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MARTINS,

TempoJoséSocial;
de Souza.Rev.
O senso comumUSP,
Sociol. e a vida
S. cotidiana.Tempo Social;
Paulo, 10(1): 1-8, Rev.de
maio Sociol.
1998.USP, S. Paulo,A R1-8,
10(1): Tmaio
I Gde O
1998.

O senso comum e
a vida cotidiana
JOSÉ DE SOUZA MARTINS

RESUMO: A História bloqueada pelo capital e pelo poder fez da vida cotidiana UNITERMOS:
o refúgio para o desencanto de um futuro improvável. Os grandes embates vida cotidiana,
conhecimento de
pela redenção do gênero humano de suas limitações e misérias estão sendo
senso comum,
readaptados a esse novo território da vida e do viver. A sociedade está sendo sociologia da vida
reinventada e, conseqüentemente, a sociologia também está passando por cotidiana,
um processo de reinvenção. É nesse âmbito que ganha uma nova relevância a sociologia do conheci-
mento
mediação do conhecimento do dia-a-dia na construção das relações sociais.

O
interesse sociológico pela vida cotidiana tem resultado direta-
mente do refluxo das esperanças da humanidade num mundo novo
de justiça, de liberdade e de igualdade. Parece simples, mas é assim
mesmo que a progressiva constituição da vida cotidiana como ob-
jeto de conhecimento da sociologia tem sido justificada.
De certo modo, há nessas origens uma descrença na História, uma
renúncia à idéia de que o homem é senhor de sua História, de que pode
produzir o seu próprio destino. O interesse pela vida cotidiana se difunde
como um dos componentes mais nítidos do ceticismo decorrente das desilu-
sões que tem acompanhado a notável capacidade de auto-regeneração da
sociedade capitalista.
Para muitos, a vida cotidiana se tornou um refúgio para o desencanto
de um futuro improvável, de uma História bloqueada pelo capital e pelo poder.
Viver o presente já é uma consigna que encontra eco numa sociologia do deta-
lhe, do aqui e hoje, do viver intensamente o minuto desprovido de sentido, que Professor do Departa-
mento de Sociologia
poderia ser definida como sociologia pós-moderna1. Ou, então, que poderia si- da FFLCH-USP

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MARTINS, José de Souza. O senso comum e a vida cotidiana.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 1-8, maio de
1998.

tuar a sociologia como uma das poderosas expressões da modernidade.


Esse refluxo tem tido muitas implicações no conhecimento socio-
lógico. Viabilizou uma redescoberta das sociologias fenomenológicas, su-
geriu uma crítica nova ou renovada à sociologia positivista, abriu um amplo
campo de investigações teóricas. De certo modo, estamos diante de um fas-
cinante processo de reinvenção da sociedade. Mas também de reinvenção
da sociologia.
Se a sociologia do século XIX e da primeira metade deste século
descobriu o homem como criatura da sociedade, o período recente põe a soci-
ologia ante a crise dessa concepção e crise dessa verdade relativa e transitória.
Porque, no fundo, crise de uma sociedade dominada por grandes e definitivas
certezas, a da ilimitada reprodução do capital e a da inesgotável força de coa-
ção do poder do Estado.
As grandes certezas terminaram. É que com elas entraram em crise
as grandes estruturas da riqueza e do poder (e também os grandes esquemas
teóricos). Daí decorrem os desafios deste nosso tempo. Os desafios da vida e
os desafios da ciência, da renovação do pensamento sociológico.
Se a vida de todo o dia se tornou o refúgio dos céticos, tornou-se
igualmente o ponto de referência das novas esperanças da sociedade. O novo
1
Essa concepção ganha herói da vida é o homem comum imerso no cotidiano. É que no pequeno
sua expressão socioló-
gica mais esclare- mundo de todos os dias está também o tempo e o lugar da eficácia das von-
cedora na obra de tades individuais, daquilo que faz a força da sociedade civil, dos movimen-
Michel Maffesoli. En-
tre outros livros des- tos sociais.
se autor, cf. Maffesoli Nesse âmbito é que se propõe a questão do conhecimento de senso
(1983; 1988). Embo- comum na vida cotidiana. Questão porque, na perspectiva erudita, o senso
ra se apresente como
um crítico da obra comum é desqualificado porque banal, destituído de verdade, fonte de equí-
de Henri Lefebvre, vocos e distorções. E com ele o mundo de que faz parte, o da vida cotidiana.
Maffesoli dela se a-
propria, embora nem Não era assim que pensava Émile Durkheim em As regras do método socio-
sempre com citações, lógico e também em Sociologia e filosofia? (cf. 1960; 1963)
“desistorizando-a”, fa- Questão porque, se no refúgio da vida cotidiana o homem descobre
zendo uma leitura com-
preensiva e anti-histó- a eficácia política (e Histórica) de sua aparente solidão, impõe, também, o
rica de noções e pers- reconhecimento de que o senso comum não é apenas instrumento das repeti-
pectivas produzidas
por uma interpretação ções e dos processos que imobilizam a vida de cada um e de todos.
dialética do viver, da Isso nos remete criticamente de volta a suposições fundamentais do
vida cotidiana e da pensamento sociológico. Do lado do positivismo, à revisão da idéia de que só
cotidianidade.
2
Cf. Schutz & Luckmann o fato desprovido de vida é social. Crítica que, aliás, a sociologia feno-
(1977); Schutz (1972; menológica de Alfred Schutz já fez de modo eficaz 2. Do lado da dialética, à
1974). Agradeço a
José Jeremias de Oli- revisão da idéia de que só a conversão consciente ao projeto da revolução
veira Filho, que em pode revolucionar a vida.
meados dos anos 70 Em tudo, o questionamento de que um senso comum desprovido de
me pôs em contacto
com a obra criativa e sentido condena irremediavelmente o homem comum ao silêncio e à condição
fascinante de Schutz e de vítima das circunstâncias da História.
sua leitura singular da
sociologia compreen- A hipótese de que “os homens fazem a sua própria História, mas
siva. não a fazem como querem e sim sob as circunstâncias que encontram, legadas
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e transmitidas pelo passado” (Marx, 1961, p. 203) retorna forte e desafiadora.


Não só aos que querem mudar o mundo, mas também aos que querem com-
preender e explicar essa mudança. Esse desencontrado agir histórico pede e
propõe uma reflexão propriamente sociológica3. E essa reflexão incide exata-
mente sobre as características, as peculiaridades e a eficácia desse conheci-
mento próprio da realidade de todo dia, até há pouco recusado ou desqualificado
justamente em nome de seu suposto desencontro com a História. O que é
mesmo fazer História sem saber que a estamos fazendo? A proposta que há
nessa pergunta implica em passar da Filosofia à Sociologia e, mais concreta-
mente, a uma sociologia da vida cotidiana.
A possibilidade de uma sociologia da vida cotidiana está nesse
âmbito intermediário, na investigação e superação do que o senso comum
tem sido para a interpretação acadêmica: ou apenas o conhecimento com
que o homem comum define a vida cotidiana, dando-lhe realidade, como
supõem Berger e Luckmann; ou apenas o conhecimento alienado da falsa
consciência que separa o trabalhador do mundo que ele cria, de que nos
falam os marxistas.
Em A questão judaica, Marx já havia mostrado que no desencon-
tro do homem e daquilo que faz há também um encontro e um ato de criação
histórica e social (cf. Marx, 1973). O mesmo se repete em outros textos
desse autor.
É por isso que me proponho a desenvolver aqui uma breve reflexão
sociológica que me permita encontrar na divergência de orientações teóricas
de marxistas e fenomenologistas a possibilidade de um encontro justamente
naquilo que, sob diversos nomes, é na verdade o lugar do conhecimento de
senso comum na vida cotidiana e, também, na História.
Não me preocupa, neste momento, o desacordo essencial entre au-
tores de um grupo e de outro. Nem me motiva o ecletismo ingênuo que pode-
ria existir na tentativa de fundir sem critério, e sem crítica, as constatações de
uns e de outros.
Há, sem dúvida, uma enorme riqueza de interpretações do senso
comum nas sociologias fenomenológicas. Muito maior, certamente, do que a
limitada concepção que do senso comum tinha Durkheim (e também Max
Weber na sua tipologia da ação). É notório que nas recaídas positivistas da
Sociologia haja sempre um empobrecimento de sua definição, como se vê em
Berger e Luckmann: “a sociologia do conhecimento deve, sobretudo, ocupar-
se do que as pessoas ‘conhecem’ como ‘realidade’ na sua vida cotidiana...”
(Berger & Luckmann, 1968, p. 31). Apesar de discípulos de Schutz, eles colo-
cam o conhecer, o senso comum, numa relação de exterioridade com o viver (a
vida cotidiana). Essa coisificação do conhecimento de senso comum está em 3
Esse fundamental re-
contradição com o lugar que ocupa na tradição fenomenológica. torno sociológico à
O senso comum é comum não porque seja banal ou mero e exterior dialética está exposto
de maneira completa
conhecimento. Mas porque é conhecimento compartilhado entre os sujeitos e clara em Henri
da relação social. Nela o significado a precede, pois é condição de seu esta- Lefebvre (1966).
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MARTINS, José de Souza. O senso comum e a vida cotidiana.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 1-8, maio de
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belecimento e ocorrência. Sem significado compartilhado não há interação.


Além disso, não há possibilidade de que os participantes da interação se im-
ponham significados, já que o significado é reciprocamente experimentado
pelos sujeitos. A significação da ação é, de certo modo, negociada por eles.
Em princípio, não há um significado prévio ou, melhor dizendo, não é neces-
sário que haja significações preestabelecidas para que a interação se dê. Um
aspecto essencial dessa formulação é o de que esse complicado jogo se desen-
rola, de fato, em minúsculas frações de tempo. Se nos fosse possível observar
o processo interativo em “câmara lenta”, poderíamos perceber o complexo
movimento, o complicado vai-e-vem de imaginação, interpretação,
reformulação, reinterpretação, e assim sucessivamente, que articula cada frag-
mentário momento da relação entre uma pessoa e outra e, mesmo, entre cada
pessoa e o conjunto dos anônimos que constituem a base de referência da
sociabilidade moderna.
Além disso, os significados que mediatizam os relacionamentos entre
as pessoas estão sujeitos a um complexo mecanismo de deciframento. Os
interacionistas simbólicos mostraram como a interação só é possível por meio
de procedimentos interpretativos que fazem da relação social uma construção
(cf. esp. Blumer, 1969).
Não há apenas negociação e interpretação de significados, mas
também critérios para seu uso. A sociologia de Erving Goffman justamente
demonstra que as relações sociais estão permeadas por uma dramática ati-
vidade de simulação e teatralização para que, afinal, o significado produzi-
do e reconhecido na interação não acarrete o descrédito para o sujeito (cf.
esp. Goffman, 1971). Isso quer dizer que o ator não se dirige imediata e
diretamente ao outro para com ele interagir. A interação é precedida pela
simulação, pelo exercício que o sujeito faz de experimentar-se como outro,
numa relação de exterioridade consigo mesmo, nos segundos que consti-
tuem o preâmbulo do seu relacionamento. Uma imensa construção imaginá-
ria define a circunstância da relação social.
Por sua vez, a etnometodologia sugere que a interação não repousa
nos significados que a mediatizam, simplesmente. O conhecimento cotidiano
não é constituído apenas de significados. De fato, o que caracteriza o experi-
mento etnometodológico é a utilização de catástrofes artificialmente produzi-
das como recurso para criar situações de anomia e destruir os significados que
sustentam a interação. Os experimentos têm demonstrado que, com grande
rapidez, os envolvidos na circunstância de privação repentina de significados
são capazes de criar significados substitutivos e restabelecer as relações so-
ciais interrompidas ou, mais que isso, ameaçadas de ruptura. Portanto, mais
do que uma coleção de significados compartilhados, o senso comum decorre
da partilha, entre atores, de um mesmo método de produção de significados
(cf. Garfinkel, 1967). Portanto, os significados são reinventados continua-
mente ao invés de serem continuamente copiados. As situações de anomia e
desordem são resolvidas pelo próprio homem comum justamente porque ele
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MARTINS, José de Souza. O senso comum e a vida cotidiana.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 1-8, maio de
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dispõe de um meio para interpretar situações (e ações) sem sentido, podendo,


em questão de segundos, remendar as fraturas da situação social.
As descobertas da etnometodologia sugerem que a desordem e a
revolta só atingem a ordem superficialmente, pois apenas suprimem signifi-
cados por um certo tempo, sem atingir o método (de senso comum), o critério,
dos procedimentos que reconstituem o tecido rompido. Alvin W. Gouldner,
mesmo em sua notória indisposição para com as descobertas de Garfinkel,
observou acertadamente que a etnometodologia colocou a rebelião possível
no lugar da revolução impossível (cf. Gouldner, 1972, p. 394). No fundo, são
descobertas que detalham os sutis e complicados mecanismos do que os auto-
res marxistas denominam reprodução social4.
Se outra importância não tivesse tal tipo de descoberta, serviria ao
menos para demonstrar a dinâmica do imobilismo, do repetitivo, da perma-
nência e do que muitos também chamam de vida cotidiana. E do profundo
compromisso que as ciências sociais podem eventualmente ter com a negação
da vida e da emancipação do homem de suas carências, em particular a carên-
cia de liberdade.
Na raiz da própria interpretação fenomenológica, porém, o conhe-
cimento de senso comum e a vida cotidiana que ele viabiliza aparecem cir-
cunscritos ao âmbito da atenção e da vigília. O que, no fundo, sugere uma
instabilidade permanente da vida cotidiana, sujeita aos choques que estabele-
cem descontinuidades mais ou menos profundas na passagem de um mundo a
outro do que Schutz define como realidades múltiplas. Múltiplas, justamente,
porque cada mundo (como a vida cotidiana, o sonho, a loucura etc.) tem o seu
próprio estilo cognitivo, definidor dos limites de suas significações. Embora a
vida cotidiana seja o mundo que dá sentido aos demais, enquanto referência,
aparece subvertida e alterada nesses outros mundos. O que nos mostra as
descontinuidades que atravessam a vida cotidiana todos os dias.
Essas descontinuidades também são constatadas pelas interpreta-
ções dialéticas. Ainda que de outro modo, não é delas que nos fala a teoria da
alienação? Não é delas que nos fala Karel Kosik quando proclama a cisão da
práxis (e da consciência) em práxis utilitária cotidiana e práxis revolucio-
nária? (cf. Kosik, 1976).
Elas aparecem, porém, de modo mais rico nas interpretações de
Ágnes Heller e de Henri Lefebvre. Mais neste do que naquela. Em ambos, nos
momentos de elevação acima da cotidianidade; nos momentos superiores, cria-
dores e privilegiados, em contraste com os instantes banais da vida cotidiana
(cf. Périgord, 1977). Mesmo na rotina alienadora da fábrica e da produção há
momentos de iluminação e criação (cf. Périgord, 1977, p. 236), de invasão do
cotidiano e do senso comum pela realidade e pelo conhecimento que revoluci-
onam o cotidiano.
4
O vivido em Schutz é o vivido dos significados que sustentam as Cf. a rica volta ao
tema da reprodução
relações sociais. Mas, em Lefebvre, o vivido é mais que isso: é a fonte das proposta por Henri
contradições que invadem a cotidianidade de tempos em tempos, nos mo- Lefebvre (1973).

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MARTINS, José de Souza. O senso comum e a vida cotidiana.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 1-8, maio de
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mentos de criação.
A reprodução social, lembrou Lefebvre mais de uma vez, é repro-
dução ampliada de capital, mas é também reprodução ampliada de contradi-
ções sociais: não há reprodução de relações sociais sem uma certa produção
de relações – não há repetição do velho sem uma certa criação do novo, mas
5
Foi Henri Lefebvre quem não há produto sem obra, não há vida sem História. Esses momentos são
propôs de maneira soci- momentos de anúncio do homem como criador e criatura de si mesmo.
ologicamente mais con-
sistente a questão do É no fragmento de tempo do processo repetitivo produzido pelo
possível, articulando-a desenvolvimento capitalista, o tempo da rotina, da repetição e do cotidiano,
com o tema dos resídu-
os, do que não pode ser que essas contradições fazem saltar fora o momento da criação e de anúncio
capturado pelos poderes da História – o tempo do possível5. E que, justamente por se manifestar na
e, portanto, propõe e re- própria vida cotidiana, parece impossível. Esse anúncio revela ao homem co-
clama o novo. Uma ino-
vação essencial em sua mum, na vida cotidiana, que é na prática que se instalam as condições de
obra é a indicação de transformação do impossível em possível.
que além de dedução e
indução, a ciência social Heller disse que só quem tem necessidades radicais pode querer e
deve trabalhar com a fazer a transformação da vida6. Essas necessidades ganham sentido na falta
transdução, a lógica do de sentido da vida cotidiana. Só pode desejar o impossível aquele para quem a
possível. Entre outros li-
vros desse autor so- vida cotidiana se tornou insuportável, justamente porque essa vida já não pode
bre esses temas, cf. ser manipulada.
Lefebvre (1958; 1957;
1965a; 1972). É aí que o reencontro com as descobertas das orientações
6
Cf. Heller (1978). O tema fenomenológicas ganha novo e diferente sentido. Pois, é no instante dessas
das necessidades radi- rupturas do cotidiano, nos instantes da inviabilidade da reprodução, que se
cais, as necessidades
que fundam a práxis instaura o momento da invenção, da ousadia, do atrevimento, da transgressão.
revolucionária ou ino- E aí a desordem é outra, como é outra a criação. Já não se trata de remendar as
vadora, aparece propos-
to originalmente em fraturas do mundo da vida, para recriá-lo. Mas de dar voz ao silêncio, de dar
Henri Lefebvre (1965b). vida à História.

Recebido para publicação em janeiro/1998

MARTINS, José de Souza. Common sense and everyday life. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, 10(1): 1-8, may 1998.

UNITERMS: ABSTRACT: History blocked by Capital and power has turned everyday life into
everyday life, a refuge from the disenchantment of an unlikely future. The big struggles in
knowledge of common
order to redeem humankind from its limits and miseries are being readapted to
sense,
sociology of everyday this new territory of life and living. Society is being reinvented, and consequently
life, sociology is also experiencing a process of reinvention. In this context the
sociology of knowledge. mediation of knowlegde of the day-by-day gets a new importance in the
construction of social relations.

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MARTINS, José de Souza. O senso comum e a vida cotidiana.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 1-8, maio de
1998.

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CARDOSO,
TempoIrene. Os silêncios
Social; Rev.da narrativa.
Sociol. Tempo
USP, Social; Rev.
S. Paulo, Sociol.
10(1): 9-17,USP,maio
S. Paulo, 10(1): 9-17, maio A
de 1998. R T I G O
de 1998.

Os silêncios da narrativa
IRENE CARDOSO

Ao Salinas, in memoriam

RESUMO: Leitura da narrativa Retrato calado, de Luiz Roberto Salinas Fortes, UNITERMOS:
que procura reconstruir alguns de seus traços, reconhecidos a partir de uma narrativa,
memória,
possível “experiência de leitura”.
silêncio,
tortura.

etrato calado1 é o título do texto de Salinas, enigmático porque

R construção que remete simultaneamente a dois silêncios: àquele que


lhe “roubou a palavra, comeu a fala, cortou a língua” (p. 103) – o
calar-se (tacere) – e o silere, o silêncio reencontrado na escrita –
“ainda uma nova forma de silêncio”, como diz – o “único recurso”, o “antído-
to”, o “alinhamento das palavras”, a “inscrição como resposta” (p. 102).
Este texto foi lido na
Retrato calado é o modo de nomear a figuração que vai sendo Mesa de abertura do
construída no texto, a partir das diversas posições do sujeito narrativo, que Colóquio Rousseau –
Homenagem a Luiz
resulta da possibilidade deste encontro do silêncio – tempo de formação da Roberto Salinas For-
palavra e tempo para que ela possa se escutar no que diz (Cardoso, 1997, tes, no Departamento
de Filosofia da FFLCH-
p. 180). Trabalho insistente e doloroso que produz o pensamento e a fala so- USP (17/11/1997). O li-
bre o que está calado – “e eu aqui insistindo sobre tão insignificantes eventos, vro a que se refere este
texto foi publicado pos-
querendo me fazer de importante (...) não riam, por favor, pois a dor é séria” tumamente em 1988, a
partir dos manuscritos
(p. 105). “É aqui, neste exato momento, que se trava a luta. Cada traço inscri- deixados por Salinas,
to é um tiro, é um golpe (...) cada linha é lança, gume, faca que penetra na que faleceu em 1987.
carne dura do inimigo vário. Plural...” (p. 102).
Insistência narrativa que vai deslocando o calado – posição do que
Professora do Depar-
não se compreende e a partir da qual sobrevêm os delírios que fazem esque- tamento de Sociologia
cer –, que se defronta com o real, “este real que parece um delírio circular, ele da FFLCH-USP

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CARDOSO, Irene. Os silêncios da narrativa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, maio de 1998.

também” (p. 103), e através da memória – “confissões” – procura “não dei-


xar que tudo se perca, se evapore”, no “esforço de compreensão” de si mesmo
e da “época complicada, labiríntica” (p. 89).
Retrato calado inscreve-se no difícil gênero das narrativas que
tematizam a impossibilidade mesma de narrar a partir de situações extremas,
na não garantida busca de uma compreensão, do que talvez, no limite, não
seja comunicável, porque “o horror, por sua natureza mesma, nos empurra
para os confins da linguagem, para aquilo que pode ser vivido sem poder ser
dito” (Bernardi, 1988, p. 40).
“Há algo que se rompe, pois não é impunemente que se passa pela
experiência da prisão” e da tortura. E Salinas continua: “A passagem pelos
subterrâneos do regime, o contato com o avesso do milagre, eram, nestas con-
dições, a ocasião para um aprendizado tão importante quanto inútil, pelo me-
nos durante muitos anos. Mas, de qualquer maneira, experiência decisiva no
interior da selvagem fenomenologia. Guinada. Depois dela, depois de termos
ingressado no espaço da ficção oficial, passávamos para outra figura do espí-
rito, para o delírio, em cujos breus parecem comprometidas as fronteiras entre
o imaginário e o real. Tudo teria sido então pura ficção? Tudo ficará por isto
mesmo? A dor que continua doendo até hoje e que vai acabar por me matar se
irrealiza, transmuda-se em simples ‘ocorrência’ equívoca susceptível a uma
infinidade de interpretações, de versões das mais arbitrárias, embora a dor
que vai me matar continue doendo, bem presente no meu corpo, ferida aberta
latejando na memória” (p. 29).
É ele próprio quem se pergunta: “Pois é. Por que escrevo tudo isso???
Por que relembrar águas passadas e repassadas e bem passadas? Qual a im-
portância, afinal, do gênero – como chamá-lo? – ‘memorial’?” (p. 80).
“A única coisa que sou capaz de dizer no momento é que se as escre-
vo – as memórias – é para dar a mim mesmo, conceder-me em benefício pró-
prio, uma ‘anistia ampla, geral e irrestrita’, já que ninguém me concede. Por que
não? Quem impede? Uso deste espaço para não deixar que tudo se perca,se
evapore. E continuo dizendo dessa forma canhestra e imprecisa, infiel e abstra-
ta. O fato é que tudo mudou, que era o mundo antes, o meu, bem diferente. E
tudo vai ficar por isto mesmo? Eles torturaram, mataram, destruíram,
tripudiaram, achincalharam, humilharam e continuam aí, juízes finais, são
1
Diante de uma narra- eles que decidem o que é certo ou errado, o que é bom ou mau. Mas esqueçamos
tiva, como Retrato
calado, de Luiz Ro- as transas ‘morais’ e retornemos à descrição dos eventos” (p. 80-81).
berto Salinas Fortes, Memorial, memórias, confissões, autobiografia?
que nasce de um si-
lêncio e é por ele Como constituir um sujeito narrativo a partir de uma “vida cesurada”,
construída, não cabem como diz, “corte (...) certamente fundo, bem no fundo” (p. 39). Como narrar,
a análise nem o co- se a consciência tem dificuldade em reviver, em evocar com exatidão o primeiro
mentário: apenas a
“experiência de leitu- ato do pesadelo, e se esforça, ao contrário, por mantê-lo “recalcado, fora de seu
ra”, que reconstrói al- âmbito?” (p. 29). Retrato calado colado na experiência vivida no “inferno”
guns de seus traços
através da repercus- que produz a indistinção entre o real e o imaginário. Qual a possibilidade de
são naquele que lê. uma narrativa a partir da “erosão do sujeito desfalecente”, de um “eu (...) demo-
10
CARDOSO, Irene. Os silêncios da narrativa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, maio de 1998.

lido” pela “lógica incontornável” das circunstâncias? (p. 50). “Como contor-
nar a lógica da tendência se o sabotador, com toda a sua malícia, instalou-se
dentro da cabeça, enfiou-se no interior do interior, sugando os esforços e com-
prometendo a objetividade do pensamento?” (p. 100). Como fazer fluir a me-
mória se as grades estão nela ainda “duramente plantadas”, “grades que con-
tinuam imaginárias, a me comprimir o cérebro?” (p. 100).
É desse modo que a narrativa vai se construindo, tematizando a sua
própria impossibilidade. As questões de modo angustiado e doloroso vão
emergindo sem nenhum tipo de censura ou complacência, especialmente em
relação a si próprio, a partir do silêncio, reencontrado na escrita.
Retrato calado, a narrativa que tematiza a impossibilidade da narra-
tiva, assume o risco da construção literária da experiência vivida que não pode
ser dita – a literatura falando daquilo que se cala (Sarlo, 1997, p. 27-28). É
necessário então o registro rigoroso da experiência, como diz Salinas “da sua
descrição, da constituição do material fenomenológico, da sua transcrição lite-
rária. Contra a ficção do gênio maligno oficial se impõe um minucioso relato
histórico e é da boa mira neste alvo que depende o rigor do discurso” (p. 29).
É desta posição que a narrativa vai se construindo, a da “boa mira”,
que se move e se desloca permanentemente ao longo do texto, sem se fixar
num fio condutor cronológico, dando lugar aos vários tempos da experiência
que se entrecruzam nas suas diferentes intensidades – tempo vazio, tempo da
morte, rotina da sobrevivência, abismo do tempo, intervalo, outro tempo, tempo
acelerado, tempos difíceis, espera – e que vão fazendo falar os até então mu-
dos sujeitos que não podiam emergir das suas posições armadas de fora, ar-
mação que no entanto cala fundo, retratos calados.
Narrativa ofegante e entrecortada que expressa a impossibilidade
de compreender os nexos entre as coisas e a própria condição de Coisa: “Que
me espera agora? Que crimes cometi, afinal?” (p. 37). “Vestido. De novo Gente.
Ou quase. Coisa, depois de tudo o que acontecera, que eu já nem julgava mais
possível” (p. 44).
Impossibilidade de compreender o ritmo delirante da realidade, que
não pode ser narrado a partir de nenhuma linearidade: “este real que parece
um delírio circular, ele também” (p. 103). Delírio circular do real, imagem que
convoca a “visão de espanto”, os “dedos remos”, a “caneta âncora para nave-
garem no mar das coincidências” (p. 103). “Jogo incessante de imagens que
se superpõem” (p. 92), “sem a mediação-deformação do narrador historia-
dor” (p. 91), como diz na análise que faz do filme visto em Paris, no tempo
agora livre da nova vida das ruas estrangeiras, mas familiares, na carta ao
amigo transcrita/inscrita no texto. A inserção/inscrição não gratuita da análi-
se do filme na narrativa induz o leitor a vê-la naquele registro do jogo inces-
sante de imagens que se superpõem, que é, no entanto, ainda, como diz a
respeito do filme, “fruto da mais inteligente construção” (p. 91).
Sem a mediação-deformação do narrador historiador a narrativa vai
se construindo através de um sujeito que constantemente se depõe de suas posi-
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CARDOSO, Irene. Os silêncios da narrativa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, maio de 1998.

