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OLGÁRIA MATOS

OLGÁRIA MATOS
é professora de Filosofia
Política do Departamento
de Filosofia da FFLCH-
USP e autora de, entre
outros, Os Arcanos do
Inteiramente Outro – a
Escola de Frankfurt, a
Melancolia e a Revolução
(Brasiliense).

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apitalismo cultural” é o à constituição do laço social. Pois se, nessa
modo de produção que tradição, a cidade é laço afetivo, é philia, é
integra as realizações es- também um modo específico de economia
pirituais no mercado con- libidinal que produz idealidades políticas.
sumidor segundo as de- O que se denomina “indústria da cultura”
terminações do custo-be- – termo cunhado por Adorno nos anos 1940
nefício e de amortizações – significa que os bens culturais perdem sua
rápidas de investimento. autarquia, na seqüência do movimento geral
“Cultura capitalista” é a de produção da cultura como mercadoria,
superestrutura que corres- “selando a degradação do papel filosófi-
ponde à transformação da economia de co-existencial da cultura”2. Com efeito, o
mercado em sociedade de mercado, na humanismo da Renascença desenvolveu a
qual nada escapa às leis da compra e da tradição da retórica, de grande longevidade
venda, tendo-se universalizado o “devir na cultura ocidental, tradição que remonta
econômico da política”, sua conversão em aos sofistas gregos e continua em nossos
economia, com o conseqüente encolhi- dias, adaptada agora às determinações capi-
mento do espaço público, proletarização talistas – de onde estar a retórica reduzida a
crescente da sociedade e miséria simbólica fórmulas prontas e idéias feitas, estereótipos
que isso implica. A cultura capitalista é a e clichês. Os cursos em voga de língua e
da simbiose entre economia e cultura e se composição, redação e escrita criativa, de
constitui pela dessublimação repressiva de propaganda ou correspondência comercial
desejos, pela ilimitação do consumo e pro- são variações modernas da antiga tarefa da
dução permanente de carências e falta, de retórica, que procurava ensinar a expressão
tal forma que – determinando uma cultura oral e escrita mediante regras e modelos:
do excesso, de tal forma que a sociedade
de mercado atual conduz à incivilidade. “Dado que os retóricos prometem falar e
A cultura humanista e das Luzes, ao escrever sobre qualquer assunto e os filó-
contrário, concebeu a esfera pública como a sofos pensar sobre qualquer tema, sempre
dimensão da vida social e política autônoma rivalizaram […]. Essa rivalidade aparece na
com respeito às leis do mercado, inscre- polêmica de Platão contra os sofistas […].
vendo-se na tradição da skolé grega e da Os retóricos, a partir de Isócrates, interessa-
Renascença. Essa autarquia evidenciava-se ram-se pela moral e gostaram de chamar-se
em saberes valorizados, os studia humani- filósofos, enquanto, a partir de Aristóteles,
tatis. Cícero, como outros autores romanos os filósofos tendem a oferecer uma versão
da Antigüidade, empregaram o termo no da retórica como parte da filosofia”3.
sentido geral de “educação liberal”, isto é,
1 Cf. Rudolf Pfeiffer, Humanitas dos livros, de educação literária, a que deram Nas origens, retórica e gramática pos-
Erasmiana, Leipzig/Berlin,
1931. continuidade os sábios italianos do século sibilitavam estudar os textos antigos, por
2 Lúcia Santaella, Comunicação XIV1. Na primeira metade do século XV, os facultar o ingresso em seus sentidos. Que
e Pesquisa, São Paulo, Hacker,
2002, p. 39.
studia humanitatis consistiam em um ciclo se pense em Lourenço Valla e a interpreta-
3 Cf. R. Kristeller, El Pensamiento
claramente definido de disciplinas intelec- ção do texto “Doação de Constantino”4 ou
Renascentista y sus Fuentes, tuais – a gramática, a retórica, a história, a Espinosa no Tratado Teológico-Político.
Fondo de Cultura Económica,
1982, p. 4. Não consta o nome poesia e a filosofia moral – e excluíam, de Com respeito ao primeiro, a análise textual
do tradutor. Outros autores, ao certo modo, a lógica, a filosofia natural, a prova a operação de poder de “Doação de
contrário, consideram o cancela-
mento do ensino da retórica nos metafísica, as matemáticas, a astronomia, Constantino” – escrito que se pretendia do
anos escolares no início do
século XX na França como sinal a medicina, as leis e a teologia. Tratou-se século IV – na prerrogativa dos papas em
do declínio da cultura humanista de uma decisão tanto cultural quanto polí- dominar reis e o imperador germânico,
e literária. Cf. Dictionnaire de
Rhrétorique, PUF. tica de enobrecer mais a cultura da socia- podendo vigiá-los ou depô-los. Reza a
4 Cf. Renato Janine Ribeiro, A bilidade, da civilidade, da politisse que a “Doação” que no terceiro dia da conversão
Última Razão dos Reis, São “cultura científica” por encontrarem-se os de Constantino ao cristianismo – que hoje,
Paulo, Companhia das Letras,
1993. studia humanitatis diretamente associados sabe-se, é do século VIII – o imperador teria

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conferido ao papa Silvestre e seus sucesso- de uma pedagogia e da eficácia dos studia
res insígnias imperiais – o paço de Latrão humanitatis na formação dos cidadãos. Os
e até o próprio império – reservando-se tratados da época, Della Famiglia de Al-
apenas o governo de Bizâncio. Conhecedor berti e De Ingenuis Moribus de Vergério,
dos cânones da linguagem clássica, Valla enumeram as obrigações dos pais com os
aponta impropriedades em “Doação”. Ao filhos, o que incluía educá-los em uma bela
proceder à genealogia da leitura e da in- cidade. Enfatiza-se a aquisição das artes
terpretação de textos, Valla torna explícita liberais que se tornam patrimônio da vida
a vocação desse escrito. E Renato Janine inteira, independentes que são com respeito
Ribeiro comenta: às condições materiais de vida de cada um,
pois estas, diversamente da posse definitiva
“[…] como falaria Constantino em ‘sá- dos saberes literários (que propiciam em
trapas’ que jamais existiram no mundo abrandamento dos costumes e tolerância), 5 Idem, ibidem, pp. 60-5.
romano? Como acontece que tantas palavras podem sofrer os reveses da fortuna. Uma 6 Recusava-se, sim, a dialética
escolástica e suas querelas
sejam usadas erradamente, por exemplo, seu boa educação jamais se perde e é um bem que pouco tinham relação com
ou sive em sentido de conjuntivo(e) quando mesmo para quem não nasceu em família o corpo social. Cf. Lourenço
Valla e Alberti, entre outros;
no latim clássico eram disjuntivos(ou) […]? abastada ou em uma cidade de renome e Newton Bignotto, Origens
O diadema, identificado à coroa, seria feito fama, pois a educação permite reunir “o do Republicanismo Moderno,
São Paulo/Belo Horizonte,
do mais ‘puro ouro de gemas preciosas’. que foi dado pela natureza” e a beleza das Humanitas/UFMG, 2001.
Mas o diadema, explica o scholar renascen-
tista, não passa, na verdade, de um pano. E
Constantinopla não poderia ser citada como
Sé patriarcal porque ainda nem sequer fora
planejada […]. [Além disso] a pseudo-‘Doa-
ção’ não poderia datar do século IV […]. Da
crítica histórica e estilística, procede Valla
diretamente a uma crítica de idéias. Afirma
que é imprópria essa linguagem, de matriz
religiosa, na voz do imperador que agora
se reconhece súdito do papa. Constantino
outorga ao papa a faculdade de ordenar
padres […]. [A filosofia política de Valla]
é uma denúncia pungente da dominação
política alcançada pela religião”5.

