este permite distinguir
vários sistemas jurídicos (sistema romano-germânico e o sistema anglo-saxónico).
O direito vigente deve espelhar as estruturas sociais, os valores prevalecentes na sociedade
e o pensamento jurídico dominante. A função da política do direito é a de assegurar esta
correspondência do direito vigente com realidades extrajurídicas, pelo que ela fornece as
orientações para o desenvolvimento e o aperfeiçoamento do direito vigente.
A Política do Direito analisa o direito numa perspetiva de lege ferenda, uma vez que a sai ótica
não é a do direito tal como ele existe (de iure condito), mas tal como ele devia existir (de iure
condendo). A Política do Direito relaciona-se estreitamente com a Ciência da Legislação e com a
Legística.
O direito regula a produção e a distribuição de bens e serviços.
Assim sendo, o mesmo não pode ignorar as leis económicas que regem a atividade
económica. Da relação entre o Direito e a Economia nasceu a Análise Económica do Direito, que
se ocupa de determinar os efeitos das regras e das instituições jurídicas no comportamento dos
indivíduos, como do problema de determinar como é que as regras jurídicas devem ser construídas
e aplicadas de modo a garantir quer a utilização mais eficiente dos recursos económicos, quer a
maximização do bem-estar.

II. ORDEM SOCIAL E NORMATIVIDADE

1. Ser e dever ser


A distinção entre o dever ser e o ser baseia-se numa longa tradição da filosofia ocidental.
Hume analisou esta questão, afirmando que: “Em todos os sistemas de moral que encontrei, tenho
notado que o autor durante algum tempo procede segundo a maneira comum de raciocinar,
estabelece a existência de Deus, ou faz observações sobre a condição humana. Fico surpreendido
ao verificar que, talvez estejam ligadas por deve ou não deve. Estes exprimem uma nova relação
ou afirmação, é necessário que sejam notados e explicados”.
Kant defende que “O dever ser exprime uma espécie de necessidade e de ligação com
fundamentos que não ocorre em outra parte em toda a natureza. Esta só pode conhecer o que é,
foi ou será. O dever não tem qualquer significado se tivermos apenas diante dos olhos do curso
da natureza (…) Este dever ser exprime uma ação possível, cujo fundamento é um simples
conceito”.

• Ser: é descrito, servindo-se de uma linguagem igualmente descritiva. Pertence ao domínio da


razão teórica (orienta o conhecimento), refere-se a uma função cognitiva e é existente.
Quando se descreve o ser, pode-se falar de verdade ou falsidade.

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• Dever ser: é prescrito, servindo-se de uma linguagem igualmente prescritiva. Pertence ao


âmbito da razão prática (orienta a ação), refere-se a uma função comunicativa e é vigente
(vigora uma determinada ordem normativa, como o direito ou a moral).
Quando se descreve o dever ser, fala-se de validade ou invalidade (justiça ou injustiça).
O dever ser pode ser observado ou violado, sendo que os destinatários podem respeitar o que
é obrigatório ou o que é proibido, ou agir contra o que é obrigatório ou proibido.

O dever ser não pode ser considerado verdadeiro ou falso, segundo a teoria da correspondência
da verdade.
P.E: a regra que impõe a obrigação de cumprir os compromissos assumidos nunca pode ser
verdadeira ou falsa, uma vez que esta não descreve nenhuma realidade ou qualidade com a qual
possa ser comparada.
A razão da insusceptibilidade de aplicar ao dever ser o valor de verdade de um enunciado de dever
ser e da sua linguagem, faz sentido, mesmo que a realidade a que ela se refira não possa ter
nenhuma correspondência factual.

A distinção entre a verdade do ser e a validade do dever, torna-se bastante nítida quando se
utiliza o discurso indireto. Nenhum enunciado do dever ser pode ser qualificado seja como
analítico (uma vez que não é verdadeiro em si mesmo), seja como sintético (uma vez que não
pode ser comprovado por nenhum facto empírico).
É possível conjugar a verdade (da descrição) com a invalidade (do dever ser). Aliás, a
verdade da descrição de um dever ser é independente da sua validade descritiva.

A separação entre o ser e o dever ser estende-se à distinção entre questão de facto e questão
de direito.
Suponha-se que alguém celebra um contrato de compra e venda de um imóvel, declarando nesse
ato que só pagara metade do preço. No entanto, mais tarde, descobre que afinal já tinha pago a
totalidade do preço. Como se trata de uma questão de facto, este pode provar que o facto que
declarou não é verdadeiro.
Suponha-se que alguém requer que um tribunal notifique um locatário de que tem 3 meses para
abandonar a casa arrendada. Como se trata de uma questão de direito, o locatário pode contestar
a legalidade da obrigação de sair de casa, mas não pode procurar provar que essa obrigação não
é verdadeira.

Falácia naturalista – uma das principais consequências entre o ser e o dever ser é a
impossibilidade de deduzir qualquer dever ser do ser.
Segundo Kant, “relativamente à natureza, a experiência dá-nos a regra e é a fonte da verdade. No
que toca às leis morais, a experiência é a madre da aparência e é altamente reprovável extrair as
leis acerca do que devo fazer daquilo que se faz, ou querer reduzi-las ao que é feito”.
Moore acusa as posições que entendem que podem descrever os conceitos éticos (“bom” ou
“bondade”), através das suas propriedades naturais de caírem numa falácia naturalista.

O dever ser relaciona-se com um querer (ou com uma vontade) – algo deve ser porque
alguém quer que assim deva ser. Exige, portanto, uma vontade de alguém – algo deve ser porque
alguém assim o quis. “As leis procedem da vontade”.
A circunstância de se admitir que o dever ser tem por base um querer não significa que esse possa
ser resumido a um querer. Esse querer tem por base valores compatíveis com a respetiva ordem
normativa.
P.E: é porque não é desejável que alguém tenha de suportar os danos que lhe foram causados por
outrem, que o legislador pode querer que essa situação não ocorra e é por isso que ele pode impor
ao infrator o dever de indemnizar o prejudicado.

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2. Normatividade da ordem social


Os hábitos ou usos decorrem do comportamento da maioria dos membros da sociedade, sem
que a esse esteja subjacente qualquer consciência de dever ser.
P.E: hábitos alimentares, moda.
As regras de dever ser, determinam, independentemente de qualquer adesão dos
destinatários, o que eles devem cumprir e o que eles não devem realizar.

Na ordem social coexistem várias ordens normativas:

• Ordem moral – orienta a conduta humana para a realização do bem. É uma ordem intra-
individual que adquire uma dimensão intersubjetiva no âmbito da moral social, regulando
aspetos relacionados com o decoro, a decência e a probidade do comportamento. A moral
social é relevante para a ordem jurídica.
P.E: a ofensa aos bons costumes é uma das causas de nulidade dos negócios jurídicos e está
subjacente à invalidade dos negócios usurários.

• Ordem de trato social – resulta dos convencionalismos sociais. É uma ordem intersubjetiva
que na qual podem ter expressão sanções baseadas na reprovação social.
P.E: os convencionalismos de boa educação ou cortesia que são observados pela generalidade
da população; o convencionalismo sobre o vestuário adequado para cada ocasião.

• Ordem jurídica – constituída por regras jurídicas. É uma ordem intersubjetiva e é a mais
relevante ordem normativa da ordem social, pelo facto de ser a única cuja violação determina
a aplicação de sanções que podem ser impostas pela força.

O comportamento dos membros da sociedade é mais determinado pela posição social do que
propriamente pelas preferências pessoais.

A interação social pode verificar-se de acordo com dois modelos:

• Os indivíduos, apesar de não interagirem diretamente uns com os outros, modificam o sistema
global e reagem à modificação deste com alterações do seu comportamento. P.E: formação da
opinião pública ou da moda.
• Os indivíduos interagem e cooperam diretamente uns com os outros, seja constituindo um
grupo, seja pertencendo a uma instituição.

A distinção entre grupos e instituições reflete-se na respetiva ordem social.

• Os grupos sociais são constituídos por um conjunto de indivíduos que interagem entre si e
estabelecem determinadas relações sociais. Têm uma função integradora de várias condutas
sociais, orientando-as para a obtenção de uma finalidade comum.
São realidades inter-individuais porque eles são o resultado da interação entre os seus
membros.
A sua ordem social assenta nos interesses dos seus membros e é construída por eles.

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• As instituições estão ligadas a funções de socialização – distribuem diferentes papéis sociais


aos seus membros – e de estabilização.
P.E: a reprodução da espécie humana, a prossecução do bem comum, a orientação dos
comportamentos por valores, a transmissão de conhecimentos e experiências e a produção e
distribuição de bens.
É característico das instituições a atribuição de um status aos seus membros, que decorre de
regras institucionais, pelo que toda a instituição tem de comportar igualmente certas sanções.
Nas instituições são realizados vários fins. São realidades supra-individuais, que são também
independentes dos membros que a compõem.
Há uma ordem social imanente que é imposta aos seus membros.

3. Ordem social e ordem jurídica


O direito encontra a sua justificação pelos membros da espécie humana não viverem
isolados.
Segundo Aristóteles, “o homem é, por natureza, um ser vivo político” – isto é, um ser destinado
a viver na comunidade que é a cidade (polis). Na mesma perspetiva, Grócio refere que é a
sociedade que corresponde ao estado natural do homem e acentua que este tem um “desejo de
sociedade” (appetitus societatis). Hobbes entende que os homens se associam a outros pelos
benefícios que daí podem resultar.
O direito só existe em sociedade (ubi ius ibi societas), mas também é imprescindível em
qualquer sociedade (ubi societas ibi ius). O comportamento de cada membro da sociedade tem de
coexistir e de se compatibilizar com o comportamento de todos os demais, atendendo a que as
necessidades humanas são satisfeitas por bens escassos.
Os membros da sociedade dão preferência à satisfação dos seus interesses egoístas, pelo que o
direito é indispensável quer para possibilitar a cooperação entre esses membros, quer para
assegurar o respeito dos interesses alheios e coletivos.
O direito não serve apenas para instituir uma ordem formal. Ele é um elemento fundamental para
assegurar uma vida que vai para além da sobrevivência.
O direito é uma realidade humana, porque estabelece regras da conduta humana. No entanto,
também há regras que proíbem tratamentos cruéis sobre animais e regras que sancionam a
poluição do meio ambiente.
É uma realidade social porque a sociabilidade é intrínseca à pessoa e o direito é inerente à vida
em sociedade.
É uma realidade cultural por ser constituído por uma atividade humana através de órgãos
competentes ou através da própria sociedade. Para além disso, é um sistema de valores e
convicções que pode ser apreendido e transmitido às gerações seguintes.
O direito é uma ordem normativa distinta da ordem do ser. Há uma distinção entre dois tipos
de leis: as leis do ter de ser – exprimem o que se realizará inevitavelmente, valem devido à sua
concordância com a factualidade do acontecer e fornecem uma descrição do mundo real – e as
leis do dever ser – ordenam algo que possivelmente permanecerá não realizado, valem apesar da
sua não concordância com essa factualidade e desenham o projeto de construção de um mundo
melhor.

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É a única ordem normativa a que o Estado empresta a sua coercibilidade – possibilidade de


impor pela força, as sanções que são infligidas àqueles que violam as regras jurídicas. Significa
isto que o Direito, como ordem normativa, prevalece sobre todas as demais ordens.

As ordens normativas são ordens contruídas com base numa vontade. As leis normativas
resultam de um ato de vontade de um órgão/entidade, podendo ser modificadas ou revogadas por
esse mesmo órgão. Trata-se por isso de normas prescritivas.
“A ordem social é uma ordem de liberdade”, significando isto que só em sociedade o homem é
livre, porque a liberdade é sempre uma liberdade perante outrem.
A ordem social deixa sempre uma opção entre o cumprimento da regra ou a sua violação, sem
que isso queira significar que lhe seja indiferente a opção tomada pelo agente entre atuar de acordo
com essa ordem ou desrespeitá-la. “O direito é necessário numa sociedade na qual os homens
necessitam de normas e, portanto, não são livres e não conseguem sempre observá-las, não sendo,
por isso, conformistas”.
Diferentemente, as ordens naturais são independentes de quaisquer atividades de criação. As
leis naturais não são produzidas, não podendo ser afastadas pela vontade de um órgão ou de uma
pessoa. Trata-se por isso de normas descritivas.
“A ordem natural é uma ordem de necessidade”, uma vez que é regida por leis naturais que
enunciam uma relação entre uma causa e um efeito. As leis naturais:

• São gerais, por não se referirem a objetos singulares ou a uma quantidade finita de objetos
singulares.
• São universais, por valerem em todas as condições de espaço e de tempo.
• Valem mesmo que sejam submetidas a uma condição irreal ou contrafactual.
• Não são violáveis por não terem suscetibilidade para serem contrariadas por uma conduta
humana.
O “estar obrigado a” não pertence a uma ordem normativa, uma vez que o sujeito não tem a
liberdade de cumprir a obrigação. Em contrapartida, o “ter a obrigação de” é próprio de uma
ordem normativa, porque que o sujeito tem a liberdade de escolher entre cumprir ou não a
obrigação, sujeitando-se a sofrer uma sanção. Assim, as ordens normativas atribuem sempre ao
agente a escolha entre observar e violar os seus comandos.
As ordens normativas orientam condutas humanas, mas o mesmo também se pode dizer da
técnica. Esta determina a adequação dos meios aos fins desejados, pelo que ela é orientada pela
contingência e pela racionalidade instrumental.
Na técnica podem-se distinguir:

• As regras descritivas – fornecem instruções sobre como resolver um problema.


• As regras tecnológicas – determinam como atingir um certo resultado. Refere-se a um
imperativo hipotético e fundamentam um silogismo prático do tipo:
(1) O sujeito S pretende obter o resultado z;
(2) Só quando o sujeito S fizer t, ele obterá o resultado z;
(3) Logo, o sujeito S tem de fazer t.
As ordens normativas e a técnica confluem sempre que seja imposto a um agente o dever de obter
um determinado resultado – a conclusão do silogismo prático tem um carácter normativo ou
prescritivo.

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III. ORDEM JURÍDICA E DIREITO

1. Posição do Direito
O direito não pode ser aplicado fora do ambiente social em que se insere, uma vez que este
deve responder às exigências que são colocadas pela sociedade.
O direito não pertence à ordem do ser, mas isso não significa que ele não deva tomar em
consideração a realidade – a que reporta a aspetos físicos (tempo e espaço), aspetos biológicos
(vida e morte) e aspetos psicológicos (vontade e sentimentos), a aspetos sociais (grau de
desenvolvimento e as tradições culturais da sociedade) e a aspetos económicos (leis de economia:
lei da oferta e da procura e lei da concorrência).
O direito é necessário em toda a sociedade, não implicando isso que todas as relações sociais
devam ser reguladas pelo direito. Este deve submeter-se a um princípio da subsidiariedade – o
direito não se deve sobrepor a outras ordens normativas quando não houver que assegurar o
cumprimento das suas regras por órgãos do Estado. Quando a regulação de uma conduta por uma
ordem normativa não jurídica for eficaz em termos sociais, não tem nenhuma justificação procurar
regular essa conduta em termos jurídicos, uma vez que isso se traduziria apenas numa
multiplicação de custos sociais relativos quer à produção das regras, quer à imposição das
respetivas sanções.
O direito justifica-se apenas na medida em que as suas funções não sejam realizáveis por
nenhuma outra ordem normativa. Por isso, a subsidiariedade do direito encontra o seu
complemento na prevalência do direito – na área em que este seja necessário, ele tem de
prevalecer sobre qualquer outra ordem normativa.

• Bem jurídico – tudo o que é relevante como condição de uma vida sã da comunidade jurídica
e que o legislador tem interesse em preservar e procurar assegurar contra violações e ameaças.
Estes satisfazem as necessidades básicas, como a sobrevivência da pessoa e a sua realização
nos mais variados campos (pessoal, familiar ou pessoal).

• Espaço livre de direito – abrange tudo o que seja indiferente ou irrelevante para o direito, ou
que determine a aplicação de sanções não jurídicas. Caracteriza-se pela ausência de uma regra
jurídica e pela justificação para a existência dessa regra.
O direito não deve regular tudo – há uma zona da vida social e da vida privada que não pode
ser invadida pelo direito.

• Princípio de favor libertatis – toda a obrigação e toda a proibição têm de ser estabelecidas pelo
legislador, uma vez que só pode ser obrigatório ou proibido aquilo que o legislador consagrar
como tal, o que implica que é permitido tudo o que o legislador não subtrair a essa mesma
regra geral de liberdade. É permitido tudo o que não seja proibido ou obrigatório.
A necessidade de consagração de regras permissivas inclui-se no carácter social do direito.
A liberdade de um impõe-se sempre à restrição de liberdade de outrem, o que justifica a
necessidade de estabelecer regras com significado permissivo. P.E: o proprietário de uma árvore
contígua a um prédio de outrem pode fazer a apanha de frutos nesse prédio (art 1367.º).

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2. Funções do Direito

• Função constitutiva – constitui uma realidade que não existe sem o direito (por exemplo, sem
leis penais não há crime e sem leis que atribuem o poder de alienar e de adquirir, não há
contrato de compra e venda).
Mesmo quando o Direito regula condutas, cumpre uma função constitutiva – P.E, quando
proíbe o homicídio e o furto. Sem a regra que proíbe essas condutas há homicídio ou furto, mas
não o crime de homicídio ou de furto. Esse crime só se verifica porque há uma regra que qualifica
como crime aquelas condutas.
Para perceber a importância da função constitutiva do Direito, imaginemos o seguinte caso: uma
pessoa propõe a outra a aquisição de uma coia por um determinado preço e esta declara que aceita
a proposta. Isto implica a celebração de um contrato porque vigora uma regra jurídica que
qualifica essa atuação como a conclusão de um contrato de compra e venda.
A função constitutiva do direito estende-se aos conceitos jurídicos – conceito de “direito
subjetivo”, de “dever”, de “validade”, de “culpa”, ou de “diligência” – que não se referem a nada
que exista fora do direito e constroem a sua referência (auto-referenciais). P.E: contrato de compra
e venda – refere-se à realidade que ele próprio constitui.

• Função política – organiza o poder político (impede a anarquia) e coloca limites ao seu
exercício (impede o totalitarismo).
As ideologias anarquistas propugnam uma sociedade livre de qualquer coação pelo que há que
substituir o domínio do homem sobre o homem por uma liberdade total e por uma harmonia social
obtida sem qualquer coação. Dificilmente se encontram exemplos de sociedades anárquicas
porque toda a sociedade exige um conjunto mínimo de regras e de sanções destinadas a
possibilitar a convivência social.
O totalitarismo caracteriza-se pela formulação e aplicação arbitrárias das regras jurídicas por um
poder político que não se submete a nenhum controlo. O direito obsta ao poder totalitário, através
da definição da repartição dos poderes soberanos e a competência dos órgãos políticos, e da
garantia das liberdades cívicas e da construção do Estado de direito.

• Função social - pode ser vista no plano das relações dos indivíduos entre si, em que o direito
os comportamentos que são permitidos, obrigatórios ou proibidos, tornando-os menos
aleatórios e fortuitos e mais previsíveis e expectáveis.
Segundo Mill, a existência de regras jurídicas garante a segurança a quem age, facilita o
trabalho a quem tem e julgar e diminui os riscos do erro na decisão.
No plano das relações entre a sociedade e os indivíduos, o direito regula a contribuição da
sociedade para os indivíduos e vice-versa.

• Função pacificadora – disciplina a violência, determina os modos de solução dos conflitos


de interesses entre os membros da sociedade e aplica as sanções decorrentes da violação das
suas regras.
Esta função será tanto maior quanto maior for a confiança por ele transmitida – o governo está
vinculado a regras estabelecidas e divulgadas previamente (regras que tornam possível prever
com um razoável grau de certeza como é que a autoridade usará os seus poderes coercivos em
certas circunstâncias e planear as suas atividades com base nesse conhecimento).
A partilha de valores e a estabilidade social constituem modos de controlo social bastante mais
eficazes do que aquele que pode ser proporcionado pelo direito.

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Margarida Gonçalves

3. Direito e moral
A moral e o direito são ordens normativas que se diferenciam pela exterioridade das regras
jurídicas – o direito ocupa-se dos comportamentos exteriorizados e do lado externo da conduta –
e na interioridade das regras morais – a moral preocupa-se com a intenção do agente e com o lado
interno da conduta.
Contudo, este critério não é exato para que o estado anímico do agente seja irrelevante para o
direito. P.E: a conduta do agente pode ser dolorosa (se houver a intenção de provocar um certo
resultado como a morte) ou negligente (se não houver intenção de produzir um certo resultado,
mas este se verificar como consequência da violação de um dever de cuidado ou de diligência,
como acontece no manuseamento descuidado de uma arma de fogo). O direito valora
negativamente a declaração que é emitida sob coação física ou moral porque a coação leva o
declarante a emitir uma declaração que não tem a intenção de exteriorizar.
Também não é exato que a exteriorização da conduta seja irrelevante para a moral. A intenção de
agir de acordo com a moral pode não ser suficiente, sendo por isso preciso atuar de acordo com
essa intenção.
Para o direito, nada há de relevante antes de ser exteriorizada uma intenção. Ele só intervém
depois de ser realizada uma conduta. Assim, a mera intenção de um comportamento antijurídico
enquanto não for exteriorizada, nunca é juridicamente relevante. P.E: a intenção de alguém matar
outrem não é relevante para o direito, não podendo ser aplicada nenhuma pena à pessoa que tem
essa intenção.
Para a moral, a intenção do agente é sempre relevante. Assim, a simples intenção de agir
segundo a moral, ainda que não concretizada em atos, pode merecer uma valoração positiva. P.E:
aquele que tem a intenção de ajudar um necessitado, mas que não o consegue fazer por motivos
alheios à sua vontade, já merece ser elogiado.
A intenção de uma conduta imoral, mesmo que não concretizada, é moralmente reprovável. P.E:
a intenção de matar outrem. Porém, também a falta de intenção na realização de uma conduta
moral é sempre moralmente reprovável. P.E: aquele que ajuda os pobres visando alardear a sua
riqueza, age de modo moralmente condenável, ainda que o resultado da sua conduta nada tenha
de reprovável.

