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Émile Durkheini.·· · .

-··

Da Divisão
do Trabalho Social

Tradução
EDUARDO BRANDÃO

Martins Fontes
São Paulo I 999
Esta obra foi publicada originalmente emfrands com o título
DE LA DNISION DU TRAVA/L SOCIAL
por Presses Universitaires de France, em 1930.
Copyright © Lívraria Martins Fontes Editora Lula.,
São Paulo, 1995, para a presente edição.

21 edição
março de 1999

Tradução
EDUARDO BRANDÃO

Revisão da tradução
Carlos Eduardo Silveira Matos
Revisão gráfica
Isabel Aparecida Ribeiro da Silva
Maurício Balthazar Leal
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação
Renato C. Carbone

Dados Intemadooais de Catalogução na Publicação (CIP)


(Câmara BnR!eira do Livro, SP, Brasil)
Durkheim, Émile, 1858-1917.
Da divisão do trabalho social I Émile Durkheim ; tradução
Eduardo Brandão.- 2' ed.- São Paulo : Martins Fontes, 1999.-
(Coleção tópicos)

Título original: De la division du travail social.


ISBN 85-336-1022-X

!. Divisão do trabalho 2. Durldleim, Émile, 1858-1917 3. Sociologia


I. Título. 11. Série.

99-0754 CDD-306.368
fndkes para catálogo sistemátko:
!. Divisão do trabalho : Sociologia 306.368

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L DA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL

faltar a matéria-prima. Mas, por outro lado, acalenta-se INTRODUÇÃO


uma vã esperança quando se acredita que a melhor ma-
neira de preparar seu advento é acumular primeiro, com
paciência, todos os materiais que ela utilizará, porque só
podemos saber quais são aqueles de que ela necessita se
ela já tiver alguma noção de si mesma e de suas necessi-
dades, logo, se ela existir.

Quanto à questão que originou este trabalho, é a das


relações entre a personalidade individual e a solidarieda-
de social. Como é que, ao mesmo passo que se torna
mais autônomo, o indivíduo depende mais intimamente
da sociedade? Como pode ser, ao mesmo tempo, mais
pessoal e mais solidário? Pois é inconteste que esses dois
movimentos, por mais contraditórios que pareçam, se- O PROBLEMA
guem-se paralelamente. É este o problema que nos colo-
camos. Pareceu-nos que o que resolvia essa aparente an- Conquanto a divisão do trabalho não date de ontem,
tinomia é uma transformação da solidariedade social, de- foi só no fim do século passado que as sociedades come-
vida ao desenvolvimento cada vez mais considerável da çaram a tomar consciência dessa lei, que, até então, elas
divisão do trabalho. Eis como fomos levados a fazer des-
suportavam quase sem saber. Sem dúvida, desde a Anti-
ta última o objeto de nosso estudo3.
guidade, vários pensadores perceberam sua importância 1 ;
mas foi Adam Smith o primeiro a tentar teorizá-la. Foi
ele, aliás, o criador dessa palavra, que a ciência social em-
prestou mais tarde à biologia.
Hoje, esse fenômeno generalizou-se a tal ponto que
salta aos olhos de todos. Não há mais ilusão quanto às
tendências de nossa indústria moderna; ela vai cada vez
mais no sentido dos mecanismos poderosos, dos grandes
agrupamentos de forças e capitais e, por conseguinte, da
extrema divisão do trabalho. Não só no interior das fábri-
cas, as ocupações são separadas e especializadas ad infi-
nitum, como cada manufatura é, ela mesma, uma especia-
lidade que supõe outras. Adam Smith e Stuart Mill ainda
2 DA DIVISÃO DO 7RABALHO SOCIAL IN!RODUÇÃO 3

esperavam que pelo menos a agricultura seria exceção à fim do século XVIII, designações múltiplas teriam sido
regra e viam nela o último asilo da pequena propriedade. necessárias para indicar com exatidão o que homens co-
Embora em semelhante matéria seja necessário evitar a mo Wolff, Haller e Charles Bonnet tinham de notável em
generalização excessiva, parece difícil, porém, contestar várias categorias das ciências e das letras. No século XIX,
hoje em dia que os principais ramos da indústria agrícola essa dificuldade não mais existe, ou, pelo menos, é rarís-
são cada vez mais arrastados pelo movimento geral2. En- sima"4. Não apenas o cientista já não cultiva simultanea-
fim, o próprio comércio esforça-se por seguir e refletir, mente ciências diferentes, como sequer abarca o conjun-
com todas as suas nuances, a infinita diversidade das em- to de uma ciência inteira. O círculo de suas pesquisas se
presas industriais; e, enquanto essa evolução se consuma restringe a uma ordem determinada de problemas, ou
com uma espontaneidade irrefletida, os economistas que mesmo a um problema único. Ao mesmo tempo, a fun-
escrutam suas causas e apreciam seus resultados, longe ção científica que, outrora, quase sempre era acumulada
de condená-la e combatê-la, proclamam sua necessidade. com alguma outra mais lucrativa, como a de médico, pa-
Nela vêem a lei superior das sociedades humanas e a dre, magistrado, militar, toma-se cada vez mais suficiente
condição do progresso. por si mesma. De Candolle prevê até que, num dia pró-
Mas a divisão do trabalho não é específica do mun- ximo, a profissão de cientista e a de professor, ainda hoje
do econômico: podemos observar sua influência crescen- tão intimamente ligadas, se dissociarão definitivamente.
te nas regiões mais diferentes da sociedade. As funções As recentes especulações da filosofia biológica aca-
políticas, administrativas, judiciárias especializam-se cada baram de nos mostrar, na divisão do trabalho, um fato de
vez mais. O mesmo ocorre com as funções artísticas e uma tal generalidade que os economistas, que foram os
científicas. Estamos longe do tempo em que a filosofia primeiros a mencioná-lo, não haviam podido suspeitar.
era a ciência única; ela fragmentou-se numa multidão de Sabe-se, com efeito, desde os trabalhos de Wolff, von
disciplinas especiais, cada uma das quais tem seu objeto, Baer, Milne-Edwards, que a lei da divisão do trabalho se
seu método, seu espírito. "A cada meio século, os ho- aplica tanto aos organismos como às sociedades; pôde-se
mens que se destacaram nas ciências tomaram-se mais inclusive dizer que um organismo ocupa uma posição
especiais. "3 tanto mais elevada na escala animal quanto mais as suas
Devendo relevar a natureza dos estudos a que os funções forem especializadas. Essa descoberta teve por
cientistas mais ilustres se dedicaram nos últimos dois sé- efeito, ao mesmo tempo, estender imensamente o campo
culos, de Candolle observou que, na época de Leibniz e de ação da divisão do trabalho e recuar suas origens até
Newton, ele precisaria ter escrito "quase duas ou três de- um passado infinitamente remoto, pois ela se toma quase
signações para cada cientista; por exemplo, astrônomo e contemporânea do advento da vida no mundo. Não é
físico, ou matemático, astrônomo e físico, ou então em- mais apenas uma instituição social que tem sua fonte na
pregar apenas termos gerais como filósofo ou naturalista. inteligência e na vontade dos homens, mas um fenôme-
E isso ainda não teria bastado. Os matemáticos e os natu- no de biologia geral, cujas condições, ao que parece,
ralistas eram, por vezes, eruditos ou poetas. Mesmo no precisam ser buscadas nas propriedades essenciais da
4 DA DIVISÃO DO TRABAlHO SOCIAL INTRODUÇÃO 5