Além disso, uma vez a literatura grega


traduzida pelos humanistas para o latim,
o estudo da gramática alterou não só o
conhecimento do grego mas a própria
percepção do passado e da língua latina,
considerando-se a retórica como a arte de
falar de maneira adequada – não apenas uma
maneira de se expressar de modo elegante
– pois é ela que permite efetiva participação
nos assuntos da cidade. Humanistas como
Alberti e Vergério não aceitavam – ao con-
trário estranharam – o que Platão dizia dos
sofistas, pois não concebiam a vida política
e a liberdade sem a participação nas dispu-
tas próprias à vida republicana6. A idéia do
cidadão ativo, por sua vez, não se dissociava

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artes liberais. Embora distante do princípio Para a arte de viver é primordial o
do direito de acesso de todos à educação conhecimento da língua e da literatura
– que viria a ser um objetivo essencial do pois ambas têm força emancipadora e
pensamento republicano moderno – importa concorrem para a descoberta de tudo o que
aos humanistas a aquisição da virtù pela obscurece e prejudica as relações entre os
educação; por isso esta – e não a riqueza ou homens no espaço da cidade. Assim, os
o nome de família – deve ser louvada: “livros sagrados”. Eles só o são quando se
desconhece sua língua, de onde resultam
“Manifesto é, pois, que a verdadeira nobreza atitudes supersticiosas, como a crença em
existe só pela virtude da alma. A abundância intervenções divinas e milagres. Marilena
de riquezas, ou a grandeza das gerações Chauí observa que só há decreto divino
passadas, não poderá dar ou retirar nobreza, para o leitor que desconhece a gramática
pois sua sede própria é a alma, que a natu- hebraica. Por isso, Espinosa mostra que a
reza, imperatriz de todas as coisas, coloca Bíblia nasce de necessidades históricas da
igualmente em todos, desde o nascimento, época em que foi escrita:
não por dom hereditário, mas por doação
e graça divina”. “[…] aquele que pretende conhecer um texto
é obrigado a assumir a natureza textual do
Como demonstração, cita Sócrates, objeto que investiga. A regra fundamental do
homem pobre, filho de um parteira mas trabalho histórico consiste em nunca perder
que mudou a filosofia e se transformou em de vista a língua em que o documento foi
um dos mais importantes personagens de escrito. […] A linguagem […] é a única via
seu tempo. O aprender só depende, para o de acesso à mente dos hebreus, ao espírito
humanista, de gosto e de talento, e não de hebraico, isto é, a seu sentido. Na produti-
qualidades consangüíneas e hereditárias7. vidade corpórea da linguagem inscreve-se
Virtù e fortuna são, na Renascença, te- a produtividade mental do sentido […].
mas constantes, já que virtù é a afirmação Portadora de sentido, a linguagem faz com
do valor pessoal do homem que constrói, que o ato de ler a Escritura seja o de buscar
por si mesmo, seu destino; com ela vence o espírito de sua letra. Nem espiritualismo
benefícios e males, contingências e incer- metafórico nem farisaísmo da letra: a filo-
tezas que não têm poder sobre ela: logia do Teológico-Político não admite a
separação da forma e do conteúdo”9.
“[…] vejo que muitos culpam a fortuna
[por seus males] sem que esta seja causa O estudo das línguas e os studia humani-
verdadeira e percebo que muitos, tendo tatis trazem consigo também o autodomínio
fracassado por sua estultícia em casos des- como ideal de ego e da cidade, autodomínio
graçados, o atribui à fortuna, e se queixam que viria a se constituir como o ideal da vida
por terem sido levados e traídos por suas civilizada, pois o citadino, diferentemente
flutuantes ondas, nas quais eles mesmos, do guerreiro antigo que não necessitava dar
estultos, se precipitaram; e, assim, muitos prova de grande contenção, deve ocupar-se
7 Cf. Buonacorso da Montema- ineptos dizem que a causa de seus erros cada vez mais do comportamento na pólis.
gno, De Nobilitate, p 142.
encontra-se em outras forças […]. São os Assim, o humanismo cívico da Renascença
8 Cf. L. B. Alberti, I Libri della homens a causa, na maioria das vezes, de cria a politesse a partir da “graça”. Prove-
Famiglia, Firenze, G. Mancini,
1908, pp. 2-6. todo seu bem e de todo seu mal […]. In- niente do grego, charis significa, simul-
9 Marilena Chauí, “O Hieróglifo dague-se as repúblicas, pense-se em todos taneamente, o “reconhecimento” e “o ato
Decifrado: Escrever e Ler”, in
Política em Espinosa, São Paulo, os principados do passado e se descobrirá com o qual se adquire reconhecimento”. No
Companhia das Letras, 2003, que, para adquirir e multiplicar, para obter Dictionnaire Étymologique de la Langue
p. 19.
e para conservar a majestade e a glória já Latine de Meillet e Ernout, a gratia é “favor,
10 A. Ernout e A. Meillet, “Aris-
tóteles e a Política”, in Diction- conseguidas, em nenhum caso valeu mais a crédito, influência” e, também, força de
naire Étymologique de la Langue fortuna do que as boas e santas disciplinas atração, beleza”10. O dicionário registra um
Latine: Histoire des Mots, Paris,
Klincksieck, 1959-60, p. 14. do viver”8. significado ativo e outro passivo do adjetivo

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gratus . No passivo, gratus é “acolhido com boa educação, a mesura, a sobriedade, a
favor ou reconhecimento”, “bem-vindo”. contenção – a “graça” – eliminam a rudeza,
No ativo, vem a ser “que demonstra reco- constituindo a urbanidade. Ao tratar do An-
nhecimento”. Ingrato, ao contrário, é aquele cien Régime, Taine escreve: “[os homens]
que “não é acolhido com reconhecimento” atingem, ao mesmo tempo, a extrema fra-
ou “não merece reconhecimento”; na forma queza e a extrema urbanidade. Quanto mais
ativa, “que não demonstra reconhecimento”, uma aristocracia se torna polida, mais ela se
“não é grato”. No Thesaurus Linguae Lati- desarma”14. O cortesão perfeito constrói a
nae define-se “graça” nos termos segundo existência como obra de arte, selecionando
os quais ela é a inclinação da alma a fazer o que é louvável, a exemplo de Zêuxis “que
o bem gratuitamente ou resposta a algum escolheu cinco jovens para delas fazer uma
benefício recebido, aplicando-se a pessoas única figura de excelentíssima beleza”15.
e a coisas: se a pessoas, ela é o conjunto das Nessa linhagem, Castiglione transforma
qualidades que definem quem é agradável a vida de corte em centro de um universo
aos sentidos e ao espírito; é, pois, uma moral: “[…] para ele a corte era tão funda-
espécie de beleza que indica a gentileza mental para a boa vida como a cidade-estado
e politesse, a delicadeza nas maneiras e o era para Aristóteles”16.
nos comportamentos. No âmbito moral, Com a sprezzatura, Castiglione amplia,
a graça é virtude e atitude, predisposição modificando-a, a idéia de “boas maneiras”,
natural que incita a amar e a fazer o bem; revelando que a “distinção” do homem de
pode coincidir com a misericórdia, a cle- corte provém de certa indiferença diante
mência ou gratidão, ter reconhecimento de comportamentos que constrangiam o 11 Em teologia, a graça é uma
dádiva de Deus ou a própria
por algum favor recebido11. Encontrada na nobre no exercício do papel de “cortesão”, bondade divina. No direito,
a graça é um ato de magna-
teologia, na política e na estética, a graça sendo, então, depretio o “sentimento aris- nimidade do poder que, pelo
diz sempre respeito a um outro e ao senti- tocrático por excelência”, desprezo, antes interesse público, pode revogar
uma condenação. Cf. P. Robert,
mento que suscita, implicando ação de dar de mais nada, do “ignóbil”. Deslocando Dictionnaire Alphabétique et
e receber, sendo a regra universal da vida a “naturalidade” da atitude nobre como Analogique de la Langue Fran-
çaise, 1970.
dos cortesãos12. Na tradição de Aristóteles, propriedade inata, a “nobreza” do corte-
12 Baldassar Castiglione, de for-
“cortesia” é senso de medida ao qual se são – sua sprezzatura – não deve aparecer mação humanista, tem sua obra
publicada pela primeira vez no
acrescenta a discrição, propiciando a cada como resultado de esforço deliberado e de ano de 1528, em Veneza.
um evitar excessos e buscar o justo-meio, trabalho de si, mas requer ser “incorporada” 13 Cf. Peter Burke, As Fortunas
enfatizando-se o decoro. Iniciada nas cortes em cada um, pois a “distinção” do homem d’O Cortesão, São Paulo,
Unesp, 1997, p. 25. “Cortesia”
medievais, a curialitas – a “cortesia” – era a de “maneiras” – do “fidalgo” – não deriva ingressa no latim na passagem
“nobreza dos modos”13. O campo semântico da aplicação de normas (às quais, de resto, do século XI ao século XII.