As relações entre o direito e a moral podem ser vistas numa dupla perspetiva:

• Perspetiva empírica – quais as relações que, na prática, existem entre o direito e a moral?
Qual a consagração que a moral encontra no direito positivo?

➢ Coincidência: pressupõe a atribuição de relevância à moral pelo direito, que pode ser
feita através da incorporação de regras morais no direito (proibição da pena de morte);
da concessão de relevância jurídica quer a valorações morais consideradas em si mesmas
ou condensadas em conceitos jurídicos e de dolo, quer a valorações ético-sociais; da
atribuição de relevância jurídica a deveres morais sem os transformar em deveres
jurídicos.

➢ Não coincidência: as regras jurídicas nem sempre coincidem com as regras morais – P.E:
as regras legais que regulam a competência de um órgão legislativo, o trânsito automóvel
ou as férias escolares.
Também há regras morais que não possuem nenhuma correspondência com as regras
jurídicas. P.E: a regra moral que manda ajudar os necessitados não tem nenhuma
expressão jurídica fora do círculo dos familiares.

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➢ Há regras morais que são contrariadas por regras jurídicas. P.E: a regra moral que
justifica que se pode retirar aos ricos para dar aos pobres é contrariada pela regra jurídica
que proíbe o furto.

• Perspetiva normativa – quais as relações que devem existir entre o direito e a moral? A
correspondência do direito com a moral é um critério para a aferição da validade do direito?

A receção da moral pelo direito deve orientar-se por um princípio de necessidade, uma vez
que o direito só deve receber as regras morais que sejam necessárias à convivência social. Por
isso, deve-se deixar para o domínio da moral aquilo que pertence à esfera da privacidade e deve-
se reservar para o direito aquilo que se revestir de relevância social.

Assim sendo, para o direito, que se preocupa com a convivência social, a proibição do
homicídio é justificada pela necessidade de assegurar a convivência humana.
Já para a moral, a proibição do homicídio é um imperativo ético imposto pelo amor devido ao
próximo. Enquanto que a ordem jurídica pode ser orientada para a obtenção de vários fins, a
ordem moral vale em si mesma e por si mesma em referência ao bem.

Tese da separação: nem tudo o que é moral tem de ser tutelado e protegido pelo direito. A
separação entre o direito e a moral pode ser obtida através de duas vias – o direito pode considerar
indiferente o que é moral, não tomando nenhuma posição perante um comando moral; ou o direito
pode limitar-se a pedir tanto o que é moral, como o que é imoral, deixando ao indivíduo a escolha
do seu comportamento, como acontece com o aborto.

Assim, o agente pode escolher entre a realização ou a não realização da conduta moralmente
censurável, mas juridicamente indiferente ou permitida.

4. Direito e Justiça
O sentido de direito é o de servir a justiça. No entanto, parece inegável que o direito só pode
afastar-se dos critérios de justiça quando haja que, justificadamente, salvaguardar outros valores
como a confiança e a eficiência.

Aristóteles propôs a distinção entre a justiça distributiva e a justiça comutativa.


A justiça distributiva regula as relações (verticais) entre a comunidade e o indivíduo,
repartindo os bens segundo um critério de igualdade ou de desigualdade. Esta justiça orienta-se
por um princípio de proporcionalidade geométrica.
A justiça comutativa rege as relações (horizontais) entre os membros da comunidade e é
relevante, segundo o princípio de proporcionalidade aritmética, para aferir quer o equilíbrio entre
a prestação e a contraprestação, quer o quantum da reparação de qualquer violação do direito.
Nesta última vertente, a justiça comutativa pode dividir-se em iustitia vindicativa – concretiza-se
na antiga máxima – e na iustitia restitutiva – impõe que aquele que violou um bem jurídico deva
reconstituir a situação que existia antes da violação.

S. Tomás de Aquino acrescentou a modalidade de justiça legal (iustitia legalis). Esta


determina os deveres e encargos dos indivíduos para a realização do bem comum e espelha-se por
exemplo na função social da propriedade ou no dever de participar na vida política,
nomeadamente através do voto.

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A justiça legal é o correlativo da justiça distributiva porque enquanto esta rege a repartição de
bens pelos membros da comunidade, a justiça legal determina a contribuição que é devida para a
comunidade por cada um dos seus membros.
A justiça legal orienta-se pelo princípio da proporcionalidade – P.E: impõe que aqueles que
tenham maiores rendimentos devam pagar mais impostos.

Entre os interesses individuais e o bem comum podem estabelecer-se relações de


concordância – os interesses individuais e o bem comum coincidem – ou de conflito – podem
ocorrer duas situações: ou o interesse individual conflitua com o bem comum, mas pode haver
algum benefício para o prejudicado (P.E: construção de uma auto-estrada que beneficia a
coletividade mas prejudica as pessoas que moram perto da mesma, o que não impede a sua
utilização da auto-estrada), ou o interesse individual conflitua com o bem comum e não há
quaisquer benefícios para o prejudicado (P.E: experiências clínicas realizadas com um paciente
em estado terminal não lhe podem salvar a vida, mas podem ajudar a curar outros doentes que
venham a padecer da mesma doença).

A justiça legal e a justiça distributiva constituem no seu conjunto, o núcleo da justiça social
– rege as relações entre os particulares e o Estado.
A justiça material é aquela que assenta em critérios de adequação ou justificação – justa
causa.

5. Direito e democracia
O direito é criado pelo poder político através de órgãos para tal competentes.
A democracia – demos (povo) e kratia (poder) – é o sistema político que se caracteriza pela
igualdade política de todos os membros, pela reivindicação da soberania, pela coletividade e pelo
exercício do autogoverno. À luz das relações entre o poder político e o direito, torna-se claro que
a democracia é um critério de legitimação do direito, tanto no que se refere à sua produção, como
no que respeita à sua aplicação.

A democracia comporta aspetos normativos e funcionais.


Os aspetos normativos prendem-se a valores que constituem os fundamentos da democracia,
como o respeito da liberdade de ser pessoa, a igualdade de todos perante os poderes públicos e a
autonomia de cada um perante a sociedade.
Os aspetos funcionais respeitam o processo democrático de decisão, assegurando a liberdade,
a igualdade e a prevalência da vontade da maioria sobre a minoria. Atendendo ao processo de
decisão, há que distinguir a democracia direta e a democracia representativa, sendo este último o
modelo mais comum. A escolha através de um processo de eleição submetido à regra da maioria
é a regra mais comum tanto na democracia direta, como na democracia representativa.

6. Direito e Estado
Todo o Estado necessita do direito para se organizar e para regular a sociedade. A conceção
atribuída pelos regimes totalitários e absolutistas é a de que o Estado não se submete ao direito e
não está limitado, pelo que pode definir como direito. A orientação que preside ao Estado de
direito é a de que o Estado se submete ao direito e que a sua produção está limitada pelo direito.
O Estado de direito aceita os limites impostos pelos princípios democráticos e pela lei de
carácter abstrato e geral. O Estado de direito reconhece o primado do direito sobre a política – o
Estado subordina-se à Constituição e às leis.

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Só a democracia está em condições de aceitar a primazia do direito sobre a política e só ela


garante o Estado de direito – “A democracia é certamente um bem merecedor de ser enaltecido,
mas o Estado de direito é como o pão de cada dia, como a água para beber e como o ar para
respirar, e o melhor da democracia é precisamente o facto de que só ela é adequada para garantir
o Estado de direito”, Radbruch.
Nos princípios subjacentes ao Estado de direito, destacam-se o princípio da separação e
interdependência de poderes; da atribuição e proteção de direitos, liberdades e garantias
fundamentais; da vinculação da atividade legislativa à ordem constitucional; da submissão do
poder executivo e da função jurisdicional de todos os poderes do Estado à proporcionalidade entre
os fins e os meios.
Agamben enunciou o paradoxo da soberania – “o soberano está, ao mesmo tempo, fora e
dentro da ordem jurídica”, ou seja, o soberano está fora da ordem jurídica não só quando suspende
a Constituição, mas também quando elabora a própria Constituição. Quando o ele intervém como
alguém exterior ao ordenamento jurídico, não deve deixar de observar os valores da democracia
e de respeitar as virtudes democráticas da justiça e da tolerância.
Nem todo o direito é produzido pelo Estado – direito consuetudinário (prática social;
estatutos das associações e sociedades comerciais); direito com vigência supra-estadual (U.E);
direito com vigência limitada a certas partes do território de um Estado – delimitação territorial
(direito regional e direito territorial); direito com vigência limitada a certos grupos de pessoas –
delimitação pessoal (regras de casamento que são aplicáveis aos crentes de uma certa religião).

IV. ORDEM JURÍDICA E IMPERATIVIDADE

1. Enquadramento geral
A imperatividade do direito é o dever de respeitar as regras jurídicas (dever ser). Quando as
regras jurídicas não são observadas pelos agentes, há dois tipos de consequências: por um lado,
há o desvalor do ato antijurídico; por outro, há a aplicação de uma sanção àquele que violou o
direito.
A imperatividade manifesta-se na prescrição de um dever ser.
A coação exprime-se na cominação de uma sanção ao agente que violou uma regra jurídica.
A coercibilidade manifesta-se na aplicação da sanção que é imposta pela força ao agente que
infringiu a regra jurídica.
A ordem jurídica é simultaneamente uma ordem imperativa, coativa e coerciva.

2. Desvalores jurídicos
Os principais valores jurídicos negativos são a ilicitude e a ilegalidade.

Ilicitude (conduta) – é a desconformidade de uma conduta com uma regra jurídica quando o
agente atua de forma voluntária.
Esta implica a responsabilidade civil, responsabilidade disciplinar e a responsabilidade contra-
ordenacional/penal do agente. A ilicitude é assim um dos elementos da responsabilidade jurídica.

Ilegalidade (ato jurídico) – é a contrariedade de um ato jurídico à lei. Todo o ato que viola a lei
é um ato ilegal (homicídio, apropriação de um bem alheio).
Esta subdivide-se em três modalidades:

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• Inexistência – é a forma mais grave de ilegalidade. O vício que afeta o ato é considerado
pelo direito tão grave que, juridicamente, se considera que nada existe (é como se o ato não
existisse porque não preenche o mínimo de requisitos dos limites da autonomia privada).
P.E: é inexistente o ato normativo em que falte a promulgação ou a assinatura do Presidente
da República, quando sejam exigidas.

• Invalidade – desconformidade do ato com o direito menos grave que a inexistência. A lei
considera o ato sem valor porque não preenche requisitos.
➢ Nulidade (art 286 e 289) – corresponde a vícios de maior gravidade. Pode ser
invocada por qualquer interessado e oficiosamente pelo tribunal. O negócio é
inválido desde sempre e invocável a todo o tempo, não se sana com o decurso do
tempo.
P.E: contrato de compra e venda por uma escritura particular.
➢ Anulabilidade (art 287 e 289) – decorre da violação de interesses menos relevantes.
Só pode ser arguida pelas pessoas interessadas e não pode ser declarada
oficiosamente pelo tribunal (art 281). Pode ser sanável mediante a confirmação dos
interessados, dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de
fundamento.
• Ineficácia – muitas vezes a lei não considera inválido o ato que não observou requisitos
legais, mas impede que produza efeitos jurídicos. P.E: penhor.

3. Sanções jurídicas
Sanção jurídica (atinge o agente que violou o direito): é uma consequência desfavorável
normativamente prevista para o caso de violação de uma regra e pela qual se reforça a
imperatividade desta. Pode haver regras não sancionadas; mas a existência de sanções é natural
consequência da imperatividade. A aplicação das sanções é feita através da imposição de uma
desvantagem ao infrator da regra ou da atribuição de uma vantagem a quem tiver observado a
regra.

As sanções podem prosseguir uma finalidade preventiva, repressiva ou reprovadora.


• Finalidade preventiva – procuram obstar à violação do direito. P.E: quem praticou o crime
fica inibido de exercer determinadas funções que molde a acautelar a prática de novo
crime.
• Finalidade repressiva – visam impor uma pena ao infrator. P.E: pena de prisão/coima.
• Finalidade reparadora – visam reconstituir a situação que existia antes da violação da
regra. P.E: dever de reparação dos danos provocados a outrem.

A sanção decorre de:


• Regras de conduta – definem o comportamento/ação que é obrigatório ou proibido.
Dirige-se a quem pode praticar o comportamento.
• Regras sancionatórias– determinam a respetiva sanção na hipótese de violação de uma
regra de conduta. Dirige-se tanto a quem pode realizar esse comportamento, como a quem
tem de aplicar a sanção.
As regras sancionatórias têm diferentes categorias de destinatários, então elas só podem
ser violadas por diferentes destinatários.

O comportamento juridicamente devido é sempre o contrário daquele que consta da previsão


da regra sancionatória. A regra que fornece uma razão judicativa para um julgador fundamentar
uma decisão também fornece uma razão prática para um agente realizar ou omitir uma conduta.

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Os meios através dos quais o direito pode orientar as condutas humanas podem ser punitivos
(lato sensu) – impõem uma desvantagem/sofrimento aos infratores; sanciona-se a violação da
regra jurídica – ou premiais – atribuem uma recompensa àqueles que observam o direito; premeia-
se a observância da regra jurídica.
Porém, os meios premiais distorcem o sentido do dever ser, porque em vez de punir os
infratores, premeia os obedientes. É desejável que a observância da ordem jurídica seja algo
natural e espontâneo e não algo que seja provocado pela expetativa de obter uma recompensa.
As sanções podem ser:

• Preventivas – a finalidade da sanção é prevenir violações futuras de que a anterior prática do


ilícito justifica o receio.
P.E: liberdade condicional (para quem pratica crimes. Não tem função punitiva porque é para
evitar a prática futura de crimes);

• Compulsórias – destinam-se a atuar sobre o infrator da regra para o levar a adotar a conduta
devida. Não deixa de ter havido uma infração, mas procura-se chegar à situação que
resultaria da observância da regra.
Formas de alteração: na generalidade dos casos, se uma pessoa não cumpre aquilo a que se
vincula continua obrigada, mas não se recorre à coação para a forçar a fazer o que devia ter
feito. Procura-se atingir um resultado final quanto possível semelhante, por intermedio de
outras sanções, mas prescinde-se da colaboração do faltoso.
Outras vezes reage-se ao ilícito não cumprimento através de meios destinados a infligir um
sofrimento de privatização ao faltoso, de modo a forçá-lo a cumprir.

• Reconstitutivas – a relação da ordem jurídica à inobservância da norma é a imposição da


reconstituição da situação que existiria se o agente não tivesse violado a regra.
➢ Reconstituição natural/ indemnização específica – reparação de um dano através da
reposição do lesado na situação que existiria se a lesão não se tivesse verificado (art 562).
P.E: se alguém estragou um relógio de outrem, a reconstituição natural consiste em
entregar ao lesado um outro relógio.
➢ Execução específica – obter, através do recurso ao tribunal, a prestação a que o devedor
está obrigado.
P.E: se o devedor estiver obrigado a entregar um automóvel, o credor tem a faculdade de
requerer que a entrega lhe seja feita (art 827).

• Compensatórias – visam colocar o ofendido na situação que existiria senão houvesse


violação das regras.
Quando a reconstituição natural não é equitativa, não é atingível ou não é suficiente da
violação havida, utiliza-se uma sanção compensatória (art 562 e 566), que visa constituir
uma situação que embora diferente, seja, todavia, valorativamente equivalente à primeira –
não é uma reconstituição, mas sim uma reintegração).
Esta sanção opera sempre através da indemnização de danos sofridos, que se pode destinar a
cobrir:
➢ Falta do próprio bem devido: se um famoso pintor se compromete a pintar um retrato e
falta arbitrariamente ao procedido, não é possível a reconstituição natural, sendo o pintor
condenado a pagar uma quantia que representa a tradução monetária do próprio bem a
que a outra parte foi privada.
➢ Outros danos patrimoniais: provocados em bens que podem ser economicamente
avaliados.

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➢ Danos não patrimoniais: resultantes da lesão de bens sem expressão económica (morais).
P.E: alguém é difamado no seu bom nome por outrem; o difamado tem direito a ser
indemnizado do dano moral que a difamação lhe causou (art 484).

• Punitivas – a pena consiste numa sanção imposta de maneira a representar simultaneamente


um sofrimento e uma reprovação para o infrator.
As categorias de penas são:
➢ Penas civis: sanções previstas fora do direito criminal ou independentes de qualquer ato
criminal. São definidas pelo direito privado (indignidade sucessória depende daquele que
engana o autor da sucessão – art 2034). Tem função repressiva.
➢ Penas disciplinares: corresponde às infrações disciplinares, praticadas pelos funcionários
contra a disciplina administrativa.
➢ Penas criminais: previstos no direito criminal como pena de prisão ou coima (multa).

4. Atuação da imperatividade
A imperatividade exprime-se na imposição de um dever ser.
A coação manifesta-se na cominação de uma sanção (no caso de violação do dever ser), havendo
sanções com expressão física – característica da generalidade das ordens jurídicas. P.E: pena de
prisão – e sanções sem expressão física – sanções de carácter institucional. P.E: a destituição do
administrador de uma sociedade.
Lex imperfecta – quando a ordem jurídica não comina nenhuma sanção no caso da violação
de uma regra jurídica. P.E: as obrigações naturais, que se fundamentam no dever de ordem moral
ou social e correspondem a um dever de justiça, mas o seu cumprimento não é judicialmente
exigível.
Soft law – direitos não sancionatórios e com imperatividade diminuída. P.E: códigos de
conduta/boas práticas.

Coercibilidade: consiste na suscetibilidade de aplicar uma sanção jurídica através do uso da força
– este poder pertence exclusivamente a órgãos do Estado, como os tribunais (órgãos de soberania
com competência para administrar a justiça em nome do povo, art.202º, CRP) e a polícia (órgão
de administração pública, art.272º, CRP).

A coação pretende coagir o agente a atuar de certa forma sob ameaça de uma sanção (vis coactiva).
A coerção aplica a sanção ao agente que infringiu a regra jurídica (vis directiva).
Há duas situações distintas na relação entre a coação e a coerção.
Em certos casos, a coação conduz necessariamente ao uso da coerção contra o infrator. P.E: a
aplicação de uma pena de prisão não dispensa a coerção, pois que a sanção só é cumprida quando
o criminoso estiver preso.
Noutros casos, a coação não é necessariamente acompanhada da coerção contra o infrator. P.E: a
imposição de um dever de indemnizar pode não necessitar de nenhuma coerção, se a
indemnização devida ao lesado for voluntariamente paga pelo lesante.
A coerção conduz à observância de uma regra jurídica quando a sanção a aplicar for uma
sanção preventiva ou compulsória uma vez que estas visam que o agente atue segundo o direito.
Em conjugação com as demais sanções, a coerção não visa impor o respeito de uma regra jurídica,
mas apenas aplicar uma sanção ao agente que tiver violado uma regra.
Se uma regra jurídica define o dever de indemnizar como sanção aplicável, não é essa mesma
regra que regula a entrega efetiva ao lesado da quantia indemnizatória através de um processo
executivo – a coerção é regulada por regras diferentes das regras de conduta e de sanção.

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Contudo, as regras de coerção podem ser violadas pelo agente ao qual compete realizar a
coerção, o que pode conduzir à aplicação de uma sanção a esse sujeito e ao uso da coerção contra
ele. P.E: suponha-se que o juiz a quem compete a execução da dívida relativa à indemnização se
deixou corromper por uma das partes; o juiz pratica um crime e deve ser sancionado, o que pode
fazer atuar uma outra regra de coerção.
Se uma autoridade estadual estiver sujeita à coerção, esse poder coercivo é exercido por
quem? Pelo Estado de direito e a separação de poderes que lhe é inerente.

V. ORDEM JURÍDICA E TUTELA JURÍDICA

1. Meios de tutela jurídica


A ordem jurídica atribui situações subjetivas que necessitam de ser alteradas antes de
qualquer violação e de ser reparadas após a sua violação, o que implica que a ordem jurídica tenha
de comportar meios de tutela de situações subjetivas.

• Meios de autotutela – realização do direito pelo próprio ofendido, ou seja, sem recurso a
uma entidade ou a um órgão imparcial e independente para dirimir o litígio.
• Meios de heterotutela – forma de resolução de conflitos de interesses através de órgãos
imparciais e independentes, o que pressupõe o recurso aos tribunais estaduais (órgãos de
soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo).
Em certas situações é admissível recorrer aos tribunais arbitrais para obter a tutela de
situações subjetivas. A arbitragem pode ser voluntária – as partes decidem atribuir, através
da celebração de uma convenção arbitral, a resolução de um litígio a um tribunal arbitral –
ou necessária – quando a lei impõe a resolução de um litígio por um tribunal arbitral.

A prevalência da heterotutela sobre a autotutela é um princípio da ordem jurídica portuguesa


– ninguém pode recorrer à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos
casos e dentro dos limites da lei. A heterotutela é a regra no ordenamento jurídico português e
que a autotutela tem um carácter subsidiário e residual perante a heterotutela.

2. Meios de autotutela

• Legítima defesa – utilizada para defender qualquer direito pessoal ou patrimonial.


No plano civil considera-se justificado o ato destinado a afastar qualquer agressão atual e contrária
à lei contra a pessoa ou o património do agente ou de terceiro, desde que não seja possível fazê-
lo pelos meios normais e o prejuízo causado pelo ato não seja manifestamente superior ao que
pode resultar da agressão (art 337º, nº1, CC).
No plano penal, constitui legítima de defesa o facto de ter praticado como meio necessário para
repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de um terceiro
(art 32º CP).
➢ Princípio de proporcionalidade – a legítima de defesa não pode ser desproporcionada em
relação ao bem que é atingido pela ofensa. Se tal suceder, há excesso de legítima de defesa
e a reação do agredido torna-se ilícita.
Contudo, se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto não censuráveis, o agente não
é punido porque beneficia de uma causa de exclusão da culpa (art 33º, nº2, CP).
Se o agente atuar na convicção errónea de que estão preenchidos pelos elementos do tipo
justificador da legítima de defesa, verifica-se a legítima defesa putativa, aplicando-se o
regime do erro (art 16º, nº2, CP).