ções e vai cedendo lugar a um outro que surge quando, como diz ainda Salinas a
respeito do filme, “de repente, o espectador sente de maneira intensa como sen-
do o lugar do trabalho do cinegrafista”, quando ainda o “jogo incessante de
imagens que se superpõem, se neutralizam num comentário, em que é possível
distinguir vários patamares expressivos” (p. 92). Um “achado narrativo” (p.
93) do filme, como diz, que parece ser também o da sua própria narrativa.
Lugar do trabalho insistente, da insistência narrativa a partir do
qual se pergunta: “Como deixar de me pôr totalmente em questão, ali diante
de tão vil desfecho? Como não me perguntar pelo sentido de todo esse movi-
mento passado, atendo-me exclusivamente à fria descrição dos eventos? Como
não mobilizar o espanto diante de tantos significantes de conseqüências tão
devastadoras?” (p. 37).
Posição do sujeito narrativo, que emerge da “boa mira” móvel, aqui e
ali no texto, diante das demais posições marcadas pelos “significantes” devasta-
dores, pelo “destino” que “ia se decidindo misteriosamente lá fora” (p. 86), pelo
“Mar das Coincidências” (p. 103-104), no qual se vê “envolvido, ilhado e circun-
dado por acasos mais pesados e fatais do que qualquer necessidade” (p. 104).
Cena Primitiva e Repetição: modos como o narrador nomeia a or-
denação possível do relato destas experiências a serem decifradas. Esta orde-
nação não pode ser a da ordem cronológica, embora o narrador se angustie
por retomá-la de algum modo: “Não confundamos as coisas e tentemos
reconstituir a chamada ordem cronológica, pois Cronos é um deus muito po-
deroso e voraz que nos consome tanto que já não podemos mais deter o fluxo,
o fluxo tão sonhado que de repente arrebenta” (p. 86).
Duas prisões em 1970, outras duas em 74. OBAN, DOPS;
DEIC, OBAN.
Cena Primitiva se abre no “velho edifício do largo General Osório”,
o DOPS, meses depois dos dez dias de detenção na OBAN. Mas agora as
coisas seriam bem diferentes e logo, “logo seria dado ao protagonista que vos
fala a ocasião única, o privilégio imerecido de vir a conhecer o famoso instru-
mento de tortura já há muitos e muitos anos corriqueiramente utilizado por
nossas forças policiais em toda a vastidão do território nacional” (p. 9).
“Só quando chegamos percebo, de repente, o que me espera e en-
tendo o sorriso. É que o tal do magricela nervosinho e gozador me mandara
carregar, envolto em jornais, para disfarçar, nada mais, nada menos do que o
aparelho de choque, a cujas iluminações, dali há pouco, paudeararizado, viria
eu a ser submetido graciosamente. O grupo explode em gargalhadas quando o
pacote é desembrulhado, deixando a descoberto aquela sorte de pequeno rea-
lejo, cubo de madeira com uma manivela pendurada de um dos lados. E eu,
atônito, catatônico, arremessado de repente em meio ao inferno, transferido
de súbito para esta dimensão nova onde tudo se passa velozmente, embora
dure uma eternidade e embora se propague pela eternidade afora” (p. 9-10).
Na reconstrução da Cena, o jogo rápido de alternância das imagens,
que se traduz nos modos diversos de enunciação possíveis: o sujeito narrativo
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CARDOSO, Irene. Os silêncios da narrativa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, maio de 1998.

oscila entre posições que dão origem ora a uma fala que está colada à Cena,
ora àquela do distanciamento em relação a ela, que parece tão penoso cons-
truir. Oscilação entre um eu colado e um ele que produz a distância, que ex-
pressa literariamente a quase que impossibilidade de reconhecimento da Cena,
do seu absurdo. Não é possível que aquele personagem da Cena seja eu, e no
entanto ele é a minha irredutível condição.
“Nu, completamente nu. Obrigam o paciente a sentar no chão.
Amarram-me as mãos, que protegem com uma cobertura de pano, uma contra
a outra. Forçam-no a manter os joelhos unidos, dobrados contra o peito e
envolvidos pelos braços amarrados. No vão entre os braços e o joelho enfiam
uma barra de ferro e penduram-na – penduram-me – em dois cavaletes. Rápi-
dos, eficientes, bem treinados” (p. 10). E vão fazendo “funcionar o aparelhinho
que eu mesmo carregara como perfeito idiota” (p. 11). “Com seu paciente
trabalho junto à manivela, o hílare servidor, arrebatado por formidável furor
científico, ia buscando estabelecer a verificação empírica da veracidade das
proposições que eu formulava e respondia e vomitava em meio à dor, ao pâni-
co e à reconfortante revolta que não mais me abandonaria” (p. 12).
Abertura da Cena Primitiva e, como diz, “repetição monótona da
macabra cena inaugural do espetáculo pirotécnico do Brasil grande do fim da
década de 60 e do começo dos 70” (p. 11).
As questões vão se colocando, “perguntas que não deixam de se
impor e insistir o tempo todo” (p. 12), deslocando os sujeitos emudecidos,
confrontando o real e o imaginário, dissolvendo os delírios num movimento
de entrelaçamento da busca de uma consciência de si, a partir da vida cesurada
e de uma consciência do real para além dos seus também delírios circulares.
Como diz: “Tais perguntas ou dúvidas, talvez suspeitas ou supér-
fluas aos olhos do entendimento, só se justificam nesta sua configuração
hiperbólica, se o que pretendemos é justamente nos dedicar às questões radi-
cais, ou se o que nos inquieta é a radicalização das questões que prolongam no
espaço da reconstituição a Questão primeira, tornando tão difícil a exposição
dos eventos e toda a lítero-analítica a que nos conduz obrigatoriamente a ne-
cessidade do exorcismo” (p. 13).
Diante da situação da tortura no DOPS se pergunta: “Terei falado
demais?, herói ou covarde? É certo que o herói perfeito jamais colocaria tais
questões, o que significa, talvez, que pelo simples fato de enunciá-las já me
denuncio como Guerreiro pouco valente. Ou me desqualifico para as finais da
copa do heroísmo” (p. 12). Situação que repete a da OBAN, meses antes,
diante da exigência da “colaboração”, que tortura o “espírito até hoje” embo-
ra sem “conseqüências mais dramáticas”: “Como agir? Que dizer? Nada fa-
lar, tal como o vietcongue?” (p. 20).
“Deveria ter saído do país? Não sei. Partido para a clandestinidade
e me comprometido com a luta armada, desta vez para valer? Talvez. Mas,
que perspectiva nos oferecia, que não a suicida, a ação violenta contra o regi-
me? Não estaríamos antes obrigados a resistir sobrevivendo, do que a morrer
13
CARDOSO, Irene. Os silêncios da narrativa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, maio de 1998.

lançando a força contra a força neste combate desigual (...)?” (p. 33-34).
Radicalização das questões que incide sem complacência sobre si
próprio, mas também pode discriminar o tipo de lógica da tortura que leva
aqueles que são a ela submetidos, e que não são inteiramente destituídos da
própria subjetividade, a se constituírem nas figuras do herói ou do traidor, na
polaridade entre heroísmo e vergonha, lógica incorporada em certa medida
pelos próprios torturados e grupos aos quais pertenciam.
Questões radicais que podem pensar “os delírios circulares do real”,
sem nenhum tipo de condescendência com o regime, com a sua aceitação pela
sociedade e também com o “militantismo radical”.
“Lá fora, o melhor dos mundos, como se nada tivesse acontecido.
Os generais prosseguiam, meticulosos, na patriótica azáfama; o povo brasi-
leiro deixava-se salvar ao som estridente do ‘eu te amo meu Brasil’ e se prepa-
rava para o Grande espetáculo, enquanto seu pacífico esquadrão [não o da
Morte], sob o comando de Pelé e Tostão, aprestava-se para as próximas bata-
lhas, que as Tvs transmitiriam do México” (p. 33). “Regime hipócrita e todo-
poderoso de um lado. De outro, grupos de combatentes decididos mas
amadorísticos, com escasso apoio popular, cegos pelas suas estreitas catego-
rias teóricas ou pela fé ingênua nas virtudes do militantismo radical, acredi-
tando que um assopro seria suficiente para conduzir à conflagração geral, à
avassaladora explosão das massas enfurecidas, pondo abaixo o edifício da
iniqüidade” (p. 34).
“Tomar consciência do real”. “Aceitar calmamente, este real que
parece um delírio circular, ele também”: o “Mar das Coincidências”, o dos
“acasos mais pesados e fatais do que qualquer necessidade” (p. 103-104), do
qual é preciso emergir.
Repetição – modo como nomeia outro movimento da narrativa – que
produz “a sensação de destino”, que “converte (...) a vida em morte” (p. 86).
“Meu destino ia se decidindo misteriosamente lá fora” (p. 86). “Pois
é, depois da OBAN e do DOPS, o DEIC. (...) Não imediatamente: quatro anos
depois” (p. 77). E ainda novamente a OBAN.
Como reconstruir o tempo, como interromper o tempo da repetição,
delírio do tempo? Como inscrever as experiências que não têm registro, que “teó-
rica e oficialmente nunca existiram” e “residem no território da ficção”? (p. 81).
Entrecortada pelas questões, a narrativa vai se construindo a partir
mesmo dos cortes – que outro modo? – da vida cesurada, do corte bem fundo,
bem no fundo.
“Como manter a lucidez em meio à complexidade? Como proceder
à leitura do texto denso, desvendar os liames sutis, os vínculos que se
entremostram, como evitar as pistas falsas, como fugir à tentação preguiçosa
da facilidade? Às vezes a relação parece nítida, a correlação rica em promes-
sas de resultados fecundos. Da minha janela, olho o muro em frente, do outro
lado da rua [naquela época eu passava horas e horas em contemplação do
muro da rua em frente, sentado em frente à janela] e sonho com o mundo em
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CARDOSO, Irene. Os silêncios da narrativa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, maio de 1998.

que não haveria polícia. Mas ela insiste em me acompanhar. Lembro-me bem
daquele dia em que olhava pela janela e contemplava o muro cinzento em
frente, do outro lado da rua. De repente eles chegaram, de novo. Rádiopatrulha,
vermelho e negro, dois guardiões. Estacionaram o carro na entrada da vila e
um deles desceu. Teria sido um sonho? Até hoje não sei muito bem. Teria sido
projeção da megalomania que de mim se apoderara e que me dotara do senti-
mento permanente de trazer guardada dentro de mim a mensagem fatal, defi-
nitivamente fatal para a ordem vigente? Mas naquele momento nada pare-
cia mais real” (p. 100).
Repetição ainda, mas também agora, a possibilidade do “exorcis-
mo”, como diz, “que se renova a cada instante, a cada hora, a cada dia, a cada
semana, a cada ano, a esperança que rejuvenesce, de quebrar as grades, voar,
essas grades imaginárias” (p. 100).
À imagem do muro cinzento em frente, que contempla sentado jun-
to à janela, se superpõe a do “muro alvo”, no jogo incessante delas que atra-
vessa a narrativa: “Aqui no meu muro alvo, imitando o mestre, as confissões.
Tramadas no inferno e recapturadas à luz das ruas ensolaradas, vestidas de
cor e corpo completo sonhado, não mutilado (...) Os inimigos nos olharão
com desprezo: coitado, dirão, até hoje ainda falando de tudo isto. E os traços
da aventura menor já foram talvez até apagados dos arquivos, borrados dos
anais e certamente suplantados por milhares de outras histórias mais excitan-
tes que se repetem diuturnamente e eu aqui insistindo sobre tão insignifican-
tes eventos” (p. 105).
Insignificantes eventos, que no entanto calaram fundo, bem no fun-
do, cuja intensidade só pode ser reconstruída a partir de um outro movimento
da insistente narrativa, inter-calado entre os outros dois, Suores noturnos,
que reabre os sentidos, já não fechados, de Cena primitiva e repetição.
Suores noturnos são páginas de um Diário escritas por Salinas em
59 e 60 – num quarto de pensão em São Paulo, vindo da “interiorana cidade
natal”, como diz – transcritas e inscritas na narrativa Retrato calado.
“Sinto-me só. Fora do mundo. Como personagem do livro ‘The
Outsider’ de Colin Wilson (...). Diz este autor: ‘Quem sou eu? Eis aí o proble-
ma essencial do Estrangeiro’. E eis aí porque me identifico.
O futuro me parece um abismo. Tenho medo. Acho que sempre fui
assim, pensando bem. O mundo sempre me pareceu hostil (...) Não sei onde é
o meu lugar certo. Sempre fiquei meio de fora, como um estranho, mesmo
entre os amigos mais próximos.
O futuro está aí, ao meu lado, imenso, incerto, desconhecido. É pre-
ciso decidir logo, agora mesmo. É preciso me libertar destes naufrágios quoti-
dianos. Devo escolher um caminho e sofrer até o fim as conseqüências dessa
escolha (...) meu destino é o de refletir sobre mim mesmo e o mundo.
Devo me libertar antes de tudo da tirania do outro. Mas para isto é
preciso, talvez, mergulhar cada vez mais na solidão.
Sinto-me limitado, tenho dúvidas acerca das minhas possibilida-
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CARDOSO, Irene. Os silêncios da narrativa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, maio de 1998.

des. Que fazer? Antes de tudo, quero enxergar claro. Lucidez: eis a principal
exigência” (p. 64-5).
Destino, Lucidez, Medo, inquietação diante da “radicalização das
questões”, aqui como lá.
Destino: “acabo de ler ‘L’Espoir’ de André Malraux. Belo, belo.
Diz ele que a ‘possibilidade infinita’ do destino dos homens é mais ‘inquie-
tante’ do que ‘sua presença sobre a terra’” (p. 67).
Lucidez: “Por que escrevo? Alinhar palavras, construir frases (...) de
que adianta tudo isto? As coisas continuam a deslizar pelo abismo do tempo afora.
(...) Não sei por que escrevo, mas não importa. Vou continuar es-
crevendo, vou me submeter às palavras e deixar que elas corram livremente.
Alguma coisa vai ser retida, talvez, quando futuramente eu procurar fazer um
‘balanço vital’” (p. 67-68).
Medo: “Tenho me lembrado muito ultimamente daquele antigo, di-
gamos, surto neurótico infantil. A mesma cena repetiu-se durante muitas noi-
tes seguidas (...) De repente, uma horrível visão me atacava e me botava em
verdadeiro pânico. Era a seguinte: eu me via, de repente, morto, dentro da
sepultura. O que mais me aterrorizava era o fato de eu não compreender como
poderia a alma – que me haviam ensinado imortal – desprender-se do corpo,
libertar-se dele. Acreditava que isto não fosse possível, imaginava então que
continuaria consciente, (...) na eterna escuridão tenebrosa da sepultura (...)
Até mesmo os terrores do inferno me apareciam como menos terríveis do que
a perspectiva de uma prisão perpétua dentro da cova (...). Fazia esforços so-
bre-humanos para compreender o enigma, suava e estremecia, e o fracasso da
investigação obscura me arrancava lágrimas de pânico” (p. 65-66).
Retrato calado, a narrativa que não se fecha. Que não imobiliza a
existência num “sempre passado”, morto, mas se constitui em “obra de uma
memória viva, vital, que quer e pode recuperar o tempo em seu próprio movi-
mento” (Blanchot, 1997, p. 237). A construção insistentemente retomada, a
forte impressão causada pela leitura de Suores noturnos, mas também regis-
trada por Salinas, no que escreve como acréscimo posterior, quando da prepa-
ração dos originais, referindo-se à noturna cena relatada: “mas o episódio
contém certamente muito material, traz certamente oculto nele muitas pistas
para a explicação do ulterior evoluir. A ele devo retornar. E insistir. Tentar
decifrá-lo” (p. 67).
Narrativa que não se fecha, mas que fechou a vida de Salinas. Como
ele disse, ainda, no Diário, referindo-se à morte recente de Camus – “este meu
amigo íntimo”: “essa figura foi ludibriada, sua vida convertida em ‘destino’,
como dizia Malraux, porra, como a morte é uma coisa besta” (p. 70).

Recebido para publicação em março/1998

16
CARDOSO, Irene. Os silêncios da narrativa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, maio de 1998.

CARDOSO, Irene. The silences of narrative. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, may
1998.

ABSTRACT: A reading of Luiz Roberto Salinas Fortes’ narrative “Retrato Cala- UNITERMS:
do” based on the reconstruction of some of its characteristics through a “reading narrative,
memory,
experience”.
silence,
torture.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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terreur subjective), Paris, Éditions de l’Éclat.
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do fogo. Rio de Janeiro, Rocco.
CARDOSO, Irene. (1997) A narrativa silenciada. In: CARDOSO, Irene & SILVEIRA
Paulo (orgs.). Utopia e mal-estar na cultura: perspectivas psica-
nalíticas. São Paulo, Programa de Pós-graduação em Sociologia
da USP/ Hucitec.
SALINAS FORTES, Luiz Roberto. (1988) Retrato calado. São Paulo, Marco
Zero.
SARLO, Beatriz. (1997) Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de
comunicação. São Paulo, Edusp.

17
ADORNO,
Tempo Sérgio. Conflitualidade
Social; e violência:
Rev. Sociol. USP,reflexões sobre10(1):
S. Paulo, a anomia na contemporaneidade.
19-47, A RRev.
maio de 1998. Tempo Social; TSociol.
I GUSP,O
S. Paulo, 10(1): 19-47, maio de 1998.

Conflitualidade e violência
reflexões sobre a anomia na
contemporaneidade
SÉRGIO ADORNO

RESUMO: A partir de uma análise crítica de ensaio de Ralph Dahrendorf, Law UNITERMOS:
and Order (1985), sobre a erosão da lei e da ordem na sociedade contemporâ- anomia,
autoridade,
nea, procura-se desconstruir os argumentos contidos no ensaio sugerindo as
lei e ordem,
mudanças que incidem sobre o modo de assujeitamento dos indivíduos. Mais violência,
do que liberação dos indivíduos dos liames e controles sociais, para além de crime organizado,
um problema de “ligaduras”, o que parece estar no centro das radicais transfor- narcotráfico.
mações da ordem neste final do século é o modo como os indivíduos gover-
nam a si e aos outros (Foucault, 1984). Para sustentar esta hipótese, toma-se
como referência para a análise um caso determinado: a colonização da
criminalidade urbana pelo crime organizado, em particular por uma das moda-
lidades mais emblemáticas de produção da violência no mundo contemporâ-
neo – o narcotráfico.

M
eu ponto de partida é o livro do sociólogo alemão Ralph
Dahrendorf, publicado em língua inglesa sob o título Law and Order
(1985). O livro compõe-se de quatro ensaios cujo objeto é uma
reflexão sobre os dilemas, impasses e o futuro da ordem social e da
liberdade em nossas sociedades contemporâneas. Apesar de publicado há dez
anos (no Brasil, foi editado pelo Instituto Tancredo Neves, Brasília, em 1987),
ele mantém sua atualidade. Chamou-me particularmente a atenção um dos
temas predominantemente abordados no livro, qual seja, a erosão da lei e da
autoridade. Mais do que isso, o fato de que Dahrendorf toma como pano de
fundo para discutir esse “clássico tema” a generalização de um sentimento de
insegurança e medo diante da escalada do crime na sociedade contemporânea. Professor do Departa-
mento de Sociologia da
Vou destacar algumas das idéias contidas nos ensaios com o risco de FFLCH-USP
19
ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 19-47, maio de 1998.

empobrecê-los, sobretudo porque se trata de um texto erudito, finamente ar-


gumentado, sedutor até.
Desde o início, ao anunciar seu objeto, o autor adverte que o objeti-
vo de suas conferências não é uma contribuição para a criminologia ou para o
debate sobre prisões e polícia. Como ele mesmo as qualifica, elas apresentam
uma contribuição à análise do conflito social e da teoria política do liberalis-
mo. Bem, é preciso de antemão entender o que Dahrendorf está compreenden-
do por conflito social na sociedade contemporânea. Nisto reside todo o em-
preendimento intelectual de sua obra. Em seus primeiros escritos, produzidos
entre meados da década de 1950 e a primeira metade da década de 19701,
* Originalmente, este Dahrendorf inclinou-se a polemizar com as teorias de Parsons e de Marx. No
texto compõe, com al- que concerne ao sociólogo americano, seus escritos cuidaram de contestar os
terações, o capítulo in-
trodutório “Violência, fundamentos que regem a teoria parsoniana do consenso social. Ao contestá-
crime e Justiça penal los, Dahrendorf apontou para o sentido da construção de uma teoria do confli-
da sociedade brasilei- to social que lhe parece adequada para a compreensão de nossa contem-
ra contemporânea” de
Adorno (1996). poraneidade. Neste terreno, Dahrendorf mantém diálogo com a obra de Marx.
1
Refiro-me basicamen- Dahrendorf acolhe as concepções de Marx quanto à natureza do conflito de
te a: As classes e seus
conflitos na socieda- classes na sociedade industrial de seu tempo, isto é os conflitos predominan-
de industrial (1982) e tes no século XIX. No entanto, discorda que o modelo marxista seja aplicável
à coletânea de ensai- à sociedade contemporânea, por esta entendendo-se as “formas de associação
os publicada no Bra-
sil sob o título Socie- determinadas pela norma imperativa” desenvolvidas no curso do século atual.
dade e Liberdade, a Referindo-se aos propósitos de seu estudo, afirma: “em primeiro lugar, desejo
maior parte deles re-
digido nas décadas de indicar certos modelos de desenvolvimento social que justificam a afirmação
1950 e 1960. Esse de que a teoria de classes de Marx é falsificada por observações empíricas.
conjunto de trabalhos Em segundo lugar, no entanto, pretendo discutir características das socieda-
compreendem o que
alguns comentaristas des industriais avançadas que devem ser levadas em conta por uma teoria do
convencionaram no- conflito e da mudança que pretenda ser aplicável não apenas às sociedades
mear o “primeiro
Dahrendorf” (cf. Izzo, capitalistas, mas às sociedades industriais em geral” (Dahrendorf, 1982, p. 43)2.
1991, p. 371-379). Seu principal argumento empírico é relativamente conhecido: o de-
2
Conviria aqui lembrar senvolvimento industrial pós-Marx promoveu uma acentuada dissociação entre
que, para Dahrendorf,
o capitalismo é uma a propriedade e o controle dos meios de produção, cujos exemplos mais signi-
forma de sociedade ficativos repousam na proliferação de sociedades anônimas, de cooperativas e
industrial. Sua argu-
mentação é justamen- de empresas estatais, características típicas do século XX. A este fato segui-
te no sentido de esva- ram-se imediatas conseqüências, entre as quais: redução das distâncias entre
ziar o conteúdo polí- gerentes e operários; isolamento dos proprietários da esfera da produção, esta
tico do conceito de ca-
pitalismo, tal como cada vez mais sob controle dos managers; diferenciação de papéis entre pro-
ele foi elaborado no prietários e gerentes convertidas em diferenças entre acionistas e executivos;
conjunto da obra de
Marx. A este respei- mudanças nas bases da legitimidade empresarial, antes ancorada nos direitos
to, é célebre o embate de propriedade, hoje em um tipo de autoridade que em muito se assemelha
com Ralph Miliband, àquela que prevalece entre os diretores de instituições públicas; mudanças na
autor de The state in
capitalist society composição da classe empresarial, cujo acesso é na atualidade possível não
(1969). A tradução apenas através da herança, mas também por intermédio da construção de car-
brasileira foi publi-
cada pela Zahar, em reiras burocráticas alicerçadas na educação altamente especializada. De todas
1972 (2a ed. em 1982). essas, a mais importante conseqüência da decomposição do capital reside nas
20
ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 19-47, maio de 1998.

mudanças que operam na composição dos grupos sociais que participam dos
conflitos, bem como nos problemas que os engendram e nos modelos de reso-
lução que se desenvolvem.
Dahrendorf identifica cinco substantivas transformações que afe-
tam a natureza dos conflitos e tensões na sociedade contemporânea. A primei-
ra diz respeito às diferenciações no interior da classe trabalhadora, a qual
perde no curso dos acontecimentos a homogeneidade que Marx identificara
como tendência inexorável do desenvolvimento social e político dessa classe.
Ao contrário, Dahrendorf anota progressivo crescimento de trabalhadores al-
tamente qualificados, assemelhados a engenheiros e a trabalhadores de escri-
tórios; crescimento de trabalhadores semi-especializados, porém com elevado
grau de experiência industrial acumulada; e decrescente participação dos tra-
balhadores não totalmente especializados, a maioria deles nesta condição por-
que recém-chegados à indústria. Associada a este processo, Dahrendorf tam-
bém observa a emergência de uma nova classe média – impensável no modelo
marxista de classes sociais –, materializada no crescimento vigoroso dos tra-
balhadores de escritório. Trata-se de um agrupamento social que rigorosa-
mente não pode ser conceituado como classe social, sequer como estrato soci-
al, cujo comportamento social e político é caracterizado pela ambigüidade
justamente porque parte desses trabalhadores, os burocratas, se identifica com
a burguesia, enquanto outra parte se identifica com a classe operária. Tudo
isso tem, por conseguinte, efeitos decisivos sobre a natureza dos conflitos
contemporâneos. Em terceiro lugar, as transformações sociais incidem sobre
a intensificação da mobilidade social, entre e intra estratos sociais. Um novo
modelo de alocação de papéis institucionaliza-se nas sociedades industriais
contemporâneas, fruto da abertura de oportunidades oferecida pelo mercado.
Em quarto lugar, pela primeira vez na história social moderna criam-se as
condições para que a igualdade se efetive na prática. Nesse terreno, Dahrendorf
apóia-se em Marshall (1967) para sustentar a existência de equalização de
status na sociedade industrial contemporânea. Sob esta perspectiva, a notável
expansão da igualdade social teria tornado as mudanças revolucionárias poli-
ticamente impossíveis. Em contrapartida, teria contribuído para alterar a subs-
tância dos conflitos de classe, reduzindo sua intensidade. Disto resulta uma
quinta transformação, em verdade, uma das principais teses contidas na obra
de Dahrendorf: a institucionalização dos conflitos sociais.
Ele argumenta que as lutas entre classes operárias e empresariado
capitalista, típicas da Inglaterra entre fins do século XVIII e primeira metade
do século XIX e típicas da Europa continental ao longo do século XIX, perde-
ram sua intensidade e mesmo razão de ser, no século XX, em virtude da
institucionalização dos conflitos. Por isto, Dahrendorf entende: por um lado,
o reconhecimento da legitimidade do conflito de interesses e, por essa via, da
legitimidade dos grupos em litígio; por outro lado, o estabelecimento de pro-
cedimentos e de mecanismos voltados para amortecer a violência dos choques
tête-à-tête entre os grupos oponentes. No âmbito das relações industriais, ele
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S. Paulo, 10(1): 19-47, maio de 1998.

refere-se ao desenvolvimento de negociações coletivas e aos sistemas de con-


ciliação, mediação e arbitramento. No domínio da política, Dahrendorf subli-
nha que na atualidade órgãos legislativos e tribunais de justiça desempenham
funções similares.
Dahrendorf conclui que os conflitos contemporâneos deixaram de
gravitar em torno da distribuição escassa de recursos dentro de limites acei-
tos, para gravitarem em torno do contrato, ou seja lutas em que o objetivo
principal é a lei e a ordem. Nessa linha de interpretação, o que passou a estar
no cerne do jogo político é a maior ou menor capacidade de distintos grupos
sociais influenciarem as estruturas normativas da sociedade. Em outras pala-
vras, lutas em torno da desigualdade de poder e de autoridade. Assim, afirma:
“tanto nas empresas industriais post-capitalistas quanto nas capitalistas, exis-
tem algumas pessoas cuja tarefa é controlar as ações de outros e emitir ordens
e outras pessoas que devem deixar-se controlar e obedecer. Hoje, assim como
há cem anos atrás, há governos, parlamentos e tribunais cujos membros têm a
faculdade de tomar decisões que afetam a vida de muitos cidadãos, e há cida-
dãos que podem protestar e modificar seu voto, mas que têm de obedecer à lei.
Na medida em que estas relações podem ser descritas como relações de auto-
ridade, eu afirmaria que as relações de subordinação e dominação perduraram
através das mudanças do último século. Acredito mesmo que podemos avan-
3
Para os propósitos çar ainda mais. A autoridade exercida tanto na sociedade capitalista quanto na
desta introdução, abs- post-capitalista é do mesmo tipo; nos termos de Weber, é uma ‘autoridade
tenho-me de apresen-
tar as críticas que fo- racional’ baseada ‘na crença na legalidade das normas institucionalizadas e
ram dirigidas contra do direito de comando por parte daqueles que, através dessas normas, foram
essa interpretação do investidos com autoridade’. A partir desta condição seguem-se muitas outras,
conflitos de classes
na contemporanei- inclusive a necessidade de administração burocrática. Mas estas últimas ba-
dade elaborada por seiam-se, sobretudo, na desigualdade social fundamental da autoridade, que
Dahrendorf. Além de
Miliband, acima cita-
pode ser mitigada por seu caráter racional, mas que, não obstante, permeia a
do, conviria destacar estrutura de todas as sociedades industriais e proporciona o determinante e a
as críticas de Antony substância da maioria dos conflitos e choques” (Dahrendorf, 1982, p. 73)3.
Giddens (1984).
4
Este é considerado o Neste momento, a obra de Dahrendorf sofre um redirecionamento.
segundo momento da Uma preocupação cada vez maior para com problemas de anomia na socieda-
obra de Dahrendorf.
Sua preocupação cen- de contemporânea. Trata-se de um problema, em sua concepção, relacionado
tral reside em refletir ao progresso da liberdade, progresso esse materializado pela multiplicação
sobre a natureza dos das oportunidades de vida4, cujos elementos constitutivos são a liberdade de
conflitos contempo-
râneos, aqueles que escolha, por um lado, e as ligaduras, ou seja os vínculos que atam os indivídu-
gravitam em torno da os à sociedade. “O advento da sociedade moderna significou incontestavel-
legalidade, do poder e
da autoridade. Com- mente uma expansão das oportunidades de escolha, mas somente ao preço de
preende seus ensaios desatar as ligaduras existentes” (Dahrendorf apud Izzo, 1991, p. 376-377).
sobre liberdade, pro- Esse é o contexto em que surge Law and Order. Nesta obra, Dahrendorf sus-
gresso, o novo libera-
lismo e, em particular, tém sua interpretação do dilema da sociedade contemporânea: as lutas em
Law and Order, do torno do contrato são concomitantes a um processo reverso, qual seja, cami-
qual me ocuparei em
seguida. Vide também
nhamos inexoravelmente para a anomia, isto é, para a erosão da lei e da or-
Darhrendorf (1992). dem, cujo principal indicador é a atual incapacidade do Estado de cuidar da
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ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 19-47, maio de 1998.

segurança dos cidadãos e de proteger-lhes os bens. Em que se apóia essa


constatação de Dahrendorf? Em fatos, mais propriamente, nas tendências mun-
diais ao aumento dos crimes e nas taxas sugestivas de uma retração na capaci-
dade punitiva do Estado.
Segundo o sociólogo, desde a década de 1950 e mais dramatica-
mente ao longo dos anos 60, verificou-se um aumento substantivo dos crimes
contra a pessoa. As taxas de assassinatos dobraram no período, especialmen-
te nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Alemanha, Países Baixos e Suécia. A
tendência para cima é ainda mais acentuada quando se fala em assaltos, rou-
bos e estupros. Em trinta anos teria havido um aumento considerável do nú-
mero de pessoas que vivem do crime, assim como um número crescente de
vítimas. Vale dizer: primeiro, maior número de pessoas está violando as leis
penais; segundo, maior número de pessoas figura como vítimas; terceiro, um
universo considerável de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais
está cada vez mais vulnerável à ofensa e ao ataque. Ademais, em função mes-
mo da prosperidade e do aumento da circulação da riqueza, novas modalida-
des de crimes surgiram, como aquelas relacionados ao tráfico de drogas.
Em princípio, nada disso tem muita importância. Dahrendorf dirá
mesmo que o problema em si não é o aumento dos crimes, porém a maior ou
menor tolerância da sociedade em aceitá-los e conviver com eles. Ocorre que,
na sociedade contemporânea, essa tolerância teria chegado a seu limite máxi-
mo, haja vista as reações e a ansiedade pública diante da crescente ameaça do
crime. Essa ansiedade pública diz respeito, por conseguinte, aos significados
que adquirem a erosão da lei e da ordem. Um desses significados aponta no
sentido de que é hoje maior a probabilidade de um criminoso se manter oculto
comparativamente ao passado. Dito de outro modo, há fortes suspeitas,
embasadas em estatísticas, de que apenas uma pequena parcela dos crimes
cometidos seja conhecida, problema para o qual concorrem muitos aspectos
(alguns deles identificados no texto, como: descaso da polícia para com delin-
qüentes conhecidos, desistência deliberada de punições, afrouxamento das
punições ou incapacidade de se lidar com as infrações).
Para Dahrendorf, ainda que se considere que ambos os fatos – isto
é, crescimento dos crimes e crescimento das “cifras negras” (crime oculto) –
sejam conjunturais, e mesmo, que possam ser considerados dentro de uma
normalidade qualquer, tais argumentos não elidem a existência de um proble-
ma real de lei e ordem na sociedade contemporânea, qual seja, se as violações
das normas não são punidas de forma sistemática, elas se tornam em si siste-
máticas. Atinge-se assim o campo traiçoeiro, porém fértil da “anomy”, no
entender de Dahrendorf não um estado de espírito, mas um estado da socieda-
de. A anomia é uma condição social em que as normas reguladoras do com-
portamento das pessoas perderam sua validade. Onde prevalece a impunida-
de, a eficácia das normas está em perigo. As normas parecem não mais existir
ou, quando invocadas, resultam sem efeito. Tal processo aponta no sentido da
transformação da autoridade legítima em poder arbitrário e cruel.
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ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
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Pois bem, para Dahrendorf, nas sociedades contemporâneas assis-


te-se ao declínio das sanções. A impunidade torna-se cotidiana. Esse processo
é particularmente visível em algumas áreas da existência social. Trata-se de
áreas onde é mais provável ocorrer isenção de penalidade por crimes cometi-
dos. São chamadas de “áreas de exclusão”, a saber:
1) nas mais diferentes sociedades, uma enorme quantidade de furtos
não é sequer registrada. Quando registrada, é baixa a probabilidade de que o
caso venha a ser investigado. O mesmo é válido para os casos de evasão fiscal,
crime que parece ter instituído uma verdadeira economia paralela e para o qual
há sinais indicativos de desistência sistemática de punição. Segundo Dahrendorf,
a conseqüência desse processo é que as pessoas acabaram tomando as leis em
suas próprias mãos;
2) uma segunda área é afeta à juventude. Dahrendorf constata que em
todas as sociedades modernas os jovens são responsáveis pela grande maioria
dos crimes, inclusive os crimes mais violentos. No entanto, o que se observa é a
tendência geral para o enfraquecimento, redução ou isenção de sanções aplicá-
veis aos jovens. Dahrendorf suspeita de que essa tendência seja em grande parte
responsável pelo aumento da delinqüência juvenil;
3) uma terceira é o reconhecimento, por parte do cidadão comum, de
espaços na cidade que devem ser deliberadamente evitados, isto é, o reconheci-
mento de áreas que se tornaram isentas do processo normal de manutenção da
lei e da ordem. A contrapartida desse fato tem resultado no rápido desenvolvi-
mento dos sistemas privados de segurança, o que se traduz na quebra do mono-
pólio da violência em mãos dos órgãos e indivíduos autorizados. Para Dahrendorf,
se levado ao extremo esse processo conduz necessariamente à anomia parcial;
4) uma quarta área de exclusão diz respeito à própria falta de direção
ou orientação das sanções. Para o sociólogo alemão, quando a extensão das
violações às normas se tornaram bastante vastas, sua conseqüente aplicação se
torna difícil, por vezes impossível. Motins de ruas, tumultos, rebeliões, revoltas,
insurreições, demonstrações violentas, invasões de edifícios, piquetes agressi-
vos de greve e outras formas de distúrbios civis desafiam o processo de imposi-
ção de sanções. Não há como distinguir atos individuais de protesto maciço de
autênticas revoluções, manifestações coletivas de uma exigência de mudança.
Bem, penso que a exposição, até aqui realizada, recoloca as princi-
pais idéias e argumentos de Dahrendorf no primeiro de seus ensaios. Não vou
deter-me nos ensaios seguintes, embora eles sejam tão importantes para a
“arquitetura” argumentativa de sua proposta de reconstrução da sociedade
contemporânea quanto o capítulo inicial do livro. Permito-me, contudo, fazer
algumas menções e tecer algumas considerações na medida em que elas enca-
minham na direção de minhas reservas quanto às interpretações de Dahrendorf
a respeito dos fatos sociais contemporâneos.
No segundo ensaio, intitulado “Buscando Rousseau, encontrando
Hobbes”, Dahrendorf anuncia sua proposta. Retomando e ampliando suas
idéias, ele afirma que o mundo contemporâneo é caracterizado tanto pelo en-
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fraquecimento das sanções penais quanto pelo enfraquecimento das “ligadu-


ras” (isto é, liames sociais que transcendem mudanças culturais de curto pra-
zo). Esse duplo processo deixou vestígios em fatos, entre os quais a reforma
do direito penal alemão no início dos anos 60. Dahrendorf critica as propostas
“alternativas” que vingaram na reforma e introduziram uma nova política cri-
minal que advogava a recusa das penas que “dessocializam” o homem, tais
como as de prisão, princípio que, em última instância, entendia o criminoso
como ser carente de cuidados e não sequioso de punições. De acordo com a
análise de Dahrendorf, o efeito prático dessas concepções, aplicadas ao direi-
to penal, foi a de enfraquecimento das sanções até às raias da impunidade. Na
mesma direção, detém-se nas concepções de Habermas sobre a estrutura
normativa da sociedade, aproximando-o das concepções contidas em Emílio
e, por essa via, qualificando-o como o “Rousseau contemporâneo”. Opondo-
o às imagens de homem contidas no pensamento de Kant, conclui afirmando
que o grande perigo da contemporaneidade é justamente a “impossibilidade
de sustentar a sociabilidade insociável do homem”. Por isso, as soluções para
esse mundo passam necessariamente pela reconstituição do contrato, vale di-
zer, dos liames indispensáveis ao funcionamento do contrato. Em síntese, sua
proposta reside na (re)construção de instituições5.
No terceiro ensaio, intitulado “A luta pelo contrato social”,
Dahrendorf cuida de contextualizar sua proposta. Para tanto, detém-se em um
dos temas mais presentes em sua sociologia: os novos antagonismos da soci-
edade industrial. Após uma análise do processo histórico de institucionalização
ou “democratização” dos conflitos sociais, ele vai identificar suas conseqüên-
cias em tripla direção: primeiro, o fracasso do Welfare State (Estado social)
como mecanismo de transferência de recursos para garantir a efetividade dos
direitos de cidadania para todos; segundo, a emergência de uma nova pobreza
constituindo sete grupos principais (desempregados, idosos, famílias
monoparentais, doentes e incapazes, os de baixa renda, mulheres solteiras
com dependentes mais velhos e pobres internados em instituições). Todos eles
extremamente dependentes de mecanismos de transferência de renda e, mais
vulneráveis, incapazes de se defenderem das reduções dos benefícios do Esta-
do social. Terceiro, uma nova explosão de litigiosidade, não mais entre pa-
trões e empregados ou entre ricos e pobres, porém entre a “classe majoritá-
ria”, aqueles que estão empregados e usufruem os direitos de cidadania, e as 5
Nunca é demais lembrar
“classes inferiores”, compostas de indivíduos excluídos dos direitos e consi- que conclusões desta
derados dispensáveis (aqueles que não dispõem de cidadania, como os imi- ordem se encontram
igualmente na obra de
grantes; aqueles que já a dispuseram, mas não mais a possuem na sua totali- Durkheim, especial-
dade, como os idosos; e aqueles que ainda não dispõem e que encontram enor- mente em A Divisão do
mes dificuldades de acesso aos direitos, como os jovens). Trabalho Social (1963)
e em A Educação Mo-
A conclusão deste ensaio caminha no sentido de sugerir que esses ral (1965), bem como
conflitos instituem crises de legitimidade nas sociedades contemporâneas, por em Mannheim, particu-
larmente em Essays on
isso entendendo-se sua incapacidade de fomentar lealdade a seus valores bási- sociology and social
cos. Daí porque a questão do contrato teria se tornado dominante. É em torno psychology (1953).