da urbanidade abrange os escritos da Roma todos podem ter acesso), mas de “interio- 14 Cf. “L’Ancien Régime”, in Les
Origines de la France Contem-
antiga, Ovídio e Cícero – cujas reflexões rização” de valores e comportamentos – o poraine, L’Ancien Régime, La
Révolution, ed. Robert Laffont,
contrapunham à villania amor e boas ma- que permite não lhe “prestar atenção”. Por 1986, p 125. No Antigo
neiras, a urbanitas vencendo a rusticitas. isso, um comportamento naturalmente me- Regime, a Igreja encaminha
os nobres para a cavalaria,
Para Cícero, um cavaleiro devia prezar ao dido vem a ser um sinal de “nobreza inata”. visando a conter ou canalizar
máximo a lealdade, a generosidade, a fran- Desfazer-se de afetação, realizar boas ações a violência, fixando prazos
durante os quais fica proibida a
chise. Convinha-lhe ser também leteratus sem fadiga e quase sem pensar, velar a arte guerra entre os barões, dirigindo
o espírito bélico para os inimigos
– o letrado capaz de compor e entender de consegui-lo, eis a sprezzatura de que da fé cristã – muçulmanos ou
versos em latim para o aprimoramento do deriva a graça: pagãos da Europa Oriental ou
hereges do sul da França. Os tor-
espírito e do convívio público. neios representam uma mímica
guerreira, com a vantagem de
Em seu livro A Civilização dos Costu- “[…] porque cada um sabe como as coisas as armas serem artificiais. Todo
mes, Norbert Elias acompanha, ao longo raras e bem-feitas são difíceis e a facilidade tipo de excesso é aí contido. Cf.
Norbert Elias, La Civilisation des
do “processo civilizatório”, a passagem gera grandessíssimo maravilhamento, esfor- Moeurs.
do cavaleiro – o militar mundano que age çar-se é, como se diz, puxar pelos cabelos, 15 Castiglione, O Livro do Cor-
como “um leão” – ao cortesão “cortês” é fazer estimar pouco cada coisa, por maior tesão, I, p. 26.

e “gracioso”, que age com “disciplina” e que seja. Pode-se dizer que a verdadeira 16 L. Stones, The Crisis of the
Aristocracy – 1558-1641,
“arte”. Antídoto à violência guerreira, a arte é a que não parece ser arte; assim, não Oxford, 1965, p. 400.

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se deve aplicar-se em outra coisa senão em discurso, independente de sua veracidade ou
escondê-la. Porque, se descoberta, retira o falsidade. Percepção pungente da diferença
crédito de tudo e faz o homem ser pouco entre o conhecimento e a vida, a Retórica
estimado”17. permite enfatizar que a verdade é questão
de lógica, impotente, assim, diante dos
A sprezzatura implica, pois, esconder o caracteres e paixões. Eis a grande impor-
esforço, ostentar discretamente facilidade e tância, na constituição da esfera pública, da
naturalidade, como a obra de arte que deve atenção aos Caracteres – de Teofrasto e La
demonstrar espontaneidade18. No homem Bruyère – quando se reúne a pólis clássica
de corte, a afetação é “excesso de arte” e ao século dos reis. A esse respeito Renato
vem a ser um vício, observado no século Janine Ribeiro anota:
seguinte a Castiglione por La Rochefou-
cauld: “[…] nunca se é tão ridículo pelas “Teofrasto – discípulo de Aristóteles – in-
qualidades que se tem, que por aquelas que vestigou os tipos morais em uma Atenas
afetamos ter”. Com efeito, a percepção da ainda marcada pela tradição republicana e
corte como cena da vida em público viria a que portanto possuía como lugar principal
se extroverter na esfera pública, atingindo, de encontro público a praça, a Ágora – e os
no Ancien Régime, entre os séculos XVII e Caracteres de La Bruyère, seu tradutor e
17 Castiglione, O Livro do Cor- XVIII, um novo patamar. comentador, que se voltam sobretudo para
tesão, p. 26. Reino das aparências, sim, mas sem elas a conduta nobre e cortesã, embora sem
18 Cf. La Rochefoucauld, Máximas de nada vale a verdade íntima. Por isso, a descurar da cidade. Em suma, nos tempos
e Reflexões, trad. Leda Tenório
da Motta. corte é o microcosmo de observação dos modernos, que hoje se tornaram Antigo
19 Renato Janine Ribeiro, “A costumes, onde nasce, por assim dizer, a Regime, a vida é espetáculo – é teatro, é
Glória”, in Os Sentidos da
Paixão, São Paulo, Companhia
psicologia, reavivando a Retórica de Aristó- sonho –, e a corte é a produção consciente,
das Letras, 1987, p. 109. teles e o estudo das paixões, a fim de tornar deliberada, in vitro poderíamos dizer, dessa
20 Idem, ibidem, p. 111. receptivo ao acolhimento o ouvinte de um espetacularidade”19.

Antes de degradar-se em fórmula de


pouca eficácia, a etiqueta foi uma “peque-
na ética”, pois sua difusão – os manuais
que recomendavam como se comportar
à mesa, como não beber de uma sopeira,
não comer com as mãos – não pretende a
higiene e a saúde, mas o respeito ao outro,
visando agradá-lo. Máximas e sentenças
consistiam em orientação no infortúnio ou
na boa-sorte, não significavam formalismo
ou frieza em sociedade, mas sim um modo
de expressar os sentimentos; e, justamente
porque “as paixões eram muito fortes, os
homens convencionaram regras para não se
ofenderem uns aos outros”20. Com a etiqueta
a sociedade aprende a comportar-se.
O verbete “Manière” da Enciclopédia de
Diderot e d’Alembert esclarece que

“[…] as maneiras devem exprimir o respeito


e a submissão dos inferiores aos superiores,
os testemunhos de humanidade e condescen-
dência dos superiores com os inferiores, os
sentimentos de benevolência e de estima en-

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tre os iguais. Elas regram seu mantenimento, os efeitos deletérios da simulação e da dis-
elas os prescrevem às diversas ordens, aos simulação que a vida na corte implicava,
cidadãos de diferentes estratos. Vê-se que as preocupavam-se com as maneiras, isto é,
maneiras, assim como os costumes, devem com o aperfeiçoamento de si.
mudar segundo as formas de governo […]. Não por acaso, e pela primeira vez na
Nos países despóticos, os testemunhos de Europa, a partir de Luís XIII, na França
humanidade e de condescendência da parte houve a decisão política de criar acade-
dos superiores reduzem-se a bem poucas mias, em seguida reformadas por Luís XIV
coisas. […]. Os superiores só afetam pelos e Luís XV, que também fundaram novas,
inferiores desprezo ou uma insuficiente pie- transferindo-se os cuidados com a educação
dade […]. Nas democracias, nos governos de Versalhes a Paris, centro, agora, da Re-
em que o poder legislativo reside no corpo pública das Letras, quando a corte passou a
da nação, as maneiras marcam bem pouco viver estreitamente associada às academias
as relações de dependência; […] a liberdade do rei. Nessa época, mostra Marc Fumarolli,
se manifesta nas atitudes, nos traços e ações o grand monde torna-se público e árbitro da
de cada cidadão. Nas aristocracias e nos grande reputação de que passa a desfrutar
países em que a liberdade pública não mais o livro, a língua e a literatura francesa.
existe, mas onde se desfruta de liberdade Em contrapartida ao latim praticado nas
civil […] agrada-se pelo consentimento ou universidades, Luís XIV promove a koiné
mesmo pelas virtudes, e as maneiras são, francesa com a língua e literatura, enfático
assim, geralmente nobres e agradáveis […]. em promover uma identidade coletiva com-
Normalmente, nesses países, observa-se à partilhada e valorizada por todos:
primeira vista uma certa uniformidade, os
caracteres parecem assemelhar-se, porque “Em Paris, como na Roma de Tito Lívio,
as diferenças ficam escondidas pelas ma- o francês literário e o francês da conversa-
neiras […]. Aqui as maneiras não apenas ção, diferentemente do que se passava na
incomodam a natureza, mas elas a trans- Itália, eram uma mesma língua. Essa língua
formam”. interiorizara, por assim dizer, as exigências
retóricas da urbanitas latina: clareza, pre-
Foi Alexis de Tocqueville quem analisou, cisão, delicadeza, naturalidade […]. ‘Viver
em cerimoniais, a influência da democracia nobremente’, este modo aristocrático de
na modificação das regras do savoir-vivre, ser, cuja superioridade fora estabelecida
indicando os laços entre cortesia, civilidade, pela Antigüidade grega, permaneceu na
etiqueta e polidez. O capítulo “Algumas França, em tempos de paz, o único ideal,
Reflexões sobre as Maneiras Americanas” apto a rivalizar com a ‘vida contemplativa’
de Democracia na América considera-as do monge, o que supõe […] o atrativo da
como manifestação do estado social e polí- vida dos castelos e a companhia urbana, e
tico da sociedade, permitindo saber quando a prática desinteressada das disciplinas do
se vive sob leis de uma democracia ou de espírito tomadas de empréstimo a eruditos
uma aristocracia. Porque os cerimoniais são e letrados. A skolé dos gregos, o otium dos
mais simples na democracia, Tocqueville latinos são o ideal comum, partilhado por
interroga a nova forma de sociabilidade po- letrados e fidalgos”21.
lítica e o estatuto das maneiras e a tendência
à informalidade na América republicana. Se, sob Luís XIV, a língua e a literatura
De início, Tocqueville reconhece, nisso, francesa foram decretadas bem de utilidade
uma resposta ao Antigo Regime, na von- pública, é por ser o francês, assim como a
tade explícita, deliberada e permanente de língua grega na Grécia clássica, fator de
abolir privilégios e desigualdades, abolindo identidade coletiva e nacional, a transfor-
costumes e disputas da sociedade de corte. mar uma população em povo, constituindo
Mas Tocqueville não desconhece que os uma philia social, a individuação psíquica
21 M. Fumarolli, op. cit., pp. 41-
humanistas e moralistas, protegidos contra e coletiva que se chamaria nação: 35.