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• Direito de resistência (ius resistendi) – modalidade da legítima defesa que se caracteriza por
atribuir a uma pessoa:
➢ quer o direito a resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e
garantias – resistência passiva
➢ quer o direito de repelir pela força qualquer agressão contra esses direitos, liberdades e
garantias, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.

• Estado de necessidade – visa evitar a consumação ou o aumento de um dano. Este distingue-


se da legítima de defesa por não pressupor nenhuma agressão praticada contra o agente.
Quem atua em estado de necessidade não atua de forma ilícita, desde que o dano que pretende
evitar a ele próprio ou a terceiro seja manifestamente superior àquele que causa a outro
terceiro.
Tanto no plano civil, como no plano penal, as ações/os factos não são ilícitos se forem
praticados como meio adequado para afastar um perigo atual que ameace interesses juridicamente
protegidos do agente/terceiro, quando houver superioridade do interesse a salvaguardar
relativamente ao interesse sacrificado e quando for razoável impor ao lesado o sacrifício do seu
interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado (art 34º, CP; art 339º, nº1, CC).
O estado de necessidade pode ser agressivo – o agente destrói/danifica uma coisa para remover
um perigo – ou defensivo – o agente destrói/danifica a própria coisa que cria o perigo.
A violação do princípio da proporcionalidade conduz ao excesso de necessidade.
Estado de necessidade desculpante (art 35º, nº1, CP) – se o dano que se pretende evitar não
for manifestamente superior àquele que se vai causar. Não exclui a ilicitude, mas apenas a culpa
do agente.
Estado de necessidade punitivo (art 16º, nº2, CP) – se o agente atua com a convicção errónea
de que se verificam os elementos do tipo justificador do estado de necessidade. São aplicáveis as
disposições relativas ao erro.
O dever de indemnização constitui-se sempre que o perigo contra o qual se reage tenha sido
provocado por culpa exclusiva daquele que atua em estado de necessidade. Só em função das
circunstâncias do caso concreto pode ser determinado se a equidade impõe essa indemnização do
lesado ou se a mesma justifica que este deva suportar o dano decorrente da atuação em estado de
necessidade.

• Ação direta – torna lícito o recuso à força com o fim de realizar ou assegurar um direito
próprio, quando ela for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos
meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente
não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo. P.E: na defesa da propriedade.

Pode consistir na apropriação, destruição ou deterioração de uma coisa, na eliminação da


resistência irregularmente oposta ao exercício do direito ou ainda noutro ato análogo. A ação
direta pressupõe uma agressão ou violação já consumada, mas que ainda permite uma reação
passível de evitar a inutilização prática do direito.
Excesso de ação direta – se o interesse sacrificado for superior ao interesse protegido.
Ação direta punitiva – erro sobre os elementos do tipo justificador.

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Margarida Gonçalves

TÍTULO II - REGIME DAS FONTES DO DIREITO

VI. SISTEMAS DE DIREITO

1. Comparação jurídica
O Direito Comparado ocupa-se da comparação entre várias ordens jurídicas ou entre
institutos de diferentes ordens jurídicas, ou seja, serve-se do método comparativo que consiste na
análise entre diferenças e semelhanças entre os direitos ou os institutos escolhidos para
comparação.
O Direito Comparado assenta na comparação entre diferentes ordens jurídicas ou entre
alguns dos seus institutos e não é um direito vigente em nenhum ordenamento jurídico. Esta
comparação feita entre direitos pode ser uma macrocomparação – incide sobre as ordens
jurídicas consideradas na sua generalidade e permite distinguir os vários sistemas de direito – ou
uma microcomparação – incide sobre os institutos jurídicos e permite analisar semelhanças e
diferenças existentes na regulação de um mesmo instituto jurídico em diferentes ordens jurídicas
(P.E: responsabilidade civil, o casamento, a sucessão mortis causa).
O Direito Comparado é um auxiliar da Política do Direito, dado que ele permite conhecer o
direito internacional e analisar as soluções preconizadas nessas legislações; é a harmonização e a
uniformização entre várias ordens jurídicas pois permite encontrar as semelhanças e discutir as
diferenças entre esses direitos.
Ele pode ser igualmente útil para o direito nacional, dado que frequentemente importa conhecer
o direito estrangeiro para compreender o próprio direito. Assim sucede, pois muitas das soluções
adotadas no direito nacional são importadas de direitos estrangeiros e o direito vigente em ordens
jurídicas estrangeiras fornece uma orientação para as lacunas detetadas no direito nacional.

Para determinar os vários sistemas de direito, há que utilizar um critério de classificação,


uma vez que só pertencem ao mesmo sistema as ordens jurídicas que apresentam mais
semelhanças do que diferenças. Segundo um dos critérios mais utilizados, pertencem ao mesmo
sistema, as ordens jurídicas que compreendem as mesmas fontes do direito.
Fonte do Direito – enquanto critério diferenciador das ordens jurídicas dos diferentes sistemas
jurídicos. De acordo com este critério, pode distinguir-se:

• Direitos Tradicionais (por exemplo, o direito muçulmano)


• Direitos Modernos:
➢ Sistema Ocidental: assenta na civilização ocidental que se baseia na herança grega, no
pensamento cristão (católico e protestante), na tradição humanista herdada do
Renascimento, na revolução industrial e no sistema capitalista dela emergente.
O sistema ocidental comporta dois subsistemas – o sistema continental, romanístico,
romano-germânico; e o sistema anglo-americano ou common law.
➢ Sistema Comunista.

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Margarida Gonçalves

2. Sistema Romano-Germânico
O sistema romano-germânico tem uma base romanística. As ordens jurídicas pertencentes
ao direito romano formaram-se através da receção do direito romano, muito facilitada pela
compilação do Corpus Iuris Civilis.
A receção do direito romano ocorreu através de diversas óticas, com especial destaque para o
período da Pandectística Alemã (Séculos XVIII e XIX). As Universidades desempenharam um
importante papel nesta receção, pois foi nelas que se formaram as grandes escolas e correntes que
acompanharam esta receção – por exemplo, a Escola dos Glosadores e Comentadores.
Foi através da colonização e outros momentos históricos que se difundiu o sistema romano-
germânico pelos diferentes continentes.
No sistema romano-germânico a lei é a principal fonte de direito. Neste sistema, o costume
e a jurisprudência (que resulta das decisões de tribunais proferidas para na solução de casos
concretos), embora possam ser igualmente fontes de direito, assumem um papel secundário.
A técnica científica utilizada carateriza-se pela conceção do direito como um sistema. Daí resulta
que as leis são abstratas (aplicadas a uma multiplicidade de casos concretos) e gerais (aplicáveis
a uma pluralidade indeterminada de destinatários).
A lei constitui a principal fonte de direito e nele dá-se a particular importância à
sistematização do direito e à abstração e generalidade das leis, de onde se extrai uma
consequência: o movimento de codificação.
Um código detém um sistema ordenado de regras jurídicas respeitantes a uma determinada
matéria jurídica. A codificação moderna (que ocorreu depois do século XVIII), tem causas:

• Ideológicas – encontram-se no jusracionalismo e as ideias de sistematização, ordenação, e


abstração que decorrem dessa orientação jusfilosófica.
• Políticas – reportam-se à demonstração de um poder político forte, ao favorecimento da
unificação política (como sucedeu nos casos da Itália e Alemanha) e à definição de regimes
jurídicos universais e não discriminatórios.
A codificação requer algumas condições técnico-jurídicas, nomeadamente uma ordenação
sistematizada de regras e regimes jurídicos, pelo que, só um determinado grau de maturação
juscientífica permite chegar à codificação.
A codificação apresenta vantagens – facilidade no acesso ao direito vigente, a sistematização e
ordenação das matérias e, por fim, a orientação do aplicador na solução dos casos concretos – e
desvantagens – rigidez da regulamentação jurídica e a fixidez da doutrina, porque esta tende a
seguir as soluções que constam dos códigos.

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Margarida Gonçalves

Para se distinguir o direito público do direito privado recorrem-se a critérios como:

• Critério do Interesse – o direito público respeita a interesses públicos. O direito privado


refere-se a interesses privados.
CC – a dificuldade de estabelecer os interesses que são públicos e os interesses que são
privados.

• Critério da Qualidade dos Sujeitos – o direito público é aquele que tem como sujeitos entes
públicos e o direito privado é aquele que regula relações entre particulares.
CC – a atuação dos entes públicos poder ser feita também, no mundo do direito, como
qualquer particular, pelo que não basta a mera qualidade de sujeito. P.E: o Estado, quando
compra um automóvel para um Ministério, atua como qualquer particular.

• Critério da Posição dos Sujeitos – o direito público é aquele em que os entes públicos
intervêm dotados de poderes de soberania e o direito privado é aquele em que os sujeitos,
ainda que públicos, intervêm numa posição de paridade com outros interessados.

3. Sistema de common law


O direito romano chegou a vigorar nas Ilhas Britânicas, tendo sido superado em 1066 com a
conquista normanda. Na falta de um direito vigente, as decisões dos tribunais assumiram um papel
primordial, tendo-se ficcionado que essas mesmas decisões se fundavam num pretenso direito
comum a todos os povos das Ilhas Britânicas – o chamado Common Law.
O common law mostrou-se insuficiente para resolver satisfatoriamente todos os casos concretos
e, no século XV, o Chanceler passou a decidir, em nome do Rei, certos casos que não podiam ser
resolvidos pelo common law: assim se formou a equity, que assumiu uma função paralela à
common law.
Com a colonização da América do Norte, o sistema anglo-saxónico passou para os EUA. A
expansão do sistema anglo-saxónico verificou-se igualmente para outros territórios,
nomeadamente África, e Oceânia.
A Jurisprudência assume um papel fundamental enquanto fonte do direito do sistema anglo-
saxónico, uma vez que funcionava nele a regra do precedente – o precedente fixado pelos tribunais
superiores na decisão de casos concretos é vinculativo para os tribunais inferiores.
Contudo, os tribunais inferiores, através da practice of distinguishing, podem deixar esse
precedente se entenderem que a solução do seu caso concreto exige a aplicação de um princípio
mais restrito do que aquele que foi utilizado no precedente.
No sistema common law também existem leis, mas a principal fonte do direito é a
jurisprudência e a regra do precedente. O sistema de common law comporta uma técnica
jurídica que, em comparação com o sistema romano-germânico, se manifesta numa menor
preocupação com a sistematização do direito e com o caráter abstrato e geral das leis.

4. Sistema Muçulmano
O sistema muçulmano carateriza-se por uma estreita ligação entre o direito e a religião. A religião
muçulmana comporta, não só certos dogmas, como também algumas regras de comportamento –
a lei divina define obrigações quer do homem perante Deus, quer do homem perante os seus
semelhantes.

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Margarida Gonçalves

• Base religiosa – a ligação do direito muçulmano com a religião decorre do facto de as fontes
de direito se encontrarem na religião. Em concreto, essas fontes são as seguintes:
➢ Corão, que é o livro sagrado dos muçulmanos e no qual contêm as revelações de Deus ao
Profeta Maomé;
➢ A Suna, que é constituída pela h’adid, ou seja, pelas tradições relativas à conduta, aos
atos e aos propósitos do Profeta Maomé;
➢ O Idjma’ que é a opinião unânime dos jurisconsultos do islão.

• Adaptação à realidade: a necessidade de adaptar o direito muçulmano à evolução do tempo


fez com que o costume se fosse assumindo como fonte de direito.

VII. A DELIMITAÇÃO DAS FONTES DE DIREITO

1. Delimitação positiva
As fontes de direito podem ser entendidas como modos de revelação de critérios normativos
de decisão de casos concretos, ou seja, são os modos de revelação de regras jurídicas.
A conceção das fontes de direito não deve esquecer que todas as fontes são factos normativos,
pelo que, todas elas resultam de um processo de formação. A fonte forma-se e quando a sua
formação se concluir, revela um critério de decisão.
A formação da fonte de direito é essencial para determinar a qualidade do critério de decisão que
é por ela revelado. Através do seu modo de formação, podemos distinguir por exemplo, a regra
legal, jurisprudencial e consuetudinária.
As fontes de direito são fundamentais para a construção de qualquer sistema jurídico – não há
sistema jurídico sem fontes. Para além de serem criados pelas fontes, os sistemas jurídicos são
também grandes criadores de outras fontes – fontes derivadas (de fontes originárias).
A fonte originária é aquela que não tem nenhuma fonte do direito como fonte, coincidindo, quase
sempre, com uma Constituição.
Para o conhecimento do direito vigente, não é suficiente o conhecimento das suas fontes. É
necessário conhecer também a doutrina e a jurisprudência.
As fontes constam de enunciados linguísticos. A linguagem das fontes do direito não é nem
expressiva – porque não se pretende transmitir emoções ou sentimentos – nem informativa –
porque não visa dar uma informação sobre algo. A linguagem das fontes de direito é sim
performativa ou ilocutória porque se constrói através de uma realidade.
P.E: artigo 66º, nº1, CC – ao estabelecer que a personalidade se adquire no momento do
nascimento completo e com a vida, determina que qualquer pessoa é, para o direito, uma pessoa
jurídica; artigo 483º, nº1, CC – ao impor a reparação dos danos por aquele que causou prejuízos
a outrem, qualifica a responsabilidade civil como uma das fontes das obrigações; artigo 1577º CC
– ao definir o casamento, determina o que, para o direito, vale como casamento.
Os enunciados performativos são insuscetíveis de ser qualificados como verdadeiros ou falsos.
O Estado exerce, através de órgãos próprios, uma função legislativa, executiva e judicial,
pelo que, num plano abstrato, em todas essas funções é possível a formação de fontes de direito,
podendo haver, nesse mesmo plano, regras jurídicas com origem legal, regulamentar ou
jurisprudencial.

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O problema complica-se quando se assume uma separação de poderes e a distribuição de funções


do Estado por diferentes órgãos que atuam segundo um princípio de especialidade e de
interdependência. Se é evidente que os órgãos legislativos podem produzir leis e os órgãos
administrativos regulamentos, já não é tão seguro afirmar que os tribunais podem produzir fontes
de direito. O poder jurisdicional que é exercido pelos tribunais comporta a resolução de casos
concretos através da aplicação de regras jurídicas.
O controlo da constitucionalidade ou legalidade de fontes do direito, feito pelos tribunais, coloca-
se num outro plano, pois, neste caso, a sua função não é a de criação de fontes, mas a de controlo
da conformidade legal dessas fontes.

Modo de formação – as fontes de direito podem ser:

• Intencionais (ou voluntárias) – têm na sua origem um ato normativo. P.E: a lei.
As fontes intencionais pressupõem um órgão com competência legislativa ou regulamentar
para elaborar a lei e, por isso mesmo, exige uma lei que confira poderes normativos a esse
órgão.

• Não intencionais (ou não voluntárias) – têm na sua origem um facto não voluntário de
produção normativa. Por exemplo, o costume.

Eficácia

• Imediatas – são fontes por si próprias, não necessitando de nenhuma outra fonte que as
qualifique como tal. As fontes imediatas possuem uma juridicidade própria.

• Mediatas – são qualificadas como tal por uma fonte imediata. As fontes mediatas retiram a sua
juridicidade de uma fonte imediata.
A propósito desta distinção, acresce referir que não há nenhuma relação necessária entre a
distinção e a hierarquia das fontes. Para o comprovar basta atender a que há fontes mediatas que
se encontram hierarquicamente acima das fontes imediatas. P.E: a lei que reconhece a
jurisprudência normativa como fonte (mediata) do direito estabelece igualmente que as decisões
obrigatórias dos tribunais (nomeadamente, as que declaram uma lei inconstitucional) prevalecem
sobre a lei (no caso, a lei declarada inconstitucional).
O art 1.º/1, CC dispõe que as fontes imediatas do direito são as leis e as normas corporativas
podendo, desde já, concluir, que as estas leis e normas corporativas são fontes de outras fontes,
ou seja, podem atribuir o caráter de fontes mediatas a outros modos de revelação de critérios
normativos de decisão.
Considerando que as fontes imediatas são fontes independentes de quaisquer outras fontes, há que
fazer uma interpretação cuidada do art 1.º/1, CC. A problemática surge quando este artigo
classifica as leis e as normas corporativas enquanto fontes imediatas e estas não podem ser
definidas como aquelas que gozam de uma juridicidade própria e autónoma de qualquer
qualificação por outra fonte.
Para obstar a esta conclusão incompatível com a noção de fonte imediata, torna-se necessário
entender que o art 1.º/1, CC não visa proceder a uma qualificação das leis e normas corporativas
como fontes imediatas do direito, mas apenas proceder à enumeração de fontes imediatas do
ordenamento jurídico português.

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Margarida Gonçalves

Ou seja, as leis e normas corporativas só podem ser fontes imediatas, se o art 1.º/1, CC não
pretender atribuir-lhes esse caráter e fizer uso de uma mera linguagem descritiva que se limita a
reconhecer as leis e normas corporativas como fontes de direito.

Origem

• Internas (de um ordenamento) – são as fontes que têm origem nessa mesma ordem jurídica.

• Externas (de um ordenamento) – são as fontes que têm origem numa ordem jurídica e que
vigoram nesse ordenamento por meio de regras de receção. Estas regras podem ser impostas
por um sistema a outro sistema jurídico.
Importa não confundir a situação em que a ordem jurídica possui fontes externas – ela recebe ou
incorpora fontes vindas de outras ordens jurídicas, com a situação de coexistirem várias ordens
jurídicas num mesmo espaço – onde vigoram fontes respeitantes a diferentes ordens jurídicas. É
o que sucede em Portugal, com as regras do ordenamento jurídico português e as regras
provenientes do direito europeu e direito canónico.

• Fontes simples – provêm de um único facto normativo.


• Fontes Complexas –são constituídas por um facto originário e um facto posterior à produção
da fonte.
As fontes complexas são compostas pelo facto originário e por um ou vários factos
supervenientes, como a novação da fonte. Esta última verifica-se quando a regra contida na fonte
se mantém, mas com alteração do facto normativo.
A interpretação autêntica de uma fonte do direito é aquela que é realizada por uma outra fonte da
mesma hierarquia ou superior. Assim, quando uma fonte interpreta uma outra fonte, há uma
modificação da fonte originária, pois que, antes da interpretação autêntica, a fonte é apenas o facto
originário e, depois da interpretação, essa fonte passa a ser constituída pelo facto originário e pelo
facto superveniente da interpretação.

2. Delimitação Negativa
A doutrina decorre do trabalho dos juristas sobre a lei e manifesta-se na opinião sobre a
solução de um certo problema jurídico. A doutrina pode ser fonte do direito num sentido
individual ou coletivo.
A qualidade de fonte do direito pode ser atribuída à resposta dada por um jurisconsulto a um
problema jurídico. Também pode ser concedida a qualidade de fonte do direito à orientação
uniforme ou, pelo menos, prevalecente da doutrina sobre a resposta a dar a uma questão jurídica.

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Margarida Gonçalves

No atual direito português, a doutrina não é fonte de direito. Nenhuma opinião doutrinária,
nem mesmo em posição unânime, tem poder vinculativo para os tribunais ou qualquer outro órgão
de aplicação do direito. As teorias construídas e as proposições enunciadas pela doutrina não se
constituem fonte de direito.
Contudo, não se deve descartar a importância da doutrina na vida jurídica. É indiscutível que a
doutrina molda o direito vigente, criticando as soluções legais e propondo novas soluções, e que
exerce uma força persuasiva sobre os tribunais e os outros aplicadores do direito, uma vez que se
ela orienta num certo sentido quanto à solução a dar a uma questão de direito, é claro que isso não
pode deixar de produzir um efeito persuasivo sobre o órgão de aplicação do direito.
A função jurisdicional é exercida pelos tribunais, aos quais compete administrar a justiça
em nome do povo. A jurisprudência é o resultado da atividade decisória dos tribunais na resolução
dos casos concretos.
A decisão proferida por um tribunal na apreciação de um caso concreto pode ser vinculativa na
apreciação de casos análogos pelo mesmo ou por outro tribunal – neste caso, essa decisão constitui
um precedente obrigatório e torna-se fonte de direito.

• Nos sistemas de direito romano-germânico é defendida a ideia de que as decisões dos


tribunais não constituem um precedente vinculativo na apreciação de casos idênticos.
• No direito austríaco estabelece-se mesmo que as “decisões (dos tribunais) nunca têm a força
de lei” (12 ABGB).
Esta não vinculatividade permite que o juiz de uma ação possa decidir diferentemente do que
decidiu antes numa outra causa, ou do que foi decidido quanto a casos semelhantes, por outros
juízes, havendo apenas que ressalvar a hipótese em que, num processo pendente, um tribunal deva
acatar as decisões proferidas em via de recurso pelos tribunais superiores.
A visão que se tem hoje da jurisprudência é substancialmente diferente da ideia de que “os
juízes da nação não são senão a boca que pronuncia as palavras da lei”, Montesquieu. O juiz, nos
dias que correm, é reconhecido enquanto figura que constrói a decisão do caso concreto a partir
das fontes e desempenha uma função enformadora da ordem jurídica.
O sentido atual da jurisprudência está muito próximo do seu étimo latino “prudentia”, dado que
este significa a sabedoria prática e a capacidade de raciocinar e de decidir de forma sensata.
Atendendo à vinculação do juiz à lei, só é possível afirmar que “o juiz descobre o direito, mas
não tem de o inventar”. Embora o papel da jurisprudência não deva ser sobrevalorizado
(nomeadamente porque a aplicação do direito é uma atividade quotidiana que só numa pequena
parte é desempenhada pelos tribunais), a verdade é que, quando tal acontece, a jurisprudência
acaba por se sobrepor ao direito definido pelo legislador.
A jurisprudência não é fonte de direito, mas é de igual modo importante pelo papel que
desempenha na vida jurídica.

