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Direito,

Teoria do Direito
e Direito Penal
Roberto Lyra Filho
Escritor e professor universitário (UnB)

1. Entre a Teoria G eral do D ire ito , em sua te n ta tiv a de ela­


borar os esquem as conceptu ais necessários para as operações
da C iência Jurídica, e o D ire ito Penal, com o d is c ip lin a especial,
ainda se m anifesta uma espécie de décalage, seja decorrente
da fa lta de inform ação dos c rim in a lis ta s , no que tange ao avanço
da Teoria Geral, seja pela adaptação apressada do que esta ú l­
tim a pôde c o n s tru ir com assento no te rre n o do D ire ito Pri­
vado. 1
Por o utro lado, os dados, por assim dizer, clá ssicos, a res­
p eito da noção de norm a ju ríd ic a , suas assim chamadas d iv i­
s õ e s ” , sua e stru tu ra conservam um desim pedido trâ n s ito até
nas obras m ais recentes de algum as fig u ra s repre se n ta tiva s e
em quase todas as de m enor porte, fazendo caso om isso da
produção já considerável das análises te ó ric a s gerais, sob os
pontos de v is ta lógico e o n to lóg ico. - A Teoria Geral do D ire ito
Privado e até, m ais m odernam ente, a Teoria Geral do Processo
estão, sem dúvida, m ais desenvo lvidas do que sua contraparte ,
tão pouco cultiva da , a Teoria Geral do D ire ito Penal.
2. Tal situação perturba a form ulação das chamadas regras
de d ire ito , is to é, as proposições em que se aglutinam os re­
sultados da análise té cn ico -ju ríd ica , na construção dos d ife re n ­
tes planos desentranhados do ordenam ento ou conjunto de nor­
mas vig e n te s. Veja-se, por exem plo, a d ificu ld a d e que se apre­
senta à ocasião em que se pretende fix a r a peculiarida de da
norma penal, o que pode, sob algum aspecto, d istin g u í-la das
dem ais norm as ju ríd ic a s . A liá s , é com um aparecerem , nessa
perspectiva, as posições que confundem duas coisas d is tin ta s :
a questão da chamada autonom ia do D ire ito Penal e a questão
da-peculiarid ade da norma penal, daquilo que há de p e rm itir o
recorte seguro do te rre n o propriam ente ju ríd ic o penal na espé­
cie de comunhão pro indiviso do ordenam ento global.

3. Os crim in a lis ta s ainda tra tam , com ênfase e, em geral,


opiniões divididas, da questão da autonom ia da norma penal,
gastando tem po na discussão em que se pergunta se esta ú lti­
ma se lim ita a reforçar as preceituações dos dem ais campos
do d ire ito ou se tem preceituações próprias.

As relações entre os d ife re n te s ram os do d ire ito e, m es­


mo, a não-contradição entre setores que pertencem a um m es­
mo ordenam ento não im pedem que o elenco de normas ju ríd ico -
penais estabeleçam , para seus p róprios fin s , d ire ito s e deveres
peculiares. ROBERTO LYRA lem bra, por exem plo, que o art. 135
do Código Penal de 1940 é “ p riv a tiv o " do D ire ito Penal. (3) A liá s,
acessoriam ente, m uitos conceitos e até in s titu to s pertencentes
a outros ramos do d ire ito ganham d is c ip lin a autônom a. Note-se,
quanto ao D ire ito A d m in is tra tiv o , o que se entende por fu n c io ­
nário público, em comparação com o alargam ento que a este
conceito dá a esfera penal; ou, no que tange ao D ire ito C iv il,
a transm utação da sem ântica ju ríd ica , no que se re fe re a coisa
m óvel, casa, do m icílio e assim por diante.