matéria organizada. A divisão do trabalho social passa a ser aquele que, sabendo interessar-se por tudo sem se
aparecer apenas como uma forma particular desse pro- dedicar exclusivamente a nada, capaz de provar tudo e
cesso geral, e as sociedades, conformando-se a essa lei, tudo compreender, tinha meios de reunir e condensar
parecem ceder a uma corrente que nasceu bem antes de- nele o que havia de mais requintado na civilização. Hoje,
las e que arrasta no mesmo sentido todo o mundo vivo. essa cultura geral, tão gabada outrora, só nos causa o
Semelhante fato não pode, evidentemente, produzir- efeito de uma disciplina frouxa e relaxadas. Para lutar
se sem afetar profundamente nossa constituição moral, contra a natureza, precisamos de faculdades mais vigoro-
pois o desenvolvimento do homem se fará em dois senti- sas e de energias mais produtivas. Queremos que a ativi-
dos de todo diferentes, conforme nos entreguemos a esse dade, em vez de se dispersar numa ampla superfície, se
movimento ou resistamos a ele. Mas, então, coloca-se concentre e ganhe em intensidade o que perde em ex-
uma questão premente: dessas duas direções, qual deve- tensão. Desconfiamos desses talentos demasiado móveis
mos desejar? Será nosso dever procurar tornar-nos um ser que, prestando-se igualmente a todos os usos, recusam-
acabado e completo, um todo auto-suficiente, ou, ao se a escolher um papel especial e a ele se ater. Sentimo-
contrário, não ser mais que a parte de um todo, o órgão nos distantes desses homens cuja única preocupação é
de um organismo? Numa palavra, a divisão do trabalho, organizar e agilizar todas as suas faculdades, mas sem fa-
ao mesmo tempo que lei da natureza, também é uma re- zer nenhum uso definido e sem sacrificar nenhuma, co-
gra moral de conduta humana? E, se tem esse caráter, por mo se cada um deles devesse ser auto-suficiente e formar
quais motivos e em que medida? Não é necessário de- um mundo independente. Parece-nos que esse estado de
monstrar a gravidade desse problema prático; porque, distanciamento e de indeterminação tem algo de anti-so-
qualquer que seja nosso juízo sobre a divisão do traba- cial. O homem de bem de outrora já não é, para nós,
lho, todo o mundo sente bem que ela é e se torna cada senão um diletante, e recusamos ao diletantismo todo e
vez mais uma das bases fundamentais da ordem social. qualquer valor moral; vemos, antes, a perfeição no ho-
Esse problema foi colocado com freqüência pela mem competente que procura, não ser completo, mas
consciência moral das nações, mas de maneira confusa e produzir, que tem uma tarefa delimitada e que a ela se
sem conseguir resolver nada. Duas tendências contrárias dedica, que faz seu serviço, traça seu caminho. "Aperfei-
estão em confronto, sem que nenhuma delas consiga ad- çoar-se", diz Secrétant, "é aprender seu papel, é tornar-se
quirir sobre a outra uma preponderância totalmente in- capaz de cumprir sua função ... A medida de nossa perfei-
conteste. ção não se encontra mais em nossa complacência para
Sem dúvida, parece que a opinião se inclina cada conosco mesmos, nos aplausos da multidão ou no sorri-
vez mais no sentido de tornar a divisão do trabalho uma so aprovador de um diletantismo precioso, mas na soma
regra imperativa de conduta, a impô-la como um dever. dos serviços prestados e em nossa capacidade de prestar-
Os que a ela se furtam não são, é verdade, punidos com mos outros mais."6 Por isso, o ideal moral, de uno, de
uma pena precisa, fixada pela lei, mas são criticados. simples e de impessoal que era, vai se diversificando ca-
Passou o tempo em que o homem perfeito parecia-nos da vez mais. Já não achamos que o dever exclusivo do
6 DA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL IN1RODUÇÃO 7

homem seja realizar em si as qualidades do homem em que nos manda especializar-nos é, em toda parte, como
geral; mas cremos que, nada obstante, ele é obrigado a que negada pela máxima contrária, que nos manda reali-
ter as de sua função. Um fato entre outros torna sensível zar, todos, um mesmo ideal e que está longe de ter per-
esse estado da opinião; é o caráter cada vez mais espe- dido toda a sua autoridade. Sem dúvida, em princípio,
cial que a educação adquire. Cada vez mais, julgamos esse conflito nada tem que deva surpreender. A vida mo-
necessário não submeter todas as nossas crianças a uma ral, como a do corpo e do espírito, corresponde a neces-
cultura uniforme, como se devessem levar todas a mesma sidades diferentes e mesmo contraditórias; logo, é natural
vida, mas formá-las de maneira diferente, tendo em vista que ela seja feita, em parte, de elementos antagônicos
as diferentes funções que serão chamadas a preencher. que se limitam e se ponderam mutuamente. Não é me-
Numa palavra, por um de seus aspectos, o imperativo ca- nos verdade que existe, num antagonismo tão acentuado,
tegórico da consciência moral está tomando a seguinte elementos aptos a perturbar a consciência moral das na-
forma: Coloca-te em condições de cumprir proveitosamen- ções. Porque é preciso, além de tudo, que ela possa ex-
te uma função determinada. plicar-se de onde pode provir semelhante contradição.
Mas, em relação a esses fatos, podemos citar outros Para pôr fim a essa indecisão, não recorremos ao
que os contradizem. Se a opinião pública sanciona a re- método ordinário dos moralistas, que, quando querem
gra da divisão do trabalho, não o faz sem uma espécie determinar o valor moral de um preceito, começam por
de inquietação e de hesitação. Ao mesmo tempo que colocar uma fórmula geral da moralidade, a fim de, em
manda os homens se especializarem, sempre parece te- seguida, confrontar com ela a máxima contestada. Sabe-
mer que se especializem demais. Ao lado das máximas mos hoje o que valem essas generalizações sumáriasio.
que exaltam o trabalho intensivo, há outras, não menos Colocadas desde o início do estudo, antes de qualquer
difundidas, que assinalam seus perigos. Diz Jean-Baptiste observação dos fatos, elas não têm por objeto explicá-
Say: "É um triste testemunho que alguém se presta o de los, mas enunciar o princípio abstrato de uma legislação
nunca ter feito mais que a décima oitava parte de uma ideal a ser instituída integralmente. Não nos oferecem,
agulha; e não imaginem que é unicamente o operário pois, um resumo das características essenciais que as re-
que toda a sua vida maneja uma lima e um martelo que gras morais apresentam de fato em determinada socieda-
degenera assim da dignidade da sua natureza, mas tam- de ou em determinado tipo social, mas exprimem apenas
bém o homem que, por ofício, exerce as faculdades mais a maneira como o moralista representa a moral. Sem dú-
sutis de seu espírito."7 Desde o princípio do século, Le- vida, a esse título, elas não deixam de ser instrutivas,
monteys, comparando a existência do operário moderno porque nos informam sobre as tendências morais que es-
à vida livre e larga do selvagem, achava o segundo muito tão se manifestando no momento considerado. Mas têm
mais privilegiado do que o primeiro. Tocqueville não é apenas o interesse de um fato, não de uma visão científi-
menos severo: "À medida que o princípio da divisão do ca. Nada autoriza a ver, nas aspirações pessoais sentidas
trabalho recebe uma aplicação mais completa, a arte pro- por um pensador, por mais reais que possam ser, uma
gride, o artesão retrocede."9 De maneira geral, a máxima expressão adequada da realidade moral. Elas traduzem
8 DA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL IN7RODUÇÀO
9