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dela que reside a alternativa proposta por Dahrendorf no sentido de um libera-


lismo radical cuja agenda incluiria enfrentar três problemas básicos: a inser-
ção dos jovens, o futuro do trabalho e o problema da lei e da ordem. Quanto a
este último, a proposta não pode se restringir ao velho remédio rousseuniano
e sequer ser substituído por políticas econômicas voltadas para uma justiça
distributiva. Segundo Dahrendorf, o reconhecimento de que a escalada do cri-
me tem profundas raízes sociais, ligadas à falência do Estado social (Welfare
State), não conduz necessariamente a advogar isenção de sanções para os
criminosos procedentes dos estratos mais pobres da população. Por liberalis-
mo radical, entende-se, por conseguinte, uma nova atitude perante às institui-
ções, atitude firme e ao mesmo tempo moderada.
Por fim, o último ensaio, intitulado “A sociedade e a liberdade”
(aliás, não poderia ser diferente), cuida de apresentar a proposta desse libera-
lismo radical. A destacar, três aspectos. Primeiro, um argumento de fundo que
6
sempre esteve presente ao longo de toda a “arquitetura argumentativa” do
Aqui Dahrendorf faz
menção às obras de texto. Indaga o autor: por que defender as instituições? Sua resposta é simples
John Rawls (1971) e e direta, embora suscite não poucos problemas. Trata-se de assegurar a socia-
de Nozick (1974).
7
Certamente, com fun- bilidade insociável do homem, base sob a qual as instituições configuram
damento em argumen- criações humanas voltadas para a efetivação dos direitos do homem e para o
tos extraídos de Fou- controle sistemático do poder. Daí, a possibilidade de liberdade.
cault (1966), seria
possível contestar es- Um segundo aspecto diz respeito ao fato de que, em termos de po-
sa espécie de subjeti- líticas públicas, sua proposta incide nas “áreas de exclusão” anteriormente
vidade referida à “so-
ciabilidade insociável assinaladas. Em linhas gerais, ele sugere intervenção nas seguintes direções:
do homem”, solo no (a) punir crimes atualmente não punidos; (b) ampliar o leque de oportunida-
qual Dahrendorf sus- des para os jovens, mas também exigir-lhes rigoroso respeito à autoridade; (c)
tém sua concepção de
“ligaduras”. Embora apoio às instituições de lei e de ordem, mediante estreitamento dos laços entre
devesse fazê-lo, por- polícia e comunidades locais, o que, em última instância, significa conferir
quanto se constitua em
elemento nuclear em uma abordagem institucional ao problema da lei e da ordem.
sua arquitetura argu- Um terceiro aspecto, por fim, está relacionado, a uma espécie de
mentativa, optei por atributo que ele agrega à sua proposta de liberalismo radical. Trata-se de uma
concentrar minhas re-
flexões em torno da proposta que deve evitar tanto a anomia quanto a hipernomia (excesso de
questão da anomia, normas ameaçando sufocar toda iniciativa e liberdade). Essa “bête noire” apon-
como se verá a seguir.
8
É justamente nos fun- ta para a necessidade de uma visão sobre o mínimo de respostas normativas e
damentos liberais da institucionais que o contrato social pode fornecer. Esse mínimo diz respeito à
sociologia de Dahren- “justiça com eqüidade”6, o que significa dizer que a justiça não está ausente
dorf que se encontram,
em meu ponto de vis- da construção normativa da sociedade.
ta, um de seus maio-
res obstáculos. De
fato, embora o soció- Creio que esse desenvolvimento encerra o debate instituído pelo
logo alemão pretenda texto de Dahrendorf. Em meus comentários, vou privilegiar algumas questões
descrever e explicar em detrimento de outras, por mais interessantes e relevantes que possam ser
sob a perspectiva so-
ciológica os proble- principalmente para a teoria sociológica contemporânea. Por exemplo, vou
mas contemporâneos, deixar de lado um dos alicerces epistemológicos do texto sobre o qual se edifica
isto é, aqueles perti-
nentes ao nosso sécu- a arquitetura argumentativa de Dahrendorf. Refiro-me à “sociabilidade
lo, e conquanto se in- insociável do homem”, princípio que sustém suas concepções de contrato so-
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ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
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cial, conflitos, anomia e hipernomia etc. Trata-se de um princípio seguramen-


te inspirado na metafísica kantiana e que me parece propor problemas insolú-
veis7. No mesmo sentido, não vou me ocupar detidamente de uma crítica aos
limites postos pelos fundamentos liberais da sociologia de Dahrendorf, embo-
ra não se possa ignorá-los quando menos por suas implicações teóricas8.
Eu gostaria, no entanto, de começar por uma pequena observação,
à margem do texto, para em seguida questionar-lhe os fatos. O que me parece
estranho é uma espécie de nonsense histórico que percorre o raciocínio e os
argumentos de Dahrendorf. Por um lado, o texto propõe-se a abordar os no-
vos antagonismos da sociedade contemporânea, nuclearizados em torno das
lutas pelo contrato social, os quais remetem a problemas de efetivação da lei e
da ordem. Para tanto, recorre com freqüência ao contraste entre passado e
presente, seja comparando as lutas sociais dos séculos XVIII e XIX com as do
século atual, seja comparando a evolução da criminalidade e das sanções, por
exemplo, nos últimos trinta anos. Essa comparação é sempre feita a partir de
cline a adequar a teo-
um olhar que, do passado, vê o presente. Ao fazê-lo, vê o presente em crise, ria liberal à atualida-
ora como crise de legitimidade (em relação às normas), ora como crise de de, sua concepção de
liberalismo é a mais
autoridade (em relação ao poder de impô-las). A imagem flagrante do texto é convencional possí-
a de decadência. Daí, os perigos disseminados por todo o tecido social: crime vel, detendo-se em
em excesso criando situações sociais intoleráveis, sanções não-aplicadas, ge- sua caracterização so-
cial e política tal como
ração de “áreas de exclusão” etc. essa doutrina filosófi-
O tratamento dos problemas contemporâneos nesses termos supõe ca foi pensada no sé-
culo XIX, no auge do
um anacronismo histórico, qual seja, o de buscar inspiração no passado para capitalismo concor-
compreender o presente9. Disso resulta inevitavelmente um paradoxo: a recu- rencial.
9
peração de uma linguagem típica de fins do século XIX para reconstruir fatos Neste domínio, minha
inspiração baseia-se
contemporâneos. Assim é que se fala em anomia, crise de autoridade, erosão no excelente e clássi-
da lei, recuperação das instituições, tudo lembrando o universo sociológico co estudo de Man-
nheim: “O pensamen-
durkeimiano, forjado àquela época para dar conta dos elementos anômicos da to conservador”, ca-
divisão social do trabalho. Não é por acaso também que esses temas sejam pítulo integrante de
empiricamente tratados sob os mesmos signos que sociólogo francês reserva- Essays on sociology
and social psycho-
ra para dar conta daqueles elementos anômicos, como sejam o crime e o siste- logy, citado. Neste
ma de sanções. Como apontam Lagrange & Roché (1993), há uma impressi- ensaio, Mannheim
afirma que “o pensa-
onante associação entre as linguagens de fins do século XIX e fins do século mento conservador se
XX. Nelas, o crime ocupa a face dianteira da cena pública: converte-se em concentra sobre o pas-
inquietação coletiva, em objeto de interesse por parte dos analistas e em alvo sado na medida em
que o passado sobre-
da moralidade pública e dos princípios da organização social, a despeito de os vive através do pre-
contextos sociais e políticos que marcam ambos períodos não serem compa- sente; (...) Ver as coi-
sas autenticamente
ráveis. como um conservador
Desde fins do século XIX, diferentes observadores – jornalistas, é experimentar os a-
literatos, historiadores, sociólogos, artistas – da sociedade francesa vincula- contecimentos em ter-
mos de uma atitude
ram o fim do século passado a uma era de degradação da ordem e da seguran- derivada de circuns-
ça, simbolizadas pela degenerescência racial, pelos vícios morais, pela degra- tâncias e situações
ancoradas no pas-
dação dos valores, pela difusão de perturbações mentais de toda sorte. Analis- sado” (Mannheim,
tas como Joly e Tarde (apud Lagrange & Roché, 1993) constatam que a 1980, p. 125-126).
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criminalidade vinha aumentando muito rapidamente desde o início do século


XIX. Mais do que a gravidade dos crimes, o que os preocupava era o crescente
volume da pequena delinqüência, fenômeno interpretado como resultante de
um relaxamento dos costumes. “Os criminólogos tem a impressão de uma
transformação radical da sociedade, rápida e violenta. Os quadros sociais e
psicológicos vêm abaixo. Muitas rupturas se conjugam impedindo que a esta-
bilidade necessária se realize. A sociedade, pensada como um organismo, está
doente, e as doenças são contagiosas. O perigo é tanto mais intenso quanto se
multiplicam na sociedade moderna os contatos que favorecem a difusão das
condutas criminais. Entre as inquietações deste final de século, os criminólogos
retêm principalmente algumas delas. Trata-se do que se poderia resumir sob a
idéia de uma morte das comunidades: a família, o vilarejo, a autoridade da
Igreja e do governo” (Lagrange & Roché, 1993, p. 85-86).
Na cidade, o crime converte-se em atividade racional, pressupondo
um cálculo de custos e benefícios. Daí que migrar do campo para a cidade
destrói as referências territoriais e morais. Como apontava Joly, a emigração
periódica conduzia primeiro à vagabundagem, depois à delinqüência. Lagrange
e Roché sublinham que o anonimato das multidões urbanas não somente atraiu
a atenção dos criminólogos, mas também de sociólogos do início do século
XX, como Weber, Tönnies, Durkheim e Simmel, todos impressionados com o
aparecimento dessa nova figura da vida social: o outro, esse desconhecido.
Na mesma direção, criminólogos criticam a “crise” da família. Sustentam que,
quando a família claudica, o crime se expande. De modo geral, manifestaram-
se preocupados com as “desventuras” da instituição familiar: a diminuição do
número de seus membros, a dissolução dos laços do casamento, os abortos.
Para muitos, o divórcio tinha o mesmo estatuto moral do suicídio e do crime.
Finalmente, os criminólogos responsabilizam os conflitos políticos pela ele-
vação acentuada dos crimes. Mais particularmente, o que está no cerne do
debate é a natureza do governo democrático, cuja dinâmica política, dissensual
por excelência, é considerada carente de estabilidade e de elites moderadas.
Suas raízes reportar-se-iam à Revolução Francesa. Na leitura de Tarde, o ego-
ísmo e as pulsões revolucionárias explicariam a estatística criminal. Na leitu-
ra de Joly, quanto mais se avança no século, mais a autoridade se desorganiza.
A presença das multidões na arena política corromperia a sociedade, a escola
e os sindicatos (cf. Lagrange & Roché, 1993, p. 83-98).
Ainda que se possa reconhecer a agudez de Durkheim e de seus
contemporâneos Tarde e Joly no diagnóstico dos problemas da sociedade
moderna, não há como deixar de reconhecer também as pronunciadas diferen-
ças entre a sociedade por eles observada e a sociedade contemporânea. Com
isso estou argumentando que, para serem compreendidos, os fatos contempo-
râneos precisam ser vistos senão com os olhares da contemporaneidade. Re-
porto-me aqui a uma passagem de Foucault tão sugestiva quanto enigmática.
Em Vigiar e punir, comentando a atualidade das revoltas nas prisões em todo
o mundo e justificando seu interesse pela história das prisões, ele afirma: “É
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desta prisão, com todos os investimentos políticos do corpo que ela reúne em
sua arquitetura fechada, que eu gostaria de fazer a história. Por puro anacro-
nismo? Não, se entendemos com isso fazer a história do passado nos termos
do presente. Sim, se entendermos com isso fazer a história do presente”
(Foucault, 1977, p. 32). Essa passagem oferece uma idéia do modo pouco
convencional como Foucault aborda a história, os fatos pretéritos e o presen-
te. Nessa passagem, Foucault parece fazer menção ao anacronismo de nossos
procedimentos usuais e habituais de reconstrução histórica, nos quais o pas-
sado é lido, reconstruído, perquirido, vasculhado com vistas a explicitar o
presente e iluminar os caminhos do próprio curso histórico. Sob essa perspec-
tiva, passado, presente e futuro encontram-se inexoravelmente atados, caben-
do ao historiador explicitar seu sentido e direção. Trata-se em última instância
de uma história circular. Não no sentido que se lhe atribuíam na antigüidade
clássica (de uma circularidade determinada pelo movimento natural da vida e
da morte, na busca incessantemente renovada da eternidade); porém no senti-
do de um eterno retorno às origens. Assim, tudo está previamente dado e, por
essa via, a explicação é uma espécie de profecia que se auto-realiza. O anacro-
nismo resulta, portanto, da eterna repetição do mesmo. Não há lugar para o
acontecimento. A história não é a atualidade do presente, do novo, do inespe-
rado, do inaudito, do que muda e do que é mudado. Penso que nesta passagem
Foucault aponta para uma das mais espinhosas questões da epistemologia das
ciências sociais: não existem fatos objetivos, porém construções históricas,
as quais, acrescentará ao longo desse livro, estão imersas em um regime de
verdade e de poder.
Ora, se assim é, o que está justamente em causa no texto de
Dahrendorf é a atualidade e contemporaneidade dos fatos narrados como ob-
jetivos. Ao contrário, os fatos apontados consistem em construções históricas
e culturais, dependentes portanto dos regimes de poder e verdade em jogo, os
quais, por isso mesmo, constroem nossa contemporaneidade. Por isso, é pos-
sível opor às interpretações de Dahrendorf outras interpretações, fatos contra
fatos, para ao final perguntar o principal: qual é, enfim, o regime de poder e
verdade subjacente e que sustém a atualidade das “demandas” contemporâne-
as por ordem social. Isso é o que se procurará explorar e responder mais à
frente. Por ora, contentemo-nos em questionar-lhes os fatos.

Diferentes analistas concordam que, após uma período longo de


relativa estabilidade (1860-1950) nas taxas de criminalidade, tenha se verifi-
cado, em diferentes sociedades, fortes tendências para o crescimento dos cri-
mes. Ao que tudo indica, essas tendências manifestaram-se inicialmente nos
países de língua inglesa e tradição anglo-saxã, estendendo-se pouco a pouco
para os países de tradição católica, inclusive aqueles situados na América
Latina (cf. Robert & Van Outrive, 1993; Robert et alii, 1994; Weiner &
Wolfgang, 1985; Wright, 1987). Não vem ao caso mencionar cifras para
contrapô-las às apresentadas por Dahrendorf. No entanto, não há como deixar
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ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 19-47, maio de 1998.

de trazer o debate para o âmbito da sociologia criminal (ou da criminologia


como queriam alguns), justamente uma área que aquele autor procurou evitar.
E por quê? Porque, a despeito das convergências entre as afirmações de
Dahrendorf e as de especialistas, há inúmeras ponderações que não podem ser
ignoradas e das quais se cercam os pesquisadores experimentados.
De fato, essas avaliações são feitas a partir dos crimes conhecidos,
isto é, dos crimes detectados e registrados pelas agências encarregadas de con-
trole da ordem pública e de contenção da delinqüência. Há transgressões que
não chegam ao conhecimento da autoridade pública. Entre o conhecido e o des-
conhecido, há um gap que, na literatura especializada, se convencionou chamar
de cifras negras. Qual a extensão desse gap? Bem, pouco se sabe de concreto.
Desde há duas décadas vêm se aperfeiçoando as chamadas pesquisas
vitimológicas através das quais se busca examinar o movimento da criminali-
dade da perspectiva das vítimas e ao mesmo tempo mensurar o gap. Os procedi-
mentos metodológicos são altamente sofisticados, porém enfrentam obstáculos
sérios porque lidam fundamentalmente com a memória das vítimas. Essa a ra-
zão porque os resultados ainda têm que ser vistos com algumas reservas10. Para
se ter uma idéia, no que concerne à condução de veículos sob efeitos do álcool,
um instituto de pesquisas sobre o tráfico observou, há alguns anos, que apenas
1 caso entre 20 mil era conhecido pela polícia. Talvez essas taxas sejam análo-
gas no que concerne ao uso de drogas ilícitas. Nos Países Baixos, sabe-se que o
volume de denúncias de violência em locais públicos corresponde a cerca de
20% de todos os casos verificados. Assim, não se tem bases científicas, fidedig-
nas, para confirmar que tenha havido de fato um aumento da criminalidade nos
últimos trinta ou quarenta anos. Pode ser que as tendências observadas reflitam
outro tipo de comportamento: maior inclinação dos cidadãos em denunciar os
crimes de que foram vítimas. Isso sugere, por conseguinte, que o sentimento de
insegurança e medo diante do crime e o desejo de mais punições, em especial
punições mais rigorosas, parecem responder por outras inquietações que vão
além do domínio da delinqüência.
Mas há outros aspectos dignos de reparos. Dahrendorf estabelece
uma sorte de conexão direta entre o aumento dos crimes e o enfraquecimento
ou isenção de punições. Estabelece, por conseguinte, uma relação de causali-
dade entre fatos diversos. Uma coisa é o aumento dos crimes. Ele pode estar
relacionado a diversas causas, como mudanças no comportamento delinqüen-
10
Os problemas meto- te, mudanças no comportamento das vítimas ou dos cidadãos comuns, mu-
dológicos e os cui- danças nas formas habituais de sociabilidade com repercussão sobre os
dados no tratamento
científico dos dados ilegalismos e sobre os próprios objetos da delinqüência (cf. Foucault, 1977).
coletados em pesqui- Já a distribuição de sanções é função dos dinamismos do aparelho penal, em
sas de vitimologia en- particular dos nexos entre as agências policiais, as agências de acusação (Mi-
contram-se descritos
em Cohen (1974), nistério Público), os tribunais de justiça e o complexo prisional, bem como do
Gove et alii (1985) e, empenho das autoridades em apurar os crimes. Assim, o crescimento dos cri-
mais recentemente,
em Robert & Zau- mes pode ser ou não acompanhado de um crescimento de sanções, por mais
berman (1995). desejável que seja a correspondência entre ambos crescimentos do ponto de
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ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
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vista social e político.


Além do mais, há que se anotar duas constatações feitas pelos es-
pecialistas que contrariam sobremodo os fatos objetivos com que Dahrendorf
pretende caracterizar a erosão da lei e da ordem na sociedade contemporânea.
Primeiro, os estudos são unânimes em mostrar uma forte tendência, desde o
século passado, na estatização do controle penal e da sanção (cf. Cusson,
1990), tendência que nada tem a ver com outra tendência contemporânea que
é a da privatização dos serviços de segurança, melhor dizendo, dos serviços
de prevenção e vigilância contra o crime, cujo dinamismo atende aos estímu-
los de mercado (cf. Erbès, 1990-1991; Ocqueteau, 1988, 1990-1991;
Ocqueteau & Pottier, 1995). Se as taxas de condenação à pena de prisão estão
em declínio, isso não significa um afrouxamento dos controles penais ou do
sistema de sanções; antes, deve-se à relativa diminuição da pena de supressão
da liberdade no conjunto do arsenal penal. De qualquer forma, tem-se obser-
vado em contrapartida um aumento das taxas de encarceramento, prática sob
o encargo da polícia. Em segundo lugar, não é verdade que as penas tenham
sido amortecidas ou suavizadas nas democracias ocidentais. Estudos demons-
tram que nos Estados Unidos, Inglaterra e Países Baixos as tendências têm se
inclinado para a maior severidade das penas, nas duas últimas décadas
(cf. Hulsman, 1990; Wacqüant, 1996).
Nessa mesma direção, é altamente discutível a maior contribuição
dos jovens para o aumento da criminalidade. É bem que verdade que, em dis-
tintas sociedades, a delinqüência juvenil adquire maior ou menor gravidade,
podendo mesmo contribuir de modo acentuado para a criminalidade, em espe-
cial a de tipo violento. Nunca é demais lembrar que o envolvimento dos ado-
lescentes com a criminalidade adulta suscita desafios agudos às políticas de
proteção e prevenção. Seja o que for, não há nenhuma evidência empírica
fidedigna de que aquela tendência venha se generalizando e se tornando domi-
nante, como pretende Dahrendorf. De igual modo, não é aceitável o argumen-
to segundo o qual há, nas sociedades contemporâneas, forte inclinação para
proteger os jovens delinqüentes, isentando-os da aplicação de sanções. Diver-
sos estudos mostram que as tendências da legislação da infância e da adoles- 11
De igual modo, não se
cência, perfilando a orientação de organismos normativos internacionais, têm pode ignorar os argu-
sido no sentido de evitar abusos na aplicação de medidas ou na distribuição de mentos defendidos
sanções. Essa exigência requer da parte dos agentes encarregados de por demógrafos se-
gundo os quais atra-
implementar normas estatutárias o discernimento rigoroso de situações, de- vessamos uma era de
terminando-se medidas diferenciadas segundo a gravidade das infrações, as “onde jovem” com
profundas repercus-
quais inclusive prevêm limitação de direitos e supressão de liberdade. Além sões no comportamen-
do mais, em não poucos países, a maioridade penal ocorre aos quinze ou to coletivo, das quais
dezesseis anos, fazendo com que muitos jovens estejam, ainda adolescentes, não está excluída uma
maior incidência de
sujeitos aos rigores da legislação penal aplicável aos adultos (cf. Lahalle et crimes juvenis. A res-
alii, 1994)11. peito, vide sugestivo
estudo de Bercovich,
Resulta desses questionamentos uma indagação inevitável: por que Dellasoppa e Ariaga
uma reação punitiva seria mais adequada do que respostas não punitivas para (1997).
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os problemas de conflitualidade e litigiosidade das sociedades contemporâne-


as? Por que o desejo obsessivo de punir, de punir mais e sempre com maior
intensidade? Bem, pretendo avançar algo nessa direção a seguir.

Retomando a exposição anterior, pode-se dizer, perfilando


Dahrendorf, que o crescimento da criminalidade e o suposto aumento da im-
punidade resultam na erosão da lei e da ordem nas sociedades contemporâne-
as. O Estado aparece como incapaz de cuidar da segurança dos cidadãos e de
proteger seus bens, materiais e simbólicos. No cerne da “demanda por ordem”
aloja-se não apenas o sentimento de que o passado se perdeu inexoravelmente
pela avalanche do “progresso” histórico, sentimento simbolizado nas ima-
gens de pânico moral proporcionados pela concentração urbana, pela “crise”
da família, pela irrupção das multidões na arena política. A perda é sentida
como ausência de solidariedade, de esgarçamento dos vínculos morais que
conectam indivíduos às instituições, ausência sacramentada pelo definha-
mento da autoridade. Tudo se passa como se os interesses egoístas suplantas-
sem o bem comum. Seu sintoma, a explosão de litigiosidade entre o indivíduo
e a sociedade, tão bem descrita por Durkheim em inúmeras de suas obras,
resultaria na desobediência civil, na perda desse sentimento segundo o qual
“agir bem é obedecer bem” (Durkheim, 1963, apud Fernandes, 1994, p. 83).
Ademais, no cerne da “demanda por ordem” está paradoxalmente a
reivindicação de “mais legalidade”, porém no contexto de aguda crítica ao
Estado democrático de Direito. Na verdade, o que se reivindica não é a lei
como princípio de limitação do poder arbitrário ou de instrumento de garantia
de direitos; contudo, a lei como veículo de imposição autoritária da ordem,
numa palavra de punição. Por isso, ao questionar o conservadorismo que subjaz
à leitura de Dahrendorf quanto ao cerne dos problemas contemporâneos, bus-
quei questionar-lhe os fatos. Não apenas censurei-lhe sua leitura conservado-
ra da história, como meus argumentos podem ser resumidos em quatro propo-
sições: primeiro, a constatação de um aumento da criminalidade, nos últimos
trinta anos, é matéria controvertida; segundo, não há per si uma relação de
causalidade entre o movimento da criminalidade e o movimento das punições;
terceiro, não se constata uma tendência para a suavização dos sistemas de
sanções, como pretende Dahrendorf; quarto, na mesma direção, não se sus-
tém o argumento de que os jovens venham sendo beneficiados com uma legis-
lação punitiva branda, a despeito do crescimento da delinqüência juvenil.
A esses argumentos poder-se-ia acrescentar outros. Nunca é de-
mais lembrar que, a despeito dos avanços globais conquistados em termos de
respeito dos direitos humanos, nas três últimas décadas, as forças repressivas
tenderam a se tornar mais agressivas e mesmo violentas no enfrentamento do
crime. Isso é tanto mais verdadeiro em sociedades com forte tradição autoritá-
ria, onde vigem regimes políticos não-democráticos ou que se encontram em
processo de transição democrática (cf. O’Donnell, 1988; Pinheiro, 1991). Um
outro aspecto a ser considerado é que Dahrendorf, ao eleger a erosão da lei e
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da ordem como o cerne do problema contemporâneo, não se inclina a indagar


sobre os múltiplos significados da lei e dos direitos para diferentes grupos
sociais. No Brasil, por exemplo, sabe-se através de alguns estudos e pesqui-
sas que as diferentes classes sociais não se sujeitam igualmente à obediência
dos estatutos legais sob qualquer princípio moral ou ético fundado na convi-
vência política pacífica. Terceiro, parte substantiva das propostas apresenta-
das por Dahrendorf, enfeixadas em torno do que ele nomeia de liberalismo
radical, encerram as soluções dos problemas contemporâneos nos marcos de
uma reforma institucional tendente, seja a conferir maior racionalização aos
serviços públicos de segurança pública, seja a estreitar os laços entre os cida-
dãos e sua polícia. Em outras palavras, parte das soluções (insisto em subli-
nhar parte porque Dahrendorf sublinha outras que não se limitam ao âmbito
da reforma institucional) gravita em torno da maior eficácia operacional das
agências de controle da ordem pública. Ora, não há quaisquer garantias de
que reformas institucionais, por mais desejáveis que sejam, possam baixar as
taxas de criminalidade e, por essa via, oferecer ao cidadão comum o sentimen-
to de que tem seus bens, materiais e simbólicos, protegidos.
Impõe-se assim retirar o debate sobre a criminalidade urbana e suas
formas de contenção do campo onde ele se confinou, há cerca de duas déca-
das, e persiste confinado. Cuida-se de problematizar12 a “demanda por or-
dem” que se encontra presentemente quer nas falas do cidadão comum, quer
das autoridades encarregadas de formular e implementar políticas públicas
penais, falas freqüentemente veiculadas pela imprensa escrita e pela mídia
eletrônica e que inclusive não se encontram ausentes do debate acadêmico e
do discurso científico. Nas acres crônicas da insegurança e do medo do crime,
nos fatos e acontecimentos que sugerem a fragilidade do Estado em velar pela
segurança dos cidadãos e proteger-lhes os bens, materiais e simbólicos, nos
cenários e horizontes reveladores dos confrontos entre defensores e opositores
dos direitos humanos, mesmo para aqueles encarcerados, julgados e condena-
dos pela justiça criminal, tudo converge para um único e mesmo propósito: o
de punir mais, com maior eficiência e maior exemplaridade. Trata-se de pro-
pósito que se espelha em não poucas demandas: maior policiamento nas ruas
e nos locais de concentração populacional, sobretudo as habitações populares
consideradas celeiro do crime e de criminosos; polícia menos tolerante para
12
com os criminosos; justiça criminal menos condescente com os “direitos” dos O termo reporta-se a
Foucault, para quem o
bandidos e mais rigorosa na distribuição de sanções penais; recolhimento de conceito diz respeito a
todos os condenados às prisões que devem se transformar em meios exempla- uma “análise dos ‘jo-
gos’ de verdade, dos
res de punição e disciplina. Com nuanças entre os mais radicais, que advogam jogos entre o verda-
pena de morte e imposição de castigos físicos aos delinqüentes, e os mais deiro e o falso, atra-
“liberais”, que pretendem o aperfeiçoamento dos instrumentos legais de con- vés dos quais o ser se
constitui historica-
tenção repressiva dos crimes, todos gravitam em torno de um imperativo cate- mente como experiên-
górico: o obsessivo desejo de punir. cia, isto é, como po-
dendo e devendo ser
Um empreendimento desta ordem requer retomar o debate no mes- pensado” (Foucault,
mo terreno em que ele havia sido circunscrito por Dahrendorf; isto é, o terreno 1984, p.12).
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dos conflitos e da litigiosidade na sociedade contemporânea. Porém, uma re-


tomada que enseja advertências. Uma primeira advertência: nas sociedades
contemporâneas não há mais espaço para pensar conflitos numa versão libe-
ral. Como se sabe, o pensamento liberal tende a privatizar conflitos cuja ori-
gem é social. Os conflitos são vistos como conflitos entre indivíduos entre si,
entre indivíduos e sociedade, entre indivíduos e Estado. Não é sem motivos
que a problemática do crime e da punição tenha ocupado tanta atenção dos
sociólogos liberais. No registro liberal, essa problemática diz respeito ao con-
fronto entre a consciência coletiva (consciência de um imperativo categórico,
a sanção) e a consciência individual, materializada em torno da responsabili-
dade penal do criminoso. Dificilmente, fatos contemporâneos como racismo,
genocídio, exclusão, narcotráfico configuram modalidades de conflito e
litigiosidade enquadráveis nos estreitos limites ditados pela visão liberal. Por-
tanto, é preciso pensar esses fatos tendo por eixo não o indivíduo, porém
coletivos.
Uma segunda advertência: queiramos ou não, é preciso ter claro
que os fatos constituem narrativas sociais que instituem em determinados
momentos históricos, por exemplo, em conjunturas particulares, um certo ar-
ranjo de formas de solidariedade, de reciprocidade e de conflito. Trata-se de
um arranjo precário, dependente do confronto e direção que tomam as forças
sociais em gravitação no interior de um campo determinado (social, político,
cultural), precário porque sempre sujeito a ser rearranjado e rearmado. Isso
significa que, para compreender fatos, como os fatos contemporâneos, é pre-
ciso adotar uma atitude nominalista, evitando-se sejam as tentações metafísicas
– como a busca de um fio condutor último, como a sociabilidade insociável do
homem (Dahrendorf) –, sejam as inclinações no sentido de atribuir estatuto de
cientificidade às interpretações (cf. Foucault, 1979). Nominalismo significa
antes de tudo trazer os fatos à superfície da sociedade, isto é, fazê-los emergir
no torvelinho de práticas e representações, sem menção a um sujeito demiurgo
ou a intenções excusas que se escondem por detrás dos próprios fatos.

