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_ ciência&vida

'Iempo ljvre
ara
A
tradição histórica identifica no tempo li-
A Filosofia nasceu
vre uma das principais condições que fa-
do ócio, momento voreceram o desenvolvimento da civiliza-
ção. Após a Agricultura e a domesticação
essencial para a
de animais, o homem pôde finalmente se desvencilhar
reflexão, para reciclar da pesada tarefa de lutar incessantemente pela sua so-
brevivência. Conseguiu, assim, expandir seu limite de
e reordenar conceitos e
ação para além da dimensão produtiva, criando também
valores. O tempo livre, dimensões sociais e simbólicas.
CRISTIANO DE JESUS É
condenado na sociedade Vale mencionar que o tempo livre foi um dos aspec-
MESTRANDO EM FILOSOFIA,
tos que permitiram o surgimento da Filosofia na Grécia MEStRE E DOUTOR
pós-industrial e cada Antiga. Supõe-se que a especulação filosófica surgiu a EM ENGENHARIA DE

ver. mais raro, faria partir da relativa estabilidade que foi conquistada pela PRODUÇÃO. É PROFESSOR

urbanização, que também possibilitou o desenvolvi- UNIVERSITÁRIO DE


do homem um Sísifo, mento da Cultura e das relações de poder. Foi quando o FILOSOFIA, ÉTICA, ENTRE

OUTROS. PESQUISA SOBRE


consciente da sua homem, não mais obrigado a conquistar diariamente a
A DIMENSÃO FILOSÓFICA
sobrevivência,se permitiu observar, se assombrar, refletir
condição alienante e teorizar sobre tudo que o cerca.
DA TECNOLOGIA E OS
IMPACTOS DA TECNOLOGIA
Fenômenos semelhantes a este ocorreram em outras NA SOCIEDADE. CRISTIANO.
épocas mais antigas, mas de forma e sentido muito di- /ESUS@ACADEMUSNET.PRO.BR