necessidades que nunca são mais que parciais, corres- - enfim, uma vez que ela não teria sido objeto de
pondem a algum desideratum particular e determinado, acusações tão graves se realmente não se desviasse com
que a consciência, por uma ilusão que lhe é costumeira, maior ou menor freqüência do estado normal, procurare-
erige em finalidade última ou única. Quantas vezes acon- mos classificar as principais formas anormais que ela
tece inclusive serem de natureza mórbida! Portanto, não apresenta, a fim de evitar que sejam confundidas com as
se poderia referir-se a elas como critérios objetivos que outras. Este estudo oferecerá, além disso, o interesse de
permitam apreciar a moralidade das práticas. que, aqui como em biologia, o patológico nos ajudará a
Devemos afastar essas deduções que, em geral, compreender melhor o fisiológico.
não são empregadas senão para fazer figura de argumen- Aliás, se se discutiu tanto sobre o valor moral da di-
to e justificar, a posteriori, sentimentos preconcebidos e visão do trabalho, é muito menos porque não se está de
impressões pessoais. A única maneira de chegar a apreciar acordo sobre a fórmula geral da moralidade do que por
de maneira objetiva a divisão do trabalho é estudá-la pri- ter desprezado em demasia as questões de fato que va-
meiro em si mesma, de uma maneira totalmente especu-
mos abordar. Sempre se raciocinou como se estas fossem
lativa, investigar a que ela serve e de que depende - nu-
evidentes, como se, para conhecer a natureza, o papel,
ma palavra, formar a seu respeito a noção mais adequada
as causas da divisão do trabalho, bastasse analisar a no-
possível. Feito isso, estaríamos em condições de compa-
ção que cada um de nós tem dela. Esse método não
rá-la com os outros fenômenos morais e de ver que rela-
comporta conclusões científicas; por isso, desde Adam
ções ela mantém com eles. Se descobrirmos que ela de-
Smith, a teoria da divisão do trabalho só fez poucos pro-
sempenha um papel similar a alguma outra prática, cujo
caráter moral e normal é indiscutido; que se, em certos gressos. "Seus continuadores", diz Schmollerll, com notá-
casos nos quais não representa esse papel, isso acontece vel pobreza de idéias, "agarraram-se obstinadamente a
por causa de desvios anormais; que as causas que a de- seus exemplos e a suas análises, até o dia em que os so-
terminam também são condições determinantes de outras cialistas ampliaram o campo de suas observações e opu-
regras morais, poderemos então concluir que ela deve ser seram a divisão do trabalho nas fábricas atuais à das ofi-
classificada entre estas últimas. E, assim, sem querermos cinas do século XVIII. Mesmo assim, a teoria não foi de-
tomar o lugar da consciência moral das sociedades, sem senvolvida de maneira sistemática e aprofundada; as con-
pretendermos legislar em seu lugar, poderemos lhe trazer siderações tecnológicas ou as observações de uma verda-
um pouco de luz e diminuir suas perplexidades. de banal por alguns economistas também não puderam
Nosso trabalho se dividirá, pois, em três partes prin- beneficiar particularmente o desenvolvimento dessas
cipais: idéias." Para saber o que é objetivamente a divisão do
- procuraremos, primeiro, saber qual a função da di- trabalho, não basta desenvolver o conteúdo da idéia que
visão do trabalho, isto é, a que necessidade social ela dela temos, mas é preciso tratá-la como um fato objetivo,
corresponde; observar, comparar, e veremos que o resultado dessas
-determinaremos, em seguida, as causas e as condi- observações muitas vezes difere daquele que o sentido
ções de que depende; íntimo nos sugereiz.
364 DA DIVISÃO DO TRABAlHO SOCIAL

de. A maior parte de nossos estados de consciência não


se teria produzido em seres isolados e se teria produzido LIVRO III
de maneira totalmente diferente em seres agrupados de
outra maneira. Eles derivam, pois, não da natureza psico- AS FORMAS ANORMAIS
. lógica do homem em geral, mas da maneira como os ho-
mens, uma vez associados, se afetam mutuamente, con-
forme sejam mais ou menos numerosos, mais ou menos
próximos. Produtos da vida em grupo, somente a nature-
za do grupo pode explicá-los. É claro que esses estados
não seriam possíveis se as constituições individuais não
se prestassem a eles; mas estas são apenas suas condições
distantes, não suas causas determinantes. Spencer com-
para em algum lugar a obrais do sociólogo com o cálculo
do matemático, que, da forma de certo número de bolas,
deduz a maneira como devem ser combinadas para se
manterem em equilíbrio. A comparação é inexata e não
se aplica aos fatos sociais. Nestes, é antes a forma do to-
do que determina a das partes. A sociedade não encontra
já prontas nas consciências as bases em que repousa; ela
própria as constrói16.
CAPÍTULO I

A DMSÃO DO TRABALHO ANÔMICA

Até aqui estudamos a divisão do trabalho apenas co-


mo um fenômeno normal; mas, como todos os fatos so-
ciais e, mais geralmente, como todos os fatos biológicos,
ela apresenta formas patológicas que é necessário anali-
sar. Conquanto, normalmente, a divisão do trabalho pro-
duza a solidariedade social, algumas vezes, porém, ela
apresenta resultados totalmente diferentes, até mesmo
opostos. Ora, é importante pesquisar o que a faz desviar
assim da sua direção natural; porque, enquanto não esti-
ver estabelecido que esses casos são excepcionais, po-
der-se-ia suspeitar que a divisão do trabalho os implicas-
se logicamente. Por sinal, o estudo das formas desviadas
permitir-nos-á determinar melhor as condições de exis-
tência do estado normal. Quando conhecermos as cir-
cunstâncias em que a divisão do trabalho deixa de en-
gendrar a solidariedade, saberemos melhor o que é ne-
cessário para que ela produza todo o seu efeito. A pato-
logia, neste como em outros casos, é um precioso auxiliar
da fisiologia.
368 DA DIVISÃO DO TRABA/JIO SOCIAL AS FORMAS ANORMAIS 369

Poderíamos ser tentados a situar entre as formas irre- aumento da vida econômica, pois as empresas concentra-
gulares da divisão do trabalho a profissão do criminoso e ram-se muito mais do que se multiplicaram2.
as outras profissões nocivas. Elas são a negação mesma O antagonismo entre o trabalho e o capital é outro
da solidariedade e, no entanto, são verdadeiras atividades exemplo, mais contundente, do mesmo fenômeno. À me-
~speciais. Contudo, para sermos exatos, não se trata nes- dida que as funções industriais vão se especializando, a
se caso de divisão do trabalho, e sim de diferenciação luta se toma mais viva, em vez de a solidariedade au-
pura e simples, não se devendo confundir os dois ter- mentar. Na Idade Média, o operário vive em toda parte
mos. Assim, o câncer, os tubérculos, aumentam a diversi- ao lado do patrão, partilhando seus trabalhos "na mesma
dade dos tecidos orgânicos sem que seja possível ver nis- loja, na mesma bancada"3. Ambos faziam parte da mesma cor-
so uma nova especialização das funções biológicas 1 . Em poração e levavam a mesma existência. "Os dois eram
todos esses casos, não há partilha de uma função co- quase iguais. Qualquer um que tivesse feito seu aprendi-
mum, mas, no seio do organismo, tanto individual como zado podia, pelos menos em muitos oficios, estabelecer-
social, forma-se outro que procura viver à custa do pri- se por conta própria, se tivesse meios."4 Por isso, os con-
meiro. Não há nem mesmo função alguma, porque uma flitos eram absolutamente excepcionais. A partir do sécu-
maneira de agir só merece esse nome se concorrer com lo XV, as coisas começaram a mudar. "A corporação de
outras para a manutenção da vida geral. Portanto, esse ofício já não é um asilo comum; é de posse exclusiva dos
problema não entra no âmbito da nossa pesquisa. patrões, que decidem sozinhos todos os assuntos... Por
Reduziremos a três tipos as formas excepcionais do conseguinte, uma demarcação profunda se estabelece en-
fenômeno que estamos estudando. Isso não significa que tre os patrões e os operários. Estes formaram, por assim
não possa haver outras, mas aquelas de que falaremos dizer, uma ordem à parte; tiveram seus costumes, suas
são as mais gerais e as mais graves. regras, suas associaçõesindependentes."5 Urna vez efetua-
da essa separação, as querelas tomaram-se numerosas.
"Quando os operários acreditavam ter motivo de queixa,
punham-se em greve ou pronunciavam interdito contra
uma cidade ou um patrão, e todos eram obrigados a obe-
Um primeiro caso desse gênero nos é fornecido pe- decer à palavra de ordem... A força da associação dava
las crises industriais ou comerciais, pelas falências, que aos operários o meio de lutar com armas iguais contra
são verdadeiras rupturas parciais da solidariedade orgâni- seus patrões. "6 Mas as coisas estavam longe de ter chega-
ca; elas atestam, de fato, que, em certos pontos do orga- do, desde então, "ao ponto em que as vemos atualmente.
nismo, certas funções sociais não estão ajustadas umas às Os operários se rebelavam para obter um salário maior
outras. Ora, à medida que o trabalho se divide, esses fe- ou determinada mudança nas condições de trabalho, mas
nômenos parecem tomar-se mais freqüentes, pelo menos não consideravam o patrão um inimigo perpétuo a que
em certos casos. De 1845 a 1869, as falências aumenta- se obedece por coação. Queriam fazê-lo ceder num pon-
ram 70o/o. No entanto, não se poderia atribuir esse fato ao to e consagravam-se a isso com energia, mas a luta não
370 DA DIVISÃO DO TRABAlHO SOCIAL AS FORMAS ANORMAIS 371