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“A Academia Francesa, criada em 1635, uma época democratizante que concebia a
é propriamente uma instituição da realeza ampla formação do povo para que pudesse
visando a engendrar um espírito nacional. governar e decidir sobre todas as questões
Ela definiu a Nação, no fim do século visando à liberdade e à felicidade na vida
XVII, em seu primeiro Dicionário, como em comum dos homens, fazendo da cultura
o conjunto dos habitantes de um país par- um bem compartilhado, uma memória co-
tilhando as mesmas leis, a mesma língua, municada como patrimônio coletivo, direito
valores comuns, reconhecendo-se todos de todos na alternância das gerações. Nas
nesses valores”22. novas instituições do saber fundadas pela
Revolução – as bibliotecas públicas, os
A partir da Revolução Francesa, com museus de história natural, das artes e da
o desaparecimento das hierarquias sociais técnica, assim como as novas escolas pri-
fundadas na honra, com a passagem do márias e as especializadas – o saber deveria
Antigo Regime baseado em privilégios circular como um livro aberto. Na Paris
privatizantes para a democracia, o estilo de revolucionária e pós-revolucionária
vida e as maneiras da corte se democratizam
na preocupação com respeito ao outro: “[…] o conhecimento do mundo foi ca-
nalizado em novos modos de circulação
“[…] pela distância e distinção que elas e representado simbolicamente. Os novos
22 Bernard Stiegler, La Télécratie
contre la Démocratie, Paris, instauram, as maneiras podem reconhecer museus, com suas novas formas de organi-
Flammarion, 2006, p. 72. a qualidade ou o valor, podem também le- zação e de exposição – a galeria dos quadros
23 C. Haroche, “Des Formes et sar e humilhar, provocar amargura e ódio. do Louvre, o Museu de História Natural, o
des Manières em Démocratie”,
in Raisons Politiques, n. 1, Têm, não obstante, por função, estabelecer Conservatório das Artes e Ofícios, o Museu
2/2001, p. 92.
formas de mediação, prevenir o contato di- dos Monumentos franceses –, tornam-se os
24 Marc Fumarolli considera a for-
reto dos corpos. Tentam impedir a irrupção lugares da legibilidade do mundo”25.
mação da civilidade francesa a
partir da decisão, tanto política da imediatidade, da violência e entendem
quanto cultural, de fortalecer a
cultura como laços de coesão assim proteger o eu profundo”23.
social e de philia política. Cf.
Quand l’Europe Parlait Français,
Fallois; La Diplomatie de l´Esprit, Ao distinguir maneiras democráticas
Gallimard; L’Ètat Culturel, Fal-
lois. e aristocráticas, Tocqueville indica que,
25 Karlhenz Stierle, La Capitale des
no novo regime, os comportamentos não
Signes: Paris et son Discours, se pautam por nenhum modelo ideal dado
Paris, Maison des Sciences de
l’Homme, 2001, p. 3. Todas es- antecipadamente para a imitação de todos,
sas instituições dizem respeito a acrescentando que “estas coisas são fúteis,
uma memória organizada e par-
ticipativa da escrita alfabética mas a causa que as produz é séria”. Nesse
como forma de troca simbólica
– o que se encontra em questão sentido, Norbert Elias refere-se aos tratados
no momento em que as novas de educação dos príncipes, aos manuais
tecnologias da comunicação
promovem uma dissecação de civilidade, etiqueta e boas-maneiras
entre escrita e língua, por
um lado, entre democracia
voltados aos nobres e, mais tarde, aos bur-
produtora de socialização, de gueses, tratados que procuravam modelar
singularidades, subjetividade
e a pseudo-participação das e influenciar temperamentos, sentimentos
tecnologias de comunicação e condutas institucionalmente valorizados,
que não estão, ainda, voltadas
para a transindividuação das concorrendo para os processos de socializa-
organizações políticas e soci-
ais. Segundo Bernard Stiegler, ção. Nesse horizonte, a República das Letras
as indústrias de programas, é a quintessência do “Estado cultural”24,
sobretudo televisivos, impõem
ao meio associativo que é a no qual a universidade é, por excelência,
Internet – não relações entre
indivíduos – investimentos rela-
instituição socializadora e civilizatória.
cionais dirigidos para a lógica A universidade moderna nasce do
das mercadorias, controlando,
assim, as trocas simbólicas projeto dos enciclopedistas, da Revolução
ou, ainda, dessimbolizando, Francesa e do estabelecimento da educa-
dissociando. Cf. La Télécratie
contre la Démocratie. ção nacional, iniciado por Condorcet, em

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A educação constitui-se como uma re- de refazer um tecido social homogêneo que
flexão acerca das experiências históricas e suceda, para além do dilaceramento revo-
existenciais, legadas pelo tempo, visando lucionário e democrático, o antigo tecido
à autonomia que é, por isso, princípio da monarquia e da religião. Eis por que o
regulador, fundamentado na idéia de hu- entrelaçamento da instrução e da educação
manidade e de sua destinação. O objetivo lhe é essencial. As frases que introduzem as
26 Jacques Rancière, La Haine
social da universidade moderna era produzir crianças da escola primária no universo da de la Démocratie, Paris, La
cultura e transmiti-la, ambas as atividades leitura e da escrita devem ser indissociáveis Fabrique, 2005, p. 73.