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ferentes. o pensamento rnítico também chamado Naturalismo, em uma das suas oportunidades de transação comercial.
ajudava a pensar e a explicar a natureza, obras mais conhecidas, Germina!, relata as Com isso, até mesmo o lazer se profis-
mas era um pensamento derivado exclu- condições terríveis dos trabalhadores de sionalizou, provocando o surgimento de
sivamente da prática concreta no âmbito uma mina de carvão durante o chamado mais um mecanismo de apropriação do
da produção das condições materiais de capitalismo primitivo, uma época quando tempo livre.Trata-se da estandardização
vida. Um exemplo bem interessante, na as pessoas trabalhavam 16 horas por dia do lazer, isto é, de sua rnassificação, de
Mitologia nórdica, é o caso do deus 1hor. numa jornada de seis dias por semana. sua transformação em mercadoria.
Observara-se, de alguma forma, que na O pouco tempo que os operários tinham Na Filosofia, essa problemática foi
maioria das vezes troveja-se antes e du- fora do trabalho servia apenas para duas estudada intensivamente pelos filósofos
rante a chuva. Contos e relatos passados coisas: descanso e procriação. É esse últi- da chamada Escola de Frankfurt. Ma.'(
de geração para geração relacionaram o mo propósito que oferece sentido ao ter- Horkheimer e 1heodor Adorno em Dia-
barulho do trovão ao movimento feito mo "proletariado", que por sua vez remete lética do esclarecimento apresentam o con-
por 1hor com seu martelo ao cruzar os ao conceito de "prole". Nesse contexto, o ceito de "Indústria Cultural" como alter-
céus em sua carruagem. Por isso,pedidos proletariado constitui-se de uma classe de nativa ao conceito de "cultura de massa"
eram feitos a1hor nos períodos que ante- trabalhadores que produzem e procriam, que não necessariamente precisa corres-
cediam o plantio nos campos. Nesse caso, geram sua prole, para que novas gerações ponder à passividade, atividade cultural
o pensamento especulativo se dá direta- de trabalhadores possam substituir sem alienada e de baixa qualidade. Indústria
mente relacionado às preocupações em prejuízo as gerações anteriores de indiví- Cultural, portanto, refere-se às entidades
torno de incertezas sobre a satisfação de duos que envelhecem, adoecem e morrem. sociais que detêm em uma sociedade o
necessidades básicas que afetam direta- Após muitas lutas, inúmeras con- poder simbólico, tais como TV, rádio, Ci-
mente a condição de subsistência. quistas trabalhistas foram alcançadas e a nema,jornais, revistas etc. São instituídas
A Filosofia da Grécia Antiga, espe- jornada de trabalho diminuiu ao longo para a produção de conteúdo destinado
cialmente aquela que surge com Sócrates, da história. Entretanto, na atualidade, o ao consumo das massas.
abre caminho para o pensamento puro, tempo desvencilhado da atividade pro- O objetivo da Indústria Cultural não
sem a obrigação de correspondência e dutiva pode ser também capturado por é o desenvolvimento do conhecimento
utilidade direta com o mundo concreto, obrigações, como educação, família etc., nem criar ca:mnhos para que isso acon-
e isso se dá no repouso, quando em se- ou ainda ser absorvido por compromissos teça, mas sim produzir e comercializar
gurança e saciadas as necessidades mais institucionais como Religião, militãncia conteúdos. As estratégias usadas para
básicas. O conhecimento desenvolvi- política e outros. maximizar a penetração dessa mercado-
do a partir da prática produtiva possui ria provocam consequências que ferem a
caráter utilitário, diferente da criação e LAZERCOMO autonomia dos indivíduos, capturando-
experimentação estritamente simbólica. MERCADORIA -os do gozo de seu tempo livre para
Todavia, nada garante que o tempo O tempo efetivamente livre que inseri-los num jogo de consumo passivo
liberto do trabalho produtivo propor- pode proporcionar a mesma pulsão cria- e alienante. Os produtos da Indústria
cione um processo de criação e abertura dora que outrora trouxera à luz a Filo- Cultural impedem a atividade mental do
de novos caminhos para o pensamento sofia corresponde a um enorme desafio espectador, exigindo apenas o instinto e a
e para a existência. Esse tempo pode ser para o mundo pós-moderno. O desen- prontidão dos sentidos. São apresentados
destinado apenas para a reparação das volvimento econômico alavancou o sur- de tal modo que fomentam a estereotipa-
forças produtivas, ou ainda para atender gimento de novos paradigmas de gestão ção das preferências pessoais, agmpando-
outras necessidades. estratégica de negócios contribuindo -as em grandes categorias. Essa dinâmica
Érrúle Zola, escritor francês e criador para a exploração e transformação de é extremamente eficiente para a padroni-
no século XIX do movimento literário um conjunto enorme de práticas em zação dos hábitos e consequentemente
C2!lA TO M IS M "IFIC D PRODU Ã
CULTURAL, MAl .. UPERFT IAIn T DO "'-0
PAS, A DE IrTFOR çà E PROr U i DI DADE