era eterna; as oficinas não continham duas raças inimi- contram em estado agudo. Isso significa, pois, que de-
gas: nossas doutrinas socialistas eram desconhecidas"7. pendem em parte de outra causa.
Enfim, no século XVII começa a terceira f;J.se dessa his- Assinalou-se com freqüência na história das ciências
.tória das classes operárias: o advento da grande indús- outra ilustração do mesmo fenômeno. Até tempos bastan-
tria. O operário se separa mais completamente do pa- te recentes, a ciência, não estando muito dividida, podia
trão. "Ele é, de certa forma, arregimentado. Cada um ser cultivada quase toda por um só e mesmo espírito. Por
tem a sua função, e o sistema da divisão do trabalho faz isso, tinha-se um vivo sentimento de sua unidade. As ver-
alguns progressos. Na manufatura de Van-Robais, que dades particulares que a compunham não eram nem tão
ocupava 1 692 operários, havia oficinas particulares pa- numerosas, nem tão heterogêneas para que não se visse
ra a fabricação de carruagens, para a cutelaria, a lava- facilmente o vínculo que as unia num só e mesmo siste-
gem, o tingimento, a urdidura, e as oficinas de tecela- ma. Sendo os próprios métodos muito gerais, diferiam
gem compreendiam várias espécies de operários cujo pouco uns dos outros, e podia-se perceber o tronco co-
trabalho era inteiramente distinto. "B Ao mesmo tempo mum a partir do qual divergiam insensivelmente. No en-
que a especialização se torna maior, as revoltas se tor- tanto, à medida que a especialização se introduziu no
nam mais freqüentes. "A menor causa de descontenta- trabalho científico, cada cientista encerrou-se cada vez
mento bastava para pronunciar interdito contra uma ca- mais não apenas numa ciência particular, mas numa or-
sa, e ai do operário que não respeitasse a decisão da co- dem especial de problemas. A. Comte já se queixava de
munidade."9 É bem sabido que, desde então, a guerra que, no seu tempo, havia no mundo científico "muito
tornou-se mais violenta. poucas inteligências englobando em suas concepções o
Veremos, é verdade, no capítulo seguinte, que essa próprio conjunto de uma ciência única, que, por sua vez,
tensão das relações sociais deve-se em parte ao fato de nada mais é que uma parte de um grande todo. A maio-
que as classes operárias não querem na verdade a condi- ria", dizia ele, "já se limita inteiramente à consideração
ção que lhes é imposta, só a aceitando, com freqüência, isolada de uma seção mais ou menos extensa de uma
obrigadas e forçadas, por não terem meios de conseguir ciência determinada, sem se preocupar muito com a rela-
outra. No entanto, essa coerção não poderia, por si só, ção desses trabalhos particulares com o sistema geral dos
explicar o fenômeno. De fato, ela não pesa menos sobre conhecimentos positivos"ll. Mas, então, a ciência, frag-
todos os deserdados da fortuna, de maneira geral, e ape- mentada numa multidão de estudos de detalhe que não
sar disso esse estado de hostilidade permanente é total- se casam, não forma mais um todo solidário. O que tal-
mente particular ao mundo industrial. Depois, no interior vez melhor manifeste essa ausência de concerto e de uni-
desse mundo, ela é a mesma para todos os trabalhadores dade é a teoria, tão difundida, de que cada ciência parti-
indistintamente. Ora, a pequena indústria, em que o tra- cular tem um valor absoluto e de que o cientista deve se
balho é menos dividido, proporciona o espetáculo de consagrar a suas pesquisas especiais sem se preocupar
uma harmonia relativa entre o patrão e o operárioto; é em saber se servem a alguma coisa e tendem a algo. "Es-
somente na grande indústria que essas discórdias se en- sa divisão do trabalho intelectual", diz Schaeffle, "propor-
372 DA DIVISÃO DO TRABAlHO SOCIAL AS FORMAS ANORMAIS 373

ciona sérias razões de se temer que esse retorno de um seu interesse privado, de que só vagamente percebe a
novo alexandrinismo traga consigo, mais uma vez, a ruí- verdadeira relação com o interesse público ... Assim, o
na de toda a ciência."12 mesmo princípio que permitiu o desenvolvimento e a ex-
tensão da sociedade geral ameaça, sob um outro aspecto,
decompô-la numa multidão de corporações incoerentes
11 que quase parece não pertencerem à mesma espécie."13
Espinas exprime-se quase nos mesmos termos: "Divisão é
O que faz a gravidade desses fatos é que viu-se ne- dispersão", diz14.
les, algumas vezes, um efeito necessário da divisão do A divisão do trabalho exerceria, pois, em virtude da
trabalho, assim que ela superou certo grau de desenvol- sua própria natureza, urna influência dissolvente que se-
vimento. Nesse caso, diz-se, o indivíduo, debruçado em ria sensível, sobretudo, onde as funções são muito espe-
sua tarefa, isola-se em sua atividade especial; ele já não cializadas. No entanto, Comte não conclui de seu princí-
sente os colaboradores que trabalham a seu lado na mes- pio que seja necessário reduzir as sociedades ao que ele
ma obra, já não tem sequer a noção dessa obra comum. mesmo chama de idade da generalidade, isto é, a esse
A divisão do trabalho não poderia, pois, ser levada estado de indistinção e de homogeneidade que foi seu
demasiado longe sem se tornar uma fonte de desintegra- ponto de partida. A diversidade das funções é útil e ne-
ção. "Como qualquer decomposição deve necessariamen- cessária; mas, como a unidade, que não é menos indis-
te tender a determinar uma dispersão correspondente," pensável, não resulta espontaneamente dela, o cuidado
diz Augusto Comte, "a repartição fundamental dos traba- com realizá-la e mantê-la deverá constituir, no organismo
lhos humanos não poderia evitar de suscitar, num grau social, uma função especial, representada por um órgão
proporcional, as divergências individuais, ao mesmo tem- independente. Esse órgão é o Estado, ou o governo. "A
po intelectuais e morais, cuja influência combinada deve destinação social do governo", diz Comte, "parece-me so-
exigir, na mesma medida, uma disciplina permanente, bretudo consistir em conter suficientemente e em preve-
própria para prevenir ou conter sem cessar seu desenvol- nir na medida do possível essa fatal disposição à disper-
vimento discordante. Se, de fato, por um lado, a separa- são fundamental das idéias, dos sentimentos e dos inte-
ção das funções sociais possibilita ao espírito de detalhe resses, resultado inevitável do próprio princípio do de-
um feliz desenvolvimento, impossível de qualquer outra senvolvimento humano, e, se ela pudesse prosseguir sem
maneira, ela tende espontaneamente, por outro lado, a obstáculos seu curso natural, acabaria inevitavelmente
sufocar o espírito de conjunto ou, pelo menos, a entravá- por deter a progressão social sob todos os aspectos im-
lo profundamente. Do mesmo modo, do ponto de vista portantes. Essa concepção constitui, a meu ver, a primei-
moral, ao mesmo tempo que é assim posto sob urna es- ra base positiva e racional da teoria elementar e abstrata
treita dependência da massa, cada um é naturalmente do governo propriamente dito, encarado em sua mais
desviado dela pelo próprio desenvolvimento de sua ativi- nobre e inteira extensão científica, isto é, como que ca-
dade especial, que o chama constantemente de volta a racterizado em geral pela reação necesssária universal, a
374 DA DIVISÃO DO TRABAIRO SOCIAL AS FORMAS ANORMAIS 375