É nestes termos que se pretende trazer para o debate um fato con-


temporâneo: o crime organizado e, em especial, uma de suas modalidades,
qual seja, o narcotráfico. Em que medida o crime organizado é um fato con-
temporâneo? Se não, em que consiste sua contemporaneidade?
Seguramente, o crime organizado não é uma invenção recente. Ao
que parecem sugerir estudos históricos, seus rudimentos podem ser buscados
nos bandos milenaliristas que proliferaram pela Europa Central, Itália e
Espanha desde a Idade Média. Sua versão moderna está profundamente
marcada pelas organizações da Itália meridicional, em particular a Cosa Nostra,
pelas organizações do sul da França (Marselha e Córsega) em fins do século
XIX e início do XX, e sobretudo pelas organizações americanas sediadas em
Chicago e Nova York entre as décadas de 1910 e fins da década de 1930.
Muitas das características que hoje se observam no crime organizado já esta-
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vam de fato presentes naquelas formas anteriores de organização delinqüente.


Por exemplo, características como: recrutamento preferencial de jovens; valor
atribuído à posse da arma de fogo, donde decorre uma disposição gratuita
para matar; monopólio altamente concentrado das atividades criminais; estru-
turas de mando rigidamente hierarquizadas e personalizadas, reatualizadas
por rituais precisos e codificados segundo normas particulares e regidas pelo
segredo; manutenção de milícias particulares em moldes militarizados; fixa-
ção de uma rede de informantes e espias. Nesse conjunto de práticas, lugar
estratégico é conferido à corrupção. Sem a cumplicidade dos agentes públi-
cos, sem o estabelecimento de conluios entre o crime organizado e segmentos
da burocracia estatal, certamente as atividades não teriam se expandido como
de fato se expandiram, ainda que em ondas não sucessivas.
Desde o esclarecedor estudo de Hobsbawm (1959, ed. bras.1970),
sabe-se que o florescimento das máfias é fenômeno social recente, datando do
século XIX. Compreendem distintas formas de ação e de comportamento so-
cial, entre as quais se destacam três: primeiro, uma atitude geral em relação ao
Estado de Direito. As contendas entre grupos rivais não se resolvem mediante
apelo a códigos universais ou a tribunais de justiça pública. O único código
reconhecido é a omertà (virilidade), cujo princípio fundamental interdita a
prestação de informações a autoridades públicas. Esse tipo de comportamen-
to social desenvolve-se em “sociedades que não gozam de ordem pública efe-
tiva ou em sociedades cujos cidadãos encaram, hostilmente, parte ou a totali-
dade das autoridades (como, por exemplo, nas cadeias públicas ou no submundo
fora delas) ou com menosprezo em relação a coisas realmente importantes
(por exemplo, escolas) ou combinando ambas as coisas” (Hobsbawm, 1970,
p. 49). Em segundo lugar, diz respeito ao patronato como forma de organiza-
ção dominante. Onde quer que tenham se instalado, as máfias tiveram por
eixo um chefe, todo poderoso, em torno do qual gravitava todo um corpo de
dependentes e colaboradores, constituindo fina e complexa “rede de influên-
cia” capaz de oferecer e vender proteção. Na Sicília, o estabelecimento do
patronato inviabilizou qualquer outra forma alternativa de poder contínuo.
Terceiro, refere-se ao controle virtual e total da vida em uma comunidade qual-
quer por um secreto sistema de gangs. Neste particular, ressalta Hobsbawm,
as máfias eram senão uma rede de gangs locais, controlando territórios deter-
minados, via de regra uma comuna ou um latifundium, relacionadas entre si
tão somente por intermédio das migrações de trabalhadores para colheitas,
através das ligações entre proprietários, seus advogados e as cidades, bem
como por meio das inúmeras feiras disseminadas pelo país. Suas característi-
cas essenciais: violência desmedida, virilidade profissional, parasitismo e
banimento, tudo controlado por rituais de iniciação e senhas meticulosamente
padronizadas.
Como sugere o estudo de Hobsbawm, o nascimento, expansão e
declínio das organizações mafiosas acompanharam pari passu as vicissitudes
da vida econômica e política italiana. No início, meados do século XIX, as
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máfias não assumiram de pronto sua faceta de organização de gangs. Flores-


ceram no curso dos acontecimentos que convergiram para a unificação italia-
na. Para os grandes e pequenos proprietários de terra, sequiosos por se defen-
derem contra o explorador estrangeiro (o governo Bourbon ou o governo
piemontês), as embrionárias máfias, de bases genuinamente populares, repre-
sentavam um mecanismo de proteção social e de afirmação nacional local.
13
Conforme anota Hobsbawm, essas primeiras organizações estiveram presen-
Haveria muito mais a
dizer a respeito das tes nos movimentos revolucionários liberais de Palermo, de 1820, 1848 e 1860,
organizações mafio- assim como participaram do primeiro grande levante contra a dominação do
sas. Por exemplo: capitalismo do Norte, em 1866.
quanto ao caráter or-
ganizado ou não de Entre 1860 e 1890, as máfias transitaram para uma forma de orga-
suas atividades, veja- nização política paralela ao poder de Estado. Combinando patronato político-
se Catanzaro (1991 e
1993). Além do mais, social, regulado por rituais de referência e reafirmação do poder arbitrário do
muita coisa foi escri- mais forte com formas modernas de representação política, as organizações
ta sobre a máfia nos mafiosas traduziram, em determinado momento da história social e política
Estados Unidos, em
particular entre os italianas, uma alternativa de participação no modelo de poder concêntrico ins-
anos 1910 e 1920, em tituído pelos potentados do Norte, modelo alimentado pelo liberalismo políti-
cidades como Nova
York e Chicago. Um co em voga àquela época, último quartel do século passado. De fato, o
estudo interessantíssi- surgimento de relações capitalistas no interior da sociedade italiana promo-
mo é o de H.M. En- veu a politização dos operários fabris e dos camponeses que, com suas práti-
zensberger (1967).
Preocupado também cas políticas, vieram progressivamente substituir as velhas táticas de ódio
em refletir sobre a incontido e conspirador presentes nos massacres que caracterizavam os le-
construção de mitos
em torno do gangs- vantes locais. Com a emergência dos novos atores sociais e políticos, a voca-
terismo, esse autor faz ção revolucionária das máfias, seu espectro de movimento social de massas,
um belo estudo sobre declina acentuadamente, permanecendo restritos às áreas mais pobres e atra-
a ascensão e queda de
Al Capone. A par do sadas da parte oriental da Sicília.
mito que às suas vol- Ao mesmo tempo, uma das virtudes da política liberal veio alimentar
tas se constituiu, Ca-
pone procurou racio- o poder das máfias. Com o poder do Norte, alimentado pelo desenvolvimento
nalizar os diversos das manufaturas que converteu o Sul em espécie de colônia agrária, veio tam-
empreendimentos cri- bém a modernidade política, ou seja, a extensão do direito de voto. Para os
minais a que se dedi-
cou seguindo à risca o poderosos do Norte interessava contar com o apoio e mesmo a subserviência
modelo de empreen- política do Sul, mesmo que para tanto fosse necessário subornar governos ou
dimento mercantil ca-
pitalista. Ademais, fazer concessões aos chefes locais. Se, do ponto de vista financeiro, concessões
desde cedo, percebeu e subornos pouco representavam para o rico Norte, para o Sul representavam
que a expansão de uma diferença ímpar, até há pouco inteiramente desconhecida: a possibilidade
suas atividades de-
pendia da condescên- dos chefes locais penetrarem no universo dos interesses político-partidiários.
cia dos poderes polí- Os chefes mafiosos converteram-se em chefes políticos locais.
ticos locais constituí-
dos, razão do desen- Na verdade, tudo sugere o quanto os processos de acumulação de
volvimento de um riqueza e de acumulação e concentração de poder tangiversaram as possibili-
complexo e sofistica- dades de existência das organizações mafiosas, determinando-lhes inclusive
do sistema de subor-
nos e de venda de pro- sua deriva para o mundo da delinqüência, seja na própria Itália, seja nos Esta-
teção que atraiu não dos Unidos. Vale notar, contudo, que as organizações mafiosas jamais se co-
apenas prefeitos, ve-
readores, magistra- locaram como uma necessidade intrínseca da própria economia ou mesmo do
dos, mas também de- desenvolvimento político. Nessa medida, não se constituíram em peça essen-
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cial do poder político ou elemento indispensável ao funcionamento legal do


aparelho de Estado. Disto resulta também que não lograram expansão para
além de suas bases locais, às quais permaneceram via de regra aprisionadas.
De fato, quando os lucros possíveis e o poder disponível estimularam as ten-
sões entre as velhas e novas gerações de mafiosos, a alternativa foi emigrar e
não a descoberta de outros territórios que pudessem servir de ampliação das
redes e de acomodação dos interesses13.
putados federais e
Ao que tudo parece indicar, na contemporaneidade o crime organi- senadores. Por fim,
zado reaparece, agregando novas práticas às tradicionais ainda que guardem compreendeu a neces-
certa distância do modelo de organização das máfias italianas. O tráfico inter- sidade de conquistar o
apoio dos poderosos
nacional de drogas, uma das modalidades atuais mais significativas de crime sindicatos de traba-
organizado, padece de problema semelhante. O narcotráfico compreende um lhadores. Seu declínio
se dá justamente quan-
conjunto diversificado de atividades e operações, o qual articula, em nível do essa complexa re-
internacional, a produção (com todo o seu processo artesanal, semi-artesanal de de interesses mer-
e industrial), a circulação, a distribuição e o consumo. Por intercambiar uma cantis e conluios po-
líticos começa a
mercadoria proibida na maior parte das sociedades, o narcotráfico mobiliza ruir em parte na ava-
toda uma “economia subterrânea”: distintos mecanismos de acumulação (que lanche da profunda
crise econômica da
compreendem uma combinação de formas de assalariamento, semi- década de 1920.
assalariamento, pagamento em espécie) geram uma renda da qual parte subs- 14
A bibliografia indica-
tantiva é apropriada na remuneração de atividades de suporte ou subsidiárias, da reúne análises va-
riadas sobre produ-
como o abastecimento de armas, a manutenção de milícias locais particulares, ção, distribuição, cir-
o treinamento e formação de pistoleiros profissionais e, em especial, a manu- culação e consumo de
drogas, em especial
tenção de uma rede de colaboradores destinada a facilitar o transporte da dro- cocaína, ópio, heroí-
ga, pelos mais variados meios, através das fronteiras entre países. Daí a ne- na, canabis, em dis-
cessidade de consumir vultuosos capitais para garantir postos privilegiados tintos países. Com
base em documenta-
de circulação, entre os quais campos particulares de pouso. Daí também a ção disponível, os es-
funcionalidade da corrupção em toda essa “economia subterrânea”, sediada tudos apresentam a-
valiações quantitati-
inclusive em aeroportos, portos e zonas aduaneiras e alfandegárias (cf. vas, examinam a di-
Labrousse, 1994; Salama, 1994; Kozel & Lambert, 1992; Arrieta et alii, 1991; versidade de produ-
Schiray, 1989,1992 e 1994; Fonseca, 1992)14. tos, as relações entre
procura e oferta, a ge-
Além do mais, essa modalidade de “economia subterrânea” é alta- ração de renda, a for-
mente verticalizada e verticalizadora. Ela tende a colonizar outras modalida- mação de preços, a
concentração dos lu-
des delituosas, submetendo-as a seu domínio. Atividades anteriormente reali- cros, os mecanismos
zadas por soturnos e individualizados delinqüentes ou por bandos isolados, de retribuição aos dis-
como roubos, seqüestros, contrabandos acabam articuladas ao narcotráfico. tintos agentes que
comparecem ao cir-
O caso do contrabando de armas é exemplar. Ele presta-se não somente a cuito produção/circu-
modernizar e nutrir o arsenal bélico sofisticado à disposição dos traficantes, lação/consumo, as co-
nexões entre econo-
como também a proporcionar fonte de renda adicional. A propósito, convém mia “subterrânea” e
relembrar que a circulação monetária é fundamental nessa economia subterrâ- economia oficial, bem
nea, daí porque a “lavagem” de dinheiro, através de operações financeiras como o estratégico
papel representado
complexas e sofisticadas, porém dotadas de alguma segurança, é tão vital pela corrupção em
para a sobrevivência do narcotráfico. Daí também o papel estratégico desem- seus mais distintos
níveis. Sobre este úl-
penhado pelas instituições bancárias cuja cumplicidade é raramente colocada timo aspecto, ver Gar-
sob suspeição (cf. Arlacchi, 1992; Lewis, 1992). cia Mendez (1989).
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S. Paulo, 10(1): 19-47, maio de 1998.

Não bastassem essas conexões que o narcotráfico estabelece com o


mercado e o Estado, ele também encadeia e introduz microscópicos desarran-
jos no tecido social. No passado, a organização delinqüente tinha claro as
diferenças entre o mundo da ordem e da legalidade e o mundo dos ilegalismos.
Havia nítida distinção entre trabalho e delinqüência. O narcotráfico rompeu
com essa tradicional distinção. Muitos dos jovens recrutados em massa para a
15
Nas sociedades con- organização o são na condição de trabalhadores assalariados, não importando
temporâneas, os pa-
drões de sociabilida- o posto que venham inicialmente a ocupar. Tal não significa contudo a introjeção
de exacerbam o indi- de uma ética vocacional do trabalho ou a criação de uma solidariedade ombro
vidualismo, conduzin- a ombro. Ao contrário, institui-se uma competitividade tal, movida por um
do os homens a uma
relação narcisística individualismo exacerbado e por uma desconfiança extremada em qualquer
consigo mesmo. Os um15. Radicalizada até às últimas conseqüências, essa competitividade é
homens vêem o mun-
do como espelho de si instituinte da guerra entre quadrilhas. Por isso, esses jovens, desde cedo so-
mesmo e não se inte- cializados para o ingresso na guerra, o são também para lidar com a morte e
ressam por eventos sua iminência. Aqui se revela um dos mais agudos paradoxos da
externos a não ser que
desenvolvam um re- contemporaneidade: no ápice do processo civilizatório, os avanços tecnológicos
flexo de sua própria estão colocando em evidência a fragilidade da vida, os inúmeros perigos e
imagem. Impera uma
cultura terapêutica, riscos que a cercam. Sob essa ótica, talvez o crime organizado constitua de
que cultua o corpo es- fato o cerne do problema contemporâneo, menos pelos seus efeitos sobre a
teticamente discipli- ordem e a legalidade e muito mais pelas incertezas que ele institui (cf. Pecaut,
nado (cf. Lash, 1983
e 1986; Costa, 1986 e 1991 e 1994; Arrieta et alii, 1991)16.
1989; Guattari & De qualquer modo, o crime organizado também propõe problemas
Rolnik, 1986). As re-
lações entre público e novos, insolúveis a curto prazo, para a Justiça penal. O que tem sido eviden-
privado alteram-se ciado, seja no narcotráfico, seja nos casos de alta corrupção envolvendo agen-
significativamente. O tes do Estado, é que as leis penais não podem ser aplicadas do mesmo modo
mundo da privação
irrompeu a esfera pú- que são aplicadas às modalidades delituosas cometidas pelo delinqüente co-
blica, diluindo-a na mum. Os processos penais que tem como alvo o crime organizado, em especi-
luta pela necessidade.
Ao fazer isso, introdu- al o tráfico internacional de drogas, ensejam uma complexidade ímpar. Em
ziu na esfera pública primeiro lugar, porque a natureza das operações é pouca conhecida. Envolve
elementos pré-políti- uma rede de atores, situados em múltiplos pontos da estrutura social com
cos de regulamenta-
ção das atividades funções extremamente diferenciadas. Ademais, tudo funciona à base do se-
humanas e, sobretudo, gredo, “lei do silêncio” cuja transgressão é severamente punida, não raro com
da ação política. Pos-
sibilitou o isolamento a morte de um suspeito, o que arrasta atrás de si toda uma cadeia de tantos
e o desenraizamento outros suposta ou efetivamente comprometidos com a ruptura do pacto. Com
dos homens, tornan- isso dilui-se a materialidade da infração – a qual somente pode ser objeto de
do-os estranhos à sua
casa e ao seu mundo. intervenção judicial caso perfeitamente caracterizada sob o ponto de vista das
Lançou a violência no exigências legais –, bem como se dilui a precisa identificação da responsabi-
cenário público, retra-
indo a capacidade hu- lidade penal. Há ainda uma terceira situação. Diz respeito à aquela em que
mana de entendimen- tanto a infração está perfeitamente caracterizada face aos requisitos legais,
to mútuo através do quanto são conhecidos seus prováveis autores. Contudo, a trama é de tal for-
diálogo e da palavra
(cf. Arendt, 1987; ma intrincada que não se pode estabelecer uma relação de causalidade, um
Habermas, 1981). nexo entre a materialidade da infração e seus possíveis autores. Assim, a jus-
16
Tudo indica que, onde
quer que o tráfico in- tiça penal, fortemente influenciada pelos princípios liberais, cujo eixo princi-
ternacional de drogas pal repousa na suposição do livre arbítrio e, por conseguinte, na responsabili-
38
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dade individual, fica impossibilitada de exercer uma de suas funções primor-


diais, qual seja a de assegurar a pacificação da sociedade mediante julgamen-
to e responsabilização dos atos considerados lesivos à ordem pública.
Com isso, no âmbito também do narcotráfico, a materialidade do
delito e a responsabilidade individual não são passíveis de perfeita e exata
caracterização. Não sem motivos, quando a justiça penal consegue exercer
alguma intervenção nessa área, seus resultados são irrisórios e seus efeitos se instale, ele institui
uma guerra mortal en-
pouco eficazes. Por que? Na maior parte das vezes em que situações como tre quadrilhas e entre
esta ocorrem, os acusados ou são consumidores, ou pequenos e médios trafi- quadrilhas e forças da
cantes que não desfrutam de um sistema privado de proteção e de imunidades ordem. Seu sinal mais
visível é o abrupto
contra a ação da Justiça. Essas intervenções, contudo, não resultam na crescimento dos ho-
desmontagem de toda uma organização que se recompõe em outros lugares e micídios dolosos, em
especial envolvendo
com novos recursos, e movida por outros indivíduos, recrutados para desem- jovens do sexo mascu-
penharem as distintas funções de transporte, vigilância, venda etc. Essa pare- lino. Recente estudo,
ce ser uma situação típica, mesmo quando toda uma rede ou quadrilha tenha conduzido pelo pes-
quisador colombiano
“caído” nas mãos da justiça penal. Exemplos de situações como essa são en- Luis Ratinoff, revelou
contrados cotidianamente na crônica policial de cidades como Rio de Janeiro que a média desses
homicídios, na Co-
e São Paulo17. Para o cidadão comum, incapaz de compreender toda essa com- lômbia oscila entre
plexa rede de relações sociais que subordina a corrupção e o tráfico de influ- 77,0 e 77,9 ocorrênci-
ências ao narcotráfico, o que de fato releva é uma justiça penal “frouxa”, as/cem mil habitan-
tes. O mesmo estudo
inoperante, ineficiente, impossibilitada de ver reconhecida sua autoridade, indicou que a média
conivente até por omissão com o crescimento da criminalidade urbana violen- brasileira oscila entre
24,0 e 24,9 ocorrênci-
ta. Não há razões, portanto, para se estranharem as opiniões favoráveis ao as/cem mil habitantes
justiçamento privado e a outras modalidades privadas de punição e vingança, (cf. Folha de S. Pau-
que compreendem, em sociedades como a brasileira, a aplicação de castigos lo, 18/03/96, cader-
no 1, p. 9). Trata-se
físicos e mesmo da pena de morte, isto é, medidas que desprezam a mediação de médias elevadas se
da Justiça pública. considerarmos que,
nos Estados Unidos,
ela é da ordem de 10
Em conclusão, a partir de uma análise crítica de ensaio de Ralph ocorrências/cem mil
Dahrendorf sobre a erosão da lei e da ordem na sociedade contemporânea, habitantes. Evidente-
mente, essas médias
procurei desconstruir os argumentos contidos no ensaio sugerindo as mudan- são muito mais eleva-
ças que incidem sobre o modo de assujeitamento dos indivíduos. Mais do que das em cidades como
Medellin, Rio de Ja-
liberação dos indivíduos dos liames e controles sociais, para além de um pro- neiro ou São Paulo.
blema de “ligaduras”, o que parece estar no centro das radicais transforma- Convém observar tam-
ções da ordem neste final do século é o modo como os indivíduos governam a bém que as mortes vo-
luntárias são igual-
si e aos outros (cf. Foucault, 1984). Para sustentar esta hipótese, tomei como mente elevadas na Itá-
“paradigma de análise” um caso: a colonização da criminalidade pelo crime lia, por força do crime
organizado, agora em
organizado, em particular por ação de uma de suas modalidades mais escala internacional,
emblemáticas de produção da violência no mundo contemporâneo – o mantido pelas máfias.
narcotráfico. Esse recorte analítico e empírico conduziu-me a indagar: em que Ver Savona (1993) e
Pezzino (1991).
medida o pluralismo jurídico, cujos contornos começam a ser detectados, bem 17
De certo modo, pode-
como as formas emergentes de contratualidade, não necessariamente enfeixadas se estabelecer uma
analogia entre os efei-
no Estado, não estariam – ao promoverem mudanças no diagrama liberal (cf. tos do narcotráfico so-
Ewald, 1986) –, incidindo sobre tradicionais e convencionais concepções de bre o Estado, em par-
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responsabilidade penal centrada no indivíduo, pouco compatíveis com a emer-


gência e generalização do crime organizado?
Bem, penso que essa breve e impressionista descrição do crime or-
ganizado sugere que os problemas sociais contemporâneos são muito mais
complexos do que aventou Dahrendorf. As formas explosivas de litigiosidade,
nos mais diferentes campos da existência social, não se acomodam às fórmu-
ticular sobre a justiça las e parâmetros ditados pela “institucionalização” ou “democratização” dos
penal, e os efeitos do
crime organizado pe- conflitos na sociedade industrial. Como Dahrendorf, concordamos que o cri-
las máfias sobre o Es- me e suas formas de punição representam um dos mais candentes problemas
tado italiano, recente- contemporâneos. Discordamos contudo quanto à natureza desse problema.
mente deslindados
pela Operação “Mãos Segundo me parece, o problema não reside na erosão da lei e da ordem, que é
Limpas”. Uma análi- senão um efeito, porém na inadequação dos controles sociais tradicionais e
se interessante encon-
tra-se em Meldolesi convencionais à “sociedade de risco” (Ewald, 1986), modo como se pode qua-
(1994), que sugere o lificar as sociedades contemporâneas. Por isso, é preciso repensar o estatuto
quanto arraigados es- do controle social na contemporaneidade.
tavam os hábitos po-
líticos italianos em O controle social, algo mais amplo do que o controle da ordem públi-
sua conivência com o ca, parece ter esgotado suas funções no interior de modelos tradicionais. Por um
crime organizado e
com a corrupção. lado, os mecanismos de pressão social sobre o comportamento dos indivíduos,
“Dessa forma, hoje que operaram sobretudo na esfera da moralidade, pública e privada, não pare-
sabemos aquilo que cem suscitar nem o sentimento de medo, sequer o de angústia diante das possi-
no fundo sempre de-
veríamos ter sabido. bilidades, sempre abertas, de violação das normas sociais. É como se operasse
Ou seja, que o siste- uma sorte de dissociação entre as imposições morais e as práticas sociais. Se-
ma dos partidos do
governo por muito gundo Roché, “nossas sociedades urbanas e complexas liberaram o homem do
tempo financiou-se controle social. Elas abriram oportunidades em todos os domínios, e notadamente
impondo um tributo em matéria de delinqüência ” (Roché, 1994, p. 13).
medieval a muitas
transações econômi- Por um lado, nunca é demais lembrar, em A Educação Moral (1963),
cas que requerem o Durkheim defende a tese de que somente a submissão à regra exterior, impesso-
beneplácito das auto-
ridades públicas; que al e abstrata é capaz de conter as “forças rebeldes” que habitam o indivíduo,
esse sistema se aper- contendo portando os apetites imoderados e o individualismo exacerbado. Essa
feiçoou com o tempo, luta de si para consigo traduz-se em educação moral cujos princípios fundantes
à medida em que a
concorrência entre são: disciplina, adesão a um grupo social e autonomia da vontade. Preenchidos
concorrentes e parti- esses requisitos, a sociedade pode funcionar em sua regularidade. Ora, a
dos internos e exter-
nos à esfera governa- moralidade na sociedade contemporânea parece justamente caminhar em senti-
mental fazia fermen- do oposto. Em lugar da aposta no universalismo, na austeridade e no autocontrole,
tar o custo da políti- a moral contemporânea é hedonista e particularista, valoriza a espontaneidade,
ca; e que com isso se
instituíra uma propina a dessublimação da vida pulsional, a inversão da relação paixão-razão, impulso
cujo percentual varia- e prazer como afirmadores da existência (cf. Sennett, 1987; Lash 1983 e 1986).
va de transação para
transação, propina Nesse movimento, não é estranho que questões éticas tenham e venham sendo
essa que por sua vez trazidas para o centro do debate contemporâneo. De igual modo, não é fora de
era repartida percen- propósito que a corrupção, uma prática tão antiga quanto rotineira em nossas
tualmente entre as di-
versas facções, de sociedades, tenha se constituído em problema social e político senão recente-
acordo com sua influ- mente (cf. Martins, 1994). No interior desse cenário, parece pouco razoável
ência (nacional ou lo-
cal); que essa “lei” se fiar-se a obediência às normas na existência suposta de um sujeito autônomo,
impôs amplamente à por natureza cioso das virtudes da disciplina social.
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Por outro lado, as éticas vocacionais, muitas delas dotadas de forte


inspiração religiosa, que, no passado, asseguravam o represamento das pulsões
e do desejo (cf. Weber, 1974), se não mais parecem mecanismos sólidos para
conter os conflitos dos indivíduos entre si e com a sociedade, muito menos
ainda o são para evitar as tensões entre coletivos sociais. Está-se em plena era
das paixões, sem que quaisquer interditos ou freios morais subjetivos consi-
gam objetivar a experiência social. Os homens vêem o mundo como espelho
de si mesmo e não se interessam por eventos externos a não ser que desenvol-
vam um reflexo de sua própria imagem. Deixaram de compartilhar um fundo
comum de signos públicos. Assim, torna-se impossível a busca do auto-inte-
resse esclarecido (Sennett, 1987; Rouanet, 1987). O sinal mais visível desse
processo reside na acentuada perda de eficácia da ética vocacional do traba-
lho, cujos efeitos se manifestam em todas as classes sociais, em particular indústria, às finanças
entre as classes trabalhadoras. e a diversos setores da
O esgotamento dos modelos convencionais de controle social suge- economia italiana que
mantiveram relações
re, por conseguinte, que é preciso repensá-lo. E repensá-lo a partir do lugar de negócio com o sis-
onde ele foi originalmente concebido pela teoria sociológica clássica, qual tema político (a pena-
lidade para infração
seja, a sociedade. A complexa problemática do controle social não se encerra dessa “lei” era a ex-
no domínio exclusivo dos aparelhos repressivos de Estado. Com isso, penso clusão das emprei-
que a crítica e “problematização” das “demandas contemporâneas por ordem tadas, encomendas,
autorizações etc); que
social” sofrem um deslocamento em seu eixo de referência: do poder político tal sistema se tornou
para o poder social. Tal perspectiva compreende a reflexão sobre as formas de moeda-corrente a
ponto de envolver
interação e sociabilidade em emergência, quer entre as classes populares, quer (provavelmente) a
entre as demais classes sociais, bem como as modalidades de socialização que maioria dos políticos.
informam o comportamento sobretudo dos jovens na sociedade contemporâ- [...] Sabemos ainda
que a corrupção polí-
nea e que fomentam variadas interpretações acerca do uso das normas e de tica alimentou a cor-
sua eficácia, prática e simbólica. Nesse terreno, impõe-se investigar os mode- rupção administrati-
va. [...] Sabemos tam-
los de autoridade em emergência, repertoriando os múltiplos e atuais sentidos bém que os partidos
atribuídos a todos os elementos que compõem o universo normativo, como as de oposição tem par-
leis, os direitos, as instituições, as sanções, bem como o peso que figuras de ticipado mais espora-
dicamente do banque-
autoridade – como o pai, o patrão, o conselheiro local, o delegado, o magistra- te” (Meldolesi, 1994,
do, o padre, a parteira, o grupo de pares etc. – ocupam resignificadas nos p. 8). A longa citação
traduz a extrema im-
processos de socialização em curso. Tal perspectiva vem, nesse sentido, recu- bricação entre dife-
perar um dos objetos mais tradicionais da teoria sociológica clássica, cujas rentes atores e insti-
questões pareciam, até há pouco, completamente elucidadas, qual seja, o pro- tuições, constituindo
uma rede densa e
cesso de socialização. complexa. A apuração
Por fim, uma agenda que se proponha repensar o estatuto do con- da responsabilidade
penal dos promotores
trole social, problematizando suas formulações tradicionais e convencionais, e participantes desta
não pode ignorar o papel do Estado no controle social, em particular no con- rede encontrou inú-
trole da ordem pública. Todavia, esse papel não pode mais ser examinado em meros obstáculos, da-
das as dificuldades de
termos de eficácia ou fracasso. Dahrendorf afirma, nos ensaios citados, que caracterização efetiva
um dos problemas fundamentais da sociedade contemporânea é que o contro- dos delitos e de seus
prováveis autores,
le da ordem pública na sociedade moderna foi inspirado em Locke e Rousseau, conforme o próprio
porém, ao implementá-lo, essa mesma sociedade se encontrou face a face, e Meldolesi sugere.
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S. Paulo, 10(1): 19-47, maio de 1998.

mesmo se identifica, com o Estado leviatã de Hobbes. Com isso, creio, o so-
ciólogo liberal está fazendo menção ao fato de que o controle social (inclusive
o controle da criminalidade) se espreme entre duas forças antagônicas: por
um lado, a anarquia social que seria decorrente de propostas irrealistas de
justiça social; por outro lado, o autoritarismo, inspirador de propostas que
supõem desprezo, suspensão ou violação de direitos individuais. Ora, impõe-
se neste capítulo justamente colocar a questão fora desses termos dicotômicos.
É preciso problematizar a própria natureza, perfil e funções do Estado na
contemporaneidade, as quais extravasaram os limites ditados pelo modelo
contratual de organização societária. Como vêm demonstrando vários analis-
tas, em particular Boaventura de Sousa Santos (1995), cabe considerar que,
na atualidade, o Estado é cada vez mais caracterizado pelo pluralismo jurídico
e pela coexistência de mais de uma ordem jurídica no mesmo espaço
geopolítico, o que contrasta com as clássicas funções e características do Es-
tado moderno. Nesse terreno, é preciso lembrar que vivemos sob a égide de
uma “civilização do risco” que arrasta atrás de si importantes conseqüências
políticas, em especial para as formas de controle social penal, tudo enfeixado
em torno de um Estado de Prevenção. Trata-se de uma modalidade de organi-
zação estatal, voltada prioritariamente para a prevenção e para a segurança,
tendente a orientar-se segundo normas e mecanismos decisórios que reorgani-
18
Sob essa ótica, um zam sem cessar reações a situações de urgência estrutural ou conjuntural
programa de investi-
gação que se propo- (Wagner & Baratta, 1994). Trata-se, por conseguinte, de um Estado armado
nha repensar o contro- contra o perigo e que tende a ver inimigos por toda a trama do tecido social18.
le social na contem- Para terminar, talvez se esteja agora em condições de lançar uma
poraneidade vai ter de
enfrentar algumas es- hipótese explicativa para uma questão anteriormente formulada: pode ser que
pinhosas questões, a obsessão punitiva de nossa sociedade contemporânea, materializada nas
mais propriamente
afetas à filosofia do chamadas “demandas por ordem social”, explique-se justamente pelo modo
direito, como as mu- de funcionamento da sociedade de risco que edifica toda uma imensa e resis-
tações substativas que tente superestrutura de prevenção e segurança (através da proliferação das
vem ocorrendo em,
pelo menos, alguns sociedades de seguro e dos mecanismos de vigilância privada) para fazer face
“paradigmas” (per- aos medos, perigos e ameaças que tornam a vida humana, social e intersubjetiva,
doem-me o emprego
nem um pouco ade- absolutamente incerta. Daí porque, no bojo de fenômenos aparentemente tão
quado do conceito) diferentes e distanciados no tempo e no espaço, como sejam as catástrofes, as
que estruturam o cam- epidemias, os acidentes, o desemprego crônico, extremismos políticos, os cri-
po e o saber jurídico,
em particular as no- mes esteja um mesmo e único problema: uma profunda crise de racionalidade
ções de responsabili- que atravessa a sociedade contemporânea de alto a baixo e que coloca sob
dade, culpabilidade,
contrato, reciprocida- suspeição todas as apostas nas virtudes do progresso técnico, da moderniza-
de, eqüidade. ção e do bem-estar proporcionado pela sociedade industrial.