para os negócios, pois assim conseguem


melhor direcionamento, mas impedem o
caos cognitivo organizando e antecipan- compreensão, ao esforço do conceito, ao
do as experiências, criando modelos de qual as pessoas foram desabituadas, e lhes e reordenada segundo as conveniências
comportamento e de preferências. exige, ante todo conteúdo, a suspensão - do que no plano da existência.
Adorno, em A teoria da semicultura, dos lugares comuns, logo um isolamento O espetáculo define o sentido da
apresenta um outro efeito. Qpanto mais a que elas violentamente se opõem". prática em prática econômico-social,
rnassificada estiver a produção cultural, Com isso, o processo criativo, o portanto, define o emprego do tem-
mais superficial ela se torna. Tudo não questionamento e o rompimento de pa- po que se resume em tempo da pro-
passa de informação breve e sem profun- radigmas enfrentam barreiras. Adorno dução econômica. Este se manifesta
didade. As pessoas conhecem os grandes denomina de "reacionário" o músico, por de diversas formas em fragmentos
autores e personagens históricos, mas não exemplo, que, em vez de se dedicar a al- abstratos. Assim sendo, o espetáculo
compreendem as suas obras em sua ex- cançar experiências originais de composi- estabelece uma falsa consciência do
pressão máxima. Conhecem-nos porque ção,se dedica permanentemente a obede- tempo para ocupar o lugar do tempo
foram citados em desenhos da Disney, cer uma fórmula simplificadora e segura da existência, que portanto é expro-
no cinema ou outro programa televisi- para garantir a vendagem das suas músi- priado violentamente.
vo que normalmente, para simplificar cas.Essa crítica se aplica a todas as formas A sociedade estática transforma o
a linguagem, reordena a realidade, os de criação e desenvolvimento da Cultura. tempo errante da existência em "tem-
acontecimentos e feitos de tal forma que Guy Debord, em A sociedade do espe- po cíclico". Ao se fixar em um local, o
descaracteriza-os completamente. táculo, também apresenta considerações homem ordena o território e o tempo
Esse fenômeno fica mais claro quan- que podem complementar a perspectiva num processo de repetição de gestos: "a
do observada a comparação que Adorno de Adorno. Ele define como "espetáculo" passagem do nomadismo pastoril à agri-
faz entre música comercial e música clás- a relação social entre pessoas mediada por cultura sedentária é o fim da liberdade
sica. Enquanto a primeira se baseia em imagens e que exerce a função de instru- ociosa e sem conteúdo". Essa sociedade
regras de composição que planificam e mento de unificação da sociedade. que tudo modela, ao materializar a ide-
condicionam os reflexos, a segunda, as- ologia na forma de espetáculo e assim
sim como na Poesia em que o significado CO "Sl:\10 P.\SSIYO confundi-la com a própria realidade so-
de cada palavra está no sentido do poema, Os meios de comunicação de cial, consegue desse modo "talhar todo o
cada elemento da música se une na tota- massa possuem grande capacidade de real segundo o seu modelo".
lidade da obra. penetração, e as relações sociais que Contudo, na atualidade, mesmo es-
Em Minima moralia, ainda Adorno mediam por meio das suas imagens e tando livre da atividade produtiva, de