princípio espontânea, depois regularizada, do conjunto as funções são muito partilhadas, o que afeta a um atinge
sobre as partes. É claro, com efeito, que o único meio outros, e os acontecimentos sociais assumem mais facil-
real de impedir tal dispersão consiste em erigir essa in- mente um interesse geral. Ao mesmo tempo, em conse-
dispensável reação numa nova função especial, capaz de qüência do desaparecimento do tipo segmentário, eles se
·intervir de maneira conveniente na consumação habitual difundem com maior facilidade em toda a extensão de
de todas as diversas funções da economia social, a fim um mesmo tecido ou de um mesmo aparelho. Por essas
de fazer voltar-se incessantemente para esta o pensamen- duas séries de razões, há mais acontecimentos que ecoam
to do conjunto e o sentimento da solidariedade co- no órgão dirigente, cuja atividade funcional, exercida com
mum."15 maior freqüência, cresce, assim como seu volume. Sua es-
O que o governo é para a sociedade em sua totali- fera de ação, no entanto, não se estende mais longe.
dade, a filosofia deve sê-lo para as ciências. Já que a di- Ora, sob essa vida geral e superficial, há uma vida
versidade das ciências tende a romper a unidade da ciên- intestina, um mundo de órgãos que, sem serem totalmen-
cia, é preciso encarregar uma nova ciência de reconstituí- te independentes do primeiro, funcionam, porém, sem
la. Já que os estudos de detalhe nos fazem perder de vis- que este intervenha, sem que ele tenha sequer consciên-
ta o conjunto dos conhecimentos humanos, é necessário cia disso, pelo menos em seu estado normal. São subtraí-
· instituir um sistema particular de pesquisas para reencon- dos à sua ação porque esse órgão dirigente se encontra
trá-lo e pô-lo em relevo. Em outras palavras, "é necessá- longe demais deles. Não é o governo que pode, a cada
rio fazer do estudo das generalidades científicas uma instante, regular as condições dos diferentes mercados
grande especialidade a mais. Que uma nova classe de econômicos, fixar os preços das coisas e dos serviços,
cientistas, preparados por uma educação conveniente, adequar a produção às necessidades do consumo, etc.
sem se entregar à cultura especial de nenhum ramo parti- Todos esses problemas práticos levantam multidões de
cular da filosofia natural, trate unicamente, considerando detalhes, prendem-se a milhares de circunstâncias parti-
as diversas ciências positivas em seu estado atual, de de- culares, que só os que estão bem próximos conhecem.
terminar de modo exato o espírito de cada uma delas, de Com maior razão, ele não poderá ajustar essas funções
descobrir suas relações e seu encadeamento, de resumir, umas às outras e fazê-las concorrer harmoniosamente, se
se possível, todos os seus princípios próprios num menor não concordarem por si mesmas. Portanto, se a divisão
número de princípios comuns ... e a divisão do trabalho do trabalho tem os efeitos dispersivos que lhe são atribuí-
nas ciências será levada, sem nenhum perigo, o mais lon- dos, estes devem se desenvolver sem resistência nessa
. ge que o desenvolvimento das diversas ordens de conhe- região da sociedade, pois nada há nela que possa contê-
cimentos exigir"16. los. No entanto, o que constitui a unidade das sociedades
Sem dúvida, nós mesmos mostramos17 que o órgão organizadas, como de todo organismo, é o consenso es-
governamental se desenvolve com a divisão do trabalho, pontâneo das partes, é essa solidariedade interna que
não para contrabalançá-la, mas por uma necessidade me- não só é tão indispensável quanto a ação reguladora dos
cânica. Como os órgãos são intimamente solidários onde centros superiores, mas que é até sua condição necessá-
376 DA DIVISÃO DO TRABAlHO SOCIAL AS FORMAS ANORMAIS 377

ria, pois nada mais fazem que traduzi-la em outra lingua- Mas, então, a especialização não mais teria as conse-
gem e, por assim dizer, consagrá-la. Assim, o cérebro não qüências que é acusada de produzir. Ou, então, porven-
cria a unidade do organismo, mas a exprime e a coroa. tura, a ação governamental terá por objeto manter entre
. Fala-se da necessidade de uma reação do conjunto sobre as profissões uma certa uniformidade moral, impedir que
as partes, mas é preciso que esse conjunto exista- isto é, "as afeições sociais, gradualmente concentradas entre os
as partes já devem ser solidárias umas das outras para indivíduos de mesma profissão, se tornem cada vez mais
que o todo tome consciência de si e reaja como tal. Por- estranhas às outras classes, na ausência de uma análise
tanto, à medida que o trabalho se divide, dever-se-ia ver suficiente de modos e de pensamento"IB? Mas essa uni-
uma espécie de decomposição progressiva produzir-se formidade não pode ser mantida à força e a despeito da
não sobre este ou aquele ponto, mas em toda a extensão natureza das coisas. A diversidade funcional acarreta urna
da sociedade, em vez da concentração cada vez maior diversidade moral que nada seria capaz de prevenir, sen-
que, na realidade, aí se observa. do inevitável que uma cresça ao mesmo tempo que a ou-
Mas, dizem, não é necessário entrar nesses detalhes. tra. Sabemos, aliás, por que motivos esses dois fenôme-
Basta lembrar, onde quer que seja necessário, "o espírito nos se desenvolvem paralelamente. Os sentimentos cole-
de conjunto e o sentimento da solidariedade comum", e tivos se tornam, portanto, cada vez mais impotentes para
tal ação, só o governo está qualificado para exercer. É conter as tendências centrífugas que a divisão do traba-
verdade, mas ela é demasiado geral para assegurar o lho deve supostamente engendrar; porque, de um lado,
concurso das funções sociais, se este não se realizar por essas tendências aumentam à medida que o trabalho se
si mesmo. Na verdade, de que se trata? De fazer cada in- divide e, ao mesmo tempo, os próprios sentimentos cole-
divíduo sentir que não é auto-suficiente, mas faz parte de tivos enfraquecem.
um todo de que depende? No entanto, tal representação, Pela mesma razão, a filosofia se torna cada vez mais
abstrata, vaga e, aliás, intermitente como todas as repre- incapaz de assegurar a unidade da ciência. Enquanto um
sentações complexas, nada pode contra as impressões vi- mesmo espírito podia cultivar ao mesmo tempo as dife-
vas, concretas, que a atividade profissional desperta a ca- rentes ciências, era possível adquirir a competência ne-
da instante em cada um de nós. Portanto, se esta tem os cessária para reconstituir sua unidade. Porém, à medida
efeitos que lhe atribuímos, se as ocupações que preen- que se especializam, essas grandes sínteses já não podem
chem nossa vida cotidiana tendem a nos separar do gru- ser outra coisa que generalizações prematuras, pois se
po social a que pertencemos, essa concepção, que só torna cada vez mais impossível para urna inteligência hu-
desperta de vez em quando e nunca ocupa mais que mana ter um conhecimento suficientemente exato dessa
uma pequena parte do campo da consciência, não pode- inumerável multidão de fenômenos, leis, hipóteses que
rá bastar para nos reter. Para que a sensação do estado devem resumir. "Seria interessante indagar-se", diz com
de dependência em que estamos fosse eficaz, seria ne- razão Ribot, "o que a filosofia, como concepção geral do
cessário que também fosse contínua, e só pode sê-lo se mundo, poderá ser um dia, quando as ciências particula-
estiver ligada ao jogo mesmo de cada função especial. res, em conseqüência de sua crescente complexidade, se
378 DA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL AS FORMAS ANORMAIS 379

