Você está na página 1de 8

Gregorio F.

Baremblitt
1
!
1

COMPÊNDIO DE
ANÁLISE INSTITUCIONAL
E OUTRAS CORRENTES:
TEORIA E PRÁTICA
1
1
j_

,,

i' .

i,

4ª EDIÇÃO

•1
RoSADOS
TEMPOS
Mais informativo do que formativo, foi inspirado pe-
lo desejo de estender e facilitar um saber e um afazer com-
plexo e arriscado, mas, no meu entender, importantíssimo
para o povo brasileiro.
Apesar da superficialidade e rapidez com que os den-
sos temas são apresentados, acredito que este livro seja es-
timulante, discretamente esclarecedor e ainda minimamente
instrumental para os futuros institucionalistas. Capítulo I
Quem decidir continuar, ou, sejamos realistas, come-
çar verdadeiramente sua formação nesta fascin_imte pr9pos-
ta, a bibliografia final, integrada predominantéméiite por O MOVIMENTO INSTITUCIONALISTA,
textos em português e castelhano encontráveis no Brasil, pro-
verá boa parte da diretriz indispensável para tal fim. A AUTO-ANÁLISE E A AUTOGESTÃO
Entre as escolas que foi impossível incluir nesta intro-
dução devo destacar as correntes latino-americanas de
Pichón-Riéver, Bleger, Ulloa, Malfe, Bauleo, Kaminsky, Pa-
vlovsky, De Brasi, Matrajt, Scherzer e tantos outros, aos
quais me proponho a destinar um livro especial.
No início devemos esclarecer que esse livro não terá o
nível que alguns esperariam, pois se procura apresentar uma
exposição de nível médio, para ser entendida pelo maior nú-
mero possível de pessoas.
Vamos tratar do chamado Movimento Institucionalis-
ta ou Instituente que, como o nome aproximativamente in-
dica, é um conjunto de escolas, um leque de tendências. Não
existe nenhuma escola ou tendência que possa dizer que en-
carna plenamente o ideário do movimento institucionalis-
ta. Contudo, pode encontrar-se em diversas dessas escolas
algumas características em comum. E é a essas característi-
cas em comum que eu gostaria de referir-me agora, da ma-
neira mais simples, mais didática possível. Em capítulos
sucessivos, teremos ocasião de complicar as coisas, .. Ago-
ra a intenção é, predominantemente, simplificá-las.
Entre as características em comum de todas as tendên-
cias do Movimento lnstitucionalista, há algumas que são
relativamente fáceis de se colocar. Eu diria que existem o
que se chama de "ideais últimos", os "ideais máximos"
do movimento. Podemos chamar a isto também de propó-