aponta outro aspecto da sociedade midia- conteúdos conduzem as pessoas a uma obrigações e compromissos, o indivíduo
tizada, chamando atenção para a indispo- vida distante da existência, uma vida de incauto pode ainda não usufruir o tempo
sição crescente para o conteúdo denso e aparência e consumo passivo, seja de livre,embora na maioria das vezes acredi-
considerado difícil enquanto as formula- produtos, ideologias, valores, costumes, te que o esteja fazendo.
ções frouxas são recompensadas com am- fatos e notícias. Debord alerta que é Foi nesse sentido que Adorno excla-
pla aceitação. Afirma o autor, "C..) a ex- muito mais fácil encarar a realidade no mou a seguinte constatação: "(...) o ho-
pressão rigorosa obriga à univocidade da reino das imagens - que é simplificada mem é tão bem manipulado e ideologi-

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mas para ter consciência da sua condição
e mudar o curso da sua vida a fim de con-
quistar sua emancipação frente ao fluxo
zado que até mesmo o seu lazer se torna estruturante e planificador que está sub-
uma extensão do trabalho". metido, precisa do tempo livre que dispõe
Albert Camus apresenta de forma Sísifo quando desce a montanha. Caso
alegórica a condição de aprisionamento contrário, permanecerá preso ao impera-
que se encontra o homem contemporâ- tivo da subsistência, dos compromissos e
neo. Ele faz isso em O mito de Sísifo. Sísifo das obrigações.
o ocro CRIATIYO FOI foi condenado pelos deuses a repetir por Infelizmente é possível identificar a
TEMA DI: PESQ!1hA toda a eternidade a tarefa de subir uma tese de Camus na atualidade quando se
montanha carregando uma pedra enor- observa a correspondência do triste des-
DO I1:~Ll
\:'\0
me e no cume soltá-Ia para rolar encos- tino de Sísifo em situações muito emble-
DO~l}~~TC() Dr ta abaixo. Porém, é muito interessante o máticas, como no caso do experimento
~fASI PARAPROPOR olhar de Camus para o instante em que realizado pelo jornal estadunidense J#;z-
LTMMODEI () F\f Sísifo desce a montanha para agarrar a shington Post ao submeter o renomado
pedra e novamente fazê-Ia subir. É nesse violinista Joshua Bell a uma apresentação
C&T TRA1HLHO,
momento que, livre do esforço, ele pensa de uma hora no metrô de Washington.
ESTl DO J ~ LAzrR sobre sua condição e sobre a tarefa absur- Ele executou o mesmo repertório que
SE COMPl1"I j .M. da e sem sentido que terá que fazer por uma semana antes apresentara no Teatro
O AS~C~TO , TROlf todo o sempre. de Boston por 100 dólares o ingresso. O
Camus observa em Sísifo a imagem empenho e a qualidade das notas musicais
LnTRO, COM o
do proletário, homem trabalhador que extraídas pelo talentoso musicista de seu
MESMO ~O\fEi está condenado a repetir tarefas indefini- instrumento avaliado em 3,5 milhões de
damente por toda sua vida, porém a Sísi- dólares não foram suficientes para atrair a
fo restam apenas a revolta e o desespero atenção da multidão de transeuntes. Das
porque é consciente da sua condição e mais de mil pessoas que passaram por ele,
sabe que não pode se libertar da maldição. apenas 6 pararam para ouvi-lo e em torno
O homem contemporâneo pode se de 20 deixaram-lhe uma moeda, seguin-
reconduzir se reconhecer sua alienação, do apressadamente para seus destinos.