indissociáveis do ideário de uma identidade das virtudes morais que lhe determinam o 27 Trata-se de uma atitude radical-
mente diversa das proposições
nacional para o fortalecimento espiritual da uso […]. O programa de Jules Ferry [em do monopólio dos cursos pré-
vestibular, que pretendem um
democracia. Lembre-se que desde a Grécia 1903] baseia-se na unidade da ciência e único e mesmo vestibular em
clássica, passando por Lutero, Ignácio de unidade da vontade popular. Identificando todo o país. O sistema francês
decidiu pela identidade coletiva
Loyola, Condorcet até Jules Ferry, a alfabe- república e democracia como uma ordem e nacional através de valores
tização e a educação nacional constituíram a social e política indivisível, Jules Ferry comuns compartilhados pela
qualidade de suas instituições
operação política de maior envergadura por reivindica, em nome de Condorcet e da públicas de formação. O pro-
jeto civilizatório na França foi
significarem – no caso da França e dos países Revolução Francesa, um ensino que seja a decisão de constituir uma
que acompanharam os valores republicanos homogêneo em todo o país, do mais alto população em povo através
da educação pública, laica e
– a constituição de um povo que não seria grau ao mais elementar. De onde o desejo universal fundada na língua, na
literatura e nos saberes técnicos.
mais apenas população, por fortalecerem, de suprimir as barreiras entre o primário, o Ela estabeleceu e realizou a
assim, uma organização democrática, cos- secundário e o ensino superior”26. formação de todos com igual
direito à educação e à cultura.
mopolita e universalizável. Nesse sentido Ricos e pobres lêem Homero e
Jacques Rancière observa: O Iluminismo e a Revolução Francesa Virgílio no original grego e latino
porque dividem os mesmos ban-
encontravam na educação o fortalecimento cos escolares. Nesse sentido, o
exame final prévio ao ingresso
“[…] a República nascente [que se seguiu à político e espiritual da democracia, e foram na universidade não necessita
Revolução Francesa] subscreve o programa exitosos em seu projeto civilizatório porque de cursinhos nem de training.
Como empresa, a educação
entenderam que a educação, a cultura e não pode comprometer-se
com os valores públicos, pois
as artes eram um bem a que todos tinham não pode estar exclusivamente
igualmente direito, prevenindo que o mi- voltada para a consolidação
e continuidade da vida institu-
serabilismo se instituísse como política de cional a longo prazo, porque
sofre diretamente as pressões
Estado, nos moldes das políticas educacio- do mercado. A instituição do
nais contemporâneas vigentes, segundo as espaço público no Iluminismo
europeu, a diferenciação entre
quais “é melhor dar pouco para muitos do o público e o privado marcava
que muito para poucos”. Entenderam que o limite ao poder do mercado
sobre a educação, garantidor
um povo começa a existir por suas neces- de autonomia com respeito às
determinações econômicas e
sidades espirituais27. materiais imediatas, em que o
Eis por que a privatização da educação, interesse comum se sobrepõe
ao interesse das instituições
assim como de outros serviços públicos de privadas. Observe-se, ainda,
que a universidade pública,
cunho social, designa a renúncia a essa tarefa gratuita e de qualidade tem seus
e repassa do público ao privado a segurança dias contados, a começar pelo
cerceamento da autonomia
no futuro do povo. Em outras palavras: universitária, controle de seu
orçamento e inviabilização pro-
gressiva de seu crescimento e o
“[…] os serviços de saúde, a rede de trans- de seu quadro docente, de suas
edificações, etc., com o desvio
porte, o correio, a educação são supostos a de seu financiamento para
operar na duração, se não na permanência o setor comercial e privado,
suposto substituto da educação
do tempo, para responder a necessidades pública que renuncia a sua
prerrogativa de garantir a longo
sociais inscritas no tempo longo. […] O prazo a coesão educacional,
Estado transfere ao mercado sua capacidade intelectual e cultural do país.

de assegurar o futuro dos cidadãos”28. 28 Cf. Javier Santiso, “Lenteur Poli-


tique et Vítesse Économique”, in
Malaise dans la Temporalité,
A universidade é regida por uma relação org. Paul Zawadiski, Paris,
Publications de la Sorbonne,
específica com o tempo, em conflito com a 2002, p. 124.

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aceleração constante do mercado mundial e criação de um espaço de recolhimento com
das revoluções tecnológicas que produzem respeito à cidade que a cercava, um lugar
obsolescência permanente; além disso, este dedicado ao estudo dos números e das figu-
proscreve o tempo político das democracias, ras geométricas puras, afastado da agitação
que supõem o agon – a disputa verbal – con- permanente da ágora. Era uma reserva de
flito, dissenso e memória política –, pois a autonomia, sem violência, um refúgio a
democracia é a possibilidade de aprimorar que demagogos do povo e os aparelhos
e pluralizar nossos pensamentos – o que repressivos da cidade não tinham acesso.
ocorre “quando os expomos publicamente Assim também ocorreu entre os séculos IX
para ver se concordam também com o e XII na Europa ocidental, com a criação
entendimento dos outros”29. A aceleração das universidades, cujo núcleo de origem
do tempo produz um déficit simbólico no foi teológico, mas seus intelectuais foram
mundo, pois a faculdade da simbolização é clérigos – “bons cristãos”, mas que davam
a da intersubjetividade e da cultura, aquilo mais preferência aos escritos do pagão
que sanciona o passado e consolida o que Virgílio que ao Eclesiastes, mais a Platão
é digno de renome e fama. Nesse sentido, que a Santo Agostinho. Platão e Virgílio
indiciando o passado, a universidade é um estão repletos de ensinamentos morais
documento histórico, traz para o presente e científicos. Se é verdade que o mesmo
o mundo que o gerou, pois que as esperan- pode ser dito do Gênesis – obra de ciência
ças do passado, tanto as realizadas quanto natural e cosmologia –, o que distingue as
as decepcionadas, auxiliam a ampliar e fontes é a atitude frente ao conhecimento,
aprofundar os critérios de consideração a incorporação do saber grego e árabe à
do presente. Se “a escola olha para trás em cultura cristã. Para isso, os centros univer-
um mundo que olha para a frente” é porque sitários durante séculos atraíam intelectuais
se trata de a universidade comunicar uma de todas as “nações religiosas”, ordens e
herança. Como escreveu Hannah Arendt, procedências geográficas, sendo centros de
“[…] é, justamente, para preservar o que convivência “internacional”. Os primeiros
é novo e revolucionário em cada criança intelectuais foram aqueles cujo trabalho
que a educação deve ser conservadora”30. era estudar e ensinar: “[…] a primeira
Autárquica frente ao transitório, a univer- grande figura do intelectual moderno, nos
sidade é diálogo entre as gerações. limites da modernidade do século XII, foi
A impermanência das coisas humanas Abelardo, o primeiro professor […], ele
diz respeito à sua fragilidade e ao desejo acredita no valor ontológico de seu ins-
de mantê-las no tempo, e a universidade trumento: o Verbo”33. A universidade tem
participa do desafio de enfrentá-las: “[…] a inteligência como arma eficaz, a única
o remédio original, pré-filosófico, que os que pode conduzir às verdadeiras vitórias
gregos haviam encontrado para essa fra- e que permite ingressar pouco a pouco nos
gilidade, foi a fundação da pólis”31. Se a mistérios de Deus. Desde o início, a dúvi-
29 Kant, Anthropologie du Point
de Vue Pragmatique, trad. A. futilidade da vida mortal requer a memória, da como método: “[…] nós nos dirigimos
Renaukt, Paris, Darnier-Flam-
marion, 1993, parágrafo 53. a pólis é seu lugar preferencial; ela cria, a para a pesquisa duvidando, e pela pesquisa
30 Cf. “La Crise de l’Éducation”,
um só tempo, a democracia e a filosofia, percebemos a verdade”, escrevia Abelardo
in La Crise de la Culture, Gal- pois “a cidade é já uma forma de memória em seu livro Sim e Não, no qual confronta
limard, 1989, p. 247.
organizada”32. Oscilando entre o rumor da passagens discordantes das Escrituras, para
31 Hannah Arendt, La Condition de
l’Homme Moderne, p. 221. praça pública e a escola – a skolé grega, o reduzir seu desacordo34. Ensinava-se nas
32 Idem, ibidem, p. 222 espaço para a liberdade do pensamento, a universidades o saber greco-árabe, cuja tra-
33 Cf. Jacques Le Goff, Os Intelec-
distância do atarefamento da vita activa e dução para o latim possibilitou a revolução
tuais na Idade Média, São do tempo controlado por cronômetros – o cultural daquela época. Foram a leitura e
Paulo, Brasiliense, 1989, pp.
39 e 47. diálogo filosófico se faz a céu aberto e tam- a tradução para o latim que permitiram a
34 Idem, Le Temps des Cathédrales: bém na academia. Lembre-se que o Ocidente assimilação dessa cultura espiritual pelos
l’Art et la Société 980-1420, foi porta-voz da Academia fundada por intelectuais do Ocidente. Foi o rei castelhano
Gallimard, 1976, pp. 141 e
segs. Platão no século V a. C. Ela representou a dom Afonso X, El Sábio, quem, nos anos