12 13
sitos mais importantes, os objetivos mais ambiciosos des- gerado profissionais, intelectuais, experts que são os conhe-
sas escolas. E_eles podem enunciar-se com duas palavras apa- cedores desta estrutura e processo desta sociedade em si.
ren~emente simples, mas que são, como veremos depois, Esses conhecedores têm-se colocado, em geral, a serviço das
muito complexas. entidades e das forças que são dominantes em nossa socie- · •.
As diferentes escolas do movimento institucionalista se dade. Por exemplo, a serviço daquela entidade que repre-
propõem propiciar, apoiar, deflagrar nas comunidades nos senta o máximo da concentração de poder, o extremo de
coletivos, nos conjuntos de pessoas, processos de ~uto- concentração de controle e de hegemonia sobre a socieda-
análise e processos de autogestão. O que significam essas de, que é o Estado. Além disso, por outro lado, já dentro
palavras? da sociedade civil, estes experts têm-se colocado a serviço
Depois, compreenderemos com mais <ktaJhs:sque.os. das grandes entidades.proprietárias da riqueza social, do po-
processos de interação humana, os processos de funciona- der social, do prestígio social, que são as organizações, as
mento social, têm sido sempre muito complexos. Mas, na empresas nacionais e multinacionais etc. Esta situação, em
n~~sa civilização - chamada industrial, capitalista, tecno- que os "sábios", os conhecedores da estrutura e do pro-
log1ca - , a complexidade da vida social atingiu sua máxi- cesso da vida social estão predominantemente a serviço do
ma intensidade, seu máximo expoente em toda a história Estado e das empresas, tem tido como conseqüência que
da ~umanidade. Se compararmos, por exemplo, uma or- os povos - em sentido amplo, a sociedade civil - têm-se
gamzação social dita "primitiva", ou uma organização im- visto despossuídos de um saber que.ti$am-açumulado atra-
perial, despótica, ou uma organização medieval com a nossa vés de muitos anos acerca de sua própria vida, de seu pró-
sociedade moderna, o grau de complexidade, de diversida- prio funcionamento. Esse saber, que as comunidades sociais
de que as sociedades modernas atingem é infinitamente su- acumularam durante tantos anos de experiência vital, a par-
perior ao daquelas civilizações, apesar de elas não serem tir do momento em que aparece o saber científico, tecnoló-
nada simples. Acontece, então, que nossa época, nossa ci- gico, fica relegado, colocado em segundo plano, como se
vilização, além de se caracterizar por uma grande diversi- fosse rudimentar e inadequado. Tanto é assim que temos
dade, uma grande complicação interna, se caracteriza técnicos que costumam chamá-lo de ideologia, num senti-
também por, de fato, ter produzido uma soma de saber que do vago, geral, visando a qualificá-lo como um falso co-
propiciou, nesses últimos duzentos anos, uma "evolução" nhecimento, pobre, infundado ou, no melhor dos casos,
maior do que a humanidade havia conseguido em dois mil insuficiente. Então, as comunidades de cidadãos têm visto
anos; ou seja, houve um processo de produção de conheci- este saber alienado, subordinado ao saber dos experts. Além
mento, de produção de saber muito intenso. do saber, elas têm perdido o controle sobre suas próprias
Esse saber, o que ninguém ignora, deu como resulta- condições de vida, ficam alheias ao poder de gerenciar sua
do aplicações tecnológicas que aceleraram o chamado pro- própria existência. Elas dependem, então, quase incondi-
gresso, também em igual proporção. E o progresso trouxe cionalmente, dos organismos do Estado, dos empresariais, .
uma grande complexidade. Além desses conhecimentos pro- do saber e serviços dos experts. E a quais experts refiro-me?
duzidos, deste saber das ciências da natureza, das ciências Aos dos ramos produtivos·, primários, secundários e terciá-
formais, das aplicações tecnológicas, uma parte versa so- rios, aos especialistas de produção de bens materiais, ou seja,
bre a organização social em si mesma. Ou seja, nossa civi- comida, vestuário, moradia, transporte: aqueles bens ma-
lização tem produzido um saber acerca de seu próprio teriais indispensáveis à sobrevivência. Toda a produção des-
funcionamento, dela mesma como objeto de estudo. E tem ses bens está dirigida, gerenciada por "especialistas". Mas
14 15