4. Uma coisa é, porém , reconhecer que o D ire ito Penal é


visceralm en te c o n s titu tiv o (como qualquer o utro) e, não, m era­
m ente sancionatório; e coisa m u ito diversa é a trib u ir ao pre­
ce ito penal uma natureza, uma essência, dive rsa da que revelam
as dem ais normas jurídica s. Nenhuma ilic itu d e é, em si, penal,
de tal m aneira que, ao passar à esfera da d is c ip lin a ju ríd ica ,
recaia eo ipso no campo penal. M u itas condutas, noutros tem pos
ou lugares, enquadradas no âm bito penal, já passaram para o
te rre n o c iv il ou mesmo nem se podem ve r m ais no elenco das
infrações à d iscip lin a privada ou à a d m in is tra tiva . De resto, o
co n trá rio tam bém ocorre e, ultim a m e nte , com desusada fre ­
qüência, quando o le g isla do r se deixa em polgar pela idéia, aliás
falsa, de que a com inação de sanções penais reforçará as pre­
ceituações, pela m aior força in tim id a tó ria que elas representa­
riam . Isto contrasta com duas ordens de d ireções evo lu tiva s: 9
prim eira con sistind o no abandono da concepção in tim id a tiv a e
repressiva do D ire ito Penal (cujo declínio, no pensam ento e
nas in s titu iç õ e s m ais avançadas, é evid e nte ); a segunda apre-
sentando-se através da v e rific a ç ã o crim in o ló g ica de que a in ti­
m idação é ilusó ria , pois, na presença dum potencial crim inó-
gino reforçado, a ameaça penal redobrada c o n trib u i para aumen­
ta r a própria tensão que se visa a subjugar.

A ilic itu d e c iv il ou penal é categoria puram ente em pírica,


su je ita às oscilações h is tó ric o -c u ltu ra is , sem qualquer delinea-
m ento te ó ric o a priori.

5. Se, portanto, em que pese a autonom ia c o n s titu tiv a das


preceituações penais, não há d istin çã o ontológica, quanto ao
que c o n s titu iria m atéria de incrim inação e o que recairia no âm­
b ito de outros ramos do d ire ito para c o n fig u ra r infrações de or­
dem c iv il ou ad m in istra tiva , o recurso vá lid o pareceria ser o
exame de uma d istin ção m ediante a peculiaridade das sanções.
A sanção crim in a l seria, então, o c rité rio d is tin tiv o .

É o que já sustentava, entre outros, GRISPIGNI, sem que


isto deixasse de m anifesta r, entre tan to , certas dificu ld a d e s es­
peciais.

Para chegar à defesa de sua posição, que coincide com


m uitas re sp e itá ve is opiniões, o m estre italia n o d iv id ia as san­
ções em executivas e p u nitiva s. A s p rim eiras, que c o in cid iria m
com a prestação que é objeto do pre ce ito (o dever ju ríd ic o ),
abrangeriam o im pedim ento da ação co n trá ria ao p receito, o
constrang im e n to ao cu m p rim en to do preceito , a reposição no
statu quo ante ou o ressarcim en to, com prestação de um equi­
valente. No p rim e iro caso (im p ed im e nto da ação co n trá ria ao
Preceito), não haveria, aliás, propriam ente uma sanção, de vez
que a não-prestação seria evitada. Nas sanções p unitivas, por
outro lado, a execução e fe tiv a do p receito não se caracteriza,
nem d ire ta , nem in d ire ta m e n te (por algum ressarcim ento, de
equivalência, aliás, puram ente convencional). A s sanções puni­
tivas, segundo GRISPIGNI, seriam com o que reafirm ações s im ­
bólicas do p rece ito.