Recebido para publicação em março/1998

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ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 19-47, maio de 1998.

ADORNO, Sérgio. Conflict and violence: reflections on anomy in the contemporary world. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 19-47, may 1998.

ABSTRACT: Based on a critical analysis of the essay Law and Order (1985) by UNITERMS:
Ralf Dahrendorf about the erosion of law and order in contemporary society, anomy,
authority,
this article reviews the arguments of the essay pointing out the changes involved law and order,
in the modes of subjection of the individuals. What is in question in the present violence,
turn-of-the-century context of radical transformations is rather the way individuals organized crime,
govern themselves and each other (Foucault, 1984) than the liberation of each drug-trafficking.
individual from social ties and controls – the problem of “ligatures”. In order to
justify this hypothesis, the analytical reference is a specific case: the colonization
of urban criminality by organized crime, specially by one of the most emblematic
examples of violence production in contemporary world: drug-trafficking.

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49-63, USP, S. Paulo,
maio A deR1998.
10(1): 49-63, maio
de 1998. T I G O

Camus na festa do Bom Jesus


ALFREDO BOSI

Para José de Souza Martins


Nous ne vivons vraiment
que quelques heures de notre vie.
Camus, Carnets.

RESUMO: Este ensaio analisa o conto de Albert Camus La pierre qui pousse, UNITERMOS:
“a pedra que brota”, incluído em seu livro L’exil et le royaume. O episódio tem Albert Camus,
literatura de resis-
lugar em Iguape, durante a festa dedicada ao Bom Jesus, o santo padroeiro da
tência,
cidade. Um engenheiro francês, d’Arrast, ao chegar em Iguape, encontra um literatura francesa -
pobre, negro, que havia prometido carregar uma enorme pedra para agradecer conto.
um milagre recebido do Bom Jesus. O conto é um tocante exemplo de literatu-
ra de resistência: foi escrito logo após a viagem que Camus fez ao Brasil.

O
último conto de L’exil et le royaume de Albert Camus chama-se
La pierre qui pousse, a pedra que brota. Um engenheiro francês,
d’Arrast, chega a Iguape para dirigir as obras de um dique que
deverá represar as águas do rio e impedir as periódicas inundações
das zonas mais pobres. O seu encontro com a pequena cidade colonial aperta-
da entre a floresta e o mar é o fio condutor da narrativa. E o encanto da sua
escrita vem do sentimento de estranheza que o europeu sente diante de uma
paisagem tão diferente da sua misturado com a alegria de descobrir uma hu-
manidade forte na sua pobreza, viril e fraterna.
Estranheza primeiro, pois as diferenças se impõem. Depois vem a inte-
ligência sofrida do outro: o que foi um caminho recorrente na obra inteira de Camus.

A viagem

Adotando um procedimento de linguagem que seria levado ao ex- Professor de literatura


brasileira na FFLCH-
tremo pelo nouveau roman dos anos 60, Camus entra de plano na sua história USP

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BOSI, Alfredo. Camus na festa do Bom Jesus. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 49-63, maio de 1998.

pela descrição exata, quase técnica, do espaço onde se dá a ação inicial do


conto. O engenheiro está no carro ao lado do motorista no momento em que
devem atravessar o rio a meio caminho entre São Paulo e Iguape. Não há
ponte nem ferry boat, apenas uma barcaça, uma simples jangada presa a um
cabo que transporta o carro para a outra margem no breu da noite. Os lances
da manobra, o silêncio atento dos negros que a conduzem sem olhar para o
estrangeiro, mantendo imóveis as cabeças debaixo de chapéus de palha pon-
tudos – tudo se diz em compasso lento, que já é índice de um ritmo vital alheio
à cadência da civilização técnica que o engenheiro representa. Daí, a sensação
difusa de peso, e as palavras que a significam espalhadas pelo texto:
o carro vira pesadamente sobre a pista;
o homem está plantado pesadamente sobre a terra;
a chuvinha agravava o silêncio;
lado a lado eles faziam peso com todos os seus mús-
culos sobre varas compridas;
ouvia-se o marulho das águas pesadas sobre a barcaça;
na serra um sol pesado;
uma voz estranhamente alegre na noite pesada.
D’Arrast mesmo, um homem alto e corpulento, é descrito, mais de
uma vez, como pesado, pesado demais.
Quando o carro alcança a estrada na outra margem, a floresta está
mais perto, tão perto que já se ouvem na treva o coaxar espaçado dos sapos e
gritos estridentes de pássaros desconhecidos. Mas de que é feita essa paisa-
gem tropical? A sua matéria, à primeira vista opaca e amorfa, é dotada, aos
olhos curiosos do estrangeiro, de qualidades surpreendentes: as águas do rio,
embora turbulentas, são sedosas; o céu é esponjoso; o vento é úmido e acerbo,
mas tépido. Os séculos trabalharam a face desse mundo antigo, ainda que
sempre novo para o europeu milenar. Como o sorriso do chofer negro que
iluminava um rosto todo pregueado apesar da sua juventude; e a sua voz que
soava estranhamente alegre na noite de chumbo. Os muros de árvores são
compactos, a vegetação é inextricável, mas o perfume que se evola da massa
verde é mole e açucarado. O enigma da terra parece residir precisamente nessa
fusão singular do enorme e insólito com o brando e familiar.
No meio da viagem, de repente, uma surpresa. O carro se detivera e
d’Arrast viu casas de decoração frágil ao longo da estrada e, dentro das casas,
quimonos furtivos. Não, não era um subúrbio poeirento de Tóquio, apenas a
cidade de Registro perdida no Vale da Ribeira com seus migrantes japoneses
que se protegiam da soalheira sob grandes chapéus de palha caipiras.

A cidade: as autoridades e o povo

Primeira noite de d’Arrast em Iguape. O prefeito aloja o visitante


em um hospital chamado “Lembrança Feliz”. Mas os quartos não tem água.
Sócrates, o ajudante, arranja-lhe uma garrafa de água mineral gasosa para a
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barba e a toalete matinal. O detalhe sabe a quadro de costumes com seu leve
mordente de sátira, que dá o tom a este segundo momento da narrativa. É a
hora em que entram as autoridades locais. A descrição dos importantes da
cidade é quase caricatural, valendo-se do recorte dos tipos, procedimento
indefectível de toda crônica em terceira pessoa que ama o jogo das superfí-
cies, mas nem por isso deixa de tocar um dos estratos da experiência social.
O prefeito de Iguape tinha a estatura e a fisionomia de uma amável
doninha com seus óculos emoldurados a ouro. Parecia absorvido numa con-
templação tristonha da chuva, mas um sorriso encantador o transfigurou logo
que deu pela presença do ilustre forasteiro. O narrador lhe atribui sestros de
boneco de mola que primeiro se enrijece diante do visitante e depois tenta
aliciar a sua intimidade abraçando-o, gesto por certo inesperado para um fran-
cês, e chamando-o de Monsieur l’Ingénieur. Em seguida chega o juiz, uma
visita que o estrangeiro considera descabida (“o que um juiz teria a ver com a
construção de um dique?”). Tal como o prefeito, esta segunda autoridade
enverga um terno azul marinho, mas é mais jovem e elegante; tal como o
prefeito, estende-lhe os braços e deseja-lhe boas vindas. Mas, na qualidade de
bacharel em Direito, o nosso magistrado não se contém e recita um discurso
encomiástico de recepção. “Ele se orgulhava de acolher Monsieur l’Ingénieur,
era uma honra que este fazia à sua pobre cidade, e se regozijava pelo inestimá-
vel serviço que Monsieur l’Ingénieur ia prestar a Iguape com a construção
desse dique que evitaria a inundação dos bairros ribeirinhos. Comandar as
águas, domar os rios, ó que grandioso mister, e certamente a pobre gente de
Iguape guardaria o nome de Monsieur l’Ingénieur e por muitos anos ainda o
pronunciaria nas suas orações”. Finda a breve peça de eloqüência forense-
municipal, d’Arrast é convidado a dirigir-se ao clube onde os notáveis da
cidade desejavam recebê-lo condignamente.
Nessa altura, o narrador abre parênteses para colher uma vista de
conjunto de Iguape. São flashes, tomadas impressionistas, o que o olhar de
fora pode ver. Uma centena de casas cobertas de telhas descoradas, as ruas
lavadas de chuva, a pracinha retangular de barro vermelho onde pneus e ta-
mancos deixaram marcas, os rebocos multicores das casotas, a igreja colonial
branca e azul. Cenário nu. Odor de sal. Silhuetas molhadas. Multidão sarapin-
tada de gaúchos, japoneses, caiçaras e alguns notáveis bem trajados. Reitera-
se o contraste dos ternos escuros das autoridades com a roupa arlequinal do
povão: o que é, afinal, mais exótico?
Terminando o parágrafo, entra-se no clube. Novos discursos, mas
um incidente desagradável vem turvar o brilho da recepção: o chefe de polícia,
um marmanjo certamente alcoolizado, irrompe no recinto e tem o desplante de
sentenciar, com gestos e brados truculentos, que o passaporte do visitante
francês não estava em termos legais. Mas a situação de constrangimento dura
pouco, porque o juiz, engrossando a voz, fulmina o funcionário importuno e o
expulsa da sala. Pedem-se solenes escusas a d’Arrast, que é, por sua vez,
instado a “decidir sobre a punição que conviria infligir àquele calamitoso per-
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sonagem”. O engenheiro é pelo esquecimento de uma falta que lhe parece


apenas ridícula, mas o juiz e o prefeito insistem, é preciso dar uma lição ao
chefe de polícia. O impasse continua e a deliberação é adiada.
O episódio da recepção do engenheiro tem dupla função. Descreve
o ambiente do poder provinciano mediante o olhar distanciado do engenheiro
que observa, divertido, o formalismo canhestro do país que ainda guarda ares
colonizados, alternando discursos de louvação e rompantes de arrogância
burocrática. O estrangeiro pode dar-se ao luxo de desdenhar uns e outros na
medida em que desfruta de uma posição privilegiada. O olhar do narrador
aqui antes separa do que abraça. Mas há uma segunda função, que se pode
chamar de ponte, que a passagem desempenha: as mesmas autoridades leva-
rão d’Arrast a visitar a zona miserável de Iguape, os casebres agarrados ao
barranco entre o rio e a mata, onde tudo muda de repente.
Postados em frente das malocas, os moradores, todos negros, fixam
os visitantes, mas não dizam palavra. Não há sinais nem de bajulação conven-
cional nem de hostilidade intempestiva. O contraste com a situação anterior é
cabal. Aqui se vive uma existência esquálida, cuja nudez, porém, se basta a si
mesma. O gesto é contido, a palavra breve tarda a ser proferida, mas os sinais
do cotidiano são carregados de significação: “Alguns casais davam-se as mãos
e, na frente dos casebres, um bando de negrinhos miúdos de ventre bojudo e
coxas magrelas arregalavam os olhos redondos”.
Aqui todos os que trabalham são negros. D’Arrast pergunta ao co-
mandante do porto, um preto sorridente vestido de branco, se é possível visitar
um casebre. O comandante diz que sim e se dirige aos moradores explicando-
lhes quem era o estrangeiro e o que ele viera fazer em Iguape. Mas, ao contrário
das autoridades loquazes, o povo do bairro permanece imóvel, em silêncio.
D’Arrast chega a entrever uma atitude de relutância nesse mutismo. O coman-
dante, impaciente, ordena a um dos favelados que acompanhe o estrangeiro até
a sua maloca. É um velho seco, mas de corpo ainda jovem, que cumpre a ordem
com o mesmo olhar impassível que d’Arrast observara nos demais.
No casebre d’Arrast distingue um resto de fogo no meio da peça
única que serve de cozinha, área de serviço, quarto de dormir e oratório com
um cromo de São Jorge. O comandante bate palmas e entra uma jovem que
estende ao visitante um copo de aguardente. Logo depois recolhe o copo vazio
saindo “com um movimento tão flexível e tão vivo que d’Arrast sentiu de
repente o desejo de retê-la”. A visita está terminada.
É notável o andamento lesto mas sóbrio desta cena de visita, na
verdade imposta ao morador, quase uma intrusão. A oferta silente da pinga, a
jovem que aparece e desaparece, a impressão final de graça e de vida que ela
deixa no estrangeiro: tudo bem medido e sustentado como deve ser a hora da
estranheza, o tempo em que o outro guarda com ciosa dignidade o segredo,
por humilde que seja, do seu cotidiano.
– Comandante, de que vive essa gente que acaba-
mos de ver?
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– Trabalham quando precisamos deles – disse o co-


mandante. Nós somos pobres.
– E esses são os mais pobres?
– São os mais pobres.
O juiz que, naquele momento, chegava deslizando
de leve sobre os seus finos sapatos, disse que eles já
estavam gostando de Monsieur l’Ingénieur que lhes
ia dar trabalho:
– E saiba o senhor, eles dançam e cantam todos os dias.

A pedra que brota

O encontro é árduo e se fez aos poucos. Camus sempre foi mestre


na arte de extrair o diferente do mesmo e tirar leite de pedra; ele, que soube
verter em uma prosa ainda clássica a monotonia fulgurante do deserto argeli-
no, o enigma do Árabe dominado mas indômito, que negaceia, oculta surpre-
sas e poderá ter rasgos de heróico estoicismo: prosa de análise moral, prosa de
atenção resistente.
O engenheiro volta ao centro de Iguape e atravessa o pequeno Jar-
dim da Fonte, “misterioso e doce sob a chuva fina”. A cidade está cheia de
gente vinda de toda parte para a festa do Bom Jesus.
Contam a d’Arrast a bela história da imagem do Ecce Homo que
chegara do mar, havia séculos, remontando o rio até a vila. A estátua fôra
lavada naquela gruta onde uma pedra brotara e crescera. Todo ano se faz a
festa, todo ano chegam romeiros que vêm com seus martelos arrancar lascas
de pedra, suas relíquias. Não importa, a pedra cresce de novo. É o milagre.
Novo encontro com o impenetrável. A pedra, morta matéria mineral, é
uma forma viva. Os peregrinos, esperando a sua vez junto à gruta, entram e saem
sem olhar para o estrangeiro, como se ele não existisse, “impassíveis sob a água
que descia das árvores em finos véus”. E d’Arrast, homem que veio à cidade trazer
os benefícios da técnica e represar as águas que alagam as baixadas da vila, come-
ça a ser invadido por uma sensação de perplexidade. Porque as esperas não são
iguais. Os fiéis aguardavam junto à gruta a sua vez, e essa expectativa dava um
sentido forte à vida de cada um. Mas ele, que parecia também aguardar que algu-
ma coisa acontecesse, na verdade não sabia o que esperar:
Ele não cessava de esperar desde que chegara àquele
país. Esperava, no calor vermelho dos dias úmidos,
sob as estrelas miúdas da noite, apesar das tarefas
que eram as suas, os diques a construir, as estradas
a abrir, como se o trabalho que ele viera fazer ali
não fosse mais que um pretexto, a ocasião de uma
surpresa, ou de um encontro que ele não imaginava
qual fosse, mas que o teria aguardado, pacientemen-
te, no fim do mundo.
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O homem da promessa

Mas para quem procura o sentido, algum sentido, os acasos não


são meros acasos: são portas que se abrem ao desejo, são caminhos possí-
veis da alma que uma longa e obstinada espera torna necessários, e só apa-
rentemente inesperados.
D’Arrast, nem bem acabara de fazer aquelas reflexões de pura
perplexidade, é apresentado a um mulato pequeno e troncudo, olhos tran-
qüilos, dentes muito alvos, lábios cheios e brilhantes. Caberá a esta perso-
nagem, não nomeada até o fim da narrativa, e que d’Arrast chama de mes-
tre-cuca (era cozinheiro de um barco), o papel dramático de encarnar o ou-
tro: não tanto o outro como portador de uma cultura diferente (a rigor, uma
terceira pessoa), quanto o companheiro de diálogo, a segunda pessoa, aque-
le a quem se fala.
Ao contrário dos demais moradores pobres da vila, que pareciam
ignorar a presença do estrangeiro, o mulato o fita com franca curiosidade.
Em curto lapso de tempo as diferenças que os apartam passarão pelo crivo
da comunicação. Siga o leitor a lepidez do diálogo e a sua densidade de
informação e julgamento.
Primeiro vem a percepção do social, a marcação da classe. O mu-
lato dá ao estrangeiro os títulos de capitão e senhor. D’Arrast lhe diz que na
sua França já não há mais senhores, alusão sumária ao advento de uma era
democrática de massas que se seguiu à última guerra. O outro rebate resu-
mindo jocosamente a situação (“Então lá todo mundo é senhor!”); o que
obriga o francês a precisar o seu quadro: não há senhores nem povo. O
mulato, meio que duvidando, volta à carga e indaga se na terra do estrangei-
ro ninguém trabalha, ninguém sofre. D’Arrast é levado socraticamente a
admitir que são milhões os que trabalham e sofrem. “Então, é o povo”,
induz o mestre-cuca.
Veja-se como a percepção do mulato pobre do país pobre chega
mais depressa ao óbvio (cá e lá há ricos e pobres) do que o discurso
uniformizador do técnico europeu para o qual, em princípio, a sua nação é
constituída de uma grande e indiferenciada classe média, sem senhores
nem povo.
Mas o parto do conhecimento ainda não acabou. D’Arrast admite
a existência dos opostos. De um lado, o que o mulato chama de povo, iden-
tificado com o trabalhador e, a rigor, com todos os explorados. De outro, os
patrões, que o engenheiro assim classifica: “os policiais ou os negociantes”.
O mulato reage com veemência: “Comprar e vender, hein! Que sujeira! E
com a polícia, os cães mandam”.
Em poucos traços, necessariamente grossos, a sociedade burgue-
sa moderna é descrita e julgada: “que sujeira!”: d’Arrast não replica, afinal
convencido de que ambos chegaram a um consenso.
Mapeado o campo das semelhanças, à primeira vista insuspeitadas,
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BOSI, Alfredo. Camus na festa do Bom Jesus. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 49-63, maio de 1998.

que aproximam o mundo do mestre-cuca mulato e o mundo do engenheiro


francês, ambos já podem se apresentar. O estrangeiro dirá que faz pontes e
estradas: o caiçara dirá que é cozinheiro e sabe fazer feijoada, prometendo
logo em seguida que oferecerá uma a d’Arrast. Classe, status, profissão, ofer-
ta de comida, estamos a um passo da revelação. O mestre, como o chamará
sempre d’Arrast, franqueia o limite da intimidade, toma o braço do francês,
leva-o a um banco do jardim e conta-lhe a sua promessa: carregar na cabeça
uma pedra de cinqüenta quilos durante a procissão do Bom Jesus que o salva-
ra da morte certa em um naufrágio do barco onde ele trabalhava.
A promessa deveria ser cumprida no dia seguinte, data da festa.
Naquela noite, porém, véspera do Bom Jesus, festejava-se São Jorge dançan-
do até a madrugada. Este é um momento crucial do conto. O mestre sabe que
seria mais prudente escolher, preterir a macumba. Se ele dançar a noite toda,
talvez não tenha forças para cumprir, no dia seguinte, a palavra dada ao Bom
Jesus. É uma ocasião de se aproximar do estrangeiro, saber dele se alguma
vez fizera promessa, pedir-lhe solidariedade. D’Arrast confessa, entre dentes,
que sim, abrindo uma clareira em seu próprio passado: aconteceu que alguém
ia morrer por culpa dele e, nesse momento único, ele teria pedido uma graça.
Mas na fala do incréu tudo fica em suspenso, posto no modo condicional: “Eu
teria desejado prometer”. O que é uma promessa sem fé? Um ato gratuito,
uma intersecção de sentido e absurdo?
O pensamento existencial de Camus já construíra, como se sabe,
um discurso articulado em torno desses conceitos-chave: o absurdo e a
gratuidade. O absurdo da condição humana finita e a gratuidade dos projetos
individuais. Entretanto, na medida em que ambos, absurdo e gratuidade, são
componentes intrínsecos da passagem do homem sobre a Terra, deixam de ser
barreiras intransponíveis ao pensamento e assumem paradoxalmente o esta-
tuto de vias de acesso à compreensão da existência. Uma compreensão
tacteante, que se faz por ensaio e erro, certa apenas da própria incerteza e,
apesar de tudo, animosa e pertinaz como a aventura alegórica de Sísifo. Mas
volto à matéria vertente do conto.
O narrador marca sutilmente a linha das diferenças que separam
d’Arrast e o mestre, apesar da experiência bem sucedida do diálogo. O ho-
mem que duvida, o engenheiro que se declara agnóstico, lança um repto ao
crente, perguntando-lhe se o Bom Jesus o atendia sempre. O mestre responde
com um riso inteligente: “Bem, ele é livre, não?”

Breve interlúdio

Segue-se um entremeio: almoço com os notáveis, novos discursos


do prefeito e do juiz; perdão afinal concedido ao chefe de polícia graças à
mediação do visitante; enfim, sugestão de que todos jantem juntos, confrater-
nizados, e recusa de d’Arrast que já tinha aceitado o convite do mestre para
ver à noite as danças de São Jorge.
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BOSI, Alfredo. Camus na festa do Bom Jesus. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 49-63, maio de 1998.

A descida do Santo

D’Arrast vai à casa do mestre e reconhece o lugar onde estivera de


manhã. O negro silencioso que então o conduzira é irmão do mestre. Cumpre-
se, uma vez mais, o ritmo de estranheza e familiaridade, oclusão e abertura,
que o estrangeiro conhece desde os seus primeiros contactos com a terra. A
alternância presidirá também às últimas experiências de d’Arrast.
A festa de São Jorge com seu ritual sincrético de devoção católica e
dança e transe africano é descrita com traços realistas e lembra, pelo tom
distanciado, o estilo internacionalmente neutro de descrição antropológica.
Lida por esse ângulo, é mais um documento idôneo do olhar europeu culto
que um século de educação científica ensinou a fixar-se atento nos meneios do
corpo, nas menores inflexões da palavra e do canto, em suma, nas formas da
aparência pública.
Mediante esse exercício de percepção, a alteridade impõe-se aos
sentidos do observador, que segue atento os movimentos dos fiéis tomados
pelo santo e ouve os seus gritos agudos ou abafados e as suas preces roucas.
Mas a narrativa ficcional vai além: incorpora o dado etnológico e o
trabalha de tal modo que o leitor vem a conhecer não apenas as faces do objeto
visto como a aventura do sujeito que vê. O observador é aqui afetado e envol-
vido. Ele chega à festa convidado por um homem que havia pouco lhe abrira o
coração e lhe pedira ajuda para o bom cumprimento de sua promessa. Nesse
contexto, a dança sagrada será mais do que uma cerimônia exótica: é a festa
partilhada com o amigo recente, distante ainda, mas estranhamente próximo.
A participação do estrangeiro, embora excepcional, está subordi-
nada a regras. Assim, d’Arrast, encostado à parede, cruzara os braços, mas o
mestre, obedecendo a uma palavra do celebrante, o adverte:
– Descruza os braços, Capitão. Tu te fechas, assim
não deixas baixar o espírito do santo.
D’Arrast obedece. O narrador vai pontuando discretamente os mo-
mentos de encontro do ritual descrito com o ritual vivido pelo estrangeiro:
“As costas sempre coladas à parede, ele mesmo parecia agora, com
seus membros longos e pesados, a cara grande que já brilhava de suor, um
deus bestial e tranqüilizador”. O pai-de-santo o olha com aprovação. Se o ar é
pesado, se a dança é pesada, d’Arrast também pesa, e cada vez mais. O fora e
o dentro se correspondem e fundem. É a hora em que São Jorge vai descer. O
mestre explica ao estrangeiro o sentido agônico de certas palavras proferidas
pelo pai-de-santo em pleno transe:
Olha, ele está dizendo que é o campo de batalha
do deus.
O mestre entrara no ritmo dos fiéis. D’Arrast se dá conta de que ele
mesmo já estava fazia tempo dançando com todo o seu peso, mas sem dobrar
os pés. Essa dança imóvel, essa atitude constrangedora de participar a meias,
de aceitar de fora e negar por dentro o ritual coletivo, exaurem o estrangeiro já
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BOSI, Alfredo. Camus na festa do Bom Jesus. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 49-63, maio de 1998.

estonteado pelo fedor dos charutos e do suor espesso que satura o casebre.
O transe das filhas-de-santo lhe parece terrível, escapam-lhe adjeti-
vos de clara rejeição como “animal” e “horrível” e, no entanto, a interpretação
final da cerimônia ascende a um patamar de alta compreensão humana:
Ao mesmo tempo, todos se puseram a ulular sem pa-
rar, um longo grito coletivo e incolor, sem respira-
ção aparente, sem modulações, como se os corpos se
travassem inteiros, músculos e nervos, numa só emis-
são exaustiva que dava enfim a palavra, em cada um
deles, a um ser absolutamente silencioso.
O transe assume, nesse pensamento generoso, o papel de liberta-
dor de opressões milenares. O transe devolve ao fiel a palavra seqüestrada,
é um momento raro de graça. E a poesia vibra nessa prosa aparentemente
objetiva quando o forasteiro reconhece no meio das coreutas a jovem negra
que lhe servira aguardente na casa do mestre. Naquele instante ele quisera
retê-la, pois tudo nela era vida silenciosa e fugidia. Agora, “vestida com um
traje verde, ela usava um chapéu de caçadora de gaze azul rebatido na fren-
te, guarnecido de plumas de mosqueteiro e trazia na mão um arco verde e
amarelo munido de flechas, em cuja ponta se enganchava um pássaro
multicor. Sobre o corpo grácil, a linda cabeça oscilava lentamente, caída um
pouco para trás, no rosto adormecido se refletia uma melancolia igual e
inocente. Nas pausas da música, ela cambaleava sonolenta. Só, o ritmo
potenciado dos tambores lhe emprestava uma espécie de esteio invisível em
torno do qual ela enovelava seus moles arabescos até que, de novo estacan-
do ao mesmo tempo que a música, ela soltava um estranho grito de pássaro
penetrante e, no entanto, melodioso”.
A Diana negra, cuja dança fascina o estrangeiro, é a última imagem
que ele guarda da festa do santo. O mestre, que o chamara a participar, convi-
da-o a retirar-se; mas ele mesmo continuará dançando até de madrugada, ape-
sar da provocação titânica que o aguarda no dia seguinte, dia da promessa.

O estrangeiro e o Brasil

A descrição foi precisa; a narrativa, intensa; o envolvimento, tenso,


lacerado entre o olhar que separa e julga, e a escuta, o olfato, a respiração e a
tensão do corpo que atraem para as entranhas do sujeito os sons, os ritmos, os
odores, a força mesma desencadeada pelo ritual. D’Arrast sai da festa como
que intoxicado, e as reflexões do narrador procuram traduzir, no nível da sen-
sibilidade, a relação do estrangeiro com a terra sentida agora como um todo.
Repropõe-se o sentimento de estranheza com uma veemência até
então desconhecida ou latente. A expressão forte, o desejo de “vomitar esse
país inteiro” leva ao paroxismo a reação do estrangeiro a um mundo grande
demais, indiferenciado (“o sangue e as estações aí se confundiam”), uma terra
onde a matéria do tempo, a história, perdia consistência, liquefazia-se.
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BOSI, Alfredo. Camus na festa do Bom Jesus. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 49-63, maio de 1998.

Os topoi franco-brasileiros dos tristes trópicos, admiravelmente


formulado por Lévi-Strauss, resume aqui a impressão desalentadora de
desmesura. O narrador sente “a tristeza dos grandes espaços”, ouve “o maru-
lhar noturno dos grandes rios desertos”, enfrenta “a terra demasiado grande”.
O estrangeiro crê que só há um modo de integrar-se nesse vasto continente: é
abandonar-se. “Seria preciso deitar-se e dormir durante anos, rente ao solo
barrento ou ressecado”.
Na polaridade Europa-Brasil, as paixões rancorosas da honra vio-
lada, as paixões da moral egótica, estão do lado de lá: “na Europa, era a ver-
gonha e a cólera”; no Brasil, a dança dionisíaca é um doce aprendizado da
morte, “no meio daqueles loucos langorosos e trepidantes que dançavam para
morrer”. Através da noite úmida chega-lhe ainda o estranho grito de pássaro
ferido desferido pela bela adormecida.
Na manhã seguinte, saindo de uma noite maldormida, d’Arrast per-
cebeu que o seu relógio tinha parado.