• Qualquer decisão dos tribunais, principalmente os tribunais superiores, constitui um modelo


para outras decisões sobre a mesma questão de direito.
• A jurisprudência adapta constantemente os textos legais à evolução dos tempos. Quanto mais
antiga for a lei, maior é a possibilidade da sua desatualização. Contudo, a sua aplicação
jurisprudencial pode adaptá-la a novas realidades e dar-lhe um novo significado.
• À jurisprudência também lhe está reservada uma importante função de concretização de
conceitos indeterminados.

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Margarida Gonçalves

Jurisprudência constante – diz respeito à interpretação e aplicação uniforme do Direito aos


casos análogos (art 8º/3, CC). Traduz-se numa mera tendência nas decisões dos tribunais na
resolução dos casos concretos. A jurisprudência constante também incrementa confiança no
sistema jurídico, na medida em que o sentido das decisões dos tribunais se torna previsível e
expectável e também poupa trabalho aos tribunais, dado que estes podem reproduzir as decisões
proferidas por outros tribunais na apreciação de casos semelhantes.
Esta jurisprudência pode ser modificada a qualquer momento ou deve ser tutelada a
expetativa das partes em que o seu caso seja resolvido de acordo com a jurisprudência
constante?

• No plano de Direito Positivo – há que considerar que, atendendo a que a jurisprudência não
é fonte de direito, não há que seguir qualquer analogia com o princípio de retroatividade da lei
nova (art 12.º/1, CC), pelo que os tribunais podem alterar, na apreciação de qualquer caso
concreto, uma jurisprudência constante.
• No plano doutrinário – não significa que não possam ser considerados vantajosos alguns
mecanismos destinados a salvaguardar a expetativa das artes no proferimento de uma decisão
baseada na jurisprudência constante, tendo nomeadamente presente o princípio da confiança
que decorre do Estado de Direito democrático.

Jurisprudência uniformizada – aquela que é fixada pelos tribunais supremos, de modo a evitar
o proferimento de decisões contraditórias sobre a mesma questão de Direito.
A jurisprudência uniformizada é admissível no âmbito do processo civil, do processo penal e do
contencioso administrativo. Os regimes legais são injustificadamente algo distintos em cada um
destes processos. A jurisprudência uniformizada:

• Não é vinculativa/obrigatória para os tribunais, nem mesmo para os tribunais inferiores da


ordem a que pertence o tribunal que proferiu o acórdão de uniformização de jurisprudência
(art 445.º/3, CC). Significa isto que a jurisprudência utilizada não pode ser considerada
uma fonte de direito. Há legitimidade de requerer à decisão uniforme quando esta não
coincide com a decisão dos tribunais. Contudo, os tribunais não são obrigados a atender ao
requerimento do indivíduo, de acordo com o princípio da liberdade de julgamento.

• Para além de ter um especial valor persuasivo, também tem um valor legal específico. No
processo civil e no contencioso administrativo é sempre admissível, qualquer que seja o valor
da causa, interpor recurso da decisão que não siga a jurisprudência uniformizada (art
678.º/2/c). No processo penal, o MP deve recorrer de qualquer decisão proferida contra a
jurisprudência fixada pelo STJ.

• Tem uma eficácia retroativa, dado que vai ser aplicada a factos que foram praticados e a
situações que foram constituídas antes dessa uniformização. Pergunta-se então, se esta eficácia
retroativa não viola o princípio da confiança, típico de um Estado de Direito democrático
(artigo 2º, CRP). Uma forma de evitar a violação desse princípio é reconhecer que o tribunal
que profere a decisão de uniformização pode (ou deve) restringir a eficácia retroativa desta
decisão.
Jurisprudência vinculativa – é imposta pelos acórdãos do TC, de forma vinculativa. São
acórdãos com força obrigatória geral e só podem ser proferidos no âmbito de uma fiscalização
constitucional abstrata. Quando um acórdão emite uma declaração de obrigatoriedade geral de
inconstitucionalidade que revoga uma lei inconstitucional que por sua vez revogou outra lei, então
essa lei volta a vigorar. A jurisprudência vinculativa é uma fomente de Direito maioritariamente
negativa, mas quando traz de volta outra norma, pode ser considerada positiva.

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Assentos
Na versão originária do CC, o art 2º, CC estabelecia que nos casos declarados na lei podem os
tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral, atribuindo assim o
valor de fonte de direito aos assentos. Assim sendo, aplicavam-se assentos interpretativos
(aplicava-se uma interpretação única, ficando os tribunais vinculados a adotar essa mesma
interpretação).
Contudo, com a introdução do art 112º/5, CRP (nenhuma lei pode criar outras categorias de atos
legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar,
integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos), começou a questionar-
se a constitucionalidade dos assentos – o art 2º, CC, seria inconstitucional porque violando o que
dispõe naquele preceito constitucional, confere a atos de natureza jurisdicional o poder de, com
eficácia externa, interpretar ou integrar atos legislativos.
Assim sendo, o TC declarou este artigo 2º, CC, inconstitucional na parte em que atribui aos
tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral e os assentos deixaram de
ter o valor de fontes de direito, passando estes a ser assentos normativos (em caso de lacuna, o
STJ integrava essa mesma lacuna numa norma).

VIII. MODALIDADES DAS FONTES DE DIREITO

1. Fontes externas
O direito internacional público tem diversas fontes reguladas no artigo 38º/1, do ETIJ,
distinguindo-se o direito internacional comum do direito internacional convencional.
• Direito Internacional Comum – é constituído, entre outras fontes, pelo costume internacional
e pelos princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas. Ambas as fontes
anteriormente referidas fazem parte do Ordenamento Jurídico português, consagradas no
artigo 8º/1, CRP.
• Direito Internacional Convencional – é constituído pelas convenções internacionais (que,
quando ratificadas ou aprovadas, vigoram na ordem jurídica portuguesa depois de publicadas
– artigo 8º/2, da CRP) e por outros instrumentos de harmonização e unificação legislativa que
são ou se tornam vinculativas para os Estados.
P.E: o caso das normas emanadas pelos órgãos de organizações internacionais de que Portugal
seja parte, as quais vigoram diretamente na ordem interna, quando tal se encontre estabelecido
nos respetivos tratados, art 8.º/3, da CRP.

Tendo em conta que Portugal é um dos Estados-membro da União Europeia, importa


considerar o direito europeu – originário e derivado – que vigora na ordem jurídica portuguesa.
• Direito Europeu Originário: é constituído pelos tratados que constam da origem da União
Europeia. Este direito é recebido na ordem jurídica portuguesa através do disposto no artigo
8º/4, CRP.
• Direito Europeu Derivado: é constituído pelo direito proveniente pelos órgãos das
instituições europeias (designadamente, o Conselho Europeu, a Comissão Europeia e o
Parlamento Europeu). Este direito é recebido no ordenamento jurídico português através do
estabelecido no artigo 8º/4, CRP.

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Margarida Gonçalves

O direito europeu rege-se por alguns princípios fundamentais, dos quais se destacam:
• Quanto à sua criação, rege-se pelo princípio da subsidiariedade, em que a U.E intervém
apenas se e na medida em que os objetivos não possam ser suficientemente realizados pelos
Estados-membros e, em contrapartida, possam ser melhor alcançados ao nível europeu.
• Quanto à sua aplicação, rege-se pelo princípio do primado e do efeito direto (art 8º/4, CRP).
Segundo este princípio, o direito europeu prevalece sobre o direito interno dos Estados-
membros. Segundo o princípio do efeito direto, os efeitos imediatos, produzidos pelo direito
europeu na esfera dos indivíduos, devem ser respeitados pelos Estados-membros.
As principais fontes do direito europeu derivado são:
1. Regulamentos – têm um caráter geral, sendo obrigatórios em todos os seus elementos e
diretamente aplicáveis em todos os Estados-membros.
2. Diretivas – vinculam o Estado-membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando,
no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios. As diretivas
necessitam, por isso, de ato de transposição (artigo 112º/8, CRP).
3. Decisões – são obrigatórias em todos os seus elementos para os respetivos destinatários.

2. Fontes Internas Imediatas


1ª – LEI
A lei tem, dentro das fontes intencionais, especial relevância. É considerada uma fonte imediata
pelo artigo 1º/1, CC, e pode ser definida como um enunciado linguístico cujo significado é uma
regra jurídica.

• Lei em sentido material – é qualquer enunciado linguístico cujo significado seja uma regra
jurídica.
Um caso especial da lei em sentido material é a lei interpretativa, que corresponde à lei que
interpreta de forma autêntica outra lei. A lei interpretativa não tem um caráter inovatório, o que
justifica a atribuição de eficácia retroativa a essa lei. Isto significa que a lei interpretada vai ser
aplicada, com o sentido que lhe foi dado pela lei interpretativa, mesmo a factos ocorridos antes
do início da vigência desta lei.

• Lei em sentido formal – é o enunciado linguístico cujo significado é uma regra jurídica e que
emana de um órgão com competência legislativa e, portanto, de um ato legislativo (art 112º/1,
CRP). Normalmente têm origem em propostas de lei que provêm de uma entidade exterior à
AR, ou a projetos-lei que vêm do Governo.
Assim, atendendo a que a competência legislativa pertence ao Governo, à AR e à ALR, são leis
em sentido formal:
➢ As leis constitucionais, isto é, aquelas que provém da AR no exercício de poderes
constituintes.
➢ As leis da AR, incluindo as leis orgânicas e as leis reforçadas.
➢ Os decretos-lei autorizados do Governo – estão nas reservas absoluta e relativa da AR – lei
de autorização legislativa que além de dizer qual é o prazo do Governo p legislar sobre essa
matéria dá-lhe diretivas dentro das quais o Governo tem que legislar. Sempre que o
Governo legislar no uso de uma autorização legislativa, deve fazer referencia a essa lei de
autorização sob pena de ser ilegal.
➢ Os decretos-legislativos regionais.

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Margarida Gonçalves

As relações entre as leis em sentido formal e em sentido material são diversas:

• Há leis que são simultaneamente leis materiais (porque são enunciados cujo significado são
regras jurídicas) e formais (porque provém de órgãos com competência legislativa). P.E: uma
lei da AR ou um decreto-lei do Governo.

• Há leis em sentido material (porque são enunciados cujo significado são regras jurídicas) que
não são leis em sentido formal (porque não são emanadas por um órgão legislativo
competente). P.E: os regulamentos das autarquias locais (art 241º, CRP) e os regulamentos do
Governo (art 199º/c) e 112º/6, CRP).

A toda a lei está subjacente um ato normativo. Segundo o art 112º, CRP, o ato normativo
pode ser um:

• Ato legislativo – decorre do exercício de uma competência legislativa do órgão que o pratica
e dá origem a uma lei em sentido formal.
• Ato regulamentar – decorre do exercício de uma competência administrativa do órgão que
o realiza e produz um regulamento.

As leis em sentido formal decorrem de atos legislativos. Estes atos constituem uma
tipologia taxativa – nenhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos, nem conferir a
atos de natureza não legislativa o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar,
suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
Nos atos legislativos, há que considerar os seguintes:

• As leis da AR, incluindo as leis constitucionais, as leis orgânicas, as leis de valor reforçado e
as leis ordinárias – devem ser promulgadas pelo PR, devendo esta promulgação ser
referendada pelo Governo.
• Os decretos-lei do Governo – devem ser promulgados pelo PR, sendo que, depois, esta
promulgação é referendada pelo Governo.
• Os decretos legislativos regionais – são assinados pelo Representante da República na
respetiva Região Autónoma.

Os atos regulamentares não estão abrangidos pelo numerus clausus que é imposto pelo artigo
112º/5, CRP aos atos legislativos, pelo que podem ser criados quaisquer atos regulamentares e
pode ser conferida a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar,
modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
Nos atos regulamentares, há que distinguir aqueles que provêm do Governo e aqueles que são
produzidos por outras entidades.
Provêm do Governo os seguintes regulamentos:

• Os decretos e os decretos regulamentares. Devem ser promulgados pelo PR, devendo esta
promulgação ser posteriormente referendada pelo Governo. Os demais decretos só são
promulgados pelo PR.
• As portarias, os despachos normativos e as resoluções do Conselho de Ministros. Estes
regulamentos não estão previstos, como tal, na CRP, mas têm uma base consuetudinária. Estes
regulamentos não necessitam de promulgação presidencial.

32
Margarida Gonçalves

São produzidos por outras entidades os seguintes regulamentos, independentemente de qualquer


que seja a forma de que se possam revestir:

• Os regulamentos da administração autónoma, como por exemplo, as posturas e os


regulamentos municipais, e as posturas e regulamentos das juntas de freguesia.
• Os regulamentos da administração indireta, nomeadamente aqueles que são produzidos pelas
entidades administrativas independentes com a função de regulação e de supervisão, como o
Banco de Portugal, a Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários, o Instituto dos Seguros
de Portugal e a Autoridade Nacional das Comunicações.
• Os decretos regulamentares regionais, que são regulamentos da competência dos Governos
Regionais.
• Os estatutos, que são regulamentos produzidos por pessoas coletivas de direito público,
destinados a definir a sua organização interna.
• Os regimentos, que são regulamentos que definem o modo de funcionamento de órgãos
coletivos (por exemplo, o Regimento da AR).
• As instruções, que são atos de caráter administrativo que regulam a organização de um serviço
administrativo, bem como os procedimentos nele adotados e as condutas nele exigidas.

As leis (só materiais ou simultaneamente materiais e formais) podem ser:

• Leis Centrais – são as leis produzidas pelos órgãos de soberania (AR ou Governo) e
destinadas, em princípio, a vigorar em todo o território nacional.
• Leis Regionais – são emanadas dos órgãos legislativos das Regiões Autónomas da Madeira e
dos Açores.
• Leis Locais – são as leis (em sentido material) produzidas pelas autarquias locais.
As autarquias locais são pessoas coletivas territoriais, e as leis em sentido material delas emanadas
são consideradas fontes de direito. O disposto no art 241º, CRP enquadra a competência das
autarquias locais: as leis das autarquias locais só podem revestir-se de caráter regulamentar,
devendo obedecer à CRP, às leis e aos regulamentos emanados das autarquias de grau superior
ou das autarquias com poder tutelar.

As leis são definidas no art 1º/2, 1ª parte, CC como as disposições genéricas provindas dos
órgãos estaduais competentes. De acordo com esta noção, pode deduzir-se que a lei apresenta, na
sua definição legal, as seguintes características:

• A proveniência de um órgão estadual com competência para a produzir;


• Caráter genérico, isto é, o número indeterminado dos seus destinatários.
Da comparação com o disposto no art 1º/2, CC, com as leis em sentido formal e material, pode
concluir-se que aquela noção não coincide com nenhum destes possíveis sentidos da lei. Ela não
coincide com as leis em sentido material, porque há leis em sentido material que não provêm de
órgãos estaduais: é o caso, por exemplo, das posturas e regulamentos municipais. A noção legal
que se contra no art 1º/2, 1ª parte, CC também não coincide com as leis em sentido formal, porque
há leis em sentido formal que não provêm de órgãos estaduais: é o caso, por exemplo, dos decretos
legislativos regionais.

33
Margarida Gonçalves

O direito não é todo de origem estadual. Há órgãos intraestaduais com poder de produzir
igualmente direito:

• Organizações corporativas (ordens profissionais, por exemplo, a Ordem dos Advogados ou a


Ordem dos Médicos).
• Federações desportivas (como, por exemplo, a Federação Portuguesa de Futebol ou Andebol).

No ordenamento jurídico português, as normas corporativas são fontes imediatas do direito


(art 1º/1, CC).
As normas corporativas estão definidas no art 1.º/2, 2ª Parte, CC, como aquelas que são ditadas
pelos organismos representativos das diferentes categorias morais, culturais, económicas ou
profissionais, no domínio das suas atribuições bem como os respetivos estatutos e regulamentos
internos.
Assim, são normas corporativas, entre outras, os regulamentos elaborados pela Ordem dos
Advogados, quer quanto à inscrição de advogados e de advogados estagiários, quer quanto ao
regime disciplinar aplicável dos advogados.
As normas corporativas não podem contrariar as disposições legais de caráter imperativo (artigo
1º/3, CC). Embora sejam consideradas fontes imediatas do direito (art 1.º/1, CC), subordinam-se
à lei.

As normas corporativas podem ser:


• Imperativas/injuntivas – normas que não podem ser afastadas pelas normas corporativas.
➢ Fixas – não podem ser alteradas.
➢ Máximas – impõem um limite máximo abaixo do qual as partes podem negociar, mas acima
do qual não podem negociar (exceto os casos previstos na lei).
➢ Mínimo – impõem um limite mínimo abaixo do qual não se pode negociar, mas acima do
qual se pode negociar.

• Supletivas – normas que podem ser afastadas pelas partes.

A lei é normalmente de caráter abstrato e geral, embora, em certos casos, também possa
ser concreta (quanto ao âmbito de aplicação material) e individual ou coletiva (quanto ao
âmbito de aplicação subjetivo).

A lei é abstrata quando se refere a uma pluralidade indeterminada de factos ou situações, ou seja,
quando a sua previsão se refere a uma categoria de situações (por exemplo, a conduta que provoca
danos ou a morte de alguém) e não a uma situação concreta (por exemplo, a conduta que provoca
danos a S1, ou a morte de S2). A abstração implica que a lei vale para uma pluralidade
indeterminada de casos.

A abstração da lei impõe que ela se refira a situações ou factos futuros, pelo que, esta abstração
não é uma característica de leis que se refiram a factos passados – por exemplo o da atribuição de
bolsa de estudo a um aluno com uma determinada classificação – ou leis que atinjam factos
passados – como, por exemplo, a lei que considera válidos os contratos que, contra o disposto na
lei vigente no momento da sua celebração, não tenham sido celebrados por escrito.

34
Margarida Gonçalves

Parece discutível que a abstração da lei implique que não possa haver:
• Leis com retroconexão – leis abstratas que se refiram na sua previsão a factos passados.
• Leis retroativas – leis abstratas que regulem factos passados.

Há que distinguir, então, duas situações:

• A lei refere-se a uma categoria de factos passados: neste caso, a lei é abstrata.
P.E: a lei da AR que amnistia certos crimes (art 161.º/f), CRP) é uma lei referida a factos
passados, mas, por essa circunstância, não deixa de ser abstrata pois respeita a todos os crimes
(já punidos ou ainda não punidos) praticados no passado.

• A lei refere-se a factos passados concretos: neste sentido, a lei não é abstrata.
P.E: a lei que consta do decreto do PR que indulta uma pena (art 134.º/f), CRP) não é abstrata
porque o indulto é concedido a uma pessoa que praticou um certo crime.

A abstração não é uma essencialidade da lei. Temos, pois, que considerar a lei em abstrato e lei
concreta não enquanto conceitos opostos, mas admitir diferentes graus de abstração e
concretização das leis. Por exemplo, a lei que determina a atribuição de um subsídio às vítimas
de inundações é mais concreta do que a lei que concede um subsídio às vítimas de catástrofes
naturais, em geral.

A generalidade da lei prende-se com o facto de esta se referir a uma pluralidade


indeterminada de destinatários (P.E: qualquer trabalhador com mais de 65 anos, qualquer pessoa
que ocupe a posição de herdeiro, qualquer pessoa que cometa um homicídio) e não a sujeitos
determinados (P.E: o trabalhador S1, o herdeiro S2 ou o homicida S3).

Tal como a abstração, a generalidade não é uma característica essencial da lei, dado que
também são admissíveis:

• Leis individuais – leis com destinatários determinados.


P.E: é individual a lei que recompensa alguém pelo ato de bravura, que impõe o encerramento
de uma instalação hoteleira por falta de condições de salubridade ou que indulta a pena.

• Leis coletivas – referem-se a um conjunto determinado de pessoas.


P.E: a lei que tem por destinatários os trabalhadores de uma empresa.

A lei pode ser:

• Falsamente genérica – quando possui uma pluralidade indeterminada de destinatários, mas,


na realidade, apenas certas pessoas ou até mesmo uma única pessoa preenche a sua previsão.
• Falsamente individual – quando a sua formulação parece ser individual, mas possui
realmente destinatários.

P.E: as leis que se referem aos poderes do PR (art 133.º a 136.º da CRP) ou à responsabilidade
política do PM (art 191.º da CRP) são leis genéricas porque não têm por destinatários as pessoas
que, num determinado momento, ocupam as posições de PR ou de PM, mas qualquer pessoa que
desempenhe ou venha a desempenhar esse cargo.

35
Margarida Gonçalves

O caráter geral e abstrato da lei garante que casos idênticos sejam decididos de forma
idêntica, assegurando a igualdade entre os seus destinatários perante a lei (art 13.º/1, CRP).

É por isso que, por exemplo, as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (DLG) têm de
revestir caráter geral e abstrato (art 18.º/3, CRP). Estas características contribuem, de igual modo,
para a justiça, dado que permitem a universalização que é exigida pelo imperativo categórico
kantiano: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se
torne lei universal”).

Uma lei que é abstrata – porque vale para qualquer caso – e geral – porque vale para qualquer
destinatário – preenche a condição de universalização e raramente possuirá um conteúdo
arbitrário.

A abstração e a generalidade são características comuns à lei pois a lei que é abstrata é
também uma lei geral.

A lei pode ser concreta (porque se refere a situações concretas) e geral (porque tem um número
indeterminado de destinatários) – p.e: a lei que aprova o OE (art 161.º/g), CRP) ou a lei que
autoriza e confirma a declaração do estado de sítio ou de emergência (art 161.º/l, CRP), e 166.º/2,
CRP).

Contudo, a lei também pode ser concreta e individual (porque tem destinatários determinados). É
o que acontece por exemplo com as Leis-medida (aquelas que definem um objetivo e concedem
os meios para o atingir); o decreto-lei que concede uma pensão vitalícia àqueles que se
distinguiram pelos atos de coragem que praticaram numa situação de catástrofe; ou o decreto-lei
que transforma uma entidade pública empresarial numa sociedade anónima.

Também são concretas e individuais as leis de autorização ou delegação de poderes, ou seja, as


leis que atribuem competência a um outro órgão para regular uma certa matéria: é o que sucede,
por exemplo, com as leis de autorização legislativa (art 165.º/2, da CRP).