tornarem inabordáveis no detalhe e os filósofos forem re- fatos. Segundo Comte, para que a unidade da ciência fos-
duzidos ao conhecimento dos resultados mais gerais, ne- se assegurada, bastaria que os métodos fossem reduzidos
cessariamente superficial."19 à unidade20; porém, o mais dificíl de se unificar são justa-
Sem dúvida, temos algumas razões para julgar exces- mente os métodos. Porque, como eles são imanentes às
sivo esse orgulho do cientista, que, encerrado em suas próprias ciências, como é impossível separá-los comple-
pesquisas especiais, recusa-se a reconhecer qualquer tamente do corpo das verdades estabelecidas para codifi-
controle estranho. No entanto, é certo que, para ter de cá-los à parte, só os pode conhecer quem os praticou.
uma ciência uma idéia um tanto exata, é necessário tê-la Ora, atualmente é impossível que um mesmo homem
praticado e, por assim dizer, tê-la vivido. Isso porque, de pratique um grande número de ciências. Portanto, essas
fato, ela não cabe por inteiro nas poucas proposições grandes generalizações só podem repousar numa visão
que demonstrou definitivamente. Ao lado dessa ciência bastante sumária das coisas. Se, além do mais, pensarmos
atual e realizada, há outra, concreta e viva, que em parte com que lentidão e com que pacientes precauções os
se ignora e ainda se busca: ao lado dos resultados adqui- cientistas procedem de ordinário na descoberta de suas
ridos, há as esperanças, os hábitos, os instintos, as neces- verdades, inclusive as mais particulares, poderemos en-
sidades, os pressentimentos, tão obscuros que não pode- tender que essas disciplinas improvisadas só exerçam so-
mos exprimi-los com palavras, mas tão poderosos que, bre eles uma autoridade bem pequena.
por vezes, dominam toda a vida do cientista. Tudo isso Todavia, qualquer que seja o valor dessas generali-
ainda é ciência. É até mesmo sua melhor e maior parte, dades filosóficas, a ciência não seria capaz de encontrar a
porque as verdades descobertas são em número bastante unidade de que necessita. Elas exprimem muito bem o
pequeno, se comparadas com as que falta descobrir; e, que há de comum entre as ciências, as leis e os métodos
por outro lado, para possuir todo o sentido das primeiras particulares, mas, ao lado dessas semelhanças, há as dife-
e compreender tudo o que nelas está condensado, é ne- renças que precisam ser integradas. Diz-se com freqüên-
cessário ter visto de perto a vida científica enquanto ela cia que o geral contém em potencial os fatos particulares
ainda se encontra em estado livre, isto é, antes que se te- que resume; mas a expressão é inexata. Ele contém ape-
nha fixado sob a forma de proposições definidas. Senão nas o que esses fatos possuem em comum. Ora, não há
ter-se-á a letra, não o espírito. Cada ciência possui, por no mundo dois fenômenos que se assemelhem, por mais
assim dizer, uma alma que vive na consciência dos cien- simples que sejam. É por isso que toda proposição geral
tistas. Apenas uma parte dessa alma toma um corpo e deixa escapar uma parte da matéria que tenta dominar. É
formas sensíveis. As fórmulas que a exprimem, por serem impossível fundir as características concretas e as proprie-
gerais, são facilmente transmissíveis. Mas o mesmo não dades distintivas das coisas no seio de uma mesma fór-
se dá nesta outra parte da ciência, que nenhum símbolo mula impessoal e homogênea. No entanto, enquanto su-
traduz externamente. Aqui, tudo é pessoal e deve ser ad- peram as diferenças, as semelhanças bastam para integrar
quirido por uma experiência pessoal. Para dela partici- as representações assim aproximadas; as dissonâncias de
par, é necessário pôr mãos à obra e colocar-se diante dos detalhe desaparecem no seio da harmonia total. Ao con-
380 DA DIVISÃO DO TRABAlHO SOCIAL AS FORMAS ANORMAIS 381

trário, à medida que as diferenças se tomam mais nume- das, ele viu nesse esmaecimento um fenômeno mórbido,
rosas, a coesão se toma mais instável e precisa ser conso- uma ameaça para a coesão social, devida ao excesso da
lidada por outros meios. Imaginem a multiplicidade cres- especialização, e explicou com isso os fatos de incoorde-
cente das ciências especiais, com seus teoremas suas nação que por vezes acompanham o desenvolvimento da
· leis, seus axiomas, suas conjeturas, seus procedime~tos e divisão do trabalho. No entanto, já que estabelecemos
seus métodos, e compreenderão que uma fórmula curta que o enfraquecimento da consciência coletiva é um fe-
e simples, como a lei da evolução, por exemplo, não po- nômeno normal, não poderíamos transformá-lo em causa
de· bastar para integrar uma complexidade tão prodigiosa dos fenômenos anormais que estamos estudando. Se, em
de fenômenos. Mesmo se essas visões de conjunto se certos casos, a solidariedade orgânica não é tudo o que
aplicassem exatamente à realidade, a parte que elas ex- deve ser, certamente não é porque a solidariedade mecâ-
plicam é muito pouca coisa em comparação com o que nica perdeu terreno, mas porque todas as condições de
deixam inexplicado. Portanto, não é por esse meio que existência da primeira não estão realizadas.
se poderá arrancar as ciências positivas de seu isolamen- De fato, sabemos que, onde quer que observemos,
to. Há uma distância grande demais entre as pesquisas encontramos ao mesmo tempo uma regulamentação sufi-
de detalhe que as alimentam e tais sínteses. O vínculo cientemente desenvolvida que determina as relações mú-
que liga uma à outra essas duas ordens de conhecimen- tuas das funçôes21. Para que a solidariedade orgânica
tos é demasiado tênue e frouxo, e, por conseguinte, se as exista, não basta haver um sistema de órgãos necessários
ciências particulares só podem tomar consciência de sua uns aos outros e que sintam, de um modo geral, sua soli-
dependência mútua no seio de uma filosofia que as en- dariedade, mas é necessário, além disso, que a maneira
globe, o sentimento que dela terão sempre será demasia- como devem concorrer, se não em toda espécie de en-
do vago para ser eficaz. contros, pelo menos nas circunstâncias mais freqüentes,
A filosofia existe como a ciência coletiva da ciência seja predeterminada. De outra forma, seriam necessárias
e, neste caso como nos demais, o papel da consciên- a cada instante novas lutas para que possam equilibrar-
cia coletiva diminui à medida que o trabalho se divide. se, porque as condiçôes desse equilíbrio só podem ser
encontradas mediante tentativas no decorrer das quais
cada parte trata a outra pelo menos tanto como adversá-
III ria quanto como auxiliar. Esses conflitos se renovariam,
pois, sem cessar e, por conseguinte, a solidariedade não
Muito embora tenha reconhecido que a divisão do seria mais que virtual, devendo as obrigaçôes mútuas ser
trabalho é uma fonte de solidariedade, A. Comte não pa- debatidas de novo em cada caso particular. Dir-se-á que
rece ter percebido que essa solidariedade é sui generis e há contratos. Mas, antes de mais nada, nem todas as rela-
substitui pouco a pouco a que as similitudes sociais en- ções sociais são suscetíveis de assumir essa forma jurídi-
gendram. É por isso que, notando que essas são muito ca. Sabemos, aliás, que o contrato não basta por si só,
esmaecidas onde as funçôes são por demais especializa- mas supõe uma regulamentação que se estende e se
382 DA DIVISÃO DO TRABAlHO SOCIAL AS FORMAS ANORMAIS 383