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1250, auspiciou a “Escola de Tradutores” da literatura e da filosofia grega, tornan-
de Toledo, onde o grego, o latim, o árabe e do-se, através delas, “fino, morigerado e
o hebraico permeavam-se, como escreveu humanus”. Humanismo e valores morais
Haroldo de Campos, “em um confraterno reuniam, assim, “aquele misto de erudição e
e seminal movimento translatício” 35. A urbanidade que só podemos circunscrever”,
dimensão ética e política da universidade, como observa Panofsky, “com a palavra tão
em livros e traduções, consistiu em terem desacreditada: Cultura”38.
promovido um espaço convivial não-ex- Esse ideário – que assegurou dignidade
cludente, transcultural e plural. às “ciências do espírito” através da univer-
A extraterritorialidade com respeito ao sidade moderna e que se ligava ao projeto
poder é o acontecimento maior da histó- de realização de uma identidade cultural
ria das idéias da Europa, que permitiu a da nação – não mais se encontra protegido,
transmissão das grandes obras e dos gran- pois a universidade cultural foi substituída
des autores, no sentido que lhes confere pela universidade de excelência, sem que se
o historiador Jakob Burckhardt. Grandes atribua a esta um conteúdo cultural – o que
são Ésquilo, Fídias, Platão, Plotino, Ra- se deveu, em grande medida, à privatização
fael, Galileu, Kepler. Mas não os grandes da educação, sob o argumento de que, em
navegadores, porque “a América poderia uma democracia, deve existir o direito de
ser descoberta mesmo se Colombo tivesse escolha e conviver o público e o privado.
morrido recém-nascido. Mas A Transfigu- Ocorre que essa convivência desestabiliza
ração não teria sido pintada se Rafael não o sistema público de ensino, em particular
o tivesse feito”36. Grandes são aqueles sem o universitário, o que, de fato, beneficia o
os quais o mundo seria incompleto. ensino privado. Como observa Franklin
Há nas obras de arte e de pensamento Leopoldo e Silva:
desejo de imortalidade e garantia de dura-
ção. Nesse sentido, Hannah Arendt refere-se “[…] o modelo privatista de organização
à tradição grega e romana que valorizava a e gestão que vem sendo implantado já há
velhice como apogeu da vida, não somente muito tempo, sob pretexto da eficiência e da
em razão da sabedoria e experiência acu- produtividade, tende a dissolver a diferen-
muladas, mas por sua maior proximidade ça entre instituição pública e organização
aos ancestrais e ao passado: privada […]. O desequilíbrio gerado pela
imposição do modelo privatista da relação
“[…] a essência própria do espírito romano custo/benefício e da eficiência refletida nos
[…] era a de considerar o passado […] como resultados imediatos desmente na prática o
modelo e, em todos os casos, os ancestrais princípio democrático da convivência entre
como exemplos vivos para seus descenden- o público e o privado”.
tes. Chegava mesmo a acreditar que toda a
35 Haroldo de Campos, “De Babel
grandeza residia no que já foi, que a velhice Por isso, as próprias humanidades os- a Pentecostes: uma Utopia
é assim o ápice da vida de um homem e que cilam entre a prestação de serviços ao Concreta”, in Regina Fabrini
(org.), Interpretação, São Paulo,
sendo já quase um ancestral, o idoso deve consumidor e a prática da pesquisa que Louise, 1998.
servir de modelo aos vivos”37. atua, como valor de troca, como atração de 36 Cf. Reflexões sobre a História,
investimentos das agências financiadoras. O Rio de Janeiro, Zahar, 1961.
Dentre os navegadores, “Co-
Sua exemplaridade se comunicava aos mercado torna-se o único critério de trans- lombo é grande”, mas apenas
porque não hesitou, como os
descendentes, da mesma forma que o pro- formação dos programas educacionais e, por grandes de seu tempo, em as-
fessor, ao mostrar o caminho da sabedoria, isso, de comportamentos intelectuais. É na sumir a teoria da forma redonda
da Terra.
compartilhava sua experiência, prodigaliza- contramão da hegemonia do mercado que,
37 Hannah Arendt, op. cit.
va conselhos, indicava modelos aos quais se na universidade pública, “o pensamento é
38 Panofsky, O Significado das
conformar, transmitia conhecimentos. Foi trabalho não-produtivo, não deve procurar Artes Visuais, São Paulo, Pers-
Cícero quem, no século I a.C, criou a palavra ser econômico, ele se inscreve melhor na pectiva, 1976, p. 20.

humanitas para falar do povo romano, que economia do desperdício do que naquela 39 Bill Readings, Universidade sem
Cultura?, Rio de Janeiro, Uerj,
alcançara sua identidade através do cultivo restrita do cálculo”39. 2002, p. 80.

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As ciências e as humanidades se de- para fantasmas comunitários, portadores
senvolveram, ambas, a partir da literatura de graves conflitos e regressões [étnicas]
e da filosofia, pois estas encontram-se e xenófobas”42.
duradouramente vinculadas a suas origens No horizonte da cultura de informação,
de laço social. Que se pense na Academia a universidade tende a se converter em
platônica e no Liceu aristotélico, protóti- prestadora de serviços, o que não é sem
pos das universidades, apogeu do espaço conseqüência para a vida social:
de individuação e de cidadania política. A
educação é portadora da philia, do laço de “[…] o capitalismo de serviços generaliza
afeição, ternura, admiração, sublimação e um processo de proletarização em que
convivência: “[…] sem philia não há futuro os produtores perdem seu savoir-faire,
político, isto é, paz social”. Nesta proximi- enquanto os consumidores perdem seu sa-
dade convivial cultiva-se voir-vivre – e, por isso mesmo, a vida perde
seu sabor, se é verdade que os saberes são
“[…] o savoir-faire e o savoir-vivre, a edu- o que, enquanto saperes, torna o mundo
cação conseguindo, a partir desses saberes, saboroso, e o mundo só o é com a condição
formas de superego e de sublimação que de ter sabor, o que supõe um saber-estar-
os gregos denominavam demos […]. Por no-mundo, o que justamente se denomina
natureza, o mercado não pode produzir saber-viver e, até mesmo, arte-de-viver e
nenhum tipo de philia porque seus objetos que em seu conjunto forma uma civilidade,
são, por princípio, calculáveis e sempre uma politesse”43,
descartáveis, enquanto os objetos de philia
[nem valor de uso, nem valor de troca, mas uma felicidade, uma alegria de viver:
valores de puro afeto] e, por isso, não têm
preço algum”40. “[…] etimologicamente a palavra sabor
(sapor) está ligada a sábio (sapiens) […].
A costura simbólica entre o passado e o Nas tribos primitivas investia-se um homem
presente, entre as diversas idades da vida com a autoridade de provar as plantas para
(a cultura como eixo de pesquisa, produ- selecioná-las para o consumo alimentar.
ção e irradiação de saberes), corresponde Esse homem era o sapiens, o sábio. De
à universidade da cultura, a das “relações onde se conclui que o sábio não é o erudi-
sociais e de phylia nacional”, que está to, e sim o homem que entende de sabores
sendo substituída pela “universidade do […]. Essa modalidade primitiva de saber,
conhecimento” ou da “excelência”, pelas a iniciação nas sutilezas evanescentes do
tecnologias de informação e comunicação, sabor, prepara a mente do iniciado para as
a formação pela performance, o sentido dos especulações cosmológicas e teológicas por
saberes pelo know-how técnico, produzindo onde começa toda ciência”44.
incivilidade: “[…] a economia de mercado
evolui para uma sociedade de mercado, O homem culto, educado é aquele que
para o desenvolvimento da ‘sociedade da assimilou as conquistas espirituais e mate-
informação’. Sociedade de mercado é, por riais de tal forma que as regras da boa con-
isso, a da dissociação”41. Nesse sentido, o vivência se expressam segundo uma ética
enfraquecimento do “prestígio nacional” do comportamento, ética que é autogoverno
40 Bernard Stiegler, La Télécratie
contre la Démocratie, Paris,
e da idéia de constituir-se um povo – esse dos afetos e o que afasta toda violência.
Flammarion, 2006, pp. 16- amor da nação por ela mesma – regride. Desenvolver enfim as boas-maneiras era
110.
Assim, todas as formas de integrismo e uma das características do savoir-faire e
41 Idem, ibidem, p. 88.
comunitarismo, de identidades e “discri- do bem-viver.
42 Idem, ibidem, p. 70.
minações positivas” inscrevem-se no desa- Em seu ensaio “Dos Riscos que se Corre
43 Idem, Ars Industrialis, Paris,
Flammarion, 2006, p. 45.
parecimento da philia política, vindo a ser nas Ciências Sociais”, Gabriel Cohn traduz
“uma erstaz de philia que tenta dissimular o sentido desse savoir-faire para o registro
44 Gilberto de M. Kujawski, O
Sabor da Vida, p. 244. o desamor político transferindo a philia da universidade, chamando a atenção para

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o que a caracteriza nos moldes humanista
e iluminista, a formação universitária que
deve conter método no conhecimento e
exercício lúdico ou, tomando de empréstimo
as palavras de Pascal, “esprit géometrique
et esprit de finesse”:

“Rigor e finura: sem o concurso de ambas


não há como bem formular os problemas,
nem como orientar-se nas intrincadas vias
de sua solução. Trabalhar bem com ambas
essas dimensões é um dos maiores desafios
da formação universitária […]. Pois é a
preocupação de juntar o rigor com a finura
que mais nitidamente separa a formação do
adestramento especializado, do training.
Os modelos europeus do início do século
XX que inspiraram a USP na fase de sua
implantação (basicamente o francês e o
alemão, com o primeiro incidindo mais
nas ‘humanas’ e o segundo nas ‘exatas’)
contemplavam a questão da formação. O
modelo norte-americano, que aos poucos
foi-se instalando e vai se tornando hege-
mônico, tem como foco a idéia do training.
[Trata-se] de enfrentar a articulação entre
rigor e finura […], a questão de como
converter a universidade no ambiente mais car-se sem tornar-se logo um outro […],
propício ao aprendizado e ao exercício de ‘um ser unilateral cujo complemento em
formas de inteligência capazes de associar espelho não existe’”45.
as mais severas exigências da atividade
analítica com a capacidade de perceber Essa impossibilidade de estabelecer
relações finas que escapem das malhas dos relações é justamente aquilo de que Ador-
mais poderosos esquemas formais […]. A no trata quando lembra o exame final de
inteligência bem adestrada mas que só se filosofia pelo qual deveriam passar todos
aventura em terreno já demarcado e arado e os estudantes na área de humanidades da
teme o que não domina é, no sentido literal Universidade de Hessen. Um deles declara
do termo, idiota”. a Adorno interessar-se pela filosofia de Berg-
son e Adorno pergunta-lhe então que laços
Proveniente do grego, idiotes significa ele poderia estabelecer entre o filósofo do
alguém que se educa e se forma em sepa- élan vital e a pintura impressionista. Dado
rado, que é solitário, simples, particular e, o espanto absoluto do estudante, Adorno
por extensão semântica, pessoa desprovida desiste da questão e lhe pede então “que
de inteligência e de razão: fale só de Bergson”. A perda do sentido e
das relações finas que se estabelecem entre
“[…] qualquer coisa, qualquer pessoa é as coisas é processo de proletarização no
idiota a partir do momento que só existe conhecimento, é puro know-how, acom-
em si mesma, incapaz de aparecer de um panhando a mesma lógica do trabalho do
modo diferente do que aquele em que se proletário – o produtor, que, perdendo seu
encontra e tal qual é: incapaz, pois, e em savoir-faire que passa à máquina, torna-se 45 Clément Rosset, Le Réel: Traité
de l’Idiotie, Paris, Minuit, 2003,
primeiro lugar, de refletir-se […] de dupli- pura força de trabalho. Proletarização no co- pp. 42-3.

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“[…] o ensaio se situa entre o conceito e a
intuição poética, privilegiando sua função
mediadora […], sem a qual o conceito é
vazio e a intuição cega […]. Entre filosofia
e literatura, trata-se de recuperar o poder de
verdade da literatura […] e de devolver à
filosofia uma linguagem viva que ela perdeu
em sua produção/reprodução intramuros nas
instituições escolásticas […]. [O ensaio] foi
substituído pelo gênero ‘trash’ do ‘paper’,
inventado pela universidade norte-america-
na (segundo o lema ‘publish or perish’) e
multiplicado pela indústria dos congressos
no mundo globalizado”46.

O criticismo significa, no ensaio como


forma filosófica, a liberação daquilo que
Kant denominava Schulphilosophie – a
filosofia escolar –, trazendo de volta a dis-
ponibilidade ao pensamento, a dúvidas, a
hesitações e contradições, isto é, à liberdade,
no sentido contrário à escolarização da
filosofia, que é indissociável, esta, de sua
tecnificação. Como observa Bento Prado
Jr., “o interesse propriamente filosófico das
técnicas conceituais não está justamente
em seus limites, como insistia Platão na
Carta VII e Wittgenstein em todos os seus
escritos?”47.
A universidade é o espaço em que se
exerce a livre faculdade de julgar, em que
se fazem “experiências de pensamento e de
consciência”. A raiz per de “experiência”
nhecimento significa, pois, perda do sentido está presente em peritus, “quem teve ex-
do saber. Quanto ao consumidor, ele perde periência de”, “quem é hábil em algo”, é o
seu savoir-vivre, os indivíduos consumindo experto; encontra-se também em periculum
o que não necessitam e necessitando o que que, de início, significava “ensaio” e “prova”
não consomem, reduzindo-se à condição e, depois, “risco”. Per e peiro reaparecem
de poder aquisitivo. também em portus (porto e porta). Portus em
Nesse sentido, a universidade e a edu- latim e o porus grego significam a saída que
cação em geral perdem o sentido da ex- se encontra ao caminhar pelas montanhas.
periência e resultam no empobrecimento É passagem. O caminho que leva ao porto
cognitivo, em aumento de informação e é opportunus. Ortega y Gasset escreve:
em desestima do saber. É o que diz Bento
46 Bento Prado Jr., prefácio a
Sartre, Situações I, trad. Cristina Prado Jr. acerca da “pobreza intelectual” e “O perigoso não é necessariamente mal e
Prado, São Paulo, Cosac & da “escalada da insignificância” na leitura e adverso, ao contrário, pode ser benéfico e
Naify, s/d.
na escrita universitária contemporânea que feliz […]. O radical per de periculum é o
47 Cf. apresentação ao livro
de Jeanne Marie Gagnebin, se detectam no declínio do gênero literário mesmo que anima a palavra experimentar,
Lembrar Escrever Esquecer, São e filosófico ensaio, que Montaigne, Camus, ex-periência, ex-perto, perito […]. O sen-
Paulo, Ed. 34, 2006.
Sartre, Cioran, Merleau-Ponty, Adorno, tido originário do vocábulo experiência é
48 Ortega y Gasset, Obras Com-
pletas, VII, p 188. Benjamin e ele próprio praticavam: ter passado por perigos”48.

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Em alemão “experiência” é Erfahrung, de pensamento e, por fim, à exaltação do
cuja raiz é fahr-, que, no antigo alemão, mercado como sucedâneo da busca da
significava “atravessar uma região duran- felicidade. Como observou Horkheimer,
te uma viagem” quando não havia mapas “as forças econômicas adquirem o caráter
de orientação, era a incursão em território de poderes naturais cegos que o homem, a
desconhecido, era viajar por terras ignotas fim de poder preservar-se a si mesmo, deve
sem guia prévio – o hodós sem o méthodos. dominar, ajustando-se a elas”49.
O caminho sem rumo definido, sem meta, A educação adaptada às contingências
é possibilidade de descaminho e extravio. do mercado de trabalho coincide com a
Para descobrir qual o caminho entre os in- passagem da universidade cultural à univer-
contáveis que se deve tomar, há que ensaiar, sidade do conhecimento ou da excelência
provar. Note-se, pois, que o prefixo “ex” – a dos experts – e dissolve a experiência
opera uma mudança no conceito de perigo, da “cultura geral” na noção de “cultura
pois este é aquilo sem o qual a experiência comum”, a “cultura média”, de estilo mi-
não se dá. Esta requer, na academia, os diático, aquela adaptada à sociedade de
rigores do more geométrico mas também massa e que “tem por finalidade essencial
o essai, a tentativa, o ensaio como contra- preparar os jovens para entrar no mundo
partida da ordem autorizada e consagrada. tal qual ele é”50. Em entrevista à Télérama,
Com efeito, o que Montaigne diz da leitura Tzvetan Todorov diz:
vale para o exercício do pensamento que
nunca chega a um termo definitivo. Eis por “[…] há algum tempo que, na escola, pa-
que o filósofo dizia não ler livros, mas que rou-se de refletir sobre o sentido dos textos
os folheava “sem ordem e sem objetivo e se passou a estudar preferencialmente os
preciso”, “à pièces décousues”, aleatoria- conceitos e métodos de análise […]. Estou
mente, atento menos à ordem das razões e convencido de que, para aceder à ‘grande
mais à desordem vivida e vital de teses e literatura’, deve-se primeiro aprender a amar
de possibilidade de refutação. Montaigne a leitura […]. Os fins da leitura de textos
não deixa de acrescentar que a leitura é uma literários são os de melhor compreender o
forma de felicidade e deve ser feita com sentido deles e, por meio deles, o que nos
prazer e por curiosidade. Essa experiência dizem da própria condição humana”51.
atomista no estudo indica um pensamento
in progress, fazendo-se, não por disjunção, Que se pense então no estabelecimento
mas por acréscimo e inclusão. Trata-se de nas universidades brasileiras dos cursos de
um saber cumulativo, ou melhor, que se língua e literatura, ou melhor, na separação
acrescenta e transforma, no extremo oposto de ambas, constituindo-se uma “ciência lin-
do especialista, ou melhor, do expert. Essa güística”, uma analítica da linguagem e não
figura se delineia no treinamento das formas uma associação entre língua e literatura.
analíticas da inteligência, inteligência que A Lei de Diretrizes e Bases do MEC
se vê despojada de sua conotação própria assim define o ensino da língua e litera-
de “interligar”, de “pôr em relação”, só rela- tura brasileiras. Estabelece que a língua
cionando o mesmo com o mesmo, perdendo portuguesa será considerada como “um
a relação meios e fins. A essa circunstância instrumento de comunicação, acesso ao
Weber, antes de Adorno e Horkheimer, conhecimento e acesso à cidadania” (artigo
denominou “razão instrumental”, que se 36, parágrafo 1o). Fica a cargo das escolas
constitui em cientificismo, isto é, de adesão ensinar ou não um pouco de literatura. Re- 49 Horkheimer, Eclipse da Razão,
acrítica à ciência e suas práticas, adesão corde-se que a língua literária como “troca Labor, 1976, p. 108.