Sísifo: o reverso do mito

Parecia que o tempo tinha parado de escoar na noite em que o santo


baixara. D’Arrast olha à sua frente a manhã silenciosa da vila sob um sol de
fogo como que posta fora do tempo medido pelo calendário e pelo relógio.
Urubus arriscam um vôo rasante, mas logo recaem em sono profundo e no
mesmo céu de azul chapado um aviãozinho sai da mata, cruza baixa a praci-
nha da igreja e some no estuário, objeto “insólito nesse mundo sem idade”.
Nesse mundo sem idade o que marca o tempo é a volta periódica do sagrado.
De repente, o estouro de um petardo anuncia que vai sair a procissão do Bom
Jesus.
O mesmo cuidado de observação precisa com que o narrador acom-
panhou a dança afro-brasileira rege agora a descrição da festa católica. Em
um diálogo com o seu ajudante, o negro Sócrates, d’Arrast lhe confessara que
não sabia dançar como os devotos de São Jorge nem ia à missa como os ro-
meiros do Bom Jesus. Daí, a marca inicial de exterioridade que sela ambas as
descrições, ambas moduladas em um tom de realismo convencionalmente fiel,
com a sua sintaxe linear, pontuada com escrúpulo (é preciso dizer como as
coisas se passam, umas depois das outras) e o seu léxico denotativo, pinturesco,
rente aos gestos, às formas e às cores divisadas na massa dos fiéis. Estilo de
um olhar educado na leitura de Flaubert, de Maupassant, de certo Gide. Um
parágrafo apenas sirva de ilustração:
Mas, na sombra da igreja, um obscuro tumulto atraía
de novo a atenção. Os órgãos se calaram, alterna-
dos agora pelos cobres e tambores, invisíveis sob o
pórtico. Penitentes, recobertos de opas negras, saí-
ram um a um da igreja, juntaram-se no adro, depois
começaram a descer os degraus. Atrás deles vinham
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BOSI, Alfredo. Camus na festa do Bom Jesus. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 49-63, maio de 1998.

penitentes brancos que portavam bandeiras verme-


lhas e azuis, depois um grupinho de meninos vesti-
dos de anjos, confrarias de filhos de Maria de
rostinhos negros e graves; enfim, sobre um andor
multicolorido, carregada por notáveis que suavam
em seus ternos escuros, a efígie do próprio Bom Je-
sus, de caniço na mão. A cabeça coberta de espi-
nhos, sangrando e cambaleando acima da multidão
que enchia os degraus do adro.
Junto ao degrau mais baixo, atrás do andor, d’Arrast entreviu o
mestre que começava a cumprir a sua palavra equilibrando na cabeça um enor-
me bloco retangular.
A partir do momento em que o estrangeiro vê o homem da promes-
sa, seu amigo de véspera, tudo passa a segundo plano: a procissão, o cenário
pitoresco da vila, o balcão da prefeitura onde lhe fôra reservado um lugar de
honra para apreciar a festa. Os olhos e o coração do engenheiro estão fixados
no mestre. “D’Arrast olhava somente para o mestre que sumia agora na rua e
cujos membros lhe pareceu de repente que se curvassem”.
Aguardando a volta da procissão, parado no centro da vila agora
vazia e castigada pelo sol, d’Arrast sente a passagem do tempo como pura
agonia. Cada minuto é um momento a mais de sofrimento do mulato. E um
cansaço à beira da vertigem pesa sobre o corpo e a alma do estrangeiro, para
quem tudo é exterior naquela festa, menos o sacrifício do mestre. Se o absur-
do, como a certa altura ele chamara aquela promessa, é ausência de sentido,
só o sentimento do absurdo redime a viagem da existência lançada entre os
acasos do nascimento e da morte. Quando a procissão chegou à pracinha sem
que o mestre aparecesse junto ao andor do Bom Jesus, d’Arrast deixou preci-
pitadamente o balcão das autoridades e, lutando contra a maré da multidão,
abriu caminho e procurou ansioso pelo amigo até que o encontrou arrastando-
se pela rua no extremo limite de suas forças.
O europeu descrente, que mal reparara na imagem do Bom Jesus de
Iguape, talvez o mais patético Ecce Homo de quantos esculpiu o imaginário
colonial, tem agora diante de si, em carne e osso, sangue e sânie, a própria
figura da dor. O mulato sem nome, este descendente de escravos, se arrasta
agora como o Senhor dos Passos da via sacra. Mas a sua cruz é um peso
livremente eleito e assumido como penhor de reconhecimento por uma graça
impetrada e recebida. O senso da promessa resultou do vínculo que atara o
desespero da morte à esperança de sobreviver. O sacrifício do mestre é um ato
pessoal e voluntário de gratidão: ato gratuito aos olhos do pensador que um
dia escreveu O mito de Sísifo, mas grávido de necessidade e de sentido para o
homem que no dia anterior ouvira as confidências do mestre.
Ele estava visivelmente extenuado. Parava; depois,
curvado sob a enorme pedra, corria um pouco, com
o passo apressado dos descarregadores e dos coolies,
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BOSI, Alfredo. Camus na festa do Bom Jesus. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 49-63, maio de 1998.

o trote curto da miséria, rápido, batendo o pé com a


planta inteira no chão. Alguns penitentes de opas
sujas de cera derretida e poeira o encorajavam quan-
do ele estacava. À sua esquerda, o irmão caminhava
ou corria em silêncio. Pareceu a d’Arrast que levas-
sem um tempo interminável para percorrer o espaço
que os separava dele. Chegando mais perto, o mes-
tre parou de novo e lançou em torno de si olhares
apagados. Quando viu d’Arrast, e sem parecer
reconhecê-lo, se imobilizou na sua frente. Um suor
oleoso e sujo cobria o rosto agora cinzento, a barba
estava cheia de fios de saliva, uma espuma escura e
seca cimentava os lábios. Ele tentou sorrir. Mas, imó-
vel sob a carga, tremia com o corpo todo, menos à
altura das espáduas onde os músculos estavam vi-
sivelmente travados por uma espécie de cãibra. O
irmão, que tinha reconhecido d’Arrast, lhe disse ape-
nas: “Ele já caiu”.
O mestre cairá ainda uma vez, deixando rolar a pedra, sem forças
para soerguê-la. Este último episódio conhece um contraponto cerrado entre a
gravidade e a graça. Adoto de bom grado este par de conceitos plasmado por
Simone Weil, presença ardente, embora discreta, nos cadernos de Camus e na
formação da sua ética de resistência. A gravidade, que já se anunciava nas
muitas referências ao peso das coisas disseminadas pelo texto, alcança, neste
momento, a sua representação cabal. É o peso da pedra que de força exterior
passa a motivo condutor da seqüência narrativa:
O mestre avançou, não como alguém que quer adian-
tar-se, mas como se fugisse da carga que o esmaga-
va, como se esperasse aliviá-la pelo movimento.
Mas a graça que alivia a pena do penitente não vem do seu próprio
e vão esforço: vem do outro. É o estrangeiro quem pousa a mão solidária
sobre as costas do mestre, a mão “que ficou leve”, embora o seu passo ainda
fosse pesado. O original francês diz pesant, e não simplesmente lourd, assi-
nalando a conotação do andar penoso e modesto. Logo adiante, a alternância
se verifica de novo: “A mão de d’Arrast se fez mais pesada. ‘Vamos, mestre’,
disse ele, ‘ainda um pouco’”.
O peso excede todo limite humano. A pedra resvala e cai, o mestre
desaba: triunfo massacrante da gravidade. É a vez da graça: o ímpeto fraterno
que age no sentido oposto ao da gravidade levantando o homem caído:
D’Arrast, inclinado sobre o mestre, limpava com a
mão o ombro manchado de sangue e de poeira, en-
quanto o homenzinho, com a face colada à terra, ofe-
gava. Ele não ouvia nada, não se mexia mais.
D’Arrast o tomou nos braços e o ergueu facilmente
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BOSI, Alfredo. Camus na festa do Bom Jesus. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 49-63, maio de 1998.

como se se tratasse de uma criança. E o mantinha


em pé, apertado contra si.
Último arranco do mestre, expressão de uma vontade desesperada
de cumprir a promessa: “Eu prometi. Ah! Capitão. Ah! Capitão, e as lágrimas
afogaram a sua voz”. Dessa vez, é o irmão de sangue do mestre que o estreita
nos braços afastando-o da procissão.
O parágrafo seguinte marca a reversão do mito de Sísifo, que rece-
be aqui um tratamento anti-trágico, embora intensamente dramático. Sísifo,
filho de Éolo e descendente de Zeus, fôra condenado a empurrar até o cimo de
um monte uma enorme pedra que, em seguida, rolava até o sopé, obrigando o
titã a renovar indefinidamente a sua proeza. Camus interpretara o mito como
emblema da condição humana. Neste conto, porém, o sentimento do absurdo
é desagravado e redimido pelo fato de o sacrifício ter, na sua origem, um
significado: trata-se do cumprimento de uma promessa fundada na crença em
uma divindade misericordiosa que atende ao suplicante. Em uma segunda ins-
tância, a fragilidade humana (o limite físico do pagador da promessa) é com-
pensada, literalmente co-pesada, pelo gesto de outro homem, estrangeiro mas
solidário, que ajuda o semelhante a carregar o fardo.
A margem de sentido, que tendia a anular-se na leitura do mito feita
pelo existencialismo dos anos de guerra, refaz-se agora e cresce na medida em
que o narrador dá lugar à ação da vontade sofrida mas livre. A resistência cria
o sentido.
D’Arrast pede aos romeiros que levantem a pedra até a sua cabeça.
E enquanto o mestre ainda soluçava, o estrangeiro atravessou a praça sob os
olhares da multidão atônita, viu ao longe a procissão e o andor, mas tomou um
desvio, ignorando os gritos do povo que lhe indicava a direção da igreja. En-
caminhou-se decidido para as baixadas pobres da vila à beira-rio: “Apressou
o passo, chegou à pracinha onde se erguia o casebre do mestre, correu para
ela, abriu a porta com o pé e, de um só golpe, jogou a pedra no centro da peça
sobre o fogo que ainda esbraseava”.
Entre o ato gratuito, tal como pensara Gide (uma obsessão do pri-
meiro Camus), e o estoicismo sem Deus, que não pode contudo ignorar a
irrupção do ethos cristão, é possível definir a perspectiva que rege este conto
como a busca de uma nova forma de vida na qual o sentido resulte da pura
solidariedade.
Volto ao conceito amplo de graça como gratuidade. No mulato pe-
nitente a graça levara à gratidão, pois era uma relação vertical com a divinda-
de benfazeja. No estrangeiro, a graça se cumpre horizontalmente: é a hora de
abertura à transcendência do outro, semelhante e próximo, apesar de tantas
diferenças: de nação, de raça, de classe, de profissão, de cultura enfim.
Lê-se uma das passagens dos Carnets a que Camus deu o subtítulo
de “Sem amanhã”:
O que é que eu medito de maior do que eu mesmo, e
que experimento sem poder definir? Uma espécie de
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BOSI, Alfredo. Camus na festa do Bom Jesus. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 49-63, maio de 1998.

caminhada difícil para uma santidade da negação –


um heroísmo sem Deus – o homem puro enfim. Todas
as virtudes humanas, incluindo a solidão em face de
Deus. O que é que faz a superioridade de exemplo (a
única) do cristianismo? O Cristo e seus santos – a
procura de um estilo de vida. Essa obra contará tan-
tas formas quantas forem as etapas no caminho de
uma perfeição sem recompensa. O Estrangeiro é o
ponto zero. Idem o Mito. A Peste é um progresso, não
do zero até o infinito, mas na direção de uma com-
plexidade mais profunda que falta definir. O último
ponto será o santo, mas ele terá seu valou aritmético
– mensurável como o homem1.
Mas essa perfeição sem recompensa, essa medida sobre-humana de
um homem (Nietzsche ainda e sempre), essa virtude estóica que comunistas e
cristãos tantas vezes censuraram em Camus por julgá-la orgulhosa e solitária,
é convidada, neste encontro brasileiro, a descer ao rés-do-chão. Na casa do
mestre, enquanto d’Arrast, em pé e de olhos cerrados, “saudava alegremente a
sua própria força”, o irmão do mestre lhe mostrou um lugar vazio junto à
pedra e lhe pediu:
– Senta com a gente.
O convite fecha o conto, mas não é uma frase isolada. Durante a
cerimônia noturna, quando a macumba mal começara, o mestre, a um gesto do
pai-de-santo, dissera ao estrangeiro que abrisse o corpo ao espírito do santo
que dá coragem ao combatente:
– Descruza os braços. Tu te fechas, assim não deixas
o santo baixar.
Descruzar os braços. Enfrentar o peso da necessidade. Ajudar li-
1
O trecho foi redigido vremente o outro. Sentar-se com a gente. Que mais bela experiência poderia
em 1942, sem maior
precisão de data (Ca- ter vivido em nossa vila caiçara e colonial o estrangeiro inventado pelo escri-
mus, 1964, p. 31) tor resistente Albert Camus?

Recebido para publicação em outubro/1997

BOSI, Alfredo. Camus in the Bom Jesus feast. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 49-63,
may 1998.

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BOSI, Alfredo. Camus na festa do Bom Jesus. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 49-63, maio de 1998.

ABSTRACT: This essay analyses Camus’ tale La pierre qui pousse, “The Stone UNITERMS:
that Sprouts”, included in his book L’exil et le royaume. The episode takes place Albert Camus,
literature of resistance,
in Iguape during the feast dedicated to Bom Jesus (Good Jesus), the town’s
french literature - novel.
patron saint. A French engineer, d’Arrast, having arrived in Iguape, meets a
poor Negro who has promised to bear an enormous stone with him in order to
thank for a miracle accomplished by Bom Jesus. The tale is a touching example
of literature of resistance: it was written soon after Camus’ travel to Brazil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMUS, Albert. (1957) L’exil et le royaume. Paris, Gallimard.


_______. (1964) Carnets. Janvier 1942 – Mars 1951. Paris, Gallimard.

63
WAIZBORT,
TempoLeopoldo.
Social;Classe
Rev.social,
Sociol.Estado
USP,e ideologia.
S. Paulo, Tempo Social;
10(1): Rev.maio
65-81, Sociol.deUSP, A 65-81,
S. Paulo, 10(1):
1998. R TmaioI deG O
1998.

Classe social, Estado


e ideologia
LEOPOLDO WAIZBORT

RESUMO: O texto reproduz uma aula para concurso junto ao Departamento UNITERMOS:
de Sociologia da FFLCH-USP, na qual tentei articular o tríptico classe social, Estado,
trabalho,
Estado e ideologia, tendo em mente a situação contemporânea empírica e teó-
ideologia,
rica dos três conceitos. classe,
crise.

C
lasse social, Estado e ideologia: se a idéia é pensar os três ele-
mentos conjuntamente, ou melhor, articulá-los teoricamente de um
modo mais ou menos conseqüente, sem grandes disparidades ou
fissuras, é preciso reconhecer que a tarefa parece se tornar cada
vez mais complexa. A semântica dos três conceitos se transforma no curso
dos dois últimos séculos: veja-se, apenas a título de exemplo, as transfor-
mações do conceito de Estado quando se pensa em “Estado totalitário”, ou
em “Estado do Bem-estar”. Ou quando se fala em “massa”, frente às classes
sociais.
O texto reproduz, sem
Aqui, por essas e outras razões, parece prudente escolher um alterações, prova di-
caminho, o Estado, e, a partir dele, se aproximar dos outros elementos, na dática no concurso
para professor substi-
tentativa de iluminar um pouco a todos, embora apenas fragmentariamente. tuto junto ao Departa-
mento de Sociologia
I. Para iniciar, poderíamos afirmar que uma parte considerável dos da FFLCH-USP em
18/02/1997.
Estados atualmente existentes, uma parte que inclusive compreende todos os
Estados mais desenvolvidos e parte grandemente significativa dos demais –
excluindo as ditaduras e similares que se mantêm nessa década de 1990 – se Professor do Departa-
mento de Sociologia
caracteriza por serem Estados constitucionais que possuem, em alguma medi- da FFLCH-USP

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WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
1998.

da, uma oposição institucionalizada. Falar do Estado, hoje, supõe a idéia do


“estado de direito”. Disso se poderia desenvolver uma discussão sobre o con-
ceito de democracia.
Esse Estado constitucional tem por característica possuir
mecanismos legais e de processo que organizam os conflitos que perpassam a
sociedade: tais mecanismos fazem com que esses conflitos não se tornem
explosivos, e nesse sentido os normaliza. O Estado moderno, desde o século
XVI, é uma instância implementadora da ordem. É isto, aliás, que lhe justifica
o adjetivo “moderno”: pois o próprio conceito do moderno implica, em sua
história conceitual (no que diz respeito ao Estado), a idéia da “ordem”, do fim
da guerra – civil e entre as nações – e a idéia da paz, preferencialmente da
“paz perpétua”.
Então, logo de início, podemos perceber que esse Estado
constitucional moderno tem por tarefa e principal característica a administração
dos conflitos que perpassam a sociedade. “Administração”, outras vezes
“gerenciamento” dos conflitos: é a própria linguagem que testemunha o fato
do Estado se aproximar da empresa. Voltarei a isto.
Para isso, esse Estado se organiza (por exemplo na divisão dos
poderes, na própria organização e desdobramento institucional do Estado) e
elabora procedimentos capazes de fazer com que seja possível alguma espécie
de consenso nos momentos e situações conflituosas; e é dessa possibilidade e
efetividade do consenso que esse Estado vive e se legitima: ele cria
possibilidades para a formação de um consenso1. O Estado moderno se legitima,
como disse Luhmann, enquanto procedimento.
Disso se poderia derivar um conceito mesmo de democracia (embora
se trate de um conceito acentuadamente formal): ela é aquela organização
política que se legitima através de procedimentos, institucionalizados, capazes
de produzir consenso. À idéia do estado de direito se acrescenta a do Estado
democrático. Assim, um processo de democratização de uma sociedade é um
processo de organização do Estado, em que ele se organiza tendo em vista
propiciar a possibilidade de resolução dos conflitos dessa sociedade, e isso é
também, necessariamente, um processo de criação de procedimentos adequados
à resolução desses conflitos (por isso se fala, volta e meia, sobretudo na época
da Assembléia Constituinte, que é necessário fortalecer as instituições no
Brasil: porque elas são instâncias do Estado e da sociedade capazes de resolver
problemas). Isso, é claro, varia de acordo com a especificidade histórica de
cada sociedade em questão. Notemos, à margem, que essa democracia é uma
organização racional da sociedade. Isto significa: ela engendra uma
racionalidade própria, que lhe é específica.
A questão da legitimidade desse Estado constitucional moderno
1
Por isso sempre se fala apresenta-se, assim, como um problema permanente, pois a todo instante ele
de “pacto” no Brasil: deve impedir e/ou controlar explosões oriundas desses conflitos e, de algum
“pacto social”, com ou
sem a participação do modo, normalizá-los. Caso isso não ocorra, esse Estado sofre uma crise de
Estado etc. legitimidade.
66
WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
1998.

“Crise” é um componente estrutural, pode-se dizer, do Estado


moderno. Ele nasce como um instrumento (procedimento!) de evitação da crise,
como tentativa de contornar a guerra civil. “Crise” é “desordem”, e o Estado é
instância implementadora de “ordem” 2.
“Legitimidade”, por sua vez, é um conceito absolutamente – o que
significa aqui: radicalmente – moderno, gerado e atribuído de sentido no
moderno (cf. Blumenberg, 1988).
Administrar os conflitos da sociedade significa conservar a sociedade
(se se quiser: um sistema altamente complexo), evitando que ela se desintegre
ou, em outras palavras: garantir sua reprodução. Na medida em que o Estado
não é capaz de resolver os conflitos, ele perde sua legitimidade, ou em outros
termos, a questão da legitimidade desse Estado torna-se um problema.
II. Se assim é, os conflitos que perpassam a sociedade atual
necessitam ser bem conhecidos, caso se queira compreender a natureza dessa
sociedade e do Estado que lhe é correlato. Segundo Habermas, os conflitos
existentes na sociedade atual são conflitos de classe (Habermas, 1983, p. 222-
223). Isso subentende que a sociedade moderna é uma sociedade estruturada
em classes. Voltaremos a esse ponto mais à frente.
III. Diz Habermas, ao discutir os problemas de legitimação do Estado
moderno:
Não é particularmente surpreendente que os conflitos
de classe estejam na base dos diversos fenômenos de
ilegitimação; a organização estatal da sociedade é
a mais importante condição de uma estrutura de
classe no sentido marxiano. Naturalmente, os
conflitos de legitimidade não são regularmente
2
travados em termos de conflito econômico, mas sim O que nos leva a pen-
sar no “capitalismo
no plano das doutrinas legitimadoras. Tais conflitos desorganizado” de
de legitimidade devem se ligar às definições de que falava Offe. Em
identidade coletiva (Habermas, 1983, p. 223)3. que medida o “desor-
ganizado” é perda da
Pergunta: é a classe, hoje, definidora de identidades coletivas? Em ordem, e, portanto, o
que medida, ou até aonde? Não foram as classes enfraquecidas na sua qualidade primeiro passo para a
desordem, vale dizer
de definidoras por excelência de identidades coletivas? Ou: quais são, hoje, as “guerra civil”? Pois
principais estratégias sociais na definição das identidades coletivas? nós vivemos no es-
Além disso, a partir dessas doutrinas legitimadoras, e dessas tado de guerra civil,
conforme mostrou,
definições de identidade coletiva, nos acercamos de outro ponto do nosso tema, de modo brilhante,
a ideologia. Pois ideologia é (embora não seja só) essa doutrina legitimadora, Enzensberger. O Es-
tado como implemen-
que se situa no nível das idéias, no nível da consciência. Esse ponto será tador da ordem é o
discutido em outro momento. implementador da
IV. Tentemos caracterizar, sumariamente, o Estado moderno: paz – a paz perpétua
sempre esteve em
monopólio do uso legítimo da violência, ordem administrativa e jurídica regida seus planos, mas nun-
por estatutos modificáveis, administração centralizada e racional, ca foi alcançada –,
mas o mundo é um
territorialidade etc. (como aprendemos com Weber). Habermas diz do Estado mundo sem paz.
moderno (visto do interior), que ele 3
Grifos meus.

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WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
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pode ser entendido como o resultado da diferencia-


ção de um sistema econômico, que regulamenta o
processo produtivo através do mercado, ou seja, de
modo descentralizado e apolítico. O Estado organiza
as condições nas quais os cidadãos, enquanto
indivíduos privados que atuam de modo con-
correncial e estratégico, explicitam (realizam) o
processo produtivo (Habermas, 1983, p. 229).
O próprio Estado só produz de modo subsidiário; e
isso em favor de empresários para os quais alguns
investimentos funcionalmente necessários não são
mais ou não são ainda rentáveis. Em outras palavras:
o Estado desenvolve e garante o direito privado
burguês, o mecanismo monetário, determinadas
infra-estruturas, ou seja, em suma, no conjunto, as
premissas para a existência de um processo
econômico despolitizado (...). Já que não é o Estado
a agir como capitalista, ele deve conseguir recursos
necessários à sua ação a partir de rendas privadas.
O Estado moderno é o Estado fiscal (Schumpeter)
(Habermas, 1983, p. 229).
Há, pois, uma relação de distinção e complementação entre Estado
e sistema econômico: o Estado é, ao mesmo tempo, “excluído e dependente da
produção capitalista”. Ele é, como disse Claus Offe, “obrigado a criar as
condições e premissas formais e materiais para que a produção e a acumulação
possam continuar, e para que a continuidade delas não se interrompa por causa
dos fenômenos de instabilidade material, temporal e social, que são imanentes
à socialização (anárquica) do processo capitalista” (Offe apud Habermas, 1983,
p. 230).
É por essa razão que uma das tarefas primordiais do Estado moderno
é refrear os conflitos imanentes ao processo econômico, levando-os para o
âmbito do sistema político, que é o espaço institucionalizado de discussão e
de busca do consenso, ou seja, da resolução de conflitos. Estado moderno
implica, cada vez mais, em “sociedade civil” e “esfera pública”. Sua legitimi-
dade enquanto procedimento se ancora nelas. São espaços de regulação e con-
trole do Estado, e também de energização, vitalização, revitalização.
Nisso está delineada a imagem do Estado social, que deve impedir
“os efeitos disfuncionais secundários do processo econômico, tornando-os
inócuos para o indivíduo” (Habermas, 1983, p. 234). Isso se dá pelas garantias
e direitos oferecidos pelo Estado: basicamente a previdência e a educação.
(Isso já é visível desde as leis do final do séc. XVIII na Inglaterra, como a
Speenhamland [1795], Poor Laws etc. [cf. Polanyi, 1980; Marshall, 1967]).
Assim, à idéia do Estado de direito e do Estado democrático se acrescenta a
idéia do Estado do Bem-estar.
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Cito mais uma vez Habermas:


As três grandes tarefas através das quais se avalia
hoje a capacidade de um governo são (1) uma política
conjuntural que garanta o crescimento econômico;
(2) uma ação orientada para as necessidades
coletivas e que influencie a estrutura produtiva; (3)
e as correções que devem ser efetuadas na rede das
desigualdades sociais. O problema não está no fato
de que tais tarefas se imponham ao Estado e que ele
seja obrigado a assumi-las programaticamente; o
conflito, no qual se pode ver uma fonte dos problemas
de legitimação, reside antes na necessidade de que o
Estado realize todas essas tarefas sem quebrar as
condições funcionais de uma economia capitalista,
ou seja, sem tocar na relação de complementaridade
que exclui o Estado do sistema econômico, no
momento mesmo em que o torna dependente da
dinâmica de tal sistema (Habermas, 1983, p. 235).
Resumidamente, em outras palavras o dilema é este: a partir de
quando e até onde deve o Estado intervir?
Essa é uma questão central, que se coloca tanto ao nível da teoria
como ao nível da prática. E se coloca a todos nós: pois o modo como o Estado
encara e resolve (ou tenta resolver) esse problema atinge a cada indivíduo.
Emprego e desemprego, previdência social, saúde, educação: tudo isso diz
respeito e atinge à todos.
V. Mais atrás havia afirmado, citando Habermas, que os conflitos
que perpassam a sociedade contemporânea são conflitos de classe. Vejamos
isto um pouco mais de perto.
Marx, num texto clássico (O Capital, cap. 52), definiu que na
sociedade capitalista havia três grandes classes: a classe dos capitalistas, a
classe dos assalariados e a classe dos proprietários da terra. Poderíamos, hoje,
afirmar que essas três classes são as classes da sociedade contemporânea?
Ou, nos termos já mencionados, são elas os parâmetros definidores
de identidades coletivas?
Responder “sim” significa que consideramos a sociedade atual como
uma sociedade capitalista; em outras palavras, em que predomina o modo de
produção capitalista. É claro que o capitalismo hoje não é tal qual o capitalismo
no tempo de Marx; mas aceitar que vivemos num capitalismo avançado
significa que as estruturas e formas básicas do capitalismo não somente ainda
estão presentes na sociedade hoje, como ainda a organizam e determinam.
Muito simplificadamente, vamos considerar que essa sociedade capitalista se
caracteriza por uma oposição irreconciliável entre capital e trabalho – oposição
que existe porque o capital expropria o trabalho, ou em outras palavras, o
capital tira do trabalho mais do que lhe dá. Responder “sim” significa, então,
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WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
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que podemos caracterizar as classes da nossa sociedade através dessas três


grandes categorias de “assalariados”, “capitalistas” e “proprietários de terra”.
Responder “não” significa que consideramos que a sociedade atual
não é uma sociedade capitalista, mas sim uma sociedade que poderíamos
designar, digamos, como sociedade industrial. Essa sociedade é fundamen-
talmente diferente da sociedade capitalista porque ela atingiu um patamar de
desenvolvimento substancialmente distinto: o grande incremento da indústria
no nosso século, assim como o caráter altamente planejado de todos os aspec-
tos da economia, fazem com que aquela oposição irreconciliável entre capital
e trabalho torne-se não mais irreconciliável, mas passível de uma convivência
mais calma e até mesmo harmoniosa: “amaciamento” e “enfraquecimento” da
luta de classes. O Estado industrial poderia ser caracterizado por uma socie-
dade em que capital e trabalho, embora distintos, têm interesses comuns, e
por isso trabalham de “mãos dadas”. O que não significa excluir as zonas de
conflito.
Mesmo posta nesse nível de simplificação, essas respostas não nos
podem satisfazer. Isso porque a sociedade moderna conjuga aspectos de uma
sociedade capitalista avançada com aspectos de uma sociedade industrial. Seria
o caso de lembrar a sugestão de Adorno: fazer a crítica de uma com a outra, e
vice-versa. Aceitar que a sociedade é uma sociedade industrial que superou a
oposição entre capital e trabalho é afirmar que chegamos a uma harmonia
entre capital e trabalho, em que cada um dá ao outro o que lhe é direito, e que,
portanto, não há conflito. Todos nós podemos, com nossa experiência mais
restrita, perceber que a sociedade contemporânea não conseguiu, e está muito
longe de chegar a uma tal harmonia. Mesmo nos países mais desenvolvidos
há conflitos, aos quais cabe (como vimos) ao Estado propiciar solução. Por
outro lado, se a nossa sociedade é substancialmente uma sociedade capitalis-
ta, isso supõe que a oposição irreconciliável entre trabalho e capital persiste.
Mas para pensarmos capitalismo hoje não podemos deixar de lado a realidade
que tomou corpo com o Estado do Bem-estar social: um Estado, típico do
pós-guerra nos países desenvolvidos, que operou uma pacificação no conflito
das classes, através de uma política que procurava garantir alguns pontos bá-
sicos que vimos ser o objetivo do Estado moderno: garantia o trabalho, o
tempo livre e a segurança de cada um dos indivíduos. Na verdade, podemos
ver nesse Estado uma imagem desenvolvida daquele Estado do final do séc.
XVIII, que garantia pela primeira vez certos benefícios aos trabalhadores. Se
pensarmos assim, esse Estado poderia ser a forma atual da sociedade capita-
lista. O Estado moderno implementa uma série de benefícios que tornam me-
nores as disparidades entre os indivíduos: nos Estados mais desenvolvidos,
todos têm (ao menos potencialmente) casa, educação, saúde etc. Se todos pos-
suem esses “bens”, aquele conflito irreconciliável torna-se cada vez menos
violento.
Mas, ao mesmo tempo, há elementos que nos mostram imedia-
tamente que o conflito persiste, e com intensidade. Uma das coisas que nos
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WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
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permite constatá-lo do modo mais pungente é o desemprego. No esquema