complica como a própria vida contratual. Ademais, os resulta22. As redes nervosas, verossimilmente, não são
vínculos que têm essa origem são sempre de curta dura- mais que as linhas de passagem seguidas pelas ondas de
ção. O contrato nada mais é que uma trégua, e bastante movimentos e de excitações trocadas entre os diversos
precária; ele apenas suspende por algum tempo as hosti- órgãos; são canais que a vida abriu para si mesma cor-
lidades. Sem dúvida, por mais precisa que uma regula- rendo sempre no mesmo sentido, e os gânglios seriam
mentação seja, sempre deixará um espaço livre para mui- apenas o lugar de interseção de várias dessas linhas23. Foi
tos atritos. Mas não é necessário, nem mesmo possível, por terem desconhecido esse aspecto do fenômeno que
que a vida social seja sem lutas. O papel da solidariedade certos moralistas acusaram a divisão do trabalho de não
não é suprimir a concorrência, mas sim moderá-la. produzir uma verdadeira solidariedade. Viram nela ape-
Por sinal, no estado normal, essas regras se desta- nas trocas particulares, combinações efêmeras, sem pas-
cam por si mesmas da divisão do trabalho; são como que sado nem futuro, em que o indivíduo é entregue a si
o prolongamento desta. Por certo, se a divisão do traba- mesmo; não perceberam esse lento trabalho de consoli-
lho aproximasse apenas indivíduos que se unem por al- dação, essa rede de vínculos que pouco a pouco se tece
guns instantes com vistas a intercambiar serviços pes- por si mesma e faz da solidariedade orgânica algo per-
soais, não poderia dar origem a nenhuma ação regulado- manente.
ra. Mas o que ela põe em presença são funções, isto é, Ora, em todos os casos que descrevemos acima, es-
maneiras de agir definidas, que se repetem, idênticas a si sa regulamentação ou não existe, ou não tem relação
mesmas, em circunstâncias dadas, pois decorrem das com o grau de desenvolvimento da divisão do trabalho.
condições gerais e constantes da vida social. As relações Hoje, já não há regras que estabeleçam o número das
que se estabelecem entre essas funções não podem, pois, empresas econômicas e, em cada ramo da indústria, a
deixar de alcançar o mesmo grau de fixidez e de regula- produção não é regulamentada de maneira a permanecer
ridade. Há certas maneiras de reagir umas sobre as outras exatamente no nível do consumo. Não queremos, de res-
que, achando-se mais conformes à natureza das coisas, to, tirar desse fato nenhuma conclusão prática; não sus-
se repetem com maior freqüência e tornam-se hábitos; tentamos que seja necessária uma legislação restritiva;
depois, os hábitos, à medida que adquirem força, se não precisamos, aqui, pesar suas vantagens e inconvenien-
transformam em regras de conduta. O passado predeter- tes. O que é certo é que essa falta de regulamentação
mina o futuro. Em outras palavras, há uma certa distinção não permite a harmonia regular das funções. Os econo-
entre os direitos e deveres que o uso estabelece e que mistas demonstram, é verdade, que essa harmonia se res-
acaba por se tornar obrigatória. A regra não cria, pois, o tabelece por si mesma, quando necessário, graças à ele-
estado de dependência mútua em que se acham os ór- vação ou ao aviltamento dos preços, que, conforme as
gãos solidários, mas apenas o exprime de uma maneira necessidades, estimula ou retarda a produção. Mas em
sensível e definida, em função de uma situação dada. Do todo caso, ela só se restabelece assim depois das ruptu-
mesmo modo, o sistema nervoso, longe de dominar a ras de equilíbrio e de perturbações mais ou menos pro-
evolução do organismo, como se acreditou outrora, dela longadas. Por outro lado, essas perturbações são, natural-
384 DA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL AS FORMAS ANORMAIS 385

mente, tanto mais freqüentes quanto mais especializadas espetáculo de um agregado de partes disjuntas que não
são as funções; porque, quanto mais uma organização é concorrem entre si. Portanto, se elas formam um conjun-
complexa, mais a necessidade de uma regulamentação to sem unidade, não é porque não possuem um senti-
extensa se faz sentir. mento suficiente de suas semelhanças; é porque não são
As relações entre o capital e o trabalho permanece- organizadas.
ram, até hoje, no mesmo estado de indeterminação jurídi- Esses diversos exemplos são, pois, variedades de
ca. O contrato de locação de serviços ocupa, em nossos uma mesma espécie; em todos os casos, se a divisão do
Códigos, um espaço bem pequeno, sobretudo quando se trabalho não produz a solidariedade, é porque as relações
pensa na diversidade e na complexidade das relações entre os órgãos não são regulamentadas, é porque elas
que é chamado a regular. De resto, não é necessário in- estão num estado de anomia.
sistir sobre uma lacuna que todos os povos sentem atual-
mente e se esforçam por preencher24. Mas de onde vem esse estado?
As regras do método estão para a ciência assim co- Já que um corpo de regras é a forma definida que,
mo as regras do direito e dos costumes estão para a con- com o tempo, adquirem as relações que se estabelecem
duta; elas dirigem o pensamento do cientista, assim como espontaneamente entre as funções sociais, podemos di-
as segundas governam as ações dos homens. Ora, se ca- zer a priori que o estado de anomia é impossível onde
da ciência tem seu método, a ordem que ela realiza é to- quer que os órgãos solidários se encontrem em contato
talmente interna. Ela coordena os procedimentos dos suficiente e suficientemente prolongado. De fato, sendo
cientistas que cultivam uma mesma ciência, não suas re- contíguos, eles são facilmente advertidos, em cada cir-
lações com o exterior. Não há disciplinas que concertem cunstância, da necessidade que têm uns dos outros e,
os esforços de ciências diferentes com vistas a um fim por conseguinte, possuem um sentimento vivíssimo e
comum. Isso é verdade, sobretudo, para as ciências mo- contínuo de sua dependência mútua. Pela mesma razão,
rais e sociais, porque as ciências matemáticas, físico-quí- as trocas entre eles se produzem facilmente; elas se fa-
micas e até biológicas não parecem ser tão estranhas as- zem também freqüentemente, sendo regulares; regulari-
sim umas às outras. Mas o jurista, o psicólogo, o antropó- zam-se por si mesmas, e o tempo completa pouco a pou-
logo, o economista, o estatístico, o lingüista, o historiador co a obra de consolidação. Enfim, já que as menores rea-
realizam suas investigações como se as diversas ordens ções podem ser sentidas por ambas as partes, as regras
de fatos que estudam fossem mundos independentes. que se formam assim trazem sua marca, isto é, prevêem
Contudo, na realidade, esses mundos se interpenetram e fixam em detalhe as condições de equilíbrio. Mas se,
em todas as partes; o mesmo deveria acontecer, por con- ao contrário, algum meio opaco for interposto, somente
seguinte, com as ciências correspondentes. Eis de onde as excitações de certa intensidade podem se comunicar
vem a anarquia que foi assinalada, não sem exagero, de de um órgão a outro. As relações, sendo raras, não se re-
resto, na ciência em geral, mas que é verdadeira sobretu- petem o suficiente para se determinar; a cada nova vez,
do no caso dessas ciências. De fato, elas proporcionam o são novas tentativas. As linhas de passagem seguidas pe-
386 DA DIVISÃO DO TRABAlHO SOCIAL AS FORMAS ANORMAIS 387

las ondas de movimento não se podem abrir, porque es- les. Daí resulta que cada indústria produz para consumi-
sas ondas são demasiado intermitentes. Pelo menos, se dores que se encontram dispersos por toda a superfície
algumas regras conseguem entretanto constituir-se, elas do país, ou até do mundo inteiro. Portanto, o contato já
. são gerais e vagas, pois, nessas condições, apenas os não basta. O produtor já não pode abarcar o mercado
contornos mais gerais dos fenômenos podem estabele- com seu olhar, nem mesmo com o pensamento; ele já
cer-se. O mesmo acontecerá se a contigüidade, embora não pode representar seus limites, pois, por assim dizer,
sendo suficiente, for demasiado recente ou tiver durado o mercado é ilimitado. Em conseqüência, falta à produ-
muito pouco25. ção freio e regra; ela não pode deixar de tatear ao acaso
Em geral, essa condição se acha realizada pela força e, no decorrer dessas tentativas, é inevitável que a medi-
das coisas. Porque uma função só se pode dividir entre da seja superada, ora num sentido, ora no outro. Daí es-
duas ou várias partes de um organismo se estas forem sas crises que perturbam periodicamente as funções eco-
mais ou menos contíguas. Ademais, uma vez que o traba- nômicas. O aumento dessas crises locais e restritas, que
lho é dividido, como necessitam umas das outras, elas são as falências, é, verossimilmente, um efeito dessa mes-
tendem naturalmente a diminuir a distância que as sepa- ma causa.
ra. É por isso que, à medida que nos elevamos na escala À medida que o mercado se amplia, a grande indús-
animal, vemos os órgãos se aproximarem e, como diz tria aparece. Ora, ela tem como efeito transformar as rela-
Spencer, introduzirem-se nos interstícios uns dos outros. ções entre patrões e operários. Uma maior fadiga do siste-
Mas um concurso de circunstâncias excepcionais pode ma nervoso somada à influência contagiosa das grandes
fazer que não seja assim. aglomerações aumenta as necessidades destes últimos. O
É o que se produz nos casos de que estamos tratan- trabalho à máquina substitui o do homem; o trabalho na
do. Enquanto o tipo segmentário é bastante acentuado, manufatura, o da pequena oficina. O operário é arregi-
há mais ou menos tantos mercados econômicos quantos mentado, tirado da sua família o dia inteiro, vive cada vez
segmentos diferentes; por conseguinte, cada um deles é mais separado daquele que o emprega, etc. Essa novas
muito limitado. Os produtores, estando bem próximos condições da vida industrial requerem, naturalmente, uma
dos consumidores, podem perceber facilmente a exten- nova organização; mas como essas transformações se
são das necessidades a satisfazer. Portanto, o equilíbrio consumaram com uma extrema rapidez, os interesses em
se estabelece sem dificuldade e a produção se ajusta por conflito ainda não tiveram tempo de se equilibrar26.
si mesma. Ao contrário, à medida que o tipo organizado Enfim, o que explica que as ciências morais e sociais
se desenvolve, a fusão dos diversos segmentos uns nos se encontrem no estado que dissemos é que foram as úl-
outros acarreta a dos mercados num mercado único, que timas a entrar no círculo das ciências positivas. De fato,
engloba mais ou menos toda a sociedade. Ele se estende foi só de um século para cá que esse novo campo de fe-
inclusive além dela e tende a se tomar universal, porque nômenos abriu-se à investigação científica. Os cientistas
as fronteiras que separam os povos caem ao mesmo tem- nele se instalaram, uns aqui, outros ali, conforme seus
po que as que separavam os segmentos de cada um de- gostos naturais. Dispersos nessa vasta superfície, perma-
388 DA DIVISÃO DO TRABAlHO SOCIAL AS FORMAS ANORMAIS 389