A inda segundo GRISPIGNI, nas sanções pu n itiva s entram


em linha de conta, m ais acentuadam ente, as causas psíquicas
da infração, isto é, o enlace da não-prestação e da sanção v in ­
cula-se ao elem ento s u b je tiv o , antes que à pura e o b je tiva rea­
lização ou não realização da conduta. D entre as sanções puni­
tivas, GRISPIGNI d is tin g u e as a d m in is tra tiv a s e as penais — o
que, desde logo, em m u ito atenua, se não descaracteriza, a
ênfase subjetiva, que pode estar presente no D ire ito Penal da
culpa, mas não é elem ento essencial ou, mesmo, fatalm ente
predom inante no âm bito a d m in istra tivo e ainda sofre os golpes,
no próprio D ire ito Penal, de uma acentuada quota de infrações
que se armam sob a égide da responsabilidade objetiva.

Por outro lado, segundo GRISPIGNI, as sanções crim in a is


se apartam das a d m in istra tiva s, enquanto aquelas, diversam en­
te destas, são im postas por um órgão da ju risd içã o . Observa-
se que esta distinção só adquire relevo no âm bito da separação
de poderes, sem esquecer as in te rfe rê n cia s fu nciona is que dão
a poderes diversos a trib uiçõ es de o utros, com o os aspectos ad­
m in istra tiv o s da atuação ju d iciá ria , os aspectos ju d ic iá rio s da
atuação de órgão do poder le g is la tiv o e, até, conform e o orde­
nam ento, a presença de a tribu içõe s le g is la tiv a s e até ju d ic iá ­
rias em órgãos executivos. De qualquer sorte, a separação de
poderes, inerente ao que GRISPIGNI chama o Estado M oderno,
depende de que por tal nome se designe um Rechtsstaat v isce ­
ralm ente liberal, o que é m uito sim pático, mas não corresponde
sem pre à realidade da vida do d ire ito contem porâneo.

Sob outro ângulo, cum pre lem brar que há todo um sabor
clássico nessas elucubrações, pois a ênfase pu n itiva m ais uma
vez contrasta com a índole e a te le o lo g ia tu te la re s de m uitos
in s titu to s penais, se não com todo o seu predom inante ende­
reço contem porâneo, desde a Scuola Positiva à Défense Sociale
Nouvelle. (4> O sistem a de m edidas de segurança, por exem plo,
cria dificu lda d es irisuperáveis para um enquadram ento como
sanções p u n itiv a s ", em que pese a dim inuição de um ou m ais
bens jurídico s. Resolver a questão, apelando para o a rtifíc io de
designa-las como form as do poder coativo do Estado não pa­
rece resolver sa tisfa to ria m e n te a questão. Vejam -se, por exem ­
plo, as interdições, que aparecem no campo do D ire ito Penal,
como no do A d m in is tra tiv o e até do C iv il: a adotar-se o esque­
ma, como elem ento de lógica ju ríd ica , chegaríam os à conclusão
de que ha sanções c rim in a is " de D ire ito A d m in is tra tiv o e até
. re '* ° C iv il. . . Há “ sanções p u n itiv a s " c iv is aplicáveis ju-
risd icio n a lm e n te (basta lem brar o art. 395 do Código C iv il, por
exem plo).

6. Seria possível ver, de autor a autor, quão a rtific ia is se


apresentam os c rité rio s d is tin tiv o s , ainda que isso conduzisse
a conclusão, à p rim e ira vista assustadora, de que não há uma
separação radical entre os d ife re n te s se tores do ordenam ento
ju ríd ic o e que o D ire ito Penal (que alguns preferem cham ar c ri­
m inal, ju stam en te em d eferência ao colapso do ím peto punitivo,
repressivo, nas m elhores direções evolutivas) não é m ais do
que um âm bito cujo reco rte depende do tu m u lto das em ergên­
cias h istó rica s e dos acidentes na vida do d ire ito .

O prop ó sito desta nota, porém , é mais profundo. Ela pre­


tende insinuar que, para além da décalage entre a Teoria Geral
do D ire ito e a Teoria Geral do D ire ito Penal, há outro desajuste,
entre as malhas duma pseudológica ju ríd ic a o espectro duma
idéias de Estado e legislação e uma necessária revisão do con­
ce ito de D ire ito m esm o, segundo as d ireções do pensam ento
contem porâneo.