2ª – COSTUME

A formação do costume resulta da conjugação de um:

• Elemento fáctico – pode ser externo ou quantitativo. Corresponde ao uso (prática social
reiterada).
A formação de um uso é frequente no domínio contratual, em certas áreas profissionais e em
certos ramos da atividade económica (o comércio, por exemplo). Segundo o disposto no art
3.º/1 do CC, os usos não podem ser contrários à boa fé sob pena de não fazerem parte da
formação de uma fonte consuetudinária.

• Elemento normativo – pode ser interno ou qualitativo. Corresponde à convicção da


juridicidade.
Esta convicção decorre do sentimento de que algo deve ser ou não deve ser, porque tal
corresponde ao direito (ou a uma ideia de direito). A sociedade quer que vigore uma certa
regra pois que se forma nela a convicção de que só uma certa ação ou omissão é conforme ao
direito.

36
Margarida Gonçalves

Para a formação da fonte consuetudinária, não basta a convicção da obrigatoriedade da respetiva


regra. Esta convicção não é suficiente para formar esta fonte de direito.
P.E: pode haver a convicção arreigada de que, quando se aceita um convite para jantar em casa
de outra pessoa, é de bom-tom levar uma lembrança, mas esta convicção nunca poderá vir a
revelar uma regra jurídica porque jamais se firmará a convicção de que à violação dessa regra
deve corresponder a aplicação de uma sanção jurídica.

Nada mais é necessário para a formação do costume para além destes dois elementos. Para que o
costume seja relevante não é necessária a sua consagração legal, uma vez que isso significaria a
subordinação do costume à lei e impediria que o mesmo pudesse ser considerado fonte imediata.
Também não é necessária a receção e imposição do costume pelos órgãos públicos (tribunais,
nomeadamente) porque o costume só deixa de vigorar quando desaparecer algum dos elementos
ou quando se formar um costume contrário.

Formação do costume

1. Primeiro aparece o uso quando um comportamento se torna habitual (esta habitualidade resulta
de uma mera repetição e é ditada apenas por “fazer o que todos fazem”).
2. Depois forma-se a convenção social quando o hábito é acompanhado de uma ideia de
obrigatoriedade. Esta convenção já pertence ao domínio de uma ordem normativa – em
concreto, de uma ordem de trato social.
3. Finalmente, constitui-se o costume quando a convenção social é completada pela convicção
da sua juridicidade, ou seja, quando se forma a convicção de que a convenção social requer
uma tutela jurídica.

A extinção do costume verifica-se tanto quando:

• Desaparece o uso.
• Permanece o uso, mas deixa de haver uma convenção social.
• Permanecem o uso e a convenção social, mas desaparece a convicção da sua juridicidade.

Em comparação com a lei (que pode ser eficaz ou ineficaz, consoante seja observada ou não
observada), o costume só pode ser eficaz. Um costume que não é observado é uma
impossibilidade: se o costume deixa de ser observado, ele deixa necessariamente de ser vigente.

As modalidades do costume são:

• Costume Secundum Legem (costume segundo a lei) – aquele em que a regra consuetudinária
coincide com a regra legal. Neste caso, por existir uma relação de coincidência entre a lei e o
costume, este último realiza uma função declarativa (da lei).

• Costume Praeter Legem (ou costume para-legal) – é o costume que complementa a lei
(integrando eventuais lacunas desta), pois que ele vai além daquilo que a lei dispõe, sem,
contudo, a contrariar. Nesta situação verifica-se uma relação de complementaridade entre o
costume e a lei, pelo que, esta modalidade de costume forma uma nova fonte de direito.

• Costume Contra Legem (ou costume ab-rogante) – é o costume que contraria a lei. Nesta
hipótese, há entre o costume e a lei uma relação de oposição, pelo que o costume Contra Legem
implica a cessação da vigência.
O costume contra legem pode formar-se tanto quando há a consciência de que a lei contrária
está em vigor ou quando erradamente se formou a convicção de que a lei contrária já tinha
cessado a sua vigência.

37
Margarida Gonçalves

A vigência de um costume contra legem significa que é admissível um costume que é inválido
de acordo com uma lei.

De notar que é concebível que um costume contra legem contrarie as leis com diferentes
hierarquias. P.E: o costume pode contrariar a disposição de um decreto-lei e ser igualmente
incompatível com uma disposição constitucional. Nesta hipótese, trata-se de um costume
contra legem inconstitucional.

O costume contra legem não deve ser confundido com o desuso.


Quando se forma um costume contra legem, constitui-se uma regra consuetudinária contrária à
lei. O costume contra legem cria algo positivo, que é a regra consuetudinária contrária à regra
legal. P.E: hoje ninguém pode aceitar a aplicação de uma lei antiga que exige medidas mínimas
aos fatos de banho incompatíveis com o biquíni ou o calção de banho.

Diferentemente, quando há desuso, verifica-se apenas a não atribuição de uma regra. O desuso é
somente algo de negativo, pois que nada se construiu em alternativa à regra legal (e, por isso, não
se constituiu nenhum costume contra legem. P.E:

• A lei permite que qualquer dos cônjuges acrescente ao seu nome os apelidos do outro (art
1677.º/1, CC). A circunstância de a regra quase só ser utilizada pela mulher significa o seu
desuso pelos cônjuges masculinos; no entanto, não se formou nenhuma convicção de que o
marido que queira acrescente o apelido da mulher ao seu nome não o possa fazer.

• O estacionamento dos automóveis em cima dos passeios destinados aos peões pode exprimir
um certo desuso da regra que proíbe; no entanto, não se pode dizer que se tenha formado a
convicção de que esse estacionamento seja permitido e não deva ser sancionado.

Aparentemente, a lei nada refere sobre o costume secundum lege (não é relevado pela lei).
Este silêncio por parte da lei é perfeitamente compreensível, visto que, se a regra consuetudinária
e a regra legal são coincidentes, a lei não toma posição sobre o costume.

As formas de integração das lacunas estabelecidas no art 10º, CC, também não prevêm o costume
praeter legem e, na prática, não tinham de o fazer, porque se houver um costume praeter legem
que supra as insuficiências da lei, não há nenhuma lacuna.

As modalidades de cessação da vigência da lei, prevista no art 7º, CC não incluem o costume
contra legem – todavia, esta omissão não é suficiente para retirar o caráter de fonte de direito ao
costume contra legem. Até pelo contrário, é essa omissão de qualquer referência na lei ao costume
contra legem que permite concluir que esse costume pode ser uma fonte imediata.

Embora a lei não se refira a nenhuma das modalidades do costume, não significa que não o
considere enquanto fonte de direito. Segundo o art 348º/1, CC, que impõe à parte que invoca o
direito consuetudinário o ónus da sua prova, é o suficiente para comprovar que o costume é fonte
de direito no ordenamento jurídico português.

Vários preceitos legais referem-se ao costume ou a costumes:

• Art 373º/1/a), CC, atribui um privilégio geral mobiliário ao crédito por despesas do funeral do
devedor, conforme a sua condição e costume na terra;
• Art 1400º/1, CC regula a divisão de águas por um costume seguido há mais de vinte anos e
que construiu um regime “estável e normal”.

38
Margarida Gonçalves

A relevância concedida ao costume enquanto fonte de direito está na proporção indireta da


importância da lei como fonte de direito: quanto maior for a relevância concedida à lei, menor
é a importância reservada ao costume, e vice-versa.

A evolução histórica demonstra facilmente esta asserção.

• No século XVII, ainda se afirmava que o direito era o costume que se encontrava reduzido a
escrito.
• No século XIX, o costume já só podia ser definido enquanto fonte de direito contra a lei.
• Na atualidade, é indiscutível a prevalência da lei perante o costume.

Da tensão entre a lei e o costume podem resultar diferentes situações:

• A lei extingue ou faz cessar o costume – art 1401º, CC.


• A lei proíbe o costume – art 1718º, CC.
• A lei reconhece o costume fornece-lhe um título legal – por exemplo, aceita a realização de
espetáculos com touros de morte, no caso em que sejam de atender tradições locais que tenham
sido mantidas de forma ininterrupta e que sejam expressão da cultura popular.
• O costume sobrepõe-se à lei e, embora contrariado por esta última, continua a vigorar enquanto
costume contra legem.

Existem ainda certas áreas do ordenamento jurídico (OJ) em quem por haver uma reserva
constitucional da lei, só pode aceitar-se o costume contrário a disposições constitucionais. É o
caso das restrições aos DLG’s, que só podem ser realizadas através de lei (art 18.º/2, CRP), e da
criação de impostos, que também só pode ser obtida através da lei (art 103.º/2, CRP).

3.Fontes internas mediatas

Os usos são um dos elementos do costume e, como tal, participam desta fonte imediata de
direito. Importa, agora, apurar em que condições os usos, considerados em si mesmos, podem ser
fontes de direito.

Do disposto no art 3º/1, CC, resulta que os usos são uma fonte mediata do direito porque os usos
que não forem contrários aos princípios da boa-fé são juridicamente atendíveis quando a lei o
determine.

Um uso que contrarie a boa fé – porque, por exemplo, permite a realização de uma prestação
contratual de uma forma inaceitável ou porque cria uma situação de desequilíbrio entre as partes
de um contrato – nunca pode ser fonte de direito.

Como exemplos de situações nas quais a lei concede relevância aos usos podem ser destacados:

• O silêncio vale como declaração negocial quando esse valor lhe for atribuído pelos usos (art
218º, CC), nomeadamente aquele que for comum num certo grupo profissional ou num certo
ramo de atividade.
• Os usos podem dispensar a declaração de aceitação da proposta contratual (art 234º, CC).
• Momento do pagamento do preço da coisa comprada pode ser determinado pelos usos (art
885º/2, CC).
• O locador não pode praticar atos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa pelo locatário,
com exceção daqueles que sejam permitidos pelos usos (art 1037º/1, CC).
• O uso pode determinar o prazo dentro do qual o dono da obra deve verificar se ela se encontra
nas condições convencionadas e sem vícios (art 1218º/2, CC).

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Margarida Gonçalves

• O contrato de trabalho está sujeito aos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho,


assim como aos usos laborais que não contrariem o princípio da boa fé (art 1.º, CT).

Encontram-se ainda exemplos de relevância dos usos nos art 1122º/1; 1128º; 1163º/2, CC.

Da conjugação do disposto no art 3.º/1, CC (segundo o qual os usos só relevam quando a lei o
determine) com o estabelecido no art 3.º/2, CC (segundo o qual as normas corporativas
prevalecem sobre os usos) resulta que qualquer uso, mesmo aquele que seja recebido pela lei, é
afastado por estas normas.

Assim, por exemplo, a remissão para o uso que é feita pela lei é substituída pela remissão para a
norma corporativa que prevalece sobre o uso.

O uso não possui nenhum valor próprio sendo que, por isso, o uso só pode ser fonte do direito
quando uma fonte imediata lhe atribuir essa qualidade.

O costume conjuga o uso e a convicção da juridicidade, pelo que, como a juridicidade é imanente
ao costume, este é uma fonte imediata do direito.
As fontes do direito privadas são aquelas que resultam da autonomia privada, cujas respetivas
regras têm uma eficácia externa, podendo ser invocadas por terceiros ou opostas por terceiros.
Assim, por exemplo, um contrato que só vale entre contraentes não pode ser considerado uma
fonte do direito.

As fontes privadas são sempre fontes mediatas, dado que elas resultam do reconhecimento, pela
lei, da autonomia privada (art 405.º/1, CC).

Os contratos normativos são instrumentos de caráter negocial que contêm regras jurídicas. Por
exemplo, as convenções coletivas de trabalho que podem ser celebradas entre diferentes
associações e uma pluralidade de trabalhadores.

XIX. VICISSITUDES DAS FONTES DO DIREITO

1. Desvalores do ato normativo

Toda a lei emana de um ato normativo, ou seja, de um ato produzido no termo de um processo
legislativo. Tal como qualquer ato jurídico, o ato normativo pode ser dotado de um valor negativo
que pode ser:

• Inexistência

A inexistência de um ato normativo surge quando o vício que o afeta é de tal modo tão grave, que
nem sequer é possível afirmar que haja a aparência de um ato.
A inexistência de um ato pode ser declarada pelo próprio órgão legislativo ou pode ser verificada
oficiosamente por qualquer órgão de aplicação de direito (como, por exemplo, os tribunais).
Conduzem à inexistência de um ato normativo:
✓ A falta de promulgação ou assinatura do PR, quando sejam exigidas (art 137.º, CRP);
✓ A falta de referenda do Governo aos atos do PR, quando seja requerida (art 140.º/2, CRP).

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Margarida Gonçalves

• Invalidade

A invalidade de um ato normativo comporta à modalidade de nulidade e anulabilidade.

✓ Nulidade – corresponde ao vício mais grave no âmbito da invalidade.


Impede a produção de quaisquer efeitos produzidos pela lei (art 134.º/1 do CPA) e pode ser
apreciada e declarada por qualquer órgão de aplicação do direito (art 286.º, CC e 134.º/2, CPA).
P.E: a sua inconstitucionalidade (art 3.º/3, 204.º, 277.º/1 e 281.º/1/a), da CRP) ou a ilegalidade
(art 281.º/1/b) a d), CRP). É igualmente nulo o ato normativo que viole a extensão e conteúdo
essencial de DLG’s (art 18.º/3, CRP).

✓ Anulabilidade: corresponde a um vício menos grave da invalidade.


Impede a produção de efeitos depois da anulação do ato e pode ser sanada através de confirmação
ou de ratificação do ato (art 137.º/1/2, CPA).
P.E: o regulamento que foi elaborado com uma base numa delegação de poderes que afinal não
existe. Esta anulabilidade pode ser invocada sem dependência de prazo (art 74.º CPTA – código
de processo dos tribunais administrativos).

• Ineficácia

A ineficácia decorre de uma irregularidade verificada no seu processo de formação. O ato ineficaz
é existente e válido, mas não produz quaisquer efeitos. P.E: a falta da publicação de um ato
normativo (art 119.º/2, CRP).

2. Publicação das fontes

A publicação do texto pertencente aos atos normativos é a condição do seu conhecimento


pelos destinatários.

Na generalidade das ordens, a publicação dos atos é feita nos jornais oficiais. No caso
português, o jornal oficial é o Diário da República (art 119.º/1, CRP), que é editado por via
eletrónica e disponibilizado no sítio da internet gerido pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Esta edição eletrónica é de acesso universal e gratuito. A Lei 74/98, de 11/11 regula a publicação,
a identificação e o formulário dos diplomas legais. Esta lei é habitualmente conhecida por “Lei
Formulária” (página 267, CRP).

As fontes do direito internas que devem ser publicadas em Diário da República encontram-
se enumeradas no art 119.º/1/a) a h), CRP.
O art 8.º/2, CRP impõe a publicação das convenções internacionais ratificadas ou aprovadas por
Portugal.
As deliberações dos órgãos autárquicos, bem como as decisões dos respetivos titulares, quando
destinadas a ter eficácia externa, devem ser publicadas em edital afixado nos lugares de estilo,
assim como no boletim oficial da autarquia dos jornais regionais editados na área do respetivo
município.

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Margarida Gonçalves

De acordo com o disposto no art 5.º/1, CC, a lei só se torna obrigatória depois da sua
publicação em DR. Isto permite concluir que a publicação da lei é uma condição da sua eficácia
(art 119.º/2, CRP).
A conjugação do art 5.º/1, CC, com a noção de lei que consta do art 1.º/2, 1ª parte, CC, resulta
que apenas devem ser publicadas em DR as leis emanadas dos órgãos estaduais. Esta conclusão
é, no entanto, insuficiente, atendendo a que as leis resultantes de órgãos não estaduais (os decretos
legislativos e os decretos regulamentares regionais) devem ser publicados no jornal oficial (art
119.º/1/c) e h), CRP).

Assim, a interpretação conforme à Constituição do art 5.º/1, CC, conduz à conclusão de que todas
as leis (em sentido material ou formal) que constam do enunciado 119.º/1, CRP são ineficazes
enquanto não forem publicadas em DR. As demais leis não devem ser publicadas em DR, pelo
que, a sua eficácia não depende da sua publicação neste jornal oficial – P.E: as posturas e os
regulamentos municipais.

A data da publicação do DR não coincide com a data da sua disponibilização no sítio da


Internet da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pois que, não raramente, os suplementos do DR
são disponibilizados muito depois da data da sua publicação.

Pode ser retificada a lei que tiver sido publicada com:


✓ Incorreções gramaticais, ortográficas, de cálculo ou de natureza análoga.
✓ Erros materiais provenientes de divergências do texto original e o texto de qualquer diploma
publicado na 1ª série do DR (art 5.º/1, LF).

As retificações têm um limite temporal – elas devem ser publicadas até 60 dias após a publicação
do texto a retificar (art 5.º/2, LF), sob pena de nulidade do ato de retificação (art 5.º/3, LF). Esta
exigência temporal pode ser contornada através da publicação da declaração de retificação num
suplemento do DR com uma data que respeita aquele limite temporal, mas que é disponibilizado
já depois de esgotado o prazo legal.

A declaração de retificação integra-se na lei retificada, pois esta última passa a ter a redação
que resulta daquela declaração. A eficácia da declaração retificada é uma eficácia retroativa (ex
tunc, que produz efeitos sobre factos passados), dado que tudo se passa como se a lei retificada
tivesse tido sempre o conteúdo que lhe foi fornecido por aquela declaração.

Quando um texto legal é analisado, importa analisar as consequências resultantes da sua


retificação:

✓ Retificação antes da entrada em vigor – é a retificação durante a vacatio legis. Ela ainda
não produziu quaisquer efeitos não tendo por isso que ressalvar nenhuns efeitos. Impõe-se,
neste ponto, a aplicação análoga do disposto no art 2.º/4, CC, quanto à contagem do prazo da
vacatio a partir da data da disponibilização do DR.

✓ Retificação depois da entrada em vigor da lei – temos de ter em conta a possibilidade da lei
retificada já ter produzido efeitos. Nesta hipótese, impõe-se recorrer, por analogia, ao regime
estabelecido para a aplicação das leis interpretativas quer porque, tal como a lei interpretativa
se integra na lei interpretada, também a declaração de retificação se integra na lei retificada,
quer porque os interesses que há que proteger no caso da lei interpretativa e da declaração de
retificação são substancialmente os mesmos: trata-se de determinar que interesses devem ser
acautelados quando o significado da lei se altera por um ato posterior de eficácia retroativa.

42
Margarida Gonçalves

No âmbito da responsabilidade penal, contra-ordenacional e disciplinar, há que contar, na solução


do problema da valia do texto retificado, com dois princípios fundamentais:

✓ Princípio de que ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais grave do que as
previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos
pressupostos (art 29.º/4, 1ª parte, CRP). Este princípio implica que, se da declaração retificada
resultar um regime menos favorável ao arguido que praticou o facto antes dessa declaração, é
a lei na sua versão originária que lhe é aplicável.

✓ Princípio da aplicação retroativa da lei de conteúdo mais favorável ao arguido (art 29.º/2,
CRP). Deste princípio decorre que, se da declaração de retificação for proferida após o início
de vigência da lei resultar um conteúdo mais favorável ao arguido que praticou o facto antes
dessa declaração, então é este regime mais favorável que se lhe aplica.

A publicação da lei permite que a ignorância ou a má interpretação da lei não justifica a falta do
seu cumprimento, nem isenta as pessoas de sanções nelas estabelecidas (art 6.º, CC).

3. Entrada em vigor da lei

A entrada em vigor dos atos normativos nunca pode ser anterior à data da sua publicação (art
5.º/1, CC). O momento da entrada em vigor da lei pode ser, segundo o disposto no art 5.º/2, CC,
aquele que a própria lei fixar ou aquele que for determinado por legislação especial.

Vacatio legis – é o tempo que decorre entre a data da publicação e a data da entrada em vigor da
lei. Segundo o disposto no art 5.º/2, CC, há um prazo supletivo de vacatio legis, que é utilizado
quando nada se dispuser sobre o momento da entrada em vigor; mas também são admissíveis
prazos ad hoc, ou seja, que são fixados pelo legislador para cada lei.

O prazo supletivo de vacatio legis é determinado pela regra que defende que a lei entra em
vigor, em todo o território nacional e no estrangeiro, no quinto dia após a sua publicação
em DR (art 2.º/2, L 74/98).

P.E: se a lei foi publicada no dia 1, como o prazo começa a contar no dia seguinte à publicação,
a lei entra em vigor às 0 horas do dia 6.

O legislador pode fixar um prazo maior do que o prazo supletivo da vacatio legis – se isso lhe
possibilitar o estudo e a apreensão da nova legislação ou facultar a adaptação dos destinatários ao
novo regime legal.

O legislador pode, ainda, fixar um prazo menor do que o prazo supletivo de vacatio legis – quando
os objetivos prosseguidos pela lei só podem ser obtidos com um início imediato ou antecipado da
sua vigência.
P.E: quando importe proibir a comercialização de um produto alimentar quando o mesmo
represente um risco para a saúde pública ou quando haja que tomar decisões urgentes em caso de
catástrofe.

43
Margarida Gonçalves

As contagens dos prazos ad hoc de vacatio legis é distinta, consoante se trate de prazos
fixados em dias, semanas, meses ou anos.

Nesta contagem, há que observar diversas regras, tendo presente que a data de publicação do
diploma é aquela que é determinada pela sua disponibilização no sítio da Internet gerido pela
Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Em concreto:

✓ Art 279.º/1/c, 1ª parte, CC – “c) O prazo fixado em semanas, meses ou anos, a contar de certa
data, termina às 24 horas do dia que corresponda, dentro da última semana, mês ou ano, a essa
data.” Assim, por exemplo:

Data da publicação da lei: 10/2;


Prazo de vacatio: um mês a contar da data da publicação;
Termo da vacatio: 24 horas do dia 10/3;
Entrada em vigor da lei: 0 horas do dia 11/3.