noutro plano, refiro-me aos problemas ae saude, de edu- acabamos de descrever, a noção da neces~ida~e é p~oduzi-
cação, aos assuntos familiares, aos psicológicos e subjeti- da, assim como a demanda é modulada; isto e, aqmlo q1:_1e
vos, em geral; às questões relativas ao lazer, às que atingem
a comunicação de massa, aos assuntos próprios da religião.
os povos pensam que todos os m_embros de ~:n~
e todos os povos do mundo precisam como i_mmmo ,°ª?
~op~l,aç~o
Cada um desses campos, cada um dos serviços que se pres- existe. Este "mínimo" é gerado em cada soc1e?ade e e di-
tam nessas áreas, os bens que se produzem e administram ferente para cada segmento da mesma. ~as amda ~entro
nesses territórios, ou seja, sua quantidade, sua qualidade, do condicionamento histórico, as comum~ades que tem al-
sua necessidade, sua conveniência, tudo é decidido pelos ex- guma noção vivencial acerca de_ suas necess1d~des a pe:dem,
perts, é decidido por quem se supõe que saiba e conheça de modo que já não sabem mais do que prec1sa?1 e nao d~-
do assunto. O mesmo acontece no plano de administraçãq mandam o que aspiram, mas acham que_necess1tam daqm-
da justiça, nos tribunais, com os advôgados;"desp·âchantesi· lo que os experts dizem que eles necessitam e acham que
registros civis, leis: tudo isso feito por experts e adminis- pedem o que querem e como querem, m~s, ~a ver_dade, ~e-
trado por eles. E_ o que falar do exercício da força, no sen- dem o que lhes inculcam que devem pedu. E, entao, mu!to
tido literal, porque todas estas outras entidades também evidente que nossos -coletivos estão, atualmente, nas maos
usam da força, senão da força física, da força da persua- de um enorme exército de experts que acumulam o saber
são, da força da sedução; mas o uso da força física está re- que lhes permite fazer com o que as ~e~s~a.sachem que_pre-
servado a organizações como a polícia, as forças armadas, cisam e solicitem aquilo que os expert:9'díz.!!fu qu_e precisam
que também têm seus especialistas, oficiais, generais, guar- e que as classes dominantes lhes concedem. Entao, os col~
das etc. É claro que os experts conhecem e decidem preva- tivos têm perdido, têm alienado o saber ace~ca de sua pro-
lentemente segundo os interesses das classes, níveis hierár- pria vida o saber acerca de suas reais necessidades, de seus
quicos e grupos dominantes aos quais pertencem parcial- desejos, de suas demandas, de suas limitaçõ_es _e di:s causas
mente. Mas não se deve sempre supor uma intenção deli- que determinam estas necessidades e est~s hmJtaçoes, Eles
berada dos técnicos nesse sentido. Acontece, como veremos, têm perdido um certo grau de compreensao e ? co1:1trole so-
que seu saber em si mesmo já está produzido com instru- bre que tipos de recursos e formas de orgamzaçao de_vem
mentos e resultados que privilegiam os interesses citados. dispor para resolver seus problemas. Mal podem organizar-
Então, o que acontece? se para resolver seus problemas se ~ão conseguem saber,
Há um conceito básico, que vamos ver depois na Aná- com precisão, quais são seus verdadeiros problemas e o que
lise Institucional e em outras escolas do institucionalismo, se requer para resolvê-los. . . . , .
que se chama demanda. Veremos a idéia de que as comuni- Falei que poderíamos enunciar dois obJet1y?s bas1cos
dades ou coletividades têm necessidades básicas indiscutí- do institucionalismo, um deles seria a a~to-anahse e o ou-
veis e universais. Essas necessidades são colocadas clara- tro a autogestão. Agora já podemos explicar um pouco me-
mente através de demandas espontâneas, através da exigên- lhor em que consistiria o primeiro deles. . - ·
cia de produtos, de serviços. Essa idéia é uma das tantas A auto-análise consiste em que as comumdades mes-
que vai ser questionada pelo institucionalismo, porque ele mas como protagonistas de seus problemas, de suas neces-
vai tentar mostrar que em todas as épocas da história, mas sidades, de suas demandas, possam ~nunc!ar: compreender,
particularmente na nossa, não existem necessidades bási- adquirir ou readquirir um vocabuláno propno que lhes per-
cas "naturais"; não existem demandas "espontâneas", se- mita saber acerca de sua vida. E não que alguém venha ~e
não que, em todas e em cada uma dessas organizações que fora ou de cima para dizer-lhes quem são, de que necessi-

