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07 16:00:00
OLGÁRIA MATOS
OLGÁRIA MATOS
é professora de Filosofia
Política do Departamento
de Filosofia da FFLCH-
USP e autora de, entre
outros, Os Arcanos do
Inteiramente Outro – a
Escola de Frankfurt, a
Melancolia e a Revolução
(Brasiliense).
da urbanidade abrange os escritos da Roma todos podem ter acesso), mas de “interio- 14 Cf. “L’Ancien Régime”, in Les
Origines de la France Contem-
antiga, Ovídio e Cícero – cujas reflexões rização” de valores e comportamentos – o poraine, L’Ancien Régime, La
Révolution, ed. Robert Laffont,
contrapunham à villania amor e boas ma- que permite não lhe “prestar atenção”. Por 1986, p 125. No Antigo
neiras, a urbanitas vencendo a rusticitas. isso, um comportamento naturalmente me- Regime, a Igreja encaminha
os nobres para a cavalaria,
Para Cícero, um cavaleiro devia prezar ao dido vem a ser um sinal de “nobreza inata”. visando a conter ou canalizar
máximo a lealdade, a generosidade, a fran- Desfazer-se de afetação, realizar boas ações a violência, fixando prazos
durante os quais fica proibida a
chise. Convinha-lhe ser também leteratus sem fadiga e quase sem pensar, velar a arte guerra entre os barões, dirigindo
o espírito bélico para os inimigos
– o letrado capaz de compor e entender de consegui-lo, eis a sprezzatura de que da fé cristã – muçulmanos ou
versos em latim para o aprimoramento do deriva a graça: pagãos da Europa Oriental ou
hereges do sul da França. Os tor-
espírito e do convívio público. neios representam uma mímica
guerreira, com a vantagem de
Em seu livro A Civilização dos Costu- “[…] porque cada um sabe como as coisas as armas serem artificiais. Todo
mes, Norbert Elias acompanha, ao longo raras e bem-feitas são difíceis e a facilidade tipo de excesso é aí contido. Cf.
Norbert Elias, La Civilisation des
do “processo civilizatório”, a passagem gera grandessíssimo maravilhamento, esfor- Moeurs.
do cavaleiro – o militar mundano que age çar-se é, como se diz, puxar pelos cabelos, 15 Castiglione, O Livro do Cor-
como “um leão” – ao cortesão “cortês” é fazer estimar pouco cada coisa, por maior tesão, I, p. 26.
e “gracioso”, que age com “disciplina” e que seja. Pode-se dizer que a verdadeira 16 L. Stones, The Crisis of the
Aristocracy – 1558-1641,
“arte”. Antídoto à violência guerreira, a arte é a que não parece ser arte; assim, não Oxford, 1965, p. 400.
indissociáveis do ideário de uma identidade das virtudes morais que lhe determinam o 27 Trata-se de uma atitude radical-
mente diversa das proposições
nacional para o fortalecimento espiritual da uso […]. O programa de Jules Ferry [em do monopólio dos cursos pré-
vestibular, que pretendem um
democracia. Lembre-se que desde a Grécia 1903] baseia-se na unidade da ciência e único e mesmo vestibular em
clássica, passando por Lutero, Ignácio de unidade da vontade popular. Identificando todo o país. O sistema francês
decidiu pela identidade coletiva
Loyola, Condorcet até Jules Ferry, a alfabe- república e democracia como uma ordem e nacional através de valores
tização e a educação nacional constituíram a social e política indivisível, Jules Ferry comuns compartilhados pela
qualidade de suas instituições
operação política de maior envergadura por reivindica, em nome de Condorcet e da públicas de formação. O pro-
jeto civilizatório na França foi
significarem – no caso da França e dos países Revolução Francesa, um ensino que seja a decisão de constituir uma
que acompanharam os valores republicanos homogêneo em todo o país, do mais alto população em povo através
da educação pública, laica e
– a constituição de um povo que não seria grau ao mais elementar. De onde o desejo universal fundada na língua, na
literatura e nos saberes técnicos.
mais apenas população, por fortalecerem, de suprimir as barreiras entre o primário, o Ela estabeleceu e realizou a
assim, uma organização democrática, cos- secundário e o ensino superior”26. formação de todos com igual
direito à educação e à cultura.
mopolita e universalizável. Nesse sentido Ricos e pobres lêem Homero e
Jacques Rancière observa: O Iluminismo e a Revolução Francesa Virgílio no original grego e latino
porque dividem os mesmos ban-
encontravam na educação o fortalecimento cos escolares. Nesse sentido, o
exame final prévio ao ingresso
“[…] a República nascente [que se seguiu à político e espiritual da democracia, e foram na universidade não necessita
Revolução Francesa] subscreve o programa exitosos em seu projeto civilizatório porque de cursinhos nem de training.
Como empresa, a educação
entenderam que a educação, a cultura e não pode comprometer-se
com os valores públicos, pois
as artes eram um bem a que todos tinham não pode estar exclusivamente
igualmente direito, prevenindo que o mi- voltada para a consolidação
e continuidade da vida institu-
serabilismo se instituísse como política de cional a longo prazo, porque
sofre diretamente as pressões
Estado, nos moldes das políticas educacio- do mercado. A instituição do
nais contemporâneas vigentes, segundo as espaço público no Iluminismo
europeu, a diferenciação entre
quais “é melhor dar pouco para muitos do o público e o privado marcava
que muito para poucos”. Entenderam que o limite ao poder do mercado
sobre a educação, garantidor
um povo começa a existir por suas neces- de autonomia com respeito às
determinações econômicas e
sidades espirituais27. materiais imediatas, em que o
Eis por que a privatização da educação, interesse comum se sobrepõe
ao interesse das instituições
assim como de outros serviços públicos de privadas. Observe-se, ainda,
que a universidade pública,
cunho social, designa a renúncia a essa tarefa gratuita e de qualidade tem seus
e repassa do público ao privado a segurança dias contados, a começar pelo
cerceamento da autonomia
no futuro do povo. Em outras palavras: universitária, controle de seu
orçamento e inviabilização pro-
gressiva de seu crescimento e o
“[…] os serviços de saúde, a rede de trans- de seu quadro docente, de suas
edificações, etc., com o desvio
porte, o correio, a educação são supostos a de seu financiamento para
operar na duração, se não na permanência o setor comercial e privado,
suposto substituto da educação
do tempo, para responder a necessidades pública que renuncia a sua
prerrogativa de garantir a longo
sociais inscritas no tempo longo. […] O prazo a coesão educacional,
Estado transfere ao mercado sua capacidade intelectual e cultural do país.
humanitas para falar do povo romano, que economia do desperdício do que naquela 39 Bill Readings, Universidade sem
Cultura?, Rio de Janeiro, Uerj,
alcançara sua identidade através do cultivo restrita do cálculo”39. 2002, p. 80.
à idéia de progresso linear e contínuo, simbólica” forma a civilidade pela sociali- 50 F. M. Duru-Bellat Dubet,
L’Hyporcrisie Scolaire. Pour un
ao redimensionamento da racionalidade zação participativa da escrita alfabética; é Collège enfin Démocratique?,
em sentido tecnológico (o que abrange a por praticá-la que se transforma a relação Paris, Seuil, 2000, p. 178.
economia e a política), ao abandono do com a língua, que se torna logos, e o cidadão 51 Todorov apud Jorge Coli,
“Leitura e Leitores”, Folha de S.
ideal de reflexão, contemplação e liberdade se torna sujeito de direito – pois uma coisa Paulo, n. 777, p. 2.