capitalista clássico, era necessário ao capital a existência de um exército de
reserva, que impedia que o custo do trabalho (da força de trabalho) subisse
além dos interesses do capital: o capitalista sempre podia despedir seu
empregado e contratar outro, pagando-lhe menos. Assim, já na configuração
clássica do capitalismo, havia um grupo significativo de indivíduos formado
por desempregados. Hoje, esse grupo não só se mantém, como se amplia e
tende a se ampliar cada vez mais.
O relatório “O emprego no mundo 1996-1997” da OIT, divulgado
no final de novembro de 1996 (cf. O Estado de S. Paulo, 26/11/96, p. B14),
assinala que 30% de toda a mão-de-obra mundial está à margem do mercado
de trabalho. Isto significa que há hoje, no mundo, cerca de 1 bilhão de desem-
pregados. Em São Paulo, uma pesquisa Seade-Dieese afirmou que o índice de
desemprego na Grande São Paulo cresceu 7,6% entre dezembro de 95 e de-
zembro de 96. Em média, 15,1% da população economicamente ativa perma-
neceu sem emprego ao longo do ano.
Isto parece se relacionar com o enfraquecimento do Estado do Bem-
estar que, com sua função redistributiva, parecia engendrar, ou ao menos
pretendia envolver, a esfera do trabalho em um mundo tranqüilo. (Não estou
afirmando, é claro, que tal Estado tenha se consolidado no Brasil, ao citar os
números de São Paulo, e nem no mundo como um todo.)
Um ponto importante parece dizer respeito ao envelhecimento do
trabalho enquanto categoria-chave explicativa.
No curso do século passado e início deste, o trabalho tornou-se
uma categoria fundamental e determinante para a compreensão do mundo, do
mundo moderno. Ele se tornou “a substância da vida da sociedade burguesa”
(Löwith, 1978, p. 284), e por isso ele foi objeto da reflexão – em Hegel, Marx,
Nietzsche, Kierkegaard etc.
H. Arendt, por sua vez, afirmou já há quase meio século: “A era
moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho, e resultou na
transformação efetiva de toda a sociedade em uma sociedade operária. (...) O
que se nos depara (...) é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores
sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente nada
poderia ser pior” (Arendt, 1981, p. 12-13). Entretanto, só mais tarde esse
diagnóstico, proferido na década de 1950, foi apropriado pela sociologia.
Assim, C. Offe vai afirmar que, neste último quarto do século, o
“poder determinante abrangente do fato social trabalho (assalariado) e de suas
contradições (...) se tornou sociologicamente questionável” (Offe, 1989, p. 171).
Na estrutura e no processo da sociedade, o trabalho e os trabalha-
dores não surgem mais, como antes, como um princípio fundamental que “or-
dena” ou “determina” ou “organiza” a sociedade.
Trata-se da implosão da categoria do trabalho. A que se deve isto?
E em que medida isto afeta o Estado e as classes?
Um dos pontos que explica a perda da centralidade da categoria do
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trabalho, como diz Offe, é o fato de que a esfera da produção parece estar
perdendo sua importância enquanto determinante na estrutura da sociedade.
O setor secundário parece diminuir suas necessidades de trabalhadores,
enquanto o setor terciário é o setor que se amplia.
Veja-se o exemplo norte-americano, no que diz respeito ao setor
industrial: nos EUA, segundo previsões levantadas por Andre Gorz, a indústria
fornecerá no final do século emprego para 10% da população ativa, o que
significa que os salários distribuídos pelo setor secundário atingem apenas
10% da população ativa (cf. Gorz, 1990, p. 213). E os outros 90%?
O setor terciário surge como grande empregador, e, portanto, como
grande distribuidor de salários. Gorz se pergunta: mas onde se cria valor nesses
serviços do setor terciário? (cf. Gorz, 1990, p. 213).
A isto acresce o fato de que a criação de empregos no setor terciário
é sobretudo criação de empregos de baixa e baixíssima remuneração (cf. Gorz,
1990, p. 213).
A pesquisa mencionada Seade-Dieese atestou, para a Grande São
Paulo, que a maioria dos serviços criados no período são empregos que reque-
rem pouquíssima ou nenhuma qualificação e são muito mal remunerados, além
de se caracterizarem por alta rotatividade: são mais temporários que fixos.
E o “trabalho”, as categorias que ele implica e nas quais ele se dei-
xa circunscrever não se aplicam tão clara e adequadamente ao terciário como
ao secundário. A identidade que o trabalho classicamente fornecia dizia res-
peito sobretudo ao trabalho industrial, e frente à “prestação de serviços” ela
se torna rala e, ao mesmo tempo, opaca. O trabalho torna-se como que “difuso”.
Eu cito Claus Offe:
Os critérios de racionalidade desenvolvidos para a
utilização e controle da força de trabalho na
produção capitalista de mercadorias só podem ser
transferidos para a ‘produção’ de ordem e norma-
lidade realizada pelos serviços dentro de estreitos
limites (...) É esta diferenciação dentro do conceito
de trabalho que (...) parece constituir o ponto de
apoio mais importante do argumento segundo o qual
não se pode mais falar de um tipo de racionalidade
basicamente unificado que organize e governe toda
a esfera do trabalho (Offe, 1989, p. 180) .
Weberianamente, com o processo de diferenciação no interior da es-
fera do trabalho temos o surgimento de sub-esferas que engendram legalidades
próprias: em outros termos: uma racionalidade própria, que no caso significa
uma racionalidade outra do que a que regulava o conceito de trabalho anterior.
Temos, então, um conflito de racionalidades diferentes no interior do mundo do
4
Sobre a ambigüida- trabalho. Isto resulta na sua fragmentação. É ainda neste contexto que se pode
de do trabalho, cf.
Waldenfels (1990, afirmar que o trabalho torna-se crescentemente ambíguo4.
p. 151 ss.). Um outro ponto relativo ao envelhecimento do trabalho diz respei-
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to ao enfraquecimento da ética do trabalho.


1) perda do poder das tradições religiosas e seculares que
prescreviam o trabalho como “dever”.
2) hedonismo consumista crescente.
3) desvalorização do “fator humano” do trabalho: criatividade,
experiência, conhecimento.
4) rompimento do nexo entre trabalho e vocação e sua distinção
crescente.
5) a esfera do trabalho serve cada vez menos como parâmetro para
outras esferas da vida.
6) diminuição das horas de trabalho na vida das pessoas e
conseqüente surgimento e desenvolvimento de outros interesses.
7) a perda da importância e do papel central do trabalho relativizam
seu papel como elemento de identidade social e individual.
8) o crescimento do desemprego, não conjuntural, mas estrutural, o
torna uma experiência normal e comum, e não mais exceção.
O resultado disto tudo é que o trabalho é um dos principais centros
de conflito e, portanto, de tarefas regularizadoras para a manutenção da legi-
timidade do Estado moderno – ao lado da pobreza, da devastação do meio
ambiente e da desigualdade. Note-se, de passagem, que estes quatro grandes
conflitos não se deixam subsumir simplesmente às visões costumeiras de classe
social.
Como disse Offe, a “consciência social” não se articula mais como
“consciência de classe” (Offe, 1989, p. 194).
Ou, para falar nos termos já mencionados: Classe não é mais
fundamental na formação da identidade5.
No mundo contemporâneo há uma redefinição de “classe” paralela
e concomitante à redefinição de “trabalho” apontada por Offe (i.e., a perda da
racionalidade central e única). Em outros termos: se o trabalho perde o papel
de categoria central, a classe acompanha homologamente esse movimento.
Mas: as diferenças de classe se convertem, em parte – numa parte e num aspecto
importante –, a meu ver, na diferença entre os que têm e os que não têm trabalho:
insiders e outsiders.
A crise do Estado do Bem-estar ou keynesiano significou historica-
mente o descomprometimento do Estado com o compromisso do pleno em-
prego. Isto ocorreu na Europa e nos EUA na década de 70. Parece não ser
politicamente possível nem ecologicamente desejável que se possa ressuscitar
a idéia do pleno emprego. Assim, o modelo do Estado de Bem-estar, que dis-
tribuía a força de trabalho e a renda, torna-se um problema: crise de legitimi-
dade do Estado moderno.
A distribuição do trabalho é um desafio frente aos grupos/segmentos
“marginalizados”: os imigrantes, as mulheres. São eles os afetados, inicial-
mente, com o decréscimo da oferta de emprego (na França, Le Pen e seus
aliados querem punir quem fornecer trabalho a estrangeiros). 5
Cf., p. ex., Beck (1986).

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Neste ponto reencontramos as afirmações de Gorz acerca do tipo


de empregos que são gerados no setor terciário, pretensa saída para os proble-
mas (consideráveis) para o Estado gerados com o desemprego. Diz Gorz:
Os ‘novos empregos terciários’ significam essen-
cialmente obrigar milhões de homens e mulheres a
disputarem-se o privilégio de vender seus serviços
pessoais, freqüentemente abaixo do salário horário
mínimo, àqueles, cada vez menos numerosos, que
conservam um emprego bem pago (Gorz, 1990,
p. 213).
Gorz afirma ainda que, ao final do século, 75% da população ativa
é composta por trabalhadores precários ou marginais:
Um membro do Instituto de Ciências Econômicas e
Sociais (WISO) da União dos Sindicatos Alemães
(DGB), Wolfgang Lecher, considera plausível a
seguinte estrutura da população ativa: 25% de
trabalhadores qualificados permanentes e pro-
tegidos; 25% de assalariados pouco qualificados,
empregados de maneira precária por empresas de
sub-contratação e de serviços; 50% de marginais
trabalhando apenas ocasionalmente ou raramente
(Gorz, 1990, p. 217, nota).
Uma tal estruturação é um foco constante de crise de legitimidade
para o Estado moderno, que se quer universalizante. Sua pretensão de
universalidade esbarra imediatamente com os efeitos perversos de desigual-
dade (desigualdade potencialmente, se não realmente, enorme) dessa distri-
buição.
Afirmação semelhante é feita por C. Deutschmann, do Institut für
Sozialforschung de Frankfurt-junto-ao-Main: “O que parece estar se desen-
volvendo como o problema social dominante do futuro não são os conflitos
trabalhistas gerados pela ‘subordinação real’, mas uma escassez geral de tra-
balho, a impossibilidade de basear a segurança social no trabalho” (apud Offe,
1989, p. 88).
O resultado disto é: uma divisão da sociedade entre trabalhadores
plenos e desempregados e sub-empregados, excluídos da sociedade do trabalho.
A pergunta é: esta bipartição é a nova estrutura de classes do Estado pós-
estado do Bem-estar?
Ligado a isto, um outro ponto significativo na fragilizada base de
legitimidade do Estado: o problema da distribuição da renda.
A concentração de renda parece ser o destino que acompanha a
bipartição do trabalho entre aqueles que o possuem e aqueles que se acham
dele privados. Veja-se o que diz Paul Krugman, um economista do MIT:
A impressão popular de que a primeira geração do
pós-guerra passou por uma imensa melhoria nos
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WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
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padrões de vida, ao passo que a segunda não,


permanece correta; o sonho americano pode não
estar morto, mas certamente já não é o que era. /
Para completar, enquanto os trabalhadores, como
grupo, partilharam plenamente dos ganhos de
produtividade, não o fizeram de maneira eqüitativa.
A evidência esmagadora de um imenso aumento na
desigualdade de renda nos EUA nada tem que ver
com índices de preço e, portanto, não é afetada pelas
recentes revelações estatísticas. Ainda é verdade que
famílias do quinto e último estrato, que tinham 5,4%
da renda total em 1970, tinham apenas 4,2% em 1994.
No mesmo período, a participação dos 5% no topo
da pirâmide de renda aumentou de 15,6% para
20,1%. / Também é verdade que corporações, que
costumavam ganhar até 35 vezes mais que seus
empregados, agora ganham 120 vezes mais. O
padrão de vida da maioria das pessoas pode ter
crescido em termos absolutos, mas essas disparidades
de crescimento ainda tornam crescentemente
questionável se faz sentido pensar em nós mesmos
como sociedade de classe média. E, apesar das
revisões, não há muita dúvida de que a incidência de
pobreza realmente acentuada nos EUA aumentou,
não diminuiu, na geração passada (Krugman, 1997).
O que este economista retrata são as diferenças do Estado do Bem-
estar em seu apogeu e seu esgotamento. O Estado vê-se confrontado com
problemas graves, na medida em que o pretenso pleno emprego não pode
mais ser pretendido – dados os altos custos que implicaria.
Vejamos um outro exemplo que conjuga a questão da distribuição,
concentração da renda e desenvolvimento tecnológico e reitera as afirmações
de Andre Gorz. Edward Amadeo, em um texto publicado em dezembro de
1996 intitulado “Tecnologia e distribuição de renda”, afirma: “Há fartas
evidências de que na Europa Ocidental e nos EUA tem crescido a disparidade
de renda entre trabalhadores com maior nível de instrução e com menor nível
de instrução. Dito de outra forma, o retorno da educação tem crescido,
premiando os mais educados. Essa tendência tem um efeito distributivo
perverso à medida que, mesmo em países em que o acesso à educação é
igualitário, os filhos de famílias pobres são em geral menos educados que os
filhos de famílias ricas. Logo, o aumento da disparidade entre educados e
menos educados piora a distribuição de renda” (Amadeo, 1996).
A diferença entre trabalhadores com maior nível de instrução e
trabalhadores com menor nível de instrução se reproduz a seguir como a
diferença entre trabalhadores e não-mais-trabalhadores, pois que perderam
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WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
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suas possibilidades de inserção no mercado de trabalho em função das razões


apontadas.
O Estado social propiciou aos trabalhadores um certo rendimento
que permitia sua subsistência, assim como lhes forneceu previdência social e
educação. Mas ele não pôde garantir o direito ao trabalho, porque isso
significaria que todos poderiam trabalhar e, com isso, romper-se-ia o exército
de reserva. (A questão não é, como poderia parecer, que não haja trabalho
para todos, pois poder-se-ia simplesmente fazer com que todos trabalhassem
menos.) Hoje, um dos pontos mais conflituosos que podemos detectar na so-
ciedade é o direito ao trabalho – ou, formulado em outro ponto, a questão
daqueles que não possuem trabalho. Nessa questão, o Estado é chamado ao
palco.
Com a revolução eletrônico-tecnológica dos últimos anos, os
processos de trabalho foram (e se não foram podem ser) e estão sendo
modificados grandemente. Hoje, por isso, é possível uma grande economia de
trabalho, em função das máquinas. Com isso, tendencialmente pode-se esperar
uma diminuição do número de empregados, e, conseqüentemente, um aumen-
to dos desempregados. Nessa sociedade, o conflito entre aqueles que não tem
trabalho e a busca de um trabalho que lhes é negado assume um papel de
destaque.
Temos assim duas classes: ocupados e desocupados. Aqueles são
os que estão ligados a um núcleo produtivo, estes os que estão excluídos da
produção, marginalizados, excluídos (cf. Habermas, 1985, p. 70): como diz
Gorz, a “não-classe dos não-trabalhadores”.
O relatório “O emprego no mundo 1996-1997” da OIT também
chama a atenção para esse mesmo fenômeno, a crescente desigualdade salarial:
poucos empregados ganham mais, enquanto a maioria ganha menos.
O desenvolvimento tecnológico propicia a substituição de
trabalhadores menos qualificados por trabalhadores cada vez mais qualificados
– vale dizer, que obtiveram uma formação profissional através de estudo. Se
efeitos distributivos perversos são perceptíveis em nações onde o acesso à
educação é universalizado, o que pensar em nações, como o Brasil, onde a
educação é um privilégio?
Em todos estes pontos nos confrontamos com problemas de
legitimação do Estado moderno.
Retomemos, uma vez mais, C. Offe:
Uma vez que não existem alternativas viáveis para
‘trabalhar’ e ‘viver’ do trabalho, o ‘excedente’ da
força de trabalho continua a se acumular, em um alto
e sempre crescente grau, exatamente no lugar em que
não pode ser utilizado: no lado da oferta do mercado
de trabalho. Assim, as instituições do Estado de bem-
estar destinadas a dar apoio aos desempregados, aos
que ainda não foram empregados e aos aposentados
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WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
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antes do tempo se encontram diante de problemas


fiscais contínuos, e fincando-se os alicerces para um
conflito pelo menos latente entre, de um lado, em-
pregados e empregadores – que são oprimidos res-
pectivamente com os crescentes impostos e com as
elevadas taxas de previdência social – e, de outro, os
desempregados (Offe, 1989, p. 125)5.
Se assim é, a clivagem do conflito de classe entre trabalho e capital
está transformada. Agora, trabalho e capital solidarizam-se porque têm inte-
resses comuns – menos impostos e menor carga tributária e previdenciária –,
que estão em contraposição aos interesses dos que não têm emprego.
Em meio a isto, as finanças do Estado desmoronam. O que leva a
outro ponto de crise na sua legitimação.
Os problemas do trabalho e do emprego e desemprego levam a um
questionamento do modelo keynesiano do Estado de Bem-estar, ao mesmo
tempo em que apresentam problemas a serem resolvidos pela democracia e
por uma sociedade democrática.
Em relação à capacidade do Estado em gerenciar os problemas que
são postos pela questão do trabalho, poderíamos perguntar, com Habermas
(cf. Habermas, 1985, p. 148), em que medida o Estado, por meio de medidas
legais e burocráticas, é capaz de trazer, proporcionar e garantir novas condições
de vida?
Como mostrou Offe, estado de direito, estado democrático e estado
do bem-estar não se harmonizam pura e simplesmente, senão que dão mar-
gem e espaço a inúmeras tensões, que temos de elaborar teoricamente e en-
frentar praticamente. Os limites e as vantagens desses três estados estão pos-
tos para a reflexão; até onde vai e até onde deve ir o estado democrático, e o
mesmo em relação ao estado de bem-estar, são questões que estão na ordem
do dia.
A definição do papel do Estado passa, portanto, por uma definição
das suas atribuições e limites. A questão do trabalho é aqui um desafio, se
pensarmos nas alternativas frente ao problema da distribuição da renda/
distribuição social da riqueza. Há alternativas mais conservadoras, tais como
o imposto de renda negativo, que garante uma renda mínima; e alternativas
mais transformadoras, como a que garante um trabalho mínimo, que por sua
vez garante a participação na produção e conseqüente distribuição social da
riqueza (Gorz).
Se o Estado está envolvido em problemas de legitimação, o problema
da justiça distributiva está fincado em seu âmago, pelo menos desde que se
começou a falar em estado de direito, estado democrático e estado do bem-
estar. Se assim é, um dos grandes desafios do Estado contemporâneo é a ques-
tão do trabalho, que engendra conflitos que põe a sua legitimidade em foco:
como distribuir trabalho e as riquezas oriundas dele?
Com isso, a questão do Estado se articula também com a questão 5
Grifo meu.
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WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
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da classe: parece que haveria um remanejo da própria idéia de classe, e a cisão


entre trabalhadores e não-trabalhadores é, hoje, mais candente do que um con-
flito entre, digamos, burguesia e proletariado. O que nos leva a indagar, se-
guindo Koselleck, se não há uma transformação na semântica de “classe” na
contemporaneidade.
Todas essas transformações indicam-nos que também em relação
às classes talvez tenha havido transformações. Por isso, a discussão das classes
na sociedade contemporânea é um dos importantes temas da pesquisa
sociológica, em que convivem interpretações que vão da reprodução do
esquema de Marx até a afirmação de que não há mais classes.
Nisso há também que assinalar um novo fenômeno, típico dos
últimos anos: os novos movimentos sociais. Aglutinados em torno de
necessidades, interesses e ideais comuns, indivíduos passaram a se organizar
em movimentos reivindicatórios que antes não eram sequer supostos. Os
movimentos de mulheres, homossexuais, minorias em geral, ecológico etc.
dão disto testemunho eloqüente.
E, mais que classes, são eles que articulam definições de identidades
coletivas. E, portanto, são eles que se põem como inquiridores da legitimidade
do Estado contemporâneo e demandantes de suas políticas.
Esses novos movimentos sociais aparecem como instrumentos de
repolitização do domínio público e de revitalização da esfera pública e da
sociedade civil.
Os novos movimentos parecem exigir, em última instância, uma
redefinição dos procedimentos do Estado moderno, em um sentido que parece
fortalecer a idéia de democracia. Mas são eles uma tendência forte o suficiente?
Segundo Habermas, é justamente nos interstícios entre sistema e
mundo da vida que se desenvolvem os novos potenciais de resistência,
emancipação e protesto nas sociedades avançadas:
Nas sociedades desenvolvidas do ocidente desen-
volveram-se conflitos nas duas últimas décadas [ele
escreve em 1981, LW] que em muitos aspectos se des-
viam do padrão de conflito em torno da distribuição,
que o Estado social institucionaliza. Tais conflitos
já não se produzem nos âmbitos da reprodução ma-
terial, já não se canalizam através de partidos e as-
sociações, nem tampouco podem ser apaziguados
recorrendo a compensações conforme o sistema. Os
novos conflitos surgem antes em âmbitos da repro-
dução cultural, da integração social e da socializa-
ção; desenvolvem-se em formas de protesto sub-
institucionais, em todo caso extra-parlamentares; e
no déficit subjacente se reflete uma coisificação dos
âmbitos de ação estruturados comunicativamente, ao
qual não se pode fazer frente através dos meios di-
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WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
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nheiro e poder [isto é, dos sistemas economia e políti-


ca, LW]. Pois não se trata primariamente de com-
pensações que o Estado social possa outorgar, mas
sim da defesa e restituição de formas de vida em pe-
rigo ou da implementação de formas de vida refor-
madas. Em suma, novos conflitos não surgem em tor-
no de problemas de distribuição, mas sim em torno
de questões suscitadas por uma gramática das for-
mas de vida (Habermas, 1988, p. 576).
Habermas tem em vista os movimentos ecológico, antinuclear, pa-
cifista, feminista, homossexual; as experiências de vida comunal, rural, esti-
los de vida alternativos; proliferação de seitas religiosas, grupos de auto-aju-
da etc.
Entretanto, ao mesmo tempo, este diagnóstico de 1981 parece
subestimar os já mencionados conflitos distributivos que perpassam o Estado
moderno.
Resta abordarmos, finalmente, a questão da ideologia. Nas
sociedades capitalistas avançadas os conflitos políticos e econômicos são
diluídos através de mecanismos de alienação que transformam o indivíduo em
cliente das burocracias estatais dominantes. Diz Habermas:
As conseqüências que resultam da institucionaliza-
ção de um modo alienado de participação política
se deslocam até o papel de cliente; assim como as
cargas da normalização do trabalho alienado se des-
locam até o papel do consumidor (Habermas, 1988,
p. 515).
Ambas as alienações são compensadas com valores economicamente
produzidos. O problema é como formular a questão da ideologia de modo
conseqüente com as formulações precedentes. Se se aceita o que foi dito, é
preciso então conceder a Habermas a precedência de sua formulação a esse
respeito:
No lugar da ‘falsa’ consciência aparece hoje a
consciência fragmentada, que evita o esclarecimento
acerca do mecanismo da reificação. Só com isso são
preenchidas as exigências de uma colonização do
mundo da vida: os imperativos dos subsistemas
autônomos, assim que eles são despidos de seu véu
ideológico, invadem de fora o mundo da vida (...) e
forçam a assimilação. Mas as perspectivas dispersas
da cultura natal não se deixam coordenar a tal ponto
que o jogo das metrópoles e do mercado mundial
possa ser descoberto a partir da periferia. / Uma
teoria da reificação capitalista-tardia, reformulada
nos conceitos de sistema e mundo da vida, necessita
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WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
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portanto de complementação mediante uma análise


da modernidade cultural, que toma o lugar de uma
superada teoria da consciência de classe. Em vez de
servir à crítica da ideologia, ela deveria esclarecer
o empobrecimento cultural e a fragmentação da
consciência cotidiana; ao invés de perseguir os
traços dispersos de uma consciência revolucionária,
ela deveria investigar as condições para um
reacoplamento da cultura racionalizada com uma
comunicação cotidiana que necessita das tradições
vitais (Habermas, 1988, p. 522).
Habermas critica o fato de que o mundo da vida se subordina (é
claro que involuntariamente) aos imperativos colonizadores do sistema:
1) os elementos prático-morais são expulsos das esferas da vida
privada e pública;
2) a vida cotidiana se monetariza e burocratiza;
3) tudo é subordinado aos imperativos do sistema econômico e
administrativo.
4) o mundo da vida, colonizado pelo sistema, fica com sua
reprodução simbólica ameaçada.
A saída habermasiana é, portanto, a descolonização do mundo da
vida, a reconquista de sua soberania. O que não deixa de parecer, aos meus
olhos, como um reencantamento do mundo.

Recebido para publicação em agosto/1997

WAIZBORT, Leopoldo. Social class, State and ideology. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
9(2): 65-81, may 1998.

UNITERMS: ABSTRACT: This text reproduces a lecture given in the scope of an examination
State, at the Sociology Department of the FFLCH-USP. For the presentation I have
work,
tried to articulate the three concepts “social class”, “State” and “ideology” by
ideology,
class, taking into consideration their actual empirical and theoretical situation.
crisis.

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WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
1998.

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81
PAIVA,
TempoRita. ASocial;
constituição do Eu:
Rev. os imperativos
Sociol. USP, S.daPaulo,
interpretação
10(1):e 83-104,
a perda demaio
sentido.
deTempo A Sociol.
1998.Social; Rev. R TUSP,
I G O
S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.

A constituição do Eu
os imperativos da interpretação
e a perda de sentido
RITA PAIVA

À Profa. Heloísa Fernandes

RESUMO: Este artigo visa a abordar a constituição social do indivíduo. Neste UNITERMOS:
viés, pretende tematizar as exigências necessárias para que o Eu possa per- indivíduo,
sujeito,
manecer estruturado durante toda a vida do sujeito, bem como reportar-nos às
sociedade,
discussões sobre o perfil do homem prevalecente neste fim de século. ideal,
futuro.

F
amiliarizar-se com o discurso sociológico requer a satisfação de
um requisito preliminar: aderir à consensualidade segundo a qual o
indivíduo é um ser inequivocamente atrelado à sociedade, sem a
qual inexiste. Nessa perspectiva, o homem nasce mediatizado pelos
outros e o processo de socialização efetiva a interiorização das regras, das
representações pertinentes ao meio. Em outros termos, a sociedade inscreve-
se na subjetividade do indivíduo viabilizando que ele torne seus os propósi-
tos, o modus vivendis, as “significações imaginárias” do social.
Esta alusão aos pressupostos mesmos da sociologia não vem aqui a
serviço da pretensão subliminar de questioná-los ou refutá-los. Ao contrário,
radicalizar-se-á, no aspecto atinente à relação indivíduo versus sociedade, a
indagação sociológica. Assim, trata-se de forçar o pensamento no sentido de
elucidar que enigmáticos processos permitem que o “pequeno monstro re-
cém-nascido” completamente “a-social, (...) este centro absolutamente
egocêntrico, a-real, ou anti-real” (Castoriadis, 1987, p. 39) metamorfoseie-se
ao ponto de resultar no indivíduo socialmente constituído. Ao satisfazer-se
com a explicação da introjeção racional de regras e valores, acreditando que Mestre em sociologia
os mecanismos acionados no processo de socialização restringem-se ao âmbi- pela FFLCH-USP
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PAIVA, Rita. A constituição do Eu: os imperativos da interpretação e a perda de sentido. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.

to da consciência e da razão, a reflexão sociológica negligencia o fato de que


se os homens se socializam, todos eles vivenciam um período em suas vidas
em que personificam o outro, a negatividade mesma desta sociedade, à qual
devem, em última instância, a emancipação, ainda que não absoluta, deste
estado absolutamente pulsional. Sob esse prisma, coincidimos com Castoriadis:
“A socialização da psique – que envolve uma espécie de ruptura forçada na
clausura (clôture) da mônada psíquica – não é apenas aquilo que adapta o ser
humano a tal ou qual tipo de sociedade; ela é o que o torna capaz de viver,
pura e simplesmente”(Castoriadis, 1987, p. 104).
Na discussão a seguir encetada pretendemos aquilatar o pressupos-
to da sociedade sobre o indivíduo, inquirindo o modo pelo qual o infans
transmuta-se em indivíduo portador de uma subjetividade na qual está inscri-
ta a sociedade. Em suma, nossa questão assim se traduz: o que é o Eu ? De que
modo ele advém? Como é possível que ele subsista? No encalço de tais inter-
rogações, permitiremo-nos, ainda que não muito visceralmente, uma incursão
pela psicanálise.