16 17
tam e o que devem pedir, o que procurar conseguir e o que trabalho feito em conjunto com essas comunidades e na mes-
puderam ou não conseguir. Este processo de auto-análise ma relação de horizontalidade com que qualquer membro
das comunidades é simultâneo com o processo de auto- dessa comunidade o faz. Isso permitirá que, eventualmen-
organização, em que a comunidade se articula se institu- te, os experts, quando a comunidade conseguir organizar-
cionaliza, se organiza para construir os disposiiivos neces- se, tenham algum lugar dentro das organizações específi-
sários para produzir_. ela mesma, ou para conseguir, os cas que a comunidade se deu a si mesma. Então seu saber
recursos de que precisa para o melhoramento de sua vida e sua capacidade, sua potência produtiva estarão plenamente
sobre a terra. Na medida em que esta organização é conse- integrados ao movimento de auto-análise e autogestão des-
qüência e, ao mesmo tempo, um movimento paralelo com sa comunidade. Eles poderão assim reformular, aprenden-
a compreensão da auto-análise, ela também não .é.feit<l de do e ensinando seu saber e sua eficiência nessa nova e inédita
cima para baixo, nem de fora, mas -feita 110 próprio seio· situação. À parte destã'feinverição de sua disciplina, os ex-
heterogêneo do coletivo interessado. Esta auto-análise e esta perts poderão· aprender como eles serão capazes de propi-
autogestão não significam necessariamente que os coletivos ciar outros movimentos autogestivos e auto-analíticos
d~vam prescindir por completo dos experts porque, sem dú- quando forem chamados a participar.
vida, eles, com sua disciplina, com seus instrumentos, têm Esta é uma explicação sucinta dos dois objetivos,· dos
acumulada uma quantidade de saber importante e não in- propósitos fundamentais do movimento institucionalista que
teiramente alienado, não necessariamente distorcido. Mas são sistematicamente compartilhados 12or todas as tendências
a_contece que os experts devem submeter seu saber, suas gló- que o integram. Por isso, é importàntdtiiêlstê's dois objetivos
nas, seus métodos, suas técnicas, suas inserções sociais co- sejam superficial, mas claramente, conhecidos pelos leitores.
mo profissionais a uma profunda crítica que os faça separar, É óbvio que autogestão e auto-análise são dois proces-
d~ntro destas teorias, métodos e técnicas, dentro dos orga- sos simultâneos e articulados. Por quê? Porque auto-análise,
msmos aos quais pertencem, o que é produto de sua ori- para as comunidades, significa a produção de um saber, do
gem, de sua pertência ao bloco dominante das forças sociais conhecimento acerca de seus problemas, de suas condições
e o que pode ser útil a serviço de uma auto-análise, de uma de vida, suas necessidades, demandas etc., e também de seus
autogestão da qual os segmentos dominados e explorados recursos. Mas até para que a auto-análise seja praticada pelas
sejam protagonistas. Para poderem efetuar esta autocríti- comunidades, elas têm de construir um dispositivo no seio
ca, os experts não podem fazê-lo no seio de suas torres de do qual esta produção seja possível. Elas têm de organizar-
marfim, não podem fazê-lo nas academias ou exclusivamen- se em grupos de discussão, em assembléias; elas têm de cha-
te nos laboratórios experimentais. Eles têm de entrar em con- mar experts aliados para colaborarem com elas; elas têm
tato direto com esses coletivos que se estão auto-analisando de dar-se condições para produzir este saber; e para des-
e autogestionando, e eles têm de incorporar-se a essas co- mistificar o saber dominante. Ao mesmo tempo, tudo o que
~unidades desde uma posição, desde um estatuto que seja elas descobrirem neste processo de autoconhecimento só terá
diferente daquele que tinham, que seja resultado de uma uma finalidade: a de auto-organizar-se para que possam ope-
crítica das posições, postos, hierarquias que eles têm den- rar as forças destinadas a transformar suas condições de exis-
tro dos aparelhos jurídico-políticos do Estado ou das dire- tência, a resolver seus problemas. Mas não pode haver uma
tivas das grandes empresas nacionais e multinacionais. Eles organização sem um saber; não pode haver um saber sem
têm de reformular sua condição profissional, seu saber es- uma organização. São dois processos diferenciados, mas eles
pecífico. E só conseguirão reformulá-los numa gestão, num são concomitantes, simultâneos, articulados.