O problem a te ria que ser retom ado da capo, sob pena (a


expressão cai com certa ir o n ia . . . ) de se ver, sem pre, insinuar
entre as malhas duma pseudo-lógica ju ríd ica o espectro duma
ontolog ia ju ríd ic a m utilad ora, desatualizada e, afinal, co n tra s­
tante com o que o D ire ito (em sua integridad e m aiúscula) real­
m ente é.

Foi todo esse itin e rá rio que levou o autor destas linhas a
esboçar uma construção, partindo dos conceitos de Homem,
Ética e D ire ito , para chegar à desobstrução dos cam inhos de
um co nce ito de crim e , a que a Teoria Geral do D ire ito , em sen­
tid o clássico , não poderia tra ze r elucidação. Daí todo o sentido
de uma C rim in o lo g ia D ia lética , (5) em que o m estre de Bolonha,
Prof. LUIGI BAGOLINI quis ver, generosam ente, uma “ c o n trib u i­
ção pessoal, o rig in a l" e em que o Prof. DENIS SZABO, d ire to r
do C entro Internacion al de C rim in o lo g ia Comparada, com igual
m unificência , reconheceu um adm inículo b ra s ile iro a debate de
porte internacion al.

A esperança, que agora se form u la , é a de que, entre nós,


se possam de senvo lver as investig açõ e s iniciadas, por um m ais
am plo debate dos fundam entos filo s ó fic o s do D ire ito Penal e
da C rim in o lo g ia , que se vêm desenvolvendo na U niversidade de
Brasília.(6) Esse esforço de m anter a inquietação e a vida in te ­
lectual liv re parece ao autor desta nota o traço de continuidade
da própria UnB, através de todas as suas cris e s de cre scim e n to ,
absorvendo contra diçõ e s p e rifé ric a s , para coligar-se à in sp ira ­
ção renovadora, ainda presente no ano do seu décim o a niver­
sário.
NOTAS

1) ROBERTO LYRA FILHO, Curso de Teoria Geral do Direito Penal e


Criminologia, Brasília, UnB (edição mimeografada), 1965, passim.
2) MIGUEL REALE, O Direito como Experiência, São Paulo, Saraiva, 1968,
p. 227 e segs.
3) ROBERTO LYRA, Introdução ao Estudo do Direito Criminal, Rio, Editora
Nacional de Direito, 1946, p. 197.
4) Quanto às ligações entre a Scuola Positiva e a Délense Sociale Nouvelle,
ver MARC ANCEL, La Défense Sociale Nouvelle, Paris, Cujas, 1966,
passim. O avanço, para além dessa acomodação neo-positivista (no sen­
tido juridico-penal), é demarcado, pelo autor desta nota, em seus escri­
tos: ver e. g „ Criminologia Dialética em Ação, in Noticia do Direito Bra­
sileiro — 1971, Brasília, Gráfica do Senado, 1972.
5) ROBERTO LYRA FILHO, Criminologia Dialética, Rio, Borsoi, 1972
passim.

6) Ver ROBERTO LYRA FILHO, Plano de Curso de Especialização em So­


ciologia do Crime (Pós-graduação), Brasília, Edição mimeografada, 1972,
passim. Sobre esse plano, assim se manifesta no Centro Internacional
de Criminologia Comparada, por seu diretor, Prof. DENIS SZABO: “ O plano
me parece bem estruturado e perfeitamente concebido para desenvol­
ver pesquisas criminológicas na moldura do ensino das ciências sociais.
A ênfase numa sólida formação nessas disciplinas é, ali, posta com
avançada especialização nos métodos de pesquisa. Acho esses desen­
volvimentos extremamente desejáveis, num país que deverá enfrentar ne­
cessidades crescentes no terreno do estudo da aberração (déviance)
e das diferentes formas de criminalidade” (ofício de 10 de novembro
de 1971).

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