✓ Art 279.º/1/ c), in fine - “(…) mas, se no último mês não existir dia correspondente, o prazo
finda no último dia desse mês.” Assim, por exemplo:
Data de publicação da lei: 31/3.
Prazo de vacatio: um mês a partir da data de publicação.
Termo de vacatio: 24 horas do dia 30/4.
Entrada em vigor da lei: 0 horas do dia 1/5.

Data da publicação da lei: 31/12.


Prazo de vacatio: dois meses a partir da data de publicação.
Termo de vacatio: 24 horas do dia 28/2 (29/2 nos anos bissextos);
Entrada em vigor da lei: 0 horas do dia 1/3.

Se o art 2º/1, L 74/68 exclui que o início da vigência de uma lei se dá com o momento da
sua publicação e que esta ideia não pode ser afastada por uma fonte hierarquicamente inferior,
podemos defender que esse mesmo preceito pode ser afastado por uma fonte de igual hierarquia.
P.E: uma lei da AR ou de um decreto-lei do Governo. Como é de fácil compreensão, a resolução
da AR (art 166.º/5, CRP) que autoriza ou confirma a declaração do estado de sítio ou estado de
emergência (art 161.º/l, CRP), bem como o PR a declarar guerra ou a fazer a paz (art 161.º/m,
CRP) deve poder entrar em vigor no próprio dia da publicação.

O art 2º/4, L 74/68 estabelece que o prazo supletivo de vacatio legis só começa a correr a
partir do dia da disponibilização do DR. Esta regra deve ser considerada uma emersão do princípio
de que a lei nunca pode ser obrigatória antes dessa disponibilização ao público.

44
Margarida Gonçalves

A questão dos factos intermédios (factos que são praticados ou ocorreram entre a data da
publicação e a data da disponibilização do DR) e do regime que lhes é aplicável é resolvido através
do critério de que:
• Um facto anterior a essa disponibilização nunca pode ser regulado por uma lei que ainda não
podia estar em vigor no momento em que o facto foi praticado ou ocorreu.
P.E: quem exerceu um direito ou cumpriu um dever segundo a lei que estava em vigor nesse
momento, não pode ver a sua situação alterada por uma lei que é publicada posteriormente.
No entanto, no âmbito da responsabilidade penal, contra-ordenacional e disciplinar, há que
considerar o princípio da aplicação retroativa da lei de conteúdo mais favorável ao arguido
(art 29.º/4, 2ª parte, CRP), do qual decorre que, se a lei que consta do Diário da República, que
ainda não tiver sido disponibilizada no momento da prática do ato, tiver um conteúdo mais
favorável ao arguido, é esse regime mais favorável que é aplicado.

4. Vicissitudes da vigência à lei


Como vicissitudes da vigência à lei, importa considerar o impedimento à vigência, a suspensão
da vigência e a cessação da vigência.

• Impedimento à vigência – requisitos:

✓ Antes da lei entrar em vigor (ou seja, durante o período de vacatio), é publicada uma outra lei
sobre a mesma matéria.
✓ A lei que é publicada em momento posterior entra em vigor antes ou ao mesmo tempo que a
lei que é publicada em momento anterior.
Há que entender que, como a segunda lei contém a última posição do legislador sobre a matéria
regulada, a primeira não chega a entrar em vigor.

Os requisitos de impedimento à vigência justificam as seguintes soluções:


✓ A lei L1 é publicada em 5/1 e entra em vigor em 30/1; em 10/1 é publicada a Lei L2, que entra
em vigor em 20/1; a Lei L2 impede, no momento em que se torna vigente (20/1), a entrada em
vigor da L1.
L1: 5/1 30/1
L2: 10/1 20/1

✓ A lei L3 é publicada em 5/1 e entra em vigor em 25/1; a lei L4 é publicada em 15/1 e entra em
vigor igualmente a 25/1; a lei L4 impede a entrada em vigor da lei L3.
L3: 5/1 25/1
L4: 15/1 25/1

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Margarida Gonçalves

• Suspensão da vigência
A vigência da lei pode ser suspensa por um prazo mais ou menos longo. Recorre-se a esta quando
se considera inconveniente que a lei permaneça em vigor, mas se entende que a lei continua a ser
justificada e pode vir a retomar a sua vigência num momento posterior.
A suspensão da vigência da lei pode ser conjugada com duas hipóteses:
✓ Suspensão Temporária – a vigência da lei é suspensa por um certo tempo, findo o qual a lei
voltará a vigorar.
✓ Suspensão Indefinida – a vigência da lei é suspensa, mas não se define o prazo de suspensão
e, por isso, não se fixa nenhuma data para a lei voltar a vigorar.

As principais causas que determinam a cessação da vigência da lei são:


✓ A caducidade – cessação que decorre do termo do prazo de vigência da lei ou do
desaparecimento dos pressupostos, de facto ou de direito, da sua aplicação.
✓ A revogação – termo de vigência da lei por um ato, expresso ou tácito, do legislador (art 7.º/1,
CC).
✓ A declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade, com força obrigatória geral (art
281.º/1 e 3, CRP);
✓ A formação de um costume contra legem – formação de um costume à lei.

A caducidade verifica-se quando a lei se destina a ter uma vigência temporária (art 7.º/1,
CC), o que sucede quando a própria lei prevê um facto que visa a cessação da sua vigência. Este
facto pode ser:
✓ Cronológico – p.e: a lei que regula os benefícios fiscais em vigor durante um determinado ano
civil, caduca no fim do ano.
✓ Não cronológico – p.e: a lei que impõe uma campanha de vacinação caduca quando a doença
estiver debelada.
A caducidade também se verifica quando desaparecem os pressupostos, de facto ou de
direito, da sua aplicação e, por conseguinte, quando a previsão da lei deixa de poder ser
preenchida. P.E: a lei que atribui suplemento remuneratório ou de pensão aos inválidos de uma
guerra caduca com a morte do último dos beneficiários.

Revogação da lei – é a cessação da sua vigência determinada por outra lei. Nela, verifica-se a
entrada em vigor de uma lei (a lei revogatória) e a cessação de vigência de outra lei (a revogada).
A revogação da lei é realidade por uma outra lei posterior, pelo que a revogação pressupõe sempre
duas leis:
✓ A lei revogada – tem de estar em vigor no momento em que é revogada, dado que a
revogação é um modo de cessação da vigência das leis.
✓ A lei revogatória – só opera a revogação no momento em que entrar em vigor.
P.E:
• A lei L1 é publicada em 10/2 e entra em vigor em 25/2; a lei L2 é publicada em 20/2 e entra em
vigor em 1/3; a lei L2 revoga, em 1/3 a lei L1.
L1: 10/2 25/2
L2: 20/2 1/3

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Margarida Gonçalves

• A lei L3 é publicada em 1/4 e entrou em vigor em15/4; em 1/6 é publicada a lei L4, que entra
em vigor em 15/6; a lei L4 revoga, no momento em que entra em vigor (15/6), a lei L3.
L3: 1/4 15/4
L4: 1/6 15/6

Atendendo à forma, a revogação pode ser:


✓ Revogação Expressa – resulta de uma declaração do legislador (art 7.º/2, 1ª parte, CC). P.E:“É
revogada a lei L1”; “São revogados os artigos x e y da lei L2”.

✓ Revogação Tácita – resulta da incompatibilidade da lei revogada com uma nova lei (art 7.º/2,
2ª parte, CC). P.E: a nova redação de um artigo de uma lei implica a revogação da anterior
versão desse mesmo artigo.

Atendendo os efeitos, a revogação pode ser:


✓ Revogação Substitutiva – verifica-se quando a lei revogatória substitui o regime jurídico da
lei revogada. P.E: a lei revogatória define o novo regime do arrendamento urbano.

✓ Revogação Simples – ocorre quando a lei revogatória se limita a revogar a lei anterior, sem
definir nenhum novo regime jurídico. A lei revogatória constitui um mero actus contrarius.
P.E: a lei revogatória revoga a lei que impõe o pagamento de uma taxa, sem nada definir
quanto à mesma matéria.

A revogação tácita é necessariamente uma revogação substitutiva, porque é uma


incompatibilidade de um regime posterior com um regime anterior que provoca a revogação tácita
deste regime mais antigo. A revogação expressa pode ser uma revogação simples ou
substitutiva.

Atendendo ao seu objeto, a revogação pode ser:


✓ Revogação Individualizada – aquela que atinge apenas uma lei ou algumas regras jurídicas
de uma lei.

✓ Revogação Global – aquela que recai sobre um instituto jurídico ou um ramo do direito.
A revogação global é tácita quando decorre da circunstância de a lei nova regular toda a matéria
da lei anterior (art 7.º/2, in fine, CC), ou melhor, recair sobre todo um ramo do direito ou regime
jurídico, mesmo que nem todas as disposições do novo regime sejam incompatíveis com as
anteriores.

Atendendo ao seu âmbito, a revogação pode ser:


✓ Revogação total – quando a lei anterior que for revogada no seu todo.

✓ Revogação parcial – quando apenas forem revogadas algumas regras da lei anterior.

47
Margarida Gonçalves

Atendendo à sua eficácia temporal, a revogação pode ser:


✓ Revogação Retroativa – aquela em que a lei é revogada com eficácia ex tunc, ou seja, a partir
do início da vigência da lei revogada.

✓ Revogação Não Retroativa – aquela em que a lei é revogada apenas com eficácia ex nunc,
isto é, somente a partir da vigência da lei revogatória.
Normalmente a revogação não tem eficácia retroativa.

A revogação tácita resolve os conflitos de leis através de regras que definem os seguintes
critérios:
✓ A prevalência da fonte posterior sobre a fonte anterior (art 7.º/1, CC).
✓ A prevalência da fonte de hierarquia superior sobre a fonte de hierarquia inferior.
✓ A prevalência da fonte especial sobre a fonte geral (art 7.º/3, CC).
Importa relevar que a revogação só pode ocorrer entre uma lei anterior e uma lei posterior da
mesma hierarquia ou entre uma lei anterior e uma lei posterior de hierarquia superior,
querendo isto dizer que os critérios não são independentes entre si.
Pode haver uma revogação horizontal entre leis da mesma hierarquia e uma revogação
vertical entre uma lei (revogatória) de hierarquia superior e uma lei de hierarquia inferior.
Se esta regra não for respeitada, qualquer incompatibilidade entre as leis é resolvida através da
invalidade da lex posterior.
Em todas estas situações há uma incompatibilidade entre a lei revogatória e a lei revogada (no
caso da lex posterior superior, a incompatibilidade é total, na hipótese da lex specialis a
incompatibilidade é parcial), mas não chega a haver um verdadeiro conflito normativo,
exatamente porque uma das leis revoga ou derroga a outra lei.
Do exposto resulta que, pressupondo que não se verifica nenhum problema quanto à hierarquia
da lei revogada e da lei revogatória, a lei posterior só pode revogar a lei anterior quando ambas
forem leis gerais – lei geral revoga lei geral – ou especiais – lei especial revoga lei especial; ou
quando a lei anterior for geral e a lei posterior for especial.
Em contrapartida, uma lei geral posterior não revoga uma lei especial anterior, exceto se essa for
uma intenção inequívoca do legislador (art 7.º/3, CC).

A revogação implica a cessação da vigência da lei revogada. Importa, no entanto, ter em


conta os efeitos que a revogação pode produzir no sistema jurídico:
✓ A revogação da lei limita-se a eliminar uma redundância no sistema jurídico, sem nada alterar
de substancial nesse sistema.

P.E: num sistema jurídico vigora a lei L1, de acordo com a qual “É proibido P”, e a lei L2 de
acordo com a qual “Não é permitido P”; a revogação simples da lei L2 nada altera o sistema
jurídico, pois a não permissão de P e a proibição de P são regras equivalentes.
A situação merece uma solução diferente se tiver havido uma revogação substituta da lei L2,
ou seja, se esta lei tiver sido substituída pela lei L3 que estabelece que “é permitido P”; esta
nova lei revoga, expressa ou tacitamente, a lei L2, mas também revoga tacitamente a lei L1,
dado que a permissão de P é incompatível com a proibição de P. Assim, admitindo que não há
nenhum problema relativamente à hierarquia das fontes implicadas, o critério da
incompatibilidade que se encontra estabelecido no art 7.º/2, CC abrange todas as leis
incompatíveis do sistema com a nova lei, mesmo que a revogação expressa só tenha abrangido
uma delas.

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Margarida Gonçalves

✓ A revogação de uma lei pode implicar o alargamento do âmbito de aplicação de uma outra lei.
Se for revogada uma lei excecional ou uma lei especial, é claro que a respetiva lei geral passa
a ter um âmbito de aplicação mais vasto.
P.E: vigora a lei L1, que estabelece que “É permitido circular de bicicleta nos espaços
públicos”, e a lei L2, que determina que “aos domingos e feriados não é permitido circular de
bicicleta nos jardins públicos”; se esta lei for revogada, a lei L1 também se torna aplicável à
circulação de bicicletas aos domingos e feriados em jardins públicos.

✓ A revogação de uma lei determina a caducidade de todas as demais leis que percam o seu
âmbito de aplicação após a cessação de vigência daquela lei.
P.E: a revogação de uma lei determina a caducidade de todas as leis que tenham como previsão
a lei revogada; se, por exemplo, a lei L2 tem como previsão a lei L1 e esta lei é revogada, então,
a lei L2 caduca porque deixa de ter qualquer âmbito de aplicação possível.

✓ A revogação de uma lei implica a caducidade de todas as leis dependentes.


P.E: a revogação de uma lei da AR implica a caducidade do respetivo decreto regulamentar; a
revogação de uma proibição ou de uma obrigação implica a caducidade da lei que determina
a sanção aplicável à violação daquela proibição ou aplicação.

Embora a revogação implique o fim de vigência da lei, não quer dizer que a lei revogada
deixe de ser aplicável na resolução de casos concretos.
A possibilidade de aplicação de uma lei na vigente decorre da chamada aplicação da lei no tempo
e, em especial, de uma das soluções possíveis no âmbito dessa aplicação: a sobrevigência da lei
antiga.
P.E: suponha-se que uma nova lei penal, procurando combater o crime de car jacking aumenta
em alguns anos a pena de prisão a que ficam sujeitos os condenados pela prática desse crime.
Admita-se que alguém pratica um crime de car jacking antes entrada em vigor da nova lei. Em
direito penal vigora a regra segundo a qual é aplicável ao acusado a lei vigente no momento da
prática do facto (art 2.º/1, CP). Assim, ainda que o acusado venha a ser julgado já na vigência da
lei nova, só lhe é aplicável a lei vigente no momento da prática do crime, apesar de a mesma já
se encontrar revogada ao tempo do julgamento.

Uma forma de explicar a sobrevigência da lei já revogada é entender que a revogação da lei não
implica a sua cessação, mas apenas a restrição no âmbito de aplicação – a lei revogada passaria
a ser aplicada apenas aos factos que foram praticados ou às situações que já existiam durante a
sua vigência.
A verdade é, no entanto, que não é a revogação da lei que restringe o âmbito de aplicação da lei
revogada, mas o regime sobre a aplicação da lei no tempo que a define como aplicável aos factos
e às situações passadas. Portanto, a sobrevigência da lei antiga nunca pode ser vista como um
efeito da revogação, mas antes como uma consequência do regime da aplicação da lei no tempo.

49
Margarida Gonçalves

A lei revogatória pode ser revogada por uma lei posterior. Nesta hipótese, vale a regra da
não repristinação da lei revogada, segundo a qual a revogação da lei revogatória não importa o
renascimento lei que esta revogara (art 7.º/4, CC).
P.E: a lei L2 revoga a lei L1; a lei L3 revoga a lei revogatória L2; a lei L1 não retoma a sua vigência.
A solução vale independentemente de a revogação da lei revogatória ser expressa ou tácita.

A regra da não repristinação significa que, para que a lei revogada retome a sua vigência no
momento da revogação da sua lei revogatória, é necessário que isso resulte da nova lei
revogatória.
P.E: uma nova lei regula o regime das rendas habitacionais, revogando a anterior lei sobre a
matéria; as críticas dirigidas ao novo regime conduzem o legislador a revogar a nova lei; a antiga
só volta a vigorar se tal resultar (nomeadamente por declaração expressa do legislador) da lei
revogatória.

A regra de não repristinação nem sempre é seguida. A declaração de inconstitucionalidade ou de


ilegalidade com força obrigatória geral da lei revogatória determina a repristinação das regras que
a lei declarada inconstitucional ou ilegal tinha revogado (art 282.º/1, CRP), pelo que essa
declaração implica a retoma de vigência da lei revogada.
P.E: a lei L2 revogou a lei L1; a lei L2 é declarada inconstitucional; a lei L1 reinicia a sua vigência.
Este regime encontra a sua justificação na necessidade de evitar que a declaração de
inconstitucionalidade ou de ilegalidade de uma lei implique a abertura de uma lacuna no OJ.

Pode suceder que a lei para a qual uma outra lei realizou uma remissão seja revogada por
uma lei posterior.
P.E: a lei L1 remete para a lei L2 que, entretanto, é revogada pela lei L3. Perante a revogação da
lei para a qual se efetua a remissão (a lei L2), importa verificar quais são os reflexos dessa
revogação a remissão. Há que distinguir entre:
✓ Revogação simples da lei – para a qual se realiza a remissão implica a interpretação ab-
rogante (= revogação total) da lei remissiva.
P.E: a lei L4 remete para a lei L5; a lei L5 é revogada pela lei L6; a lei L4 remete para uma lei
não vigente, pelo que tem que ser objeto de uma interpretação ab-rogante.

✓ Revogação substitutiva da lei – implica que todas as remissões realizadas para a lei revogada
passam a ser feitas para a lei revogatória.
P.E: a lei L7 remete para a lei L8; a lei L8 é substituída pela lei L9; a lei L7 passa então a remeter
para a lei L9.

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Margarida Gonçalves

X. HIERARQUIA DAS FONTES DO DIREITO

1. Relações de Hierarquia

A hierarquia das fontes de direito reflete-se na hierarquia das regras jurídicas, concluindo-se
que estas últimas não têm autonomia perante a hierarquia das fontes.

A hierarquia de fontes do direito não implica nenhuma diferença quanto ao caráter vinculativo
das regras contidas nessas fontes. Há fontes de diferentes hierarquias, mas não há regras mais
vinculativas e menos vinculativas. Qualquer regra inferida de qualquer fonte é vinculativa no seu
âmbito de aplicação.

Dado que a hierarquia das fontes é sempre relativa, importa confrontá-la com uma fonte
conflituante do mesmo sistema:

• A fonte de hierarquia mais alta de um sistema é aquela que afasta qualquer fonte conflituante
do mesmo sistema;
• As fontes de hierarquia mais baixa de um sistema são aquelas que são afastadas por qualquer
fonte conflituante do sistema;
• As fontes de hierarquia intermédia de um sistema são aquelas que prevalecem sobre algumas
fontes do sistema, mas que são afastadas por outras fontes conflituantes do mesmo sistema.

A relevância da hierarquia passa por:

• A aferição da admissibilidade da revogação ou interpretação autêntica de uma fonte, dado que


uma fonte só pode ser revogada ou interpretada autenticamente por uma fonte da mesma ou
de hierarquia superior.

• A definição do conteúdo admissível de uma fonte. P.E: as restrições dos DLG’s só podem ser
realizadas por uma lei da AR ou por uma decreto-lei do Governo, mediante prévia autorização
legislativa (art 18.º/2, e 165.º/1/b), CRP).

Teoria da construção escalonada (stufenbautheorie), Merkl e Kelsen – esta teoria baseia-se


numa hierarquia dinâmica entre as fontes, porque parte do princípio de que toda a fonte tem o seu
fundamento de validade numa outra fonte de hierarquia superior (daí decorre uma construção
escalonada da ordem jurídica). Anterior a esta teoria, já BIERLING se referia a “normas
subordinadas e supra-ordenadas quando a validade das primeiras repousa exclusivamente da
validade das segundas”.

CC – decorrem da verificação de que nem sempre a hierarquia das fontes do direito corresponde
à hierarquia das respetivas fontes de produção, dado que uma mesma fonte pode fundamentar a
produção de outras fontes da mesma hierarquia.

P.E: a CRP prevê o regime da revisão constitucional (art 284.º a 289.º CRP), ou seja, prevê a
elaboração de uma lei constitucional (art 161.º/a), CRP), 166.º/1, e 286.º/2, CRP), que é uma lei
que tem necessariamente o mesmo grau de hierarquia da própria CRP.

51
Margarida Gonçalves

Uma única fonte pode criar órgãos com diferentes hierarquias, pelo que as relações de hierarquia
entre órgãos não são o reflexo de nenhuma diferença nas hierarquias das respetivas fontes. Assim,
em vez da hierarquia se encontrar nas fontes, pode ser algo criado pelas próprias fontes. Exemplos
de organizações que contêm órgãos com diferentes hierarquias são:

• As autarquias locais, que compreendem uma assembleia dotada de poderes deliberativos e um


órgão executivo que responde perante ela (art 239.º/1, CRP);
• Os tribunais judiciais, que comportam tribunais de diferentes hierarquias – os tribunais de
comarca, os tribunais de relação e os STJ (art 210.º/1 a 4, CRP).

2. Hierarquia dinâmica

A hierarquia dinâmica das fontes atende à relação entre a fonte que serve de fundamento à
produção de outra fonte e a fonte que é produzida. De acordo com o “princípio de conformidade”
ou uma “cadeia de subordinação”, a fonte produzida deve ser conforme à fonte que permite a sua
produção.

Uma fonte pode autorizar a produção de uma fonte por uma outra fonte. P.E: uma Lei da AR pode
autorizar que o Governo, através de um decreto-lei, aumente a taxa de um imposto (art 165.º/1/i),
CRP).

A situação mais comum é, no entanto, aquela em que uma fonte fundamenta, ela mesma, a
produção de outra fonte. P.E: um decreto-lei do Governo, sobre transportes urbanos, fundamenta
que um ministro possa elaborar uma portaria sobre o respetivo tarifário.