19
18
Costuma-se crer que os processos autogesti\fOs impli- Isto garante que estes especialistas são verdadeiramente
cam uma falta completa de denominações, hierarquias, qua- "especiais": se delega a eles um saber que é a expressão dos
dros, especificidades etc. Na realidade, é difícil pensar interesses e do saber essencial do coletivo. O coletivo con-
qualquer processo organizativo que não inclua uma certa serva um saber essencial acerca de seu campo, que lhe per-
divisão do trabalho - os processos são muito complexos mite julgar quando o especialista está exercitando o seu
- que não implique uma certa hierarquia de decisão, de poder com sentido instituinte e então a serviço do coletivo,
deliberação. Esses são funcionamentos inerentes a qualquer ou, pelo contrário, de ambições de segmentos individualis-
processo produtivo. Mas vejam bem: existirão hierarquias, tas etc. Vou dar um típico exemplo da medicina, embora
existirão gerências. Mas a existência de hierarquia não im- haja mil exemplos, muitos dos quais não poderemos men-
plica diferença de poder; não equivale à autaFquia ou arbi- cionar aqui porque são-muito complexos e extensos para
trariedade na capacidade de decidir. Implica apenas uma expor. Quem conhece a situação da saúde no Brasil sabe
certa especialização em algumas tarefas, porque estes dis- perfeitamente que nosso país não precisa prioritariamente
positivos estão feitos de tal maneira que as decisões de fun- de, digamos, tomógrafos computadorizados, pelo menos a
do são tomadas coletivamente. Em todo caso, os quadros nível de sua problemática prevalente atual. O que o Brasil
hierárquicos não são mais que expressão da vontade con- precisa é de uma política de saúde que não começa nem aca-
sensual. São executores. Mas não são executores do man- ba no campo da medicina. Seus problemas, que têm efei-
dato das elites mediatizado por organismos burocráticos, tos médicos, têm suas causas dire\~-:nos,-,problemas de
por correias de transmissão. Na autogestão os coletivos mes- habitação, de alimentação, de vestuário, de saneamento bá-
mos deliberam e decidem. Eles têm maneiras diretas de co- sico. Disso todos os experts sabem, o que não impede que
municar as decisões. Existem hierarquias em matéria de a ênfase da política de saúde no Brasil esteja colocada na
potência, peculiaridades e capacidade de produzir; mas não assistência e não na prevenção, principalmente se por pre-
há hierarquias de poder, ou seja, a capacidade de impor a venção se entende algo que modifique radicalmente as con-
vontade de um sobre o outro. dições de vida da população. Entretanto, há muitos centros
Contudo, é evidente que o Institucionalismo, tanto paulistas e cariocas que se orgulham de ter os mais moder-
quanto os processos auto-analíticos, são produtores de co- nos aparelhos para resolver ou diagnosticar uma problemá-
nhecimentos e que todo saber envolve, necessariamente, um tica altamente específica, circunscrita, que afeta 0,5% da
poder, ambos não homogeneamente distribuídos. população. Acontece que o povo, as organizações de base,
Este saber é um saber coletivo, produzido, distribuído e não podem questionar de maneira eficiente as políticas mé-
exercitado na vida coletiva. Na topografia deste saber existem dicas do Brasil porque a primeira coisa que lhes seria res-
alguns campos, alguns elementos que são os essenciais e que pondida é que não sabem. Mas o que acontece quando o
são compartilhados por todo mundo. Então, quando esse sa- coletivo revitaliza seu saber, revaloriza o saber espontâneo
ber compartilhado é delegado a alguns que se especializam que ele tem acerca do que precisa? Os índios têm, as comu-
nessa questão, já não é um saber produzido fora dos interesses nidades negras têm, as comunidades das montanhas têm,
do coletivo, já não é um saber que vai cair de cima para baixo, as comunidades da planície têm, todo mundo tem um sa-
de fora para dentro. É já uma delegação, porque foi produ- ber espontâneo acerca de quais são os sofrimentos, quais
zido dentro, por alguns especialistas no assunto, em estreita são as enfermidades e como devem ser tratadas. Assim tam-
colaboração com os diretamente interessados nos benefícios bém eles sabem que problemas devem ser abordados, ape-
que esse saber e suas aplicações terão, uma vez realizados. sar de que ainda não se exprimam em sofrimentos, ou que