neceram até aqui demasiado distantes uns dos outros pa- tureza humana. Se a moral tem por objetivo o aperfeiçoa-
ra sentirem todos os vínculos que os unem. Mas, pelo mento individual, ela não pode permitir que se arruíne a
simples fato de que levarão suas pesquisas cada vez mais esse ponto o indivíduo e, se tem por fim a sociedade,
. longe de seus pontos de partida, acabarão necessaria- não pode deixar secar a própria fonte da vida social; por-
mente por se encontrar e, por conseguinte, por tomar que o mal não ameaça apenas as funções econômicas,
consciência de sua solidariedade. A unidade da ciência mas todas as funções sociais, por mais elevadas .que se-
se formará, assim, por si mesma; não a unidade abstrata jam. "Se se deplorou com freqüência, na ordem material,
de uma fórmula, de resto demasiado exígua para a multi- o operário exclusivamente ocupado, durante a vida intei-
dão das coisas que deveria abarcar, mas a unidade viva ra, na fabricação de cabos de faca ou cabeças de alfine-
de um todo orgânico. Para que a ciência seja una, não é tes", diz A. Comte, "a filosofia sadia não deve, no fundo,
necessário que caiba inteira no campo de visão de uma lamentar menos, na ordem intelectual, o emprego exclu-
só e mesma consciência - o que, por sinal, é impossível -, sivo e contínuo do cérebro humano na solução de algu-
mas basta que todos os que a cultivam sintam que cola- mas equações ou na classificação de alguns insetos: o
boram para uma mesma obra. efeito moral, em ambos os casos, é, infelizmente, sobre-
maneira análogo."27
O que precede priva de todo e qualquer fundamen- Foi, por vezes, proposto como remédio dar aos tra-
to uma das mais graves criticas que se fez à divisão do balhadores, junto com seus conhecimentos técnicos e es-
trabalho. peciais, uma instrução geral. Mas, supondo-se que seja
Ela foi acusada, com freqüência, de diminuir o indi- possível redimir assim alguns dos efeitos nefastos atribuí-
víduo, reduzindo-o ao papel de máquina. E, de fato, se dos à divisão do trabalho, não é este um meio de preve-
não sabe a que tendem essas operações que reclamam ni-los. A divisão do trabalho não muda de natureza se a
dele, se não as vincula a nenhum objetivo, só pqde reali- fazemos ser precedida por uma cultura geral. Sem dúvi-
zá-las por rotina. Todos os dias, ele repete os mesmos da, é bom que o trabalhador esteja em condições de se
movimentos com uma regularidade monótona, mas sem interessar pelas coisas da arte, da literatura, etc.; mas
se interessar por eles, nem compreendê-los. Não é mais a nem por isso deixa de ser ruim ele ser tratado todo dia
célula viva de um organismo vivo, que vibra sem cessar como uma máquina. Aliás, quem não vê que essas duas
em contato com as células próximas, que age sobre elas existências são demasiado opostas para serem conciliá-
e responde, por sua vez, à sua ação, se dilata, se contrai, veis e poderem ser vividas pelo mesmo homem? Se nos
se dobra e se transforma segundo as necessidades e as acostumamos com vastos horizontes, vastas vistas de
circunstâncias; não é mais que uma engrenagem inerte, conjunto, belas generalidades, não nos deixamos mais
que uma força externa aciona e que sempre se move no confinar, sem impaciência, nos limites estreitos de uma
mesmo sentido e da mesma maneira. Evidentemente, co- tarefa especial. Portanto, tal remédio só tornaria a especia-
mo quer que se represente o ideal moral, não é possível lização inofensiva, tornando-a intolerável e, por conse-
permanecer indiferente a semelhante aviltamento da na- guinte, mais ou menos impossível.
390 DA DIVISÃO DO TRABAlHO SOCIAL

O que resolve a contradição é que, ao contrário do CAPÍTULO 11


que se disse, a divisão do trabalho não produz essas con-
seqüências em virtude de uma necessidade da sua natu- A DMSÃO DO TRABALHO FORÇADA
. reza, mas apenas em circunstâncias excepcionais e anor-
mais. Para que ela possa desenvolver-se sem ter sobre a
consciência humana uma influência tão desastrosa, não é
necessário temperá-la com seu contrário; é necessário e
bastante que ela seja ela mesma, que nada venha do ex-
terior desnaturá-la. Porque, normalmente, o jogo de cada
função especial exige que o indivíduo não se encerre es-
treitamente nela, mas mantenha-se em relação constante
com as funções vizinhas, tome consciência de suas ne-
cessidades, das mudanças que nelas sobrevêm, etc. A di-
visão do trabalho supõe que o trabalhador, longe de per-
manecer debruçado sobre sua tarefa, não perca de vista
seus colaboradores, aja sobre eles e sofra sua ação. Ele
não é, pois, uma máquina que repete movimentos cuja No entanto, não basta haver regras, pois, algumas
direção não percebe, mas sabe que tendem a algum lu- vezes, essas próprias regras são a causa do mal. É o que
gar, a uma finalidade que ele concebe mais ou menos acontece nas guerras de classes. A instituição das classes
distintamente. Ele sente servir a algo. Para tanto, não é ou das castas constitui uma organização da divisão do
necessário que abarque vastas proporções do horizonte trabalho, e uma organização estritamente regulamentada;
social, mas basta que perceba o suficiente dele para com- no entanto, ela é, com freqüência, uma fonte de dissen-
preender que suas ações têm uma finalidade fora de si sões. Não estando satisfeitas, ou não mais o estando,
mesmas. Assim, por mais especial, por mais uniforme que com o papel que o costume ou a lei lhes atribui, as clas-
possa ser sua atividade, ela será a atividade de um ser in-
ses inferiores aspiram às funções que lhes são vedadas e
teligente, pois terá um sentido, e ele o sabe. Os econo-
delas procuram despojar os que as exercem. Daí as guer-
mistas não teriam deixado na sombra essa característica
ras intestinas que se devem à maneira como o trabalho é
essencial da divisão do trabalho e, em conseqüência, não
a teriam exposto a essa crítica desmerecida, se não a ti- distribuído.
vessem reduzido a não ser mais que um meio de aumen- Não se observa nada semelhante no organismo. Sem
tar o rendimento das forças sociais, se tivessem visto que dúvida, nos momentos de crise, os diferentes tecidos
ela é, antes de mais nada, uma fonte de solidariedade. guerreiam-se e alimentam-se uns à custa dos outros. Mas
nunca uma célula ou um órgão procura usurpar um ou-
tro papel que não aquele que lhe cabe. O motivo disso é

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