à idéia de progresso linear e contínuo, simbólica” forma a civilidade pela sociali- 50 F. M. Duru-Bellat Dubet,
L’Hyporcrisie Scolaire. Pour un
ao redimensionamento da racionalidade zação participativa da escrita alfabética; é Collège enfin Démocratique?,
em sentido tecnológico (o que abrange a por praticá-la que se transforma a relação Paris, Seuil, 2000, p. 178.

economia e a política), ao abandono do com a língua, que se torna logos, e o cidadão 51 Todorov apud Jorge Coli,
“Leitura e Leitores”, Folha de S.
ideal de reflexão, contemplação e liberdade se torna sujeito de direito – pois uma coisa Paulo, n. 777, p. 2.

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é ter acesso à língua oral – aquela que se O basic English, a língua instrumental da
fala sem e antes de se conhecer as regras da comunicação, é tomado, por sua hegemonia
gramática –, outra coisa é “dominar” uma no mundo contemporâneo, como modelo
língua, pois aqui se exige tempo e leitura para o ensino de todas as línguas – o que
– o que, segundo as considerações de Pe- não permite “dominar” uma língua, pois
ter Sloterdijk, consiste, para aqueles que isso exige esforço de atenção e compreensão
cedem à simples oralidade e à compressão do relevo das palavras na língua literária.
do tempo e a sua aceleração, em uma das Assim, o “português básico” participa da
piores provações. A leitura atenta equivale fórmula contemporânea da educação, quan-
à tortura chinesa na qual a lentidão é a alma do se abandona o ensino da língua a partir
da crueldade: de sua literatura, na separação entre língua e
literatura, com a proliferação de disciplinas
“[…] para os modernizadores, o mundo de- lingüísticas antiliterárias.
veria ser construído de tal forma a que todas A literatura foi substituída nos currícu-
as situações possíveis pudessem ser formu- los escolares e universitários pela fórmula
ladas em um Basic English – um princípio “comunicação e expressão”. Esta, como
que funciona perfeitamente em aeroportos observa Leyla Perrone-Moysés53, traz con-
e em reuniões de conselhos empresariais e sigo a idéia banalizadora de “diálogo entre
por que não em outras situações? É que as indivíduos”, grupos, professor-aluno, etc.,
práticas culturais mais desenvolvidas lhe reduzindo-se a “norma padrão da língua”
são resistentes. É preciso dias inteiros para a simples “interesse de uma elite”, preo-
52 Peter Sloterdijk, Le Palais de ler o Fausto. Uma obra como Guerra e Paz cupada em legitimar seu poder político e
Cristal à l’Intérieur du Capitalis- mobiliza o leitor durante várias semanas e econômico. Note-se que o crescimento do
me Planétarie, trad. Olivier
Mannoni, Maren Sell, 2006, quem quer que deseje se familiarizar com analfabetismo secundário é herdeiro direto
pp. 372-3.
as sonatas para piano de Beethoven e os da difusão de um ensino medíocre da língua
53 Leyla Perrone-Moisés, “Literatura quartetos de corda do Reno deve consagrar- sem literatura, de modo que elaborações
para Todos”, in Revista Literatura
e Sociedade, no 9, 2006. lhes muitos meses”52. presumivelmente complexas não chegam a
ser compreendidas. Quanto à desregulamen-
tação da língua e de suas normas públicas
comuns a todos, ela se faz, em particular
pelo ideário da sociolingüística – para a qual
“o errado é certo” porque corresponderia
a expressões próprias a cada grupo e que
devem desautorizar a língua “autorizada”,
que é vista apenas como vontade de poder.
Atitude coerente, de fato, com a qualidade
do português falado e escrito no Brasil, uma
vez que, sendo a “norma culta” discrimina-
tória e o falar incorreto legítimo, a escola
fica sem função claramente definida.
A tendência ao desaparecimento da
literatura como laço social corresponde às
transformações da língua, de seu papel e
função no capitalismo contemporâneo. Na
impossibilidade de discernimento de valores
– entre o verdadeiro e o falso, o bem e o
mal, o bom-gosto e o mau-gosto – a lite-
ratura não é mais considerada elaboração
literária do pensamento e da sensibilidade,
não é mais arte, mas expressão de gênero,
de etnia, de classe, de uma época. A língua

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fica assim constrangida à aceleração das gogo é um funcionário público. Ele institui
informações e ao aprendizado na forma da formas de sociabilidade e de produções
distração e do entretenimento. O capitalismo simbólicas que promovem a elevação do
contemporâneo não aceita o longo prazo estudante – que em francês se diz élève e
em função das taxas de amortização rápida não “aluno”. Etimologicamente “aluno”
requeridas pelo capital investido. Em uma significa “sem lume”, “sem luz”, em estado
democracia, “o nível de vida social não se de passividade no conhecimento, do qual
mede pela quantidade de proteínas consu- não se apropria efetivamente, fazendo dele
midas […]. A elevação do nível de vida é, um modo de vida. Já élève é “elevação”,
antes de mais nada, a elevação da vida do é o próprio da educação, pois eleva o
seu espírito”54. aluno e sublima o povo. Esse processo de
Freud, em seu livro A Psicologia das elevação vem do fato de se dar acesso por
Massas e a Análise do Eu, reflete sobre o meio de artifícios àquilo que espontânea
empobrecimento da capacidade de sublima- e isoladamente cada um não pode obter
ção. Assim também o capitalismo pulsional e que é preciso “adotar”. Na educação
contemporâneo significa “rebaixamento e através dela diferenciam-se o “eu” e o
do rendimento intelectual”, abandono das “ideal do eu” e é por ela que se forma um
práticas de transformação do impulso em povo e uma coletividade como “ideal de
desejo, em particular aquelas favorecidas uma população”. É essa a razão principal
pelas disciplinas formadoras. Desse ponto de a Grécia antiga – pátria da política e da
de vista, democracia – ter instituído a cidadania pelo
intermédio do grammatistés, do “mestre
“[…] sob a exigência da modernização do das letras”, a escola tendo-se tornado uma 54 B. Stiegler, Reencanter le
Monde, op. cit., p. 170.
saber, da adaptação a realidades sociais “matriz identifi catória”, uma forma de
55 C l a u d i n e H a r o c h e ,
novas, se produz um saber especializado philia, a philia política que é a cidade. Por “L’Appauvrissement de l’Espace
e estreito, rapidamente ultrapassado e sem isso ela deve ser pública, dever do Estado,
Intérieur dans l’Individualisme
Contemporain”, in Revue Varia-
utilidade. Produz-se no pensamento uma encargo da cidade. tions, outono de 2005.

perda de inteligibilidade, uma perda de sen-


tido, uma especialização sem finalidade ou
razão, uma ilegibilidade […]. O indivíduo
contemporâneo quer ser informado e não
educado […], ele é tendencialmente ine-
ducável […]; uma coisa é pedir educação,
outra é ser capaz de recebê-la”55.

O que se recebe entra de imediato em


processo de avaliação, em uma “cultura da
avaliação” que visa a um controle admi-
nistrativo crescente da vida institucional
e profissional.
A escola e a universidade são institui-
ções que instituem, que instauram uma
ordem comum de valores e saberes cujo
intermediário é o professor. Não por acaso,
o espaço público democrático que nasce a
partir da consolidação dos valores da Re-
volução Francesa denominou o professor
de instituteur, o “instituidor”, que não é
apenas um representante do Estado, mas,
antes de mais nada, da República e, por
isso, do povo – razão pela qual esse peda-

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