ÓCIO NAS UTOPIAS


Nas utopias de Platão, Thomas Morus, Francis Bacon de seu agrado, desde que não desperdicem suas horas livres
e Tommaso Campanella, em todas elas, há referências so- na ociosidade ou em divertimentos insensatos. Em geral
bre a importância do tempo livre. Em A Repúhlica, Platão esse período é dedicado a alguma atividade intelectual. Na
considera que o ideal humano somente pode ser realizado verdade, há o costume de assistir palestras públicas antes do
na figura do cidadão filósofo, isto é, o indivíduo livre dos amanhecer. A presença nessas palestras é obrigatória apenas
encargos da subsistência para a contemplação teórica da ver- para aqueles que se dedicam especificamente ao estudo; no
dade e para a práxis política. entanto, muitas outras pessoas, homens e mulheres de to-
Thomas Moreus descreve, em Utopia, que homens e das as condições, comparecem voluntariamente".
mulheres dedicam seis horas diárias ao trabalho podendo Já Campanella, em A cidade do sol; demonstra a mesma pre-
escolher livremente como gozar seu tempo livre em outras ocupação com uma divisão do trabalho que diminua o tempo
atividades importantes como leitura, descanso ou lazer: "É de dedicação na labuta a fim de economizar "tempo e fadigas".
deixado à escolha de cada um o que fazer nas demais horas do Em NO'Va Atlântida, Francis Bacon sonha com os tempos em
dia, quando não estão trabalhando, comendo ou dormindo. que as máquinas farão todo o trabalho, deixando aos homens
Podem, portanto, dedicar-se a qualquer ocupação que seja o tempo para cultivar livremente o espírito e o corpo.
Ele conseguiu arrecadar 32 dólares e 17 mesmo tempo por necessidade e tédio,
centavos por sua performance. quer existir socialmente e em rebanho".
Esse episódio oferece margem para O homem, portanto, para viver em
reflexões diversas, mas o que importa sociedade, cria regras, leis, rotinas, insti-
aqui é observar que os deveres e a orga- tuições tais como família, trabalho, lazer,
nização da vida na atualidade não favo- ciência, governos, e outros, de tal modo
recem outro modo de ação senão aquele que tudo isso se torna um estilo de vida
que se resume na busca incessante ou por que, apesar de ser criada pelo homem,
acumulação de bens ou por ideais tão va- passa a regulá-lo e a dominá-lo.
gos que poucos sabem identificar seu real O sonho de Bacon está longe de se
sentido. Alguns mencionam motivações tornar realidade. Um mundo em que as
como "o progresso do país", ou "viver ho- máquinas desenvolvem todo o trabalho
nestamente", mas sem que consigam des- é impossível quando a criatura passa a
crever o significado delas nem identificar tudo não é, como normalmente se pensa, dominar o criador, ou seja, quando a vida
como as ações que realizam ajudam a se do modelo econômico, da Indústria Cul- passa a ser ordenada pela dinâmica tec-
mover em direção a esses objetivos. tural e de outras instituições sociais que nológica. Ao contrário de trabalhar me-
ocupam nosso tempo. A culpa é do pró- nos, passa-se a trabalhar mais. Se outrora
TEMPO PRIVILEGIADO priohomem. a escuridão noturna era o limite para o
Gilles Pronovost, em Introdução à Para este filósofo, a vida em sociedade trabalho, surgem eletricidade e lâmpada
Sociologiado lazer, apresenta a perspectiva é uma maneira de o indivíduo se agarrar para superar esse limite. Se a distância
de tempo livre como tempo privilegiado, a uma vida fácil suscitada pelos costumes, Hsica era o limite para a comunicação,
em que essencialmente é possível expe- regras morais e por sistemas racionais eis que surgem os veículos de condução,
rimentar propriamente elementos como que condicionam o homem, isentando- telefones e internet para que o trabalho
liberdade, satisfação pessoal, criatividade, -o, desse modo, de enfrentar o caos da continue em qualquer lugar. Contudo, o
ludicidade etc. existência e se permitir à transformação homem se reconhece, na maioria das ve-
Se observados os alertas que fazem em cada instante, em cada ato. Trata-se zes, apenas como ser social, apenas como
Horkeimer, Adorno e Debort, e com da atitude de abdicar-se da difícil porém condicionado por uma realidade criada
base em Pronovost, é possível conside- produtiva vida dionisíaca para se subme- por ele próprio.
rar que tempo livre não é apenas tempo ter à parcimônia, à balofa vida apolínea. A única forma de resgatar o tem-
livre da produção, compromissos e obri- Trata-se de uma escolha pela segu- po livre é reconectando-se à existência,
gações, mas também livre do conteúdo rança em detrimento da produtividade resistindo à tentação de uniformizá-Ia,
de baixa qualidade, simplificado, planifi- intelectual e da originalidade. Em O nas- encerrá-ia em um conceito, ordená-ia
cador e ordenador da maioria dos meios cimento da tragédia no espírito da música, segundo uma certa lógica, de criar um
de comunicação de massa. Tempo livre, Nietzsche afirma que os indivíduos "sen- reino de esquemas donde é "possível criar
propriamente, somente assim pode ser tem, em geral, a carga e o peso da existên- um novo mundo de leis, privilégios, su-
reconhecido se for o tempo do autêntico cia com um desgosto mais profundo e que bordinações. (...) O homem por medida
processo de reflexão, avaliação e reposi- precisam ser iludidas com estimulantes de todas as coisas. (...) Esquece, pois, as
cionamento. seletos para superar esse desgosto. Desses metáforas de origem, como metáforas, e
Possui tempo livre o indivíduo que, estimulantes é constituído tudo aquilo as toma pelas coisas mesmas. (...) Esse
livre do trabalho, se enrosca em compro- que denominamos civilização", E por isso impulso à formação de .metáforas (leva à
missos e responsabilidades intermináveis em Sobre verdade e mentira no sentido ex- procura por) conceitos, um novo mundo
e ainda se dedica a consumir um conteúdo tramora!' ele defende que "o homem, ao regular e rígido como uma praça forte".
cultural mastigado e sem substância? Qpe
se submete a um entretenimento entor- TRATA-SI< Df. BDI(
pecedor? Que em vão passa horas em re-
pouso para eliminar uma fadiga que não é Dlf1 eu PORI:\ P «
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apenas física, mas principalmente mental?
PARA SI: \o\l 13\11'1 FR IA,
A partir de Nietzsche, é possível su-
por, sem medo de errar, que a culpa disso À BALOFA' IDA APOl [