20 21
os sofrimentos ainda não são doenças e não devem ser tra- que eu queria enfatizar os conceitos essenciais básicos. Mas,
tados como tais. Desde logo este saber também desconhece enfim, em que consiste o tema aqui levantado? O movimento
muita coisa, mas isso não pode afirmar-se a priori. Só que institucionalista reconhece uma gênese histórico-social e uma
esse saber é permanentemente desqualificado pelo saber aca- gênese conceituai. A primeira é a história de todas as ten- -
dêmico, porque este é um saber predominante a serviço dos tativas que houve na história da humanidade e as que hoje •
interesses estatais, dos interesses nacionais e multinacionais existem e exercitam um institucionalismo espontâneo. Um
dominantes, um saber consubstancial com esses interesses. destes movimentos é o das comunidades eclesiásticas de base
A primeira operação que as comunidades têm de fazer é re- no Brasil e em outros países. Mas muitas iniciativas auto-
cuperar, revalorizar o saber espontâneo que elas têm sobre gestivas já existiram, existem e vão existir, que não preci-
seus problemas; a segunda operação que têm de fazer é, em sam do institucionalismo para se desenvolverem. O institu-
conjunto com os experts, criticar, afudar osêxperts a criti: cionalismo é alguma "côisa assim como o resultado do ensi-
carem esta orientação, esta medula dominante, reacioná- namento destas iniciativas históricas sobre os próprios ex-
ria, que o saber médico (neste caso) e suas técnicas têm. perts. Nós, os experts, médicos, engenheiros, advogados,
Sobretudo em termos de hierarquização de prioridades: o comunicólogos, psicólogos etc., temos aprendido que isso
que vem primeiro e o que vem depois, o que é secundário. existe e que poderíamos colaborar para seu desenvolvimento
Uma vez que o expert, integrado à comunidade, demons- a partir das experiências históricas que já existiram neste
tra a capacidade de contribuir, em pé de igualdade, para sentido e das que estão existindo e .se.-dç~nvolvem perfei-
este trabalho de reformulação, pode-se delegar a ele algu- tamente ou dificilmente sem a noss'a'páiticlpação. Por ou-
mas áreas do saber, com menos perigo de que ele o trans- tro lado, a gênese conceituai refere-se ao campo das idéias,
forme em poder e não numa potência de colaboração com ao campo dos conceitos e da teoria: todas aquelas teorias,
o coletivo, porque o coletivo já nãp está desqualificado, ele conceitos, idéias, categorias que têm sido produzidas pela
sabe julgar o que se faz e sabe julgar o que se acha que se humanidade no decorrer da história do conhecimento e po-
sabe. Isso não descarta que possam acontecer novamente, dem contribuir para dar base, para fundamentar a propos-
problemas de concentração de saber e de poder, porque es- ta institucionalista.
te processo de autoconhecimento e autogestão é interminá- Agora, gostaria de referir-me à última questão, muito
vel. Provavelmente haverá necessidade de muitas gerações importante.
autogestivas e auto-analíticas para que o processo possa Os leitores compreenderão que estes processos auto-
exercitar-se em sua plenitude. Se bem que este caminhar está analíticos e autogestivos se dão em condições altissimamente
orientado por uma Utopia Ativa que não está colocada num desfavoráveis, severamente contraproducentes. Por quê?
futuro longínquo, senão em cada ato do cotidiano. Como Naturalmente porque os coletivos em questão não são do-
já dissemos, existiram e existem numerosas tentativas auto- nos do saber, não são donos da riqueza, não são donos dos
analíticas e autogestivas que não apresentam o caráter pu- recursos que são propriedade e servem ao poder dos orga-
rista que a gente pode imaginar em sentido abstrato. Por nismos e entidades de classe e grupos dominantes. Então,,
exemplo, as comunidades eclesiásticas de base, pode-se di- a consecução dos objetivos tem graves impedimentos que
zer que têm um espírito institucionalista complexamente in- vão desde a privação de recursos (que são propriedade a
tegrado a aspectos libertários do cristianismo. Isso abre um serviço do poder dos organismos e entidades de classe do-
tema que eu teria gostado de tratar neste primeiro capítu- minante) até a morte física. Estes processos autogestivos e
lo, mas acho que vai complicar um pouco as coisas, por- auto-analíticos são, para a organização do sistema, um cân-