O princípio que orienta a hierarquia dinâmica é o de que a fonte produzida nunca pode ter
uma hierarquia superior à fonte de produção. O esquema a seguir ilustra facilmente o facto de
que as fontes de hierarquia superior constituem fontes de produção das fontes imediatamente
inferiores:

Constituição

Ato legislativo Ato legislativo Ato legislativo


1 2 x
Ato regulamentar 1 Ato regulamentar 2 Ato regulamentar 3 Ato regulamentar x

Se é claro que a fonte produzida nunca pode ter uma hierarquia superior à fonte de produção, é
muito menos evidente que a fonte de produção não deva transmitir à fonte produzida a sua própria
hierarquia. A hierarquia da fonte produzida pode não depender da fonte de produção.
P.E: o Ato Legislativo AL1 constitui a fonte de produção do ato regulamentar AR1 e que o ato
regulamentar AR2 constitui a fonte de produção do AR3; apesar de o ato legislativo AL1 ter,
enquanto fonte de produção do ato regulamentar AR2, o ato regulamentar AR3 não tem, por esse
motivo, uma hierarquia superior ao ato regulamentar AR2. (ambos os atos podem ser, por
hipótese, uma portaria, que tem a mesma hierarquia independentemente de a sua fonte ser um ato
legislativo ou um ato regulamentar.

52
Margarida Gonçalves

No sistema português, encontra-se consagrado um sistema de receção automática do direito


internacional comum (art 8.º/1, CRP) e convencional (art 8.º/2 e 3, CRP). Isto significa que o
direito internacional vigora na ordem interna portuguesa sem necessitar, portanto, de ser
incorporado através de fontes internas.
Os princípios do direito internacional comum (art 7.º/1, CRP) e a DUDH (art 16.º/2, CRP)
prevalecem sobre a CRP. No entanto, a generalidade do direito convencional subordina-se à CRP,
como é demonstrado pela possibilidade de aferição da sua constitucionalidade pelos tribunais
portugueses (art 277.º/2, 278.º1, 279.º/4 e 280.º/3, CRP).
No que respeita ao direito europeu, verifica-se a chamada prevalência (ou primado) do
Direito Europeu sobre o direito interno. As disposições dos tratados que regem a União Europeia
e as regras emanadas das suas instituições (que constituem o chamado direito derivado), são
aplicáveis na ordem jurídica portuguesa, nos termos definidos pelo próprio direito europeu, com
respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático (art 8.º/4, CRP).
Os atos legislativos permanecem hierarquicamente sobre os atos regulamentares (art
112.º/7, CRP). Esta hierarquia limita-se a espelhar as relações entre a função legislativa e a função
executiva (ou regulamentar).
A subordinação dos atos regulamentares aos atos legislativos vale, nomeadamente, para:
• Os atos emanados do Governo (art 199.º/c), CRP);
• Os regulamentos produzidos pela administração autónoma (art 241.º, CRP – posturas e
regulamentos das autarquias locais);
• Os regulamentos emanados da administração indireta (regulamentos provenientes das
entidades administrativas independentes de uma função de regulação e de supervisão;
• Estatutos elaborados pelas pessoas coletivas de direito público.

Nos atos legislativos, há que considerar quanto à sua hierarquia o seguinte:


• As leis constitucionais (art 166.º/1, 286.º/2, CRP) possuem uma hierarquia superior a todos
os demais atos legislativos.

• Dentro das leis não constitucionais, as leis de valor reforçado (art 112.º/3, 168.º/5 e 6, CRP)
prevalecem, em alguns casos, sobre todas as demais leis (p.e: os Estatutos político-
administrativos das Regiões Autónomas (art 281.º/1/d), CRP).

• As leis da AR, que não sejam leis constitucionais ou de valor reforçado (art 166.º/3, CRP) e
os decretos-lei do Governo (art 198.º/1, CRP) têm a mesma hierarquia (art 112.º/2, CRP).

• Os decretos legislativos regionais (art 227.º/1, CRP) subordinam-se ao estatuto político-


administrativo da respetiva Região Autónoma (art 112.º/4, CRP).

Na determinação da hierarquia dos atos regulamentares não existem regras muito definidas:
• Os regulamentos de forma mais solene prevalecem sobre os regulamentos de forma menos
solene.
• Os regulamentos produzidos por órgãos superiores prevalecem sobre os regulamentos
emitidos por órgãos inferiores.
• Os regulamentos emanados de órgãos com competências mais vastas prevalecem sobre os
regulamentos provenientes de órgãos com competência mais restritas.
• Os regulamentos produzidos por órgãos de superintendência prevalecem sobre os
regulamentos produzidos por órgãos superintendidos.

53
Margarida Gonçalves

Os regulamentos emanados dos órgãos centrais do Estado – os decretos, os decretos


regulamentares (art 112.º/6 e 199.º/c), CRP), as portarias, os despachos normativos e as resoluções
do Conselho de Ministros – prevalecem sobre os atos regulamentares de outras estruturas
administrativas.
Dentro dos regulamentos provenientes de órgãos centrais, os decretos regulamentares prevalecem
sobre os decretos simples e estes últimos prevalecem sobre as portarias e os despachos
normativos.
Os regulamentos das autarquias locais são hierarquicamente inferiores às leis e aos regulamentos
das autoridades com poder tutelar (art 241.º CRP). Os regulamentos das autarquias locais de grau
superior prevalecem sobre os regulamentos das autarquias de grau inferior.
A lei (em sentido material) e o costume possuem o mesmo grau hierárquico, embora, o
costume constitucional prevaleça sobre a lei ordinária. É aquela identidade hierárquica que
justifica tanto a possibilidade de cessação de vigência da lei pela formação de um costume contra
legem, como a possibilidade da cessação do costume pela produção de uma lei em sentido
contrário.
As normas corporativas não podem contrariar as disposições legais de caráter imperativo
(art 1.º/3, CC). De acordo com a noção de lei que é fornecida pelo art 1.º/2, 1ª parte, CC, as normas
corporativas não podem ser contrárias a leis provenientes de órgãos estaduais. Por isso, tal como
não é admissível que as normas corporativas contrariem os atos legislativos, tal não é admissível
também para os decretos legislativos regionais (art 112.º/4, 227.º/1, CRP).
Os acórdãos normativos do TC, que declaram a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de
normas (art 281.º/1 e 3, CRP) e os acórdãos dos tribunais administrativos que declaram, com força
obrigatória geral, a ilegalidade de regras administrativas, prevalecem sobre a própria regra que é
declarada inconstitucional ou ilegal.
Os usos possuem uma hierarquia inferior à da lei que lhes atribui a qualidade das fontes do direito.
Os usos são, igualmente, hierarquicamente inferiores às normas corporativas. (art 3.º/2, CC).
As fontes privadas são hierarquicamente inferiores às fontes legais porque a autonomia privada
não é um espaço livre de direito, mas um espaço de regulação que o Estado deixa aos particulares.
Ressalvam-se os casos em que as fontes legais são supletivas das fontes privadas – nesta hipótese,
qualquer fonte privada pode afastar a fonte legal supletiva.

3. Debilitação da hierarquia
A concretização substitutiva de uma fonte ocorre quando esta aceita ser concretizada por
uma fonte de hierarquia inferior. A concretização é muito comum quando se trata de concretizar
princípios programáticos. P.E: o art 60.º/1, CRP atribui aos consumidores o direito à qualidade
dos bens e serviços prestados; cabe à lei ordinária definir as medidas destinadas a assegurar a
qualidade.
A concretização substitutiva também ocorre quando a própria fonte remete para uma fonte
concretizadora. P.E: o art 77.º/1, CRP dispõe que os professores e alunos têm o direito de
participar na gestão democrática das escolas, nos termos da lei; é esta lei que vai concretizar a
extensão e o exercício daquele direito de professores e alunos.

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Margarida Gonçalves

Tal como referido anteriormente, uma fonte de hierarquia superior pode aceitar a sua
concretização por uma fonte de hierarquia inferior. A situação mais interessante neste sentido é a
que se verifica no âmbito constitucional.
P.E: o art 20.º/3, CRP determina que cabe à lei definir e assegurar a adequada proteção do segredo
de justiça; o art 26.º/2, CRP dispõe que compete à lei estabelecer garantias efetivas contra a
obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às
pessoas e às famílias; o art 36.º/2, CRP remete para a lei a regulação dos requisitos e efeitos do
casamento e da sua dissolução.
A admissibilidade da concretização substitutiva de regras constitucionais através de leis
ordinárias conduz a regras constitucionais debilitadas na sua hierarquia, dado que elas só podem
ser aplicadas em conjunto com a lei ordinária que as concretiza.
A debilitação da regra constitucional é tanto mais acentuada quanto mais vincado for o seu sentido
remissivo para a lei ordinária que a concretiza.
P.E: o art 117.º/2, CRP estabelece que compete à lei dispor sobre os deveres, responsabilidades e
incompatibilidades dos cargos políticos, bem como sobre os correspondentes direitos, regalias e
imunidades; dado que o preceito constitucional só enumera o que deve ser regulado pela lei
ordinária, mas não fornece nenhuma orientação programática para essa regulação, o âmbito de
escolha do legislador ordinário é particularmente amplo.
A debilitação da hierarquia não se verifica apenas ao nível das regras constitucionais.
Qualquer fonte que admite ser completamente concretizada por uma fonte de hierarquia inferior
sofre uma debilitação na sua hierarquia. É o que sucede quando, por exemplo, uma lei de valor
reforçado aceita ser concretizada através de um decreto-lei.

4. Modificação da hierarquia
Em certos casos, é possível uma modificação da hierarquia dinâmica da fonte devido ao seu
conteúdo, que se verifica em duas situações:
• Fontes que, segundo a análise dinâmica, podem possuir, segundo o seu conteúdo, diferentes
hierarquias;
• Fontes que, de acordo com a análise dinâmica, são hierarquicamente distintas e, devido ao seu
conteúdo, podem ser hierarquicamente equivalentes.
Desta possibilidade de modificação da hierarquia dinâmica da fonte, atendendo ao seu conteúdo,
há que excluir duas hipóteses:
• A hierarquia da lei constitucional e da jurisprudência normativa é sempre independente do seu
conteúdo, sendo que a sua hierarquia nunca pode ser modificada devido ao seu conteúdo.
• O costume contra legem tem, conforme a fonte que contraria, a hierarquia da lei constitucional,
do ato legislativo ou do ato regulamentar.

A modificação da hierarquia dinâmica pelo conteúdo da fonte tem limites. Nenhuma fonte
sobe de hierarquia quando a sua hierarquia dinâmica não lhe permita ter determinado conteúdo.
P.E: um decreto-lei que regula matéria que pertence à reserva absoluta da AR (art 164.º, CRP)
não pode adquirir a posição hierárquica de uma lei da AR; neste caso, a consequência é a
invalidade (ou inconstitucionalidade) do decreto-lei.

55
Margarida Gonçalves

Para além disso, nenhuma fonte baixa de hierarquia quando, em consequência da sua
deslegalização, o conteúdo não corresponder à sua hierarquia dinâmica. P.E: um decreto-lei do
Governo não perde a sua posição hierárquica pela circunstância de o seu conteúdo ser o de um
ato regulamentar; por isso, esse decreto-lei, apesar de ter um conteúdo regulamentar, não pode
ser revogado por uma portaria.
A influência do conteúdo das fontes de direito para a determinação da sua hierarquia
pode levar a concluir que fontes que, segundo a análise dinâmica, pertencem ao mesmo grau
hierárquico possuem afinal uma hierarquia distinta.
P.E: uma lei da AR sobre matéria da sua reserva absoluta de competência (art 164.º CRP) possui
uma hierarquia superior a um decreto-lei do Governo (art 198.º/1/a), CRP), embora, em termos
dinâmicos, esses atos legislativos tenham a mesma hierarquia.
Esta diferenciação também se verifica quando uma das fontes deva prevalecer, atendendo a esse
conteúdo, sobre a outra.
P.E: uma lei interpretativa prevalece sobre a lei interpretada; uma lei revogatória prevalece sobre
a lei revogada; a lei definitória tem de ser observada na interpretação de qualquer lei que utilize
o definido.
Uma outra situação em que, atendendo ao conteúdo, uma fonte deve ser considerada superior a
outra fonte é aquela em que a primeira fonte estabelece limites à modificação desta última fonte.
P.E: as disposições que estabelecem limites materiais à revisão constitucional (art 288.º, CRP)
originam uma dupla superioridade de algumas fontes, não só porque elas mesma têm de ser
consideradas superiores a qualquer disposição que permite a revisão constitucional, mas também
porque as disposições que não podem ser modificadas devem ser consideradas superiores às
demais disposições constitucionais.
O conteúdo de fontes que possuem, na perspetiva dinâmica, diferentes graus hierárquicos,
também podem implicar uma equiparação da sua hierarquia. Essa equiparação em função do
conteúdo ocorre quando uma outra fonte de hierarquia inferior a interpreta ou integra.
A interpretação autêntica deve ser realizada por uma fonte da mesma hierarquia superior à fonte
interpretada, mas pode perguntar se isso exclui a possibilidade de uma fonte ser interpretada
autenticamente por uma fonte que, em termos dinâmicos, pertence a um grau hierárquico inferior.
A lei não pode conferir a atos de outra natureza o poder de a interpretar ou integrar (art 112.º/5,
CRP). Um ato legislativo só pode ser interpretado ou integrado nas suas lacunas por outro ato
legislativo, o que significa que um ato legislativo nunca pode atribuir a um ato regulamentar o
poder de o interpretar e integrar. No entanto, é pensável que um ato legislativo de hierarquia
superior permita a sua interpretação por um ato legislativo de hierarquia inferior.
P.E: uma lei de valor reforçado pode prever que a sua interpretação autêntica possa ser realizada
por uma lei.
O princípio de interpretação para um ato da mesma categoria também vale para os atos
regulamentares – qualquer ato regulamentar pode atribuir a qualquer outro ato regulamentar de
hierarquia inferior (dinâmica), o poder de o interpretar e integrar.
P.E: um decreto pode admitir que a sua interpretação autêntica seja feita por uma portaria.
O referido vale igualmente para a suspensão da vigência e para a revogação de um ato legislativo
ou regulamentar (art 112.º/5, CRP).
P.E: um decreto-lei aplicável apenas às Regiões Autónomas pode prever a sua revogação por um
decreto legislativo regional e um decreto regulamentar pode estabelecer que a sua revogação
possa ser feita por uma portaria.

56
Margarida Gonçalves

5. Espécies de invalidades
A validade de qualquer fonte está sujeita a duas condições – uma é relativa à sua produção; a
outra diz respeito ao seu conteúdo. Assim, a circunstância de uma fonte se basear numa outra
fonte não é suficiente para a sua validade: é sempre indispensável que ela tenha um conteúdo
compatível com a respetiva fonte de produção. Correspondentemente, a invalidade de uma fonte
pode resultar de uma falta de uma fonte de produção ou da incompatibilidade do seu conteúdo
com a sua fonte de produção.

• Invalidade dinâmica – quando falta a fonte de produção e a fonte nem sequer pode ser
produzida.
P.E: é inválido por falta de regra de produção e por inconstitucionalidade orgânica, o Decreto
Legislativo Regional que legisla sobre a organização da defesa nacional (art 227.º/1/a) e art
164.º/d), CRP) ou sobre a aquisição, perda e requisição da cidadania portuguesa (art 227.º/1/a),
CRP e art 164.º/f), CRP); é inválida a portaria que regulamenta as candidaturas a um concurso
para professores antes de o decreto-lei que estabelece esse meio de recrutamento ter sido
publicado.

• Invalidade estática – quando existe uma incompatibilidade entre o conteúdo da fonte


produzida e a sua fonte de produção. A fonte pode ser produzida pelo órgão competente, mas
tem um conteúdo que não é compatível com o da sua fonte de produção.
P.E: é inválido, por inconstitucionalidade orgânica, o decreto-lei que, ao legislar na sequência de
uma autorização legislativa concedida pela AR (art 165.º/2 e art 198.º/1/a), CRP), excede o âmbito
desta autorização; é inválida a portaria que, ao regulamentar o decreto-lei que fixa os requisitos
da atribuição da licença de porte de arma, exige alguns requisitos que não estão previstos naquele
ato legislativo.

Dado que a fonte de produção que assegura a validade da fonte produzida se pode alterar,
importa verificar as consequências desta modificação.
• Se a fonte produzida for válida, ela não deixa de ser válida pela circunstância de modificação
da fonte de produção.
P.E: se a fonte de produção deixou de ser uma lei da AR e passou a ser um decreto-lei do
Governo, as leis produzidas com base na lei da AR continuam a ser válidas.

• Quando a nova fonte deixa de permitir o conteúdo da fonte produzida, verifica-se a invalidade
superveniente da fonte produzida.
P.E: a fonte que regulava a candidatura ao ensino superior continha uma discriminação
positiva em relação aos alunos provenientes das RA. A nova fonte de produção proíbe qualquer
discriminação entre os alunos candidatos. Assim sendo, a fonte que contém a referia
discriminação passa a ser inválida.

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Margarida Gonçalves

TÍTULO III – REGRAS E PROPOSIÇÕES JURÍDICAS

XI. CARATERIZAÇÃO DA REGRA JURÍDICA


1. Noções gerais
As fontes de Direito são os modos de relevação das regras jurídicas:
Fonte F Regra R
Tem um significado São o significado
normativo que são as normativo das fontes
regras jurídicas de direito

Interpretação
A interpretação da fonte é a atividade pela qual se determina o seu significado
e a regra jurídica que ela contém.
Qualquer intérprete formula uma regra jurídica quando interpreta uma fonte de
direito.
O intérprete infere a regra jurídica da respetiva fonte.

A interpretação permite descobrir o significado da fonte porque a regra é o sentido prático da


fonte. Pode acontecer que fontes distintas tenham a mesma regra jurídica – isso acontece quando
essas fontes têm o mesmo significado, extraindo-se por isso a mesma regra.
As regras atribuem aos agentes razões para agir ou não agir (ação ou omissão) e fornecem aos
julgadores fundamentos para um juízo. As regras são razões prático-judicativas.
Muitas vezes pode-se inferir tanto uma razão prática como uma razão judicativa da mesma regra
jurídica. P.E: a regra que consta do art 131º, CP quanto à punição do homicídio vale tanto no
plano da razão prática (fornece uma razão para não cometer um homicídio) como no plano do
juízo (ela constitui um fundamento para punir o homicida).
As regras jurídicas expressam uma conduta, um poder ou um efeito que é obrigatório,
permitido ou proibido. Como elas têm um carácter prescritivo, não são suscetíveis de veracidade
ou falsidade. Elas têm um valor específico de validade ou invalidade.

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Margarida Gonçalves

Regras jurídicas ≠ Proposições jurídicas

• São significados normativos; • São descrições dos significados normativos;


• O Direito contém fontes e regras jurídicas; • A Ciência do Direito opera com proposições;
• Têm um carácter prescritivo; • Têm um carácter descritivo das proposições;
• Não apresentam uma realidade, antes • Não prescrevem nenhum dever ser, antes
prescrevem um dever ser; limitam-se a descrever regras jurídicas;
• Exige uma competência comunicativa • A descrição (que não tem nenhum efeito
específica (a de alguém ter o poder de impor performativo) pode ser realizada por qualquer
prescrições a outrem); falante.
• Só podem ser produzidas se estiverem em • São pronunciadas por alguém que pode não
concordância com o sistema – o plano das aceitar a regra enunciada – ponto de vista
regras jurídicas é o de um ponto de vista interno externo.
ao sistema. • Estas são próprias da razão teórica, possuindo
• Estas são próprias da razão prático-judicativa, por isso um carácter epistémico.
possuindo por isso um carácter deôntico. • Podem ser verdadeiras ou falsas.
• Podem ser válidas ou inválidas.
Nota: o uso de uma linguagem descritiva numa fonte não é suficiente para impossibilitar extrair
dela uma regra.

A distinção entre regras e proposições jurídicas encontra uma aplicação prática na prova do direito
consuetudinário, local ou estrangeiro (art 348º/1, CC).
As relações entre as regras jurídicas relativas a condutas, a poderes ou a efeitos são regidas
pela lógica deôntica cujos operadores são uma obrigação, uma proibição ou uma permissão. A
lógica deôntica é um desenvolvimento da lógica modal, dado que as modalidades aléticas (da
lógica modal) correspondem às modalidades deônticas.
Segundo os parâmetros da lógica dedutiva aristotélica, a conclusão de um silogismo é
verdadeira se as premissas forem igualmente verdadeiras. Não é isso que acontece nas regras. As
relações entre regras obedecem a uma lógica. Contudo, essa lógica não pode operar com valores
de verdade ou falsidade uma vez que as regras prescrevem um dever ser. Assim sendo, esta lógica
tem de operar com os valores de consistência e implicação entre regras.
Numa perspetiva pragmática, a lógica das regras assenta nas seguintes relações:

• Relação de inconsistência – duas regras são inconsistentes quando não é possível cumprir
uma delas sem violar a outra. P.E: as regras “É obrigatório P” e “É proibido P” são
inconsistentes.
• Relação de implicação – uma regra implica outra regra quandi não é possível cumprir a
primeira sem cumprir a segunda. P.E: a regra “É obrigatório Q” implica a regra “É permitido
Q” porque não é possível cumprir uma obrigação sem cumprir uma permissão.
Quando referida a efeitos jurídicos, a lógica das regras baseia-se nas mesmas relações de
inconsistência e implicação.

59
Margarida Gonçalves

2. Estrutura da regra
A regra jurídica comporta como elementos a previsão e a estatuição.
1. Previsão
É o elemento da regra jurídica que define as condições em que esta é aplicada. Tem um carácter
representativo e é constitutiva (porque constitui um determinado facto como facto com relevância
jurídica).
A previsão da regra jurídica contém um:

• Elemento subjetivo – é o destinatário da regra.


• Elemento objetivo – é o facto ou a situação que constitui o pressuposto de aplicação da
regra. Os factos jurídicos são realidades dinâmicas e transitórias. P.E: a previsão da regra
que impõe a obrigação de indemnização refere-se a um facto jurídico. As situações jurídicas
são realidades estáticas e duradouras. P.E: se a previsão de uma regra for um estado pessoal,
essa previsão é constituída por uma situação jurídica.