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Nietzsche também identifica a que a noção de causalidade é mera re-
tendência humana pela criação de es- presentação, ilusão da mente humana e
truturas lógicas para se agarrar. Em A que tudo está envolvido em forças circu-
gaia Ciência ele afirma que "a vida não lares, não forças que perpetuam, mas que
é argumento. Armamos para nós um criam e transformam.
mundo, em que podemos viver - ao Vale muito observar o alerta de Gil-
admitirmos corpos, linhas, superfícies, les Deleuze que em Nietzsche e a Filosofia
causas e efeitos, movimento e repouso, afirma que a crítica em Nietzsche não é
forma e conteúdo: sem esses artigos de nunca uma reação, uma atitude de vin-
fé ninguém toleraria agora viver". gança, rancor ou ressentimento, mas sim
Portanto, segundo Nietzsche, é pos- uma ação, uma expressão ativa de um
sível recuperar a liberdade e atingir a lu- modo de existência, uma agressividade a chance da realização de uma experiên-
cidez ultrapassando conceitos e medos que não apresenta a negação, mas sim a cia. Entretanto, somente é possível perder
supersticiosos, abandonando convicções e diferença: "a diferença é o objeto de uma algo que já se tem posse e a perda traz
a crença da posse na verdade incondicio- afirmação prática inseparável da essên- inevitavelmente a sensação de alívio ou
nada. É necessário também reconhecer a cia e constitutiva da existência. O 'sim' falta, o que não ocorre quando se "perde
falência dos juíws éticos que a sociedade de Nierzsche se opõe ao 'não' dialético; a uma oportunidade", visto que a experiên-
pretensiosamente insiste repousar sobre leveza, a dança, ao peso dialético; a bela cia nunca se concretizou, É preferível a
verdades absolutas. irresponsabilidade, às responsabilidades expressão "deixou de ganhar", pois ao ab-
O homem livre não nega o reino dos dialéticas". Assim sendo, Deleuze pro- dicar de uma experiência decide-se nun-
acasos, onde, conforme menciona Niet- põe que uma crítica de negação não é ca vivenciá-la e portanto nunca conhecer
zsche em Aurora, "tudo se passa sem sen- suficiente para um exercício completo da suas consequências. Portanto, trata-se de
tido, nele tudo vai, fica e cai sem que nin- liberdade, visto que ela ainda se apresenta abdicar de crescer e abrir caminhos, de
guém pudesse dizer, por quê? Para quê? ligada à realidade criticada e negada. A negar a existência em favor de uma segu-
Temos medo desse poderoso reino da verdadeira libertação surge com a criação rança impossível. Ifilo
grande estupidez cósmica, pois aprende- e a exploração de novos caminhos, com
mos a conhecê-lo, o mais das vezes,quan- uma força que não reage negando, mas
do ele cai sobre o outro mundo, o dos fins sim afirmando sua diferença. ADORNO, T. vc, HORKHEIMER, M. Dialética
do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio
e propósitos, como um tijolo do telhado e Tempo livre, portanto, somente é li- de Janeiro: Zahar, 1985.
nos atinge mortalmente algum belo fun". vre se existencial, se embriagado de vida, BACON, F. Nova Atlântida. São Paulo: Abril
Cultural, 1984.
A liberdade é possível àquele que não e embriagar-se de vida significa libertar-
CAlviPANELLA, T. A cidade do sol. São Paulo:
se agarra aos bem - ordenados sistemas -se do mundo prescrito, da realidade da ícone, 2002.
racionais e metafísicos, sejam eles políti- televisão,dos filmes em que tudo funcio- DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio
cos, morais, científicos, econômicos etc. na perfeitamente, e da visão científica em de Janeiro: Contraponto, i997.
DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Porto:
Por isso mesmo não confia cegamente que tudo é amarrado e ajustado logica- Rés Editora, 2001.
na consciência, pois sabe que o conheci- mente. Embriagar-se de vida é permitir- MORE, T. Utopia. Brasília: Universidade de
mento também se dá fora do seu contro- -se ao prazer da existência, assim como Brasília, 2004.
NIETZSCHE, f. W. A gaia da Ciência. Coleção
le, isto é; por meio de impulsos e pulsões também permitir-se à dor da existência,
Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
de desejo, desejo de conquista, de poder Há quem deixe de viver por temer a dor . Humano, demasiado humano.
e de criação. Entende a linguagem como do erro e da perda, ou então insiste em Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
mera porta-voz da consciência, que inca- torjar explicações racionais para não usu-
-77""'-;-" O nascimento da tragédia no
paz de abarcar o conhecimento no devir, fruir o prazer ou para apaziguar a dor. espírito da música. Coleção Os
na transformação constante, cria concei- Assim tudo fica mais fácil, mas inevita- Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
. Sobre verdade e mentira no
tos e se agarra a eles como pressupostos velmente se torna também artificial.
sentido extramoral. Coleção Os
de verdades incondicionais. Ele possui Às vezes o sentido de certas ex- Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
"moral de senhor", ou seja, é responsável pressões diz muito pouco ou está muito ~ PLATÃü. A República. Bauru: Edipro, 1994.

por si mesmo, sua moral é a moral em si, aquém da realidade que se pretende co- ~ PRONOVOST, G. Introdução à Sociologia do
'i:2 lazer. São Paulo: Senac, 2011.
por isso ele é quem determina os valores. municar. É o que ocorre na afirmação UJ

::t ZOLA, Émile. Germinal. São Paulo:


Sabe também que está em meio ao caos, "oportunidade perdida", ou seja,é perdida "" Companhia das Letras, 2001/2002.

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