22 23
cer, uma peste. Não há nada que seja mais temido e mais
odiado pelo sistema social, porque os movimentos instituin-
tes têm esse intuito: que os coletivos presidam a definição
de problema, a oferta de soluções, a colocação dos limites
do que é possível e do que é impossível, o que normalmen-
te é feito pelas instituições, organizações e saberes de gru-
pos dominantes. Por isto a autogestão não é tarefa fácil:
a prova está em que as iniciativas auto-analíticas e auto- PERGUNTAS REFERENTES AO CAPÍTULO I
gestivas não se caracterizam por seu sucesso. Elas têm apa-
recido muitas vezes na história e muitas vezes_Jêm sido,
destruídas ou sufocadas. E as que hoje insistem em existir
lutam duramente contra um conjunto de imensas forças so-
ciais que tentam destruí-las. E quando não conseguem
eliminá-las tentam recuperá-las, incorporá-las. Isso faz com
que os objetivos últimos do institucionalismo - que são
a auto-análise e a autogestão, não sejam atingidos nunca 1) Por que o Institucionalismo é um movimento e não uma
de forma definitiva. Eles são atingidos sempre na base da ciência, uma disciplina ou uma tecnologja?
',,.,-<·.
···l ",,
tentativa, do ensaio, da procura. Em geral têm maiores ou
menores graus de fracasso. Mas isto não quer dizer que não 2) O que aconteceu com o saber e o saber-fazer que as co-
sejam possíveis. Então, esta última afirmação que faço munidades primitivas ou os povos e grupos leigos em ge-
refere-se ao seguinte: que as diferentes escolas do institu- ral produziram e acumularam durante sua experiência
cionalismo se distinguem entre si pelas teorias, pelos méto- de vida?
dos, pelas técnicas com que elas tentam introduzir estes
objetivos últimos e pelo grau de realização com o qual se 3) O que significa "divisão social e técnica do trabalho e
conformam. Quer dizer: há correntes, escolas "maximalis- do saber", e por que se diz que as ciências, as discipli-
tas", que buscam a instalação plena da autogestão e da auto- nas e seus experts estão em geral a serviço das classes
análise. Há outras que se satisfazem com a introdução re- e grupos dominantes?
lativa de alguns mecanismos, de alguns espaços, de alguns
temas de auto-análise e autogestão. Ou seja, no institucio- 4) Existem "necessidades mínimas naturais" cuja satisfa-
nalismo, como na política, existem correntes reformistas e ção é demandada pelas populações, ou é a oferta de bens
existem correntes ultra-revolucionárias. De qualquer manei- e serviços que produz certas necessidades (e não outras)
ra, nada disso impede que as agrupemos em torno destes e modula as demandas?
dois objetivos. Eles as diferenciam claramente da enorme
maioria das propostas políticas, tanto das extremistas quanto 5) O que significa auto-análise e autogestão?
das propostas social-democráticas. Provavelmente a tendên-
cia política tradicional que mais se aproxima das propostas
institucionalistas, e com a qual o institucionalismo está mais
que em dívida, seja a de certas orientações do anarquismo.

24 25

Você também pode gostar