Funções da previsão

• Função representativa – na previsão é representado um estado de coisas cuja verificação


depende da aplicação da rera. A previsão representa uma realidade que é imaginada como
possível, mas que pode nunca vir a verificar-se.
• Função constitutiva – basta que uma realidade seja representada por uma previsão para que
ela se torne uma realidade jurídica.
A previsão pode ser fechada – quando enuncia todos os casos que a ela são subsumíveis – ou
aberta – quando ela admite a subsunção de casos análogos aos casos previstos.

2. Estatuição
É o elemento da regra jurídica na qual se define a consequência jurídica que decorre da sua
aplicação. Tem um carácter prescritivo e é regulativa (porque regula o facto que a estatuição
qualifica como facto jurídico).
A estatuição da regra comporta dois elementos:
2.1. O operador deôntico – é o elemento “neustico” da estatuição (mostra o que a regra pretende
transmitir ao destinatário).
O operador deôntico pode ser uma obrigação, uma proibição ou uma permissão. Ele pode referir-
se a duas realidades bastante distintas:

• Pode referir-se a uma ação, ou seja, a um dever fazer (é próprio das regras de conduta ou de
poder);
• Pode referir-se a um estado de coisas, ou seja, a um dever ser (é próprio das regras
respeitantes a efeitos jurídicos).
Numa análise mais detalhada, pode-se distinguir as regras que respeitam condutas (dever fazer),
as regras que se referem a poderes e as regras que se referem a efeitos (dever ser).

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Margarida Gonçalves

Relações deônticas

• A obrigação implica a permissão (o que é obrigatório é permitido).


P.E: “É obrigatório fechar a porta” implica a permissão de fechar a porta. A permissão não
concede a nenhum agente nenhuma opção – o agente tem a permissão de fechar a porta porque
tem a obrigação de a fechar e não pode deixar de a fechar.
Contudo, a permissão pode ser tomada num outro sentido – se for concedida ao agente a escolha
entre fechar ou não a porta. Esta permissão forte/alternativa tem por fonte uma regra permissiva,
que é uma regra que permite a realização ou a não realização de um ato. O titular de uma
permissão forte de p é alguém que não está proibido de realizar p, mas que também não está
obrigado a realizar p.

• A proibição implica a não permissão;


• A obrigação é inconsistente com a proibição e a proibição é inconsistente com a permissão,
pelo que não é possível a coexistência num mesmo sistema jurídico.

2.2. O objeto – é o elemento “frástico” da estatuição (estabelece a relação da regra com um


“estado de coisas” a constituir ou a evitar).
O operador deôntico define algo que é obrigatório, permitido ou proibido – esse algo é o objeto
da regra jurídica. Esse objeto pode ser uma conduta, um poder ou um efeito jurídico.
A verificação de que as regras jurídicas podem referir-se a condutas e a poderes assenta no
pressuposto de que o exercício de um poder tem autonomia perante esta conduta.
P.E: quando se verifica que a AR tem uma reserva absoluta de competência legislativa sobre
algumas matérias e que, por isso, o Governo não tem competência para elaborar decretos-leis
sobre essas mesmas matérias, ninguém estará certamente a pensar que essa regra jurídica se
resume a permitir uma certa conduta aos deputados e a proibi-la ao PM e aos ministros – o que é
relevante é que os deputados têm um poder que o PM e os ministros não possuem.
A distinção entre as regras de conduta e as regras de poder torna-se nítida quando se
considera a sua violação. Pode demonstrar-se com facilidade que a falta de poder para a prática
de um ato pode ter uma relevância autónoma da sanção de qualquer conduta.
P.E: a falta de competência do Governo para legislar sobre matérias integradas na reserva absoluta
de competência da AR implica a inconstitucionalidade do ato legislativo governamental.
Quando se fala de regras de conduta e de regras de poder não se está a referir duas categorias
de regras que incidam necessariamente sobre realidades distintas, mas antes duas categorias de
regras que podem decompor uma mesma realidade segundo perspetivas diferentes.
Uma das modalidades das regras relativas a poderes é constituída pelas regras de
produção jurídica. Estas regras implicam dois outros tipos de regras – as regras de competência
(que definem os órgãos competentes para produzir o Direito) e as regras de procedimento (que
determinam a tramitação que deve ser observada nessa produção).
As regras jurídicas que se referem a efeitos impõem estados de coisas. P.E: a regra segundo
a qual quem nasce com vida adquire personalidade jurídica; a regra que estabelece que a
personalidade cessa com a morte.
As regras relativas aos desvalores dos atos jurídicos definem efeitos proibidos porque o ato
que é inexistente, ineficaz ou inválido é insuscetível de produzir efeitos jurídicos.

61
Margarida Gonçalves

Os efeitos jurídicos produzem-se quando estão verificadas determinadas condições (dependentes


ou não da vontade dos interessados). P.E: quando alguém fizer 18 anos, torna-se maior.
A estatuição está normalmente condicionada por uma previsão. P.E: aquele que provoca
um dano a outrem (previsão da regra) deve (operador deôntico) indemnizar o lesado (objeto
da regra). A estatuição determina a consequência jurídica que decorre da verificação da situação
ou do facto que constitui a previsão da regra. Entre a previsão e a estatuição das regras jurídicas
há uma implicação normativa – se ocorrer o facto ou a situação representada na previsão, então
aplica-se o dever ser estabelecido na estatuição.

Previsão
≠ “Neustico”
Operador deôntico Elemento
Estatuição “Frástico”
Objeto

3. Carácter hipotético
As regras jurídicas são hipotéticas quando só se podem aplicar se se verificar a situação/o
facto que estão previstos na sua factispécie – toda a regra que contém uma previsão é uma regra
hipotética.
O carácter hipotético da regra jurídica não se refere à implicação entre a previsão e a
estatuição, mas à circunstância da aplicação da regra depender da verificação do facto/situação
que constitui a sua previsão. O que é hipotético é a verificação desse facto/situação, não a relação
entre a previsão e a estatuição da regra jurídica.
A justificação do carácter hipotético das regras jurídicas encontra-se na dificuldade de definir
regras que devam ser aplicadas em todas e quaisquer circunstâncias. Nem sempre a previsão
aparece explicitada na regra. P.E: o art 1672º, CC, limita-se a enunciar os deveres a que os
cônjugues estão reciprocamente vinculados. É evidente que, para que haja cônjugues, é necessário
que haja casamento, pelo que a regra tem, como previsão implícita, o estado de casado.
O carácter hipotético das regras marca o seu distinguo perante as ordens – enquanto as regras
são hipotéticas, as ordens são categóricas. P.E: se alguém disser “João, vai fechar a janela!”
enuncia uma ordem; se alguém afirmar “João, se chover, fecha a janela” está a construir uma
regra.
A verificação da previsão implica uma certa consequência jurídica. Esta implicação é
diferente da normal implicação lógica. Considere-se a seguinte dedução:
(1) Se o Pucky for um cão, então é um animal
(2) O Pucky é um gato
(3) Logo, não é um animal
Esta dedução é naturalmente falaciosa porque a conclusão (falsa) não pode ser deduzida das
premissas (verdadeiras).

62
Margarida Gonçalves

Considere-se agora a seguinte dedução:


(1) Se o Pucky for um cão, então deve ser vacinado
(2) O Pucky é um gato
(3) Logo, não deve ser vacinado
Neste caso, deduz-se de uma eventual regra jurídica que o gato Pucky não deve ser vacinado.
A previsão da regra jurídica pode referir-se a factos voluntários – a aplicação da regra só se
verifica se aquele facto for praticado (p.e: a obrigação de indemnização estabelecida no art 483º,
CC, só é imposta se alguém praticar um ato danoso) – ou a factos involuntários – ela preenche-
se independentemente de qualquer ato do interessado. Assim, pode-se afirmar que um efeito
jurídico deriva diretamente da lei ou opera por força da lei (p.e: a aquisição da maioridade por
aquele que completa 18 anos verifica-se sem necessidade de prática de qualquer ato pelo sujeito).~
Como Hart referiu, os conceitos jurídicos possuem um defeasible character porque eles
próprios definem as condições em que são aplicáveis e em que podem ser “derrotados”. P.E: quem
agride uma outra pessoa fica responsável pelo seu ato. Mas se alguém agredir outra pessoa
atuando em legítima defesa, deixa de ser responsável.
Assim, o que pode ser obrigatório no caso C1 pode não ser obrigatório na conjugação dos casos
C1 e C2 porque o caso C2 “derrota” o caso C1.
A implicação entre a previsão e a estatuição é uma relação não monotónica porque não há a
garantia de que essa implicação se irá manter se passar a ser atendido um outro facto.
As regras jurídicas também podem ser categóricas/não condicionais sempre que elas não
comportam nenhuma previsão. A circunstância da regra ser categórica só significa que a sua
aplicação não está dependente de nenhuma condição, não que ela não possa ser “derrotada” por
uma exceção. P.E: o imperativo “Não matarás” pode ser “derrotado” por uma situação de legítima
defesa.

4. Análise do imperativismo
Para as orientações imperativistas, as regras jurídicas são sempre reconduzíveis a imperativos,
dado que todas as regras impõem uma obrigação a um ou a vários sujeitos.
Críticas

• As orientações imperativistas conduzem a uma distorção na análise do sentido do Direito.


P.E: a regra que permite que o proprietário use a sua coisa é uma regra jurídica porque ela
impõe um dever de respeito desse direito a todos os não proprietários, considerando aquilo
que é relevante (o uso da coisa pelo seu proprietário) através do que é acessório ou mero
reflexo (o dever de os não proprietários não violarem o direito do proprietário).
Há que reconhecer também que determinados deveres não têm nenhuma correspondência com
direitos. P.E: aquele que divulgar um segredo do Estado é punido com uma pena de prisão.

• Impossibilidade de reconduzir todas as regras a imperativos. O imperativismo pode ser


compatível com ordens jurídicas rudimentares, mas é certamente incompatível com os
modernos ordenamentos jurídicos, nos quais é indispensável a vigência de regras que atribuam
poderes para a produção e a revogação do direito e de regras que definam os desvalores
jurídicos.

63
Margarida Gonçalves

XII. MODALIDADES DE REGRAS JURÍDICAS


1. Critérios do objeto
De acordo com a sua incidência, as regras jurídicas podem ser:
1. Regras primárias – são as regras que regulam condutas, poderes ou efeitos jurídicos.
• Regras regulatórias – são as regras respeitantes a condutas ou ao exercício de um poder.
Estas regras podem ser violadas se alguém realizar uma conduta proibida, omitir uma
conduta devida, exercer um poder que não possui, ou deixar de desempenhar um poder que
deve exercer.

• Regras constitutivas – são as regras que impõem efeitos jurídicos. Estas regras não podem
ser violadas. P.E: o efeito de aquisição da maioridade que decorre do disposto no art 122º,
CC, produz-se sempre que alguém fizer 18 anos. A produção desse efeito é insuscetível de
ser violada.

2. Regras secundárias – são regras que incidem sobre outras regras, ou seja, são regras sobre
regras. Como modalidades de regras secundárias temos:
• Regras de produção – são regras sobre a produção de outras regras ou sobre a modificação
de regras vigentes. P.E: art 112, CRP.
• Regras revogatórias – são regras sobre a revogação de outras regras. P.E: art 7º, CC.
• Regras interpretativas – são regras sobre a interpretação de outras regras. P.E: art 9º, CC.
• Regras de conflitos – são regras relativas à resolução de conflitos de aplicação da lei no
tempo ou no espaço. P.E: art 25º, CC (aplicação no espaço) e art 12º, CC (aplicação no
tempo).

Regras primárias Regras secundárias

• Regras de produção
Regras Regras • Regras revogatórias
regulatórias constitutivas • Regras interpretativas
• Regras de conflitos

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2. Critérios do âmbito
As regras podem ser:

• Regras gerais

• Regras específicas – definem um regime próprio para situações diferentes daquelas que
cabem no âmbito das regras gerais. Por isso, estas regras adaptam o regime geral. Elas têm um
âmbito de aplicação mais limitado que o das regras gerais porque a sua previsão é delimitada
na previsão das regras gerais. Assim, se o legislador não tivesse elaborado uma regra
específica, a situação seria abrangida pela previsão da regra geral e seria esta a regra aplicável.

➢ Regras especiais – estas regras podem delimitar o seu âmbito de aplicação em função da
matéria, das pessoas e do território, podendo haver três especialidades:
✓ Especialidade material – as regras gerais regulam uma certa situação e as regras
especiais regulam uma situação que se insere na categoria da situação prevista na regra
geral. P.E: as regras sobre a nulidade da venda de coisas alheiras são especiais perante
as regras relativas à nulidade dos negócios jurídicos.
A especialidade material também se pode referir a ramos do Direito e a institutos
jurídicos. P.E: o Direito Comercial é um direito especial perante o Direito Civil.

✓ Especialidade pessoal
❖ Regras comuns – são as que se aplicam à generalidade das pessoas. P.E: a regra que
tem como destinatários todos os alunos da Faculdade.
❖ Regras particulares – são as que se aplicam a certas categorias de pessoas. P.E: a
regra que tem como destinatários apenas os finalistas.

✓ Especialidade territorial
❖ Regras nacionais – são aplicáveis em todo o território nacional e só podem ter
origem em órgãos centrais do Estado.
❖ Regras regionais – são aplicáveis nas RA da Madeira e dos Açores e podem ter
origem quer nos órgãos próprios das RA, quer nos órgãos centrais do Estado.
❖ Regras locais – são as que se aplicam apenas em certas zonas do território nacional
e podem ter a sua origem quer nas autarquias locais, quer nos órgãos centrais do
Estado.

➢ Regras excecionais – definem um regime jurídico contrário àquele que consta da regra
geral. Os fundamentos da contradição entre as regras jurídicas podem ser:
✓ Sistémicos – aqueles que decorrem de princípios do sistema jurídico ou de algum dos
seus subsistemas (a regra geral segue um princípio e a regra excecional baseia-se noutro
princípio).
✓ Pragmáticos – são ditados por meras razões práticas. P.E: uma regra de trânsito
determina que “É proibido estacionar exceto aos Domingos e feriados”. Na proibição
do estacionamento decorre da necessidade de assegurar a fluidez do trânsito, mas, como
esta fluidez não é afetada aos Domingos e feriados, não se justifica manter essa
proibição nesses dias.

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Regimes próprios

• Revogação
A lei geral (posterior) não revoga a lei especial (anterior) A lei especial contém um regime que
foi definido para corresponder a certas circunstâncias particulares. Por isso, a lei geral, que não
atende a essas circunstâncias, não pode revogar a lei especial. P.E: uma nova lei sobre o contrato
de locação não revoga a lei sobre o arrendamento urbano.
Exceção – da nova lei pode resultar que ela também se deve aplicar às situações que são
abrangidas pela lei especial, hipótese na qual se verifica a revogação da lei especial pela nova lei
geral (art 7º/3, in fine, CC). Saber se isso sucede é questão de interpretação da nova lei geral e da
determinação da intenção inequívoca do legislador. Para isso, é importante determinar se
permanecem as razões que justificaram a elaboração da lei especial. Se tal não suceder, pode
concluir-se que o legislador teve a intenção de revogar a lei especial.
A lei especial (posterior) derroga a lei geral (anterior). Como a lei especial só se aplica em
casos especiais, a lei geral anterior permanece aplicável em todos os outros casos.
A existência e o conteúdo do direito local devem ser provados pela parte que o invoca. Esta
regra contém uma exceção ao princípio de que o tribunal conhece oficiosamente a matéria de
direito e é justificada pela eventual dificuldade de conhecimento do direito local pelo tribunal.
Não é todo o direito local que deve ser provado pela parte interessada, mas apenas aquele que
emana dos órgãos locais.

3. Critério da disponibilidade
As regras jurídicas podem ser:

• Injuntivas – são as regras que são aplicadas ainda que haja uma manifestação de vontade
contrária dos seus destinatários. Há três formas de regras injuntivas: injuntivas fixas (não
deixam qualquer margem de manobra. P.E: CCG), injuntivas mínimas (estabelece um
mínimo abaixo do qual não se pode negociar. P.E: salário mínimo) e as injuntivas máximas
(aquelas que permitem um afastamento/alteração para baixo, mas não para cima. p.e: o período
de trabalho semanal).
• Supletivas – são as regras que apenas são aplicadas na falta de regulação da matéria pelos
interessados. Atendendo ao princípio da liberdade contratual, os regimes legais que se
encontram estabelecidos na área dos contratos privados são, em grande medida, regimes
supletivos.
Para a classificação de uma regra jurídica como injuntiva ou dispositiva, podem ser utilizados
vários critérios:

• Qualificação pelo legislador – são injuntivas as regras que o legislador não admite que
sejam afastadas pela vontade das partes (p.e: regras que constam no art 809º, CC) e são
dispositivas as regras cuja aplicação seja expressamente ressalvada pela falta de
disposição ou de estipulação das partes em contrário (p.e: art 772º/1, CC).

• Valoração da regra – é um critério que atende à matéria regulada pela regra e aos interesses
que ela procura salvaguardar. Assim sendo, pode-se concluir que são injuntivas as regras que
são essenciais a um determinado regime (p.e: a regra que impõe o pagamento da renda ou
aluguer ao locatário) e as regras que protegem interesses que as partes não podem afastar
(p.e: a regra que determina que, enquanto se verificar a mora do credor, a dívida deixa de

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vender juros é injuntiva porque de outro modo, permitir-se-ia que o credor lucrasse com a sua
recusa em receber a prestação).
4. Critério da vinculação
As regras jurídicas podem ser:

• Regras de resultado – são aquelas que, por definirem um resultado que deve ser alcançado
ou que deve ser evitado, não deixam ao destinatário nenhuma opção na sua conduta. A violação
de uma regra de resultado pelo respetivo destinatário implica a violação de um dever.

• Regras técnicas – são aquelas que determinam o meio que deve ser utilizado para alcançar
um determinado resultado, caso o agente o pretenda obter. Estas regras caracterizam-se por
não imporem nenhum resultado, mas sim por definirem o meio que deve ser utilizado para o
alcançar.
Estas regras criam ónus jurídicos, ou seja, uma situação subjetiva que se caracteriza por impor
um comportamento a quem quiser obter um resultado. P.E: o ónus da prova.

5. Espécies de regras

(1) Regras definitórias – pretendem explicar o significado de uma palavra ou de um enunciado.


A definição pode ser uma:
• Definição de dicionário – explica o significado que uma palavra/expressão tem numa
língua. Esta definição tem um carácter analítico.
• Definição estipulativa – explica o significado com o qual uma palavra/expressão é usada
num certo contexto. Esta definição tem um carácter sintético.
As regras definitórias contêm definições estipulativas de conceitos jurídicos – elas não procuram
descrever a realidade, mas sim fixar o significado de um conceito jurídico. Elas equiparam um
conceito jurídico a uma descrição desse mesmo conceito, sendo por isso, insuscetíveis de serem
verdadeiras ou falsas.
Apesar de algumas regras jurídicas, na sua formulação linguística, não parecem regras
definitórias, elas são verdadeiras definições legais.
Pode parecer que as regra definitórias têm uma importância residual. Contudo, esta
aparência é enganosa. As regras definitórias revestem-se de uma enorme importância, dado que
elas determinam em que termos algo vale como realidade jurídica. A construção de uma regra a
partir da sua fonte não pode dispensar as definições legais dos seus termos e qualquer alteração
na definição legal, implica uma alteração na regra que comporta os termos em que são definidos.
Neste sentido, as regras definitórias desempenham um importante pepel na construção do
ordenamento jurídico.

(2) Regras de remissão – estas regras equiparam duas situações distintas, aplicando a uma delas
o regime jurídico que está previsto para a outra.
A remissão assenta numa analogia entre duas ou mais situações – uma vez de se definir um
regime legal, remete-se para outro já existente porque as situações são análogas e merecem um
mesmo tratamento jurídico. É este aspeto que permite distinguir as regras de remissão das
ficções legais – nas regras de remissão equiparam-se as realidades análogas; nas ficções legais
equiparam-se as realidades distintas.

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(3) Regras de presunção – são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para
firmar um facto desconhecido. Do facto conhecido infere-se o facto desconhecido, podendo
essa inferência ser retirada pela lei ou pelo julgador.
As regras jurídicas que contém presunções legais estabelecem uma implicação entre dois factos
– segundo a presunção legal, um facto (conhecido) implica outro facto (presumido). Estas
presunções podem ser ilidíveis – podem ser ilididas mediante a prova do caso contrário – ou
inilidíveis – não admitem prova em contrário, pelo que não é permitido provar que o facto
presumido não é verdadeiro.
As presunções revestem-se de uma grande importância, sendo que quem tiver a seu favor uma
presunção legal, escusa de provar o facto a que ela conduz. Ou seja, esse interessado não tem o
ónus de provar o facto presumido.

(4) Ficções legais – através destas, o legislador ficciona que duas realidades distintas são
idênticas, ou seja, o legislador equipara uma realidade a outra realidade para permitir a
aplicação a ambas da regra que regula uma destas realidades. As ficções legais operam através
de um “é como se”.
A distinção entre as ficções legais e as presunções inilidíveis consiste no facto de que as ficções
legais se basearem numa relação de equiparação entre realidades distintas. Já as presunções
inilidíveis fundamentam-se numa relação de implicação entre um facto conhecido e um facto
presumido.

(5) Regras de conflitos – estas regras destinam-se a resolver conflitos no espaço (determinam
qual a regra que, entre as regras dos vários ordenamentos jurídicos, é a competente para regular
uma situação plurilocalizada) – Direito Internacional Privado – ou no tempo (definem,
normalmente através de uma escolha entre a regra antiga e a regra nova, qual é a regra que é
aplicável a uma situação que transita do domínio da lei antiga para o da lei nova) – direito
transitório.

(6) Regras auto-referenciais – são as regras que se referem a elas próprias, ou seja, são as regras
que se incluem na classe das regras a que elas se referem.

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