O aparecimento do Eu e a ascensão do olhar prospectivo

Ancorados na apreensão freudiana acerca do funcionamento da psi-


que, podemos considerar que a singularidade do ego reside na sua aptidão para
a sistematização, para a regularização dos processos psíquicos. Esta compulsão
à síntese na qual está empenhado o ego concatena-se com outra especialidade: a
totalização. Alicerçado na composição imaginária e numa auto-imagem unitá-
ria o ego visa a representar a totalidade do sujeito. A circunscrição do ego nessa
função organizadora, embrionária da unidade e da totalidade do indivíduo não
deve, contudo, nos arrastar para a ilusão de que o seu lugar equivale ao da fixi-
dez, ao da isenção absoluta perante os efeitos das pulsões, ou que ele tenha
existido desde sempre. O ego não permanece incólume aos assédios do incons-
ciente e não presentifica, tampouco, uma agência auto-suficiente que legisla
impunemente sobre as pulsões. Ademais, no estágio anterior ao seu surgimento
não nos deparamos com um indivíduo, mas com uma “mônada psíquica a-soci-
al e anti-social” que está radicalmente isolada da sociedade. E o Eu, como hori-
zonte possível, mas não absoluto desta mônada, só advém por intermédio de
uma relação dialética com a sociedade. Em suma, não há nenhum elemento de
caráter determinante intrínseco à psique que viabilize por si só a sua transfor-
mação em ser social.
Instância da psique capaz de elaborar representações conscientes, o
Eu revela-se, no pensamento de Freud, como versátil e multifacetado. Neste
registro, esta agência da psique é responsável pelo controle da mobilidade e
da percepção, constatação da dimensão do real, planejamento e capacidade do
pensar. Por outro lado é perpassada, outrossim, pelo desconhecimento, racio-
nalização, defesa compulsiva contra as exigências pulsionais. Finalmente, tais
precauções tornam-nos atentos para que nos esquivemos de uma noção sectá-
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PAIVA, Rita. A constituição do Eu: os imperativos da interpretação e a perda de sentido. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
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ria do Eu. Freud já o preconizava como agente instituído, mas também


instituinte. Assim, os propósitos últimos do Eu não se circunscrevem aos re-
quisitos do necessário processo de adaptação a uma realidade que o trans-
cende; entre os seus possíveis está a intervenção na ordem mundana objetivando
também satisfação, a criação, a atribuição de sentidos.
Na esteira desta concepção não dogmática sobre o Eu encontram-
se as reflexões de Piera Aulagnier. Em sua abordagem, é na relação com o
outro que o Eu constrói sua própria história. Sujeito obstinado, porém não
autônomo, já que deve ser concebido na sua relação incessante com o incons-
ciente, com as representações às quais ele não tem acesso. Nessa
perspectivação, Aulagnier desenvolve uma teoria do Eu que tem sua gênese
nos enunciados transmitidos pela voz materna e, ulteriormente, transmuta-se
em sujeito apto para criar e proferir seus próprios referenciais. Assim, o sujei-
to vai afirmar-se na medida em que se reconhecer apto para dotar de sentido
tanto sua história passada como seu futuro. Os subsídios para tal tarefa resi-
dem substancialmente na edificação de um projeto identificatório e uma inter-
pretação de sua própria história, que é incessantemente reconstruída. Enleemo-
nos nas considerações tecidas pela autora no que concerne à entrada em cena
desta instância psíquica e de seus projetos.
No registro de Aulagnier, o aparato psíquico em seus primórdios
concebe o real como produto incontestável da própria psique. Todavia, o pro-
pósito último do Eu em seu processo de constituição é plasmar uma imagem
do mundo exterior na qual ele se insere e que não se revele incompatível com
sua própria estrutura. Daí decorre que para o Eu conhecer o mundo faz-se
necessário a elaboração de uma representação que lhe torne este mesmo mun-
do apreensível. Destarte, a psique insere-se num espaço que lhe é estranho, de
cujos efeitos e influências ela não pode se liberar. Será a partir desta
exterioridade, que lhe é inicialmente incompreensível, que serão elaboradas
as primeiras representações que, introduzindo fissuras na unidade radicalmente
cerrada em que ela se constitui, desencadearão a sua atividade.
Dessa forma, o espaço extrapsíquico se desnuda para a psique ins-
taurando uma clivagem que a fragmenta, primeiramente, no espaço corporal
do infans e no espaço psíquico daqueles que o mediatizam, mais especifica-
mente, a mãe. O advir das primeiras representações que a psique logra alcan-
çar, referentes a si mesma, devém deste encontro de duas mãos com o corpo e
com as representações da psique materna que, inclusive, submetem o sujeito a
uma experiência que antecipa e presume suas possíveis respostas. O estado
de encontro como experiência co-extensiva constitui-se como o momento em
que o infans apresenta-se num estado de necessidade ou de satisfação, e a
mãe, ao atender as suas demandas, faz delas uma leitura antecipada cuja apro-
priação pela criança desencadeará a abertura da sua interioridade psíquica
para o mundo. A rigor, o dizer e o fazer maternos atuam como antecipadores
do conhecimento que advém para o infans. Será a fala da mãe que veiculará
um fluxo portador e criador de sentido que antecede a capacidade do infans de
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apreender a significação. Nessa vertente, o Eu advém com a antecipação per-


petrada pelo discurso identificatório imanente à fala materna que força a aber-
tura da psique da criança ao mundo exterior. Convém notificar que as produ-
ções psíquicas da mãe se revelam nos enunciados através dos quais ela se
dirige à criança logrando uma antecipação compulsória que espera respostas
de alguém inapto para realizá-las. A sombra falada consiste precisamente
numa série de enunciados que testemunham o desejo da mãe em relação à
criança, antecipando assim o que será vivenciado por esta voz e por este cor-
po. Nesse sentido, o discurso materno tem como destinatário uma sombra
falada lançada sobre o infans: “A particularidade do Eu se encontra no fato de
que no início ele foi efetivamente a idéia, o nome, pensamento falado pelo dis-
curso de um outro: a sombra falada, projetada (...) sobre uma psique que ignora
e de quem ignoram as exigências de louca finalidade” (Aulagnier, 1985, p. 23).
À mãe, enquanto representante primordial da ordem social, caberá
frustrar as expectativas pertinentes a essa psique repleta de imaginação e de
fantasias de onipotência. Seu discurso personifica o instrumento pelo qual
torna-se perceptível para o sujeito a existência de uma realidade que não se
dobra, mas contrariamente, se impõe aos seus desejos, às suas representa-
ções, aos quais ele deverá abdicar. Este papel desempenhado pela mãe será
designado por Aulagnier como “porta-voz”, no qual ela se apresenta como o
enunciador e o intermediário privilegiado do discurso ambiente. Com as res-
trições já incorporadas pela sua própria psique, a mãe lega à criança as
injunções, as interdições deste discurso demarcando os limites do possível e
do lícito. Ao porta-voz cabe predizer e interpretar o conjunto de manifesta-
ções da criança. Já que este conceito alude às funções do desejo da mãe na
conformação mental da criança, vale notar que na dinâmica deste encontro a
mãe oferece material estruturante para a psique do infans visto que respeita as
exigências da repressão pertinentes a uma ordem transcendente e postulada
por leis às quais o discurso materno obedece. Logo, é destino do sujeito loca-
lizar-se numa realidade cujos enunciados, além de se aterem ao limites impos-
tos pela repressão, agilizam a sua consolidação. Esta atuação da mãe junto ao
infans viabiliza que sua psique se depare com um real já remodelado e torna-
do representável, de modo que um mundo em princípio sem sentido e inaces-
sível à psique é metamorfoseado numa realidade humana graças aos investi-
mentos da libido materna. Mais explicitamente, o discurso da mãe traz o es-
tigma do princípio de realidade, e ainda que o infans não possua ainda as
condições necessárias para apropriar-se deste princípio, o discurso materno
permite que ele denote a intenção de sua existência.
O encontro mãe-infans constitui a primeira violência – fundamen-
tal e necessária – à qual a psique deve submeter-se. Violência esta que efetiva
o conjunto de condições e fatores imprescindíveis para que a vida psíquica do
infans adquira a necessária autonomia a partir da qual ele se emancipará do
estado de total dependência em que se encontra no estado prematuro. Essa
violência que Aulagnier designa como primária será assim definida: “ação
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psíquica pela qual se impõe à psique de um outro uma escolha, um pensamen-


to ou ação, motivados pelo desejo daquele que o impõe, mas que são entretan-
to, apoiados num objeto que para o outro corresponde à categoria da necessi-
dade” (Aulagnier,1979, p. 38). Sob esse prisma, o processo de violência pri-
mária se dá por meio de um discurso que antecipa todo entendimento possível
e cuja existência é fundamental para que o infans adentre a ordem do humano.
Ao nascer, o infans expõe seu corpo ao investimento da mãe prestando-se a
ser falado pelos seus enunciados. Não obstante, ao contemplá-lo, a mãe se
depara com uma realidade anatômica cujo funcionamento fisiológico, por ser
irredutível, além de delimitar a onipotência do discurso materno, força-a a
reconhecer as possíveis ilusões que, subliminarmente, minam sua fala. Em
outros termos, a convicção de que a mãe conhece os desejos do infans, de que
pode captar suas demandas, pode eventualmente ser abalada pela incerteza de
que sua intenção não seja coincidente com o desejo da criança. No entanto,
este investimento, ainda que ilusório, tem o caráter da imprescindibilidade,
uma vez que se faz essencial para que a mãe possa antecipar o Eu que “habi-
tará e falará este corpo”, o sucedâneo do infans.
O papel antecipador desempenhado pelo discurso materno tem o
mérito de viabilizar ao infans sua transformação em sujeito. É por seu inter-
médio que o indizível e o impensável, inerentes à psique em sua gênese,
transmutar-se-ão gradualmente em significações partilhadas e acessíveis. As-
sim, no seu contato com o infans que não possui acesso ao discurso, a mãe crê
na coincidência entre o pensamento de ambos. Todavia, ao perceber que o
olhar da mãe não desnuda seus pensamentos, o sujeito acede ao direito do
pensar. Ou seja, apropria-se da prerrogativa de pensar o impensável, o infini-
tamente original. Aqui, efetiva-se o passo fundamental para o funcionamento
do Eu, na medida em que a atividade autônoma do pensamento envolve a
imprescindível renúncia a um discurso hipoteticamente detentor da verdade e
livre de incertezas, no caso, o discurso materno. Aulagnier enfatiza, contudo,
que para a ocorrência efetiva de tal elucidação é fundamental que a mãe possa
aceitar a condição de alteridade do infans. Admitir que a criança é produtora
de um pensamento em relação ao qual a mãe não tem prerrogativas de acesso
equivale a instaurar um prelúdio para uma singular experiência de prazer,
qual seja, o prazer de pensar, que por sua vez só advém quando o pensamento
entrevê que não se restringe a uma repetição de algo já pensado. Convém
enfatizar que o primeiro avanço para esta emancipação do pensamento só é
viabilizado com a necessária violência com que os enunciados maternos se
impõem ao infans, adentrando o âmbito de um espaço que não se coaduna
ainda com as leis pertinentes ao Eu e ao discurso. É no registro da violência
primária, por conseguinte, que encontramos os elementos fundamentais para
o desenvolvimento autônomo da vida psíquica e para a entrada em cena do
Eu, cujo corolário presentifica-se na constituição do indivíduo com a abertura
da interioridade, a priori, inflexível da psique. Assim, esta torna-se capaz de
criar e desenvolver sua humanidade, que jamais afloraria caso o contato com
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o mundo exterior e social não se efetivasse, uma vez que a psique não poderia
engendrar sua humanidade a partir de si mesma.
O intuito de situar nestas linhas os pontos fundamentais com os
quais Piera Aulagnier reflete sobre o surgimento do Eu é, fundamentalmente,
o de salientar que o que na sociologia sempre foi concebido sob a égide da
introjeção racional das regras, de interiorização consciente, envolve um pro-
cesso muito mais radical. Dito de outro modo, o encontro estruturante da mãe
com o infans opera em dimensões inconscientes que estruturam a psique e são
tão cruciais quanto os processos conscientes. Faz-se imprescindível acrescen-
tarmos, entretanto, que a constituição do Eu no registro de Aulagnier remete-
nos, irredutivelmente, a um projeto identificatório, à relação do Eu com seus
ideais que, inclusive, se dá em simultaneidade com o surgimento do Eu. Ade-
mais, é na relação com o outro, na apropriação dos enunciados maternos que
o sujeito se constitui e é na relação com os seus objetos que o constructo de
sua história ganha direito de cidadania. Se, numa primeira instância, os
referenciais identificatórios são fornecidos pelos pais, que envolvem a criança
na sua libido narcísica – envolvimento do qual devém o ego e seu correlato, o
ideal –, posteriormente caberá à sociedade apontar estes horizontes a serem
vislumbrados e almejados pelo Eu e nos quais ele pretenderá se espelhar. Isso
posto, enveredemos pelas considerações da autora concernentes ao contrato
narcisista que toda sociedade estabelece com os indivíduos.
Vimos que os enunciados maternos são fundamentais para o apare-
cimento da instância psíquica que corresponde ao Eu. No entanto, os corolários
da fala materna não seriam dotados de profunda significação caso ignorásse-
mos as leis e os princípios que os perpassam e pelos quais eles se orientam.
Nessa perspectivação, Piera Aulagnier vai problematizar a cena extrafamiliar
e a influência do registro sociocultural sobre a constituição do Eu. O primeiro
tópico para o qual a argumentação da autora se dirige é o discurso do meio
como discurso fundador, fonte emissora de algumas certezas partilhadas. A
existência de um discurso de certeza sobre a origem e sobre a fundação alicerça
a crença na possível verdade quanto às pretensões futuras. A rigor, o discurso
do meio enquanto elemento fundador da cultura institui o que Aulagnier de-
nomina contrato narcisista. Esse perfaz o momento primordial no qual o in-
divíduo socializado pode constituir-se e remete, também, a um discurso repre-
sentativo das leis que orientam o grupo. Essas leis constituem o alicerce da
representação que os sujeitos elaboram sobre o meio ideal.
Parafraseando Aulagnier, o todo da sociedade presentifica um con-
junto de vozes que fornecem referenciais identificatórios que permitem aos
sujeitos se projetarem para o futuro, logrando assim o afastamento do primei-
ro suporte identificatório. Ou seja, assim como o meio familiar é marcado por
um conjunto de enunciados identificatórios cujos suportes se encontram nos
pais, o meio social também é propiciador de fontes de identificação cujo ali-
cerce já não reside no casal parental, mas no próprio meio. O deslocamento
dos primeiros enunciados (pais) para os enunciados sociais viabiliza-se em
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função da existência de discursos produzidos pela ordem social. Sobre o infans


serão projetados os referenciais identificatórios constituídos e constituintes
da ordem social. Ocorre aqui um similar da relação entre o infans e o enuncia-
do parental. Tal como este, o meio lança sobre o infans a mesma antecipação
que os pais, de modo que o grupo pré-investe o lugar a ser ocupado pela
criança acreditando que esta virá ratificar os modelos socialmente factíveis.
Considerando-se que o meio antecipa a criança, o sujeito deve encontrar
referenciais identificatórios que o ancorem na sua adaptação a esta realidade
social e, concomitantemente, erradiquem os resquícios dos primeiros supor-
tes oferecidos pelos pais. Ao focalizar a transposição de referenciais
identificatórios intrínsecos ao meio familiar para o meio social, Aulagnier
tematiza a temporalidade e o futuro. Destarte, o social só pode prosseguir em
seu funcionamento e na sua contínua recriação na medida em que persiste o
investimento neste modelo futuro. O elemento que fundamenta substancial-
mente o contrato narcisista a ser estabelecido entre sujeito e sociedade é o pré-
investimento do infans pelo meio. O infans é aqui vislumbrado como sujeito
do grupo que ocupará o lugar que lhe é destinado por esta voz futura. É im-
portante observar, contudo, que o futuro aqui não é estritamente o futuro da
coletividade, mas o futuro do sujeito nesta coletividade que deve identificar-
se aos ideais oferecidos pela sociedade que propicia a projeção para um futuro
substancializado pelos enunciados.
Neste particular, é elucidativo considerar que o contrato narcisista
vem problematizar a temática do reconhecimento. O meio social deve investir
o narcisismo do infans que é vislumbrado como sujeito futuro. Posteriormen-
te, ao tornar-se sujeito, o infans deve investir narcisicamente o sujeito ideal do
meio, que por sua vez investiu narcisicamente o sujeito como voz futura. Daí
decorre que o indivíduo possa encontrar neste real suporte para sua libido
narcísica, reconhecendo-se como legitimamente filiado. Escreve a autora:
Quanto à criança, ela pedirá como contrapartida do
investimento que ela fará do grupo e de seus mode-
los, que lhe seja assegurado o direito de ocupar um
lugar independente do veredicto parental, que lhe
seja oferecido um modelo ideal que os outros não
possam renegar sem renegar as leis do meio, que lhe
seja permitido guardar a ilusão de uma persistência
atemporal sobre o meio e, sobretudo, sobre um pro-
jeto do meio que seus sucessores deverão retomar e
preservar (Aulagnier, 1979, 151).
Por conseguinte, outra exigência fundamental para que o Eu se afir-
me como ser autônomo está no direito a uma historicidade. A apropriação dos
referenciais identificatórios fornecidos pelo meio possibilitam que o indiví-
duo transfira parte de seus investimentos narcísicos para a dimensão social
que transcende sua particularidade. Configura-se assim o investimento num
tempo futuro em que o sujeito é ciente de que não estará presente. Não obstante,
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PAIVA, Rita. A constituição do Eu: os imperativos da interpretação e a perda de sentido. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.

graças a tais investimentos, a crença numa possível continuidade de si próprio


torna-se plausível, visto que a perenidade de seu discurso será afiançada por
novas vozes que, revigorando-o, impedirão a sua perda ou anacronismo. No
âmbito desta historicidade, a constituição deste futuro viabiliza ao sujeito não
apenas entrever a sua continuidade, mas, inclusive, atribuir sentido ao mundo.
Aí se configura a constituição do projeto identificatório. Este, consoante
Aulagnier, concerne à construção que se projeta numa instância temporal que
vai alicerçar a própria existência do indivíduo. Tal projeto é constituído pelos
sucessivos enunciados pelos quais o sujeito define para si e para os outros
seus anseios identificatórios e seus ideais. Não serão enunciados que assu-
mem uma significação postulada por um outro, mas discursos nos quais o
sujeito assume como seus os ideais que terminam por se cristalizar em ima-
gens futuras. Escreve a autora: “O Eu não é nada mais do que o saber do Eu
sobre o Eu e a esta definição (...) podemos acrescentar um corolário; o saber
do Eu sobre o Eu tem como condição e como finalidade assegurar ao Eu um
saber sobre o Eu futuro e sobre o futuro do Eu” (Aulagnier,1979, p. 154).
No que tange à imagem de um futuro – desde que o Eu esteja apto
para reconhecer a castração –, a persecução dos ideais não terá como encalço
um tributo de certeza. Ela não reverencia um estado absoluto e inexorável,
mas alude simplesmente ao que o Eu deseja tornar-se. Essa expectativa, cuja
ausência é inaceitável para qualquer sujeito, deve encontrar seus objetos numa
imagem identificatória que seja positivamente investida pelo meio a cujos
modelos o sujeito adere. Na medida em que o sujeito substitui os “emblemas
identificatórios” oriundos do discurso do casal parental pelo discurso do meio,
a imagem futura na qual o Eu investe é delineada por referenciais inauditos
que se constituem em dois tipos. No primeiro deles, esta imagem futura entra
em cena quando a criança é capaz de enunciar “quando Eu for grande”. Esse é
o primeiro indício de que a criança acede a uma concepção de tempo futuro.
No segundo, o enunciado é acrescentado pelo verbo “ser” que vem designar
um predicado lícito e pertinente para este sujeito. Predicado este que explicita
a relação da criança com a temporalidade. Há nestas proposições sobre o tem-
po futuro uma ambigüidade irredutível. Ou seja, para a criança o tempo futuro
será aquele em que a mãe reassumirá o papel de objeto privilegiado do desejo
de modo que a expectativa de um tempo futuro coincide com o desejo de um
passado irrecuperável. Assim, Aulagnier vai enfatizar que “O Eu só abre um
primeiro acesso ao futuro porque ele pode projetar nele um encontro com um
estado e um ‘sendo passados’” (Aulagnier,1979, p. 155). Subjacente a este
desejo de ser no futuro o que já se foi outrora está o reconhecimento de que
aquilo que o sujeito é não equivale ao que ele gostaria de ser. Discernimento
que se efetiva em função da existência de um ideal futuro que encontra resso-
nância e suporte no meio social. À luz dessa análise é fundamental aludir ao
desejo que constituirá o ideal enquanto futuro, de modo que a temporalidade
configure-se como algo tecido pelos fios desejantes. Se este desejo no primei-
ro momento é o da volta a um estado em que a mãe era o objeto privilegiado,
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PAIVA, Rita. A constituição do Eu: os imperativos da interpretação e a perda de sentido. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.

haverá o tempo em que a interdição em relação à mãe se imporá propalando-


se em todas as dimensões temporais, o passado, o presente e o futuro. Assim,
“A voz materna não tem mais o direito nem o poder de dar uma resposta
dotada de certeza, que exclua a possibilidade de dúvida e contradição ao ‘quem
sou Eu?’ e ao ‘o que o Eu deve tornar-se?’ A estas duas questões (...) o Eu
responderá em seu próprio nome, pela autoconstrução contínua de uma ima-
gem ideal que ele reivindica como sua e inalienável e que lhe garante que o
futuro não se revelará nem como efeito do acaso, nem pelo desejo exclusivo
de um outro Eu” (Aulagnier,1979, p. 156). Logo, o investimento no futuro
prevalece porque o sujeito ao reconhecer-se como tal dá continuidade ao seu
pacto com referenciais identificatórios oriundos do meio social.
Neste contexto, instaura-se uma cesura entre a concepção que o
sujeito possui de si no momento atual e a imagem de si que ele projeta para o
futuro. Não obstante, para que este investimento persista é fundamental que
esteja implícita a certeza de que neste tempo futuro a coincidência entre o Eu
atual e o Eu futuro se constituirá. Seria lícito afirmarmos que essa expectativa
de coincidência consiste numa ilusão necessária, posto que o desejo de identi-
ficar-se com o ideal é de ordem crucial para a existência do Eu. Por outro lado,
o tempo futuro ao ser alcançado deflagra a criação de um novo projeto, de um
novo ideal, trajetória que persistirá no decurso de toda a vida do sujeito. Entre
o Eu atual e o Eu futuro, argumenta a autora, deve vigorar uma diferença, um
espaço vazio que acrescentado ocasionaria a justaposição ou identidade entre
diferentes perfis temporais do Eu. Este espaço, porém, jamais deverá ser pre-
enchido. Primeiramente porque ele significa a assunção da experiência da cas-
tração como móvel propulsor do processo identificatório. Ulteriormente por-
que a consumação da “esperança narcísica” da equivalência entre o que o Eu
é e o que ele anseia ser teria com corolário imediato o esfacelamento de qual-
quer projeto concernente ao Eu futuro.
Em suma, o conhecimento do Eu a seu próprio respeito só é plausí-
vel quando compatível com o que o próprio Eu pensa sobre si mesmo. Este
conhecimento é sempre cunhado pelo estigma da incerteza, e a concretização
da renúncia a esta certeza em concomitância com a perenização do investi-
mento do Eu no seu futuro constituem prerrogativa do projeto identificatório.
A façanha do Eu é saber que o futuro é imprevisível e indeterminado, locus
privilegiado da dúvida, do conflito e do sofrimento. Nesta variabilidade infi-
nita que se traduz na abertura para um futuro não decidido a priori é que o Eu
vai escrever a sua história e interpretar o mundo.
A teoria de Aulagnier enfatiza que é fundamental para o funciona-
mento do social o fornecimento de referenciais identificatórios nos quais o
sujeito possa investir, reconhecer-se como filiado ao meio, imputar sentido à
realidade mundana, além de entrever uma continuidade de seus ideais naque-
les que o sucederem. Faz-se oportuno salientar que a tematização do contrato
narcisista na ótica da autora é de suma importância para a discussão aqui
encetada. É lícito considerar que toda sociedade firma um pacto narcísico com
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PAIVA, Rita. A constituição do Eu: os imperativos da interpretação e a perda de sentido. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.

seus sujeitos, tornando essa condição irredutível para o seu funcionamento e


para a sua continuidade. Assim, os investimentos viabilizados pelo pacto
alicerçariam não apenas a condição de ser desejante dos indivíduos, mas pro-
piciaria que, enquanto intérpretes em busca de sentido, os indivíduos pos-
sam lançar um olhar altivo para o futuro ainda que cônscios de que nenhum
ser pode superar a falta e afiançar de modo absoluto seus investimentos.
Uma interrogação pertinente para a nossa sociedade hoje seria a
que se surpreende não com o excesso de narcisismo, mas com o rompimento
do pacto, que finda por renegar o reconhecimento do sujeito pelo meio, pulve-
rizando os ideais socialmente constituídos, bem como as alternativas possí-
veis para a construção de um projeto identificatório e, por conseguinte, de um
tempo futuro. Procuraremos na discussão subseqüente aludir à teoria do
narcisismo que se diferencia de Aulagnier na medida em que postula que as
sociedades atuais se mostram carentes de investimentos futuros não pela au-
sência de narcisismo, mas por uma overdose dele. Antes, porém, convém uma
breve referência ao inaugurar dos tempos modernos que é figurado como a
abertura do leque em que as perspectivas futuras se revelam multifacetadas de
modo que a modernidade se presentificará como geradora incessante de utopias.

Desvanecimento de imagens futuras e o mundo sem sentido

O advento da modernidade plasmou-se na consciência dos homens


sob aspectos multifacetados. A título de exemplo, poderíamos aludir a Max
Weber, para quem a modernidade delineia-se por uma progressiva racionalidade
que, ao libertar a vida social de orientações advindas de princípios extra-
societários, elege o homem como criador de seus critérios normativos que
devem reger o exercício da sociabilidade. Propalando-se por todas as esferas
sociais, esta racionalidade desintegra as antigas legitimações pertinentes às
sociedades tradicionais e, aliando-se à institucionalização do progresso técni-
co e científico, traduzindo-se na mensuração entre meios e fins, termina por
relegar à categoria da ineficácia e do anacronismo a razão reflexiva.
Numerosa seria a produção que se empenharia em evidenciar os
malefícios de uma civilização subjugada aos imperativos de uma racionalidade
instrumental que, em última instância, obstrui os canais possíveis através dos
quais uma subjetividade autêntica poderia se manifestar. Daí devém a proe-
minência de uma subjetividade que é fundamentalmente marcada pela ade-
quação entre meios e fins, na qual o valor e a significação são quesitos
desqualificados. Os filósofos de Frankfurt seriam os críticos mais ácidos des-
sa modernidade. Adorno afirmaria que sob as luzes do afã pelo progresso e da
racionalidade iluminista – que tudo busca esclarecer e desvendar, e ao usar a
razão para aniquilar os mitos acaba mitificando-a –, a terra resplandece “sob
o infortúnio triunfal da barbárie” (Adorno, 1986, p. 19). Todavia, nem tudo
viria a ser vítima de interpretações sombrias no âmbito da modernidade. Ao
referir-se às experiências vitais que delineiam a modernidade, Marshal Berman
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PAIVA, Rita. A constituição do Eu: os imperativos da interpretação e a perda de sentido. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
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salienta que “Ser moderno é encontrar-se em ambiente que promete poder,


alegria mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que
sabemos, tudo o que somos. (...) ela nos despeja a todos num turbilhão de
permanente desintegração e mudanças de luta e contradição, de ambigüidade
e angústia” (Berman,1987, p. 15). Tal é o universo em que o indivíduo objeti-
va a individualização. E como sustenta o autor, situada entre alternativas “glo-
riosas e deploráveis”, a modernidade se autopercebe como maximizada au-
sência e vazio de valores simultânea a uma “desconcertante abundância de
possibilidades” (Berman,1987, p. 15). Em tal perspectivação, o autor tematiza
o perfil da vida moderna, visto que nele a existência humana é inteiramente
aberta para mudanças, evidenciando, entretanto, a possibilidade de perdas e
ganhos neste turbilhão que é a modernidade e interrogando quais as perspec-
tivas de criação e desilusão do tempo que nos joga nesta dialética.
Berman evoca com tais colocações um sentimento que aflora com o
inaugurar da modernidade, o desejo de mudança, de transformação e de auto-
transformação, ainda que sob as perspectivas multifacetadas pairasse o es-
pectro da desintegração. Um sentimento que precedeu as análises ostensiva-
mente pessimistas como a weberiana ou a dos frankfurtianos. É no âmbito
dessas expectativas otimistas com que os homens adentram o espírito da
modernidade que Habermas vai contemplar o seu traço mais fecundo, qual
seja, a colisão entre o pensamento histórico e a utopia. Sob a égide da aborda-
gem habermasiana, a cultura ocidental plasma-se no final do século XVIII sob
uma nova consciência de tempo. O novo, o tempo da bonança, não é mais
aquele da eternidade como advoga o cristianismo. O tempo moderno é o fluxo
ininterrupto para o novo, onde a própria atualidade é viabilizada como um
novo tempo: “A atualidade concebe-se recorrentemente como uma passagem
para o novo, ela vive na consciência da transitoriedade dos acontecimentos
históricos e na expectativa de outra configuração de futuro” (Habermas,1987,
p. 105). Ou seja, o espírito da modernidade cultural seria este em que o pre-
sente é concebido como transição para o futuro. Essa consciência do espírito
moderno se concebe como realizando um futuro projetado nos século XVIII,
mas cujas sementes estão nos utópicos do século XVII. Estes, todavia, se
eram capazes de construir as utopias, não imputaram a elas uma dimensão
histórica. A consecução das utopias possíveis ocorria numa dimensão
extemporânea. Embotadas pela sua condição de projeto irrealizável, os so-
nhos prospectivos do século XVII transformaram-se em vibrações extra-his-
tóricas que foram absorvidas pelos iluministas do século XVIII e pelos pensa-
dores do século XIX. Neste período o pensamento histórico e o utópico se
fundem. Habermas reitera que “o espírito de época incendeia-se na colisão
entre o pensamento histórico e o pensamento utópico. À primeira vista esses
dois modos de pensar se excluem. O pensamento histórico saturado de expe-
riências parece deslindar a crítica aos projetos utópicos. O pensamento utópi-
co, em sua exuberância, parece ter a função de abrir alternativas de ação e
margens de possibilidades que se projetam sobre as continuidades históricas.
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S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.

Na verdade, porém, a moderna consciência de tempo inaugura um horizonte


onde o pensamento utópico funde-se com o pensamento histórico” (Habermas,
1987, p. 104).
Destarte, as utopias clássicas, embora veiculassem o “sonho do bem”
não localizável historicamente, ao menos lograram reconverter, como afirma
Habermas, “esperanças escatológicas em possibilidades profanas de vida”. A
fertilização da consciência histórica com as energias utópicas vai configurar o
novo espírito de época que instaura-se na esfera púbica desde a Revolução
Francesa. Em outras palavras, as utopias percebidas como horizontes viáveis
insuflaram o universo humano desde o século XVIII até meados do século
XX, evidenciando que a perspectiva utópica perpetuou-se na consciência da
história política dotada de eficácia e plausibilidade. Esse é o perfil no qual a
modernidade se desenhou enquanto transcrição de um tempo em que os ho-
mens, criando seus próprios valores normativos, poderiam alçar um futuro
pleno de possibilidades. Os contemporâneos do século XX poderiam comparti-
lhar as perspectivas otimistas até a década de 60. A partir da década de 70, as
possibilidades multifacetadas e plenamente tangíveis do ponto de vista da reali-
zação se esvaneceram. O tempo futuro nublou-se. Voltemos a Habermas: “Hoje
as energias utópicas aparentam ter-se esgotado, como se elas tivessem se retira-
do do pensamento histórico. O horizonte futuro estreitou-se e o espírito de épo-
ca como a política transformou-se profundamente” (Habermas,1987, p. 104).
As perspectivas de futuro com que nos deparamos no limiar do novo
século são constrangedoras. Mencionamos acima que enquanto as utopias clás-
sicas perseguiam condições para uma vida digna e para a felicidade humana,
as utopias sociais do século XIX ergueram-se sobre o território do plausível.
Ou seja, não se referiam vagamente a uma possível realização humana. Insu-
fladas pelo pensamento histórico, investiram na ciência, na técnica e no pla-
nejamento como meios através dos quais se instrumentalizariam para o con-
trole absoluto da natureza e da sociedade, galgando os degraus da concreção
utópica. Todavia, justamente a credibilidade exaustiva nesses instrumentos
provocou o desinvestimento das perspectivas futuras: “Nós percebemos dia-
riamente que as forças produtivas transformaram-se em forças destrutivas e
que a capacidade de planejamento transformou-se em potencial desagregador.
Diante disso, não constitui surpresa que hoje ganhem influência sobretudo
aquelas teorias desejosas de mostrar que as mesmas forças de incrementação
do poder das quais a modernidade extraiu outrora sua autoconsciência e suas
expectativas utópicas, na verdade transformaram emancipação em opressão,
racionalidade em irracionalidade” (Habermas,1987, p. 105). A descrença que
paulatinamente vai erradicando os resquícios das esperanças utópicas provo-
ca a degenerescência da consciência histórica. Tanto as posturas políticas como
a reflexão intelectual mostram-se atrofiadas e uma perplexidade paralisante
vai se alastrando sobre a procura de orientações que nos impulsionem para o
futuro. Na singular expressão de Habermas, a atualidade vive sob a aura de
uma “imperspicuidade” atinente aos seus caminhos que denota uma deterio-
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ração, um encanescimento da confiança da cultura ocidental em si mesma.


Cornellius Castoriadis é um autor que, pelo conjunto de sua obra,
não poderíamos considerar propriamente emblemático destes tempos. Seu
enfoque teórico desenvolve uma das reflexões mais instigantes sobre a imagi-
nação como fonte propulsora da vida social e subjetiva enquanto possibilida-
des de formas autônomas de vida. Todavia, seria válido evocar certas proposi-
ções suas nas quais tematiza este tempo pulverizado de perspectivas futuras
situando-se na problemática da desestruturação da personalidade. Como ob-
serva o autor, hoje a sintomatologia clássica da neurose obsessiva e a histeria,
tão generalizadas no início do século, já não se manifestam como formas
unívocas e primordiais da patologia individual. A inquietação prevalente en-
tre os indivíduos que demandam as experiências analíticas apresenta-se, nos
dizeres do autor, como “uma desorientação na vida, a instabilidade, os fenô-
menos ditos de inadaptação, ou uma tonalidade depressiva (...) uma parcela
significativa das pessoas parece sofrer de uma espécie de neurose informe ou
‘flácida’, nenhum drama agudo, nenhuma paixão intensa, mas uma perda de
referencial, que ocorre junto com uma extrema precariedade dos caracteres e
dos comportamentos” (Castoriadis,1987, p. 95). Ancorado nesta constatação,
Castoriadis procura salientar um processo presente na sociedade atual que
concorre para sua desarticulação e para uma desestruturação ou menor
estruturação da personalidade instaurando uma patologia inédita. Sob a égide
dessa nova doença social, nós estaríamos vivenciando um fenômeno social e
cultural inaudito com o esfacelamento de normas e valores consensualizados
e internalizados pelos membros da sociedade. Nesse contexto, os paradigmas
que a sociedade fornecia, orientando os indivíduos para um ideal no qual po-
deriam reconhecer a pertinência de seus investimentos, que implicava em
maneiras de ser e de fazer esclarecendo referenciais que deveriam nortear a
vida social, escassearam. Não obstante estes modelos fossem comumente in-
seridos em estruturas opressivas, eles promoviam o funcionamento da ordem
social e, mesmo aqueles que os contestavam, referiam-se a valores outros que
viriam a substituir os antigos. Assim, o vislumbre de uma desarticulação so-
cial seria viabilizada em nível de conflitos de classes, crises econômicas e
guerras, mas jamais na relação dos indivíduos com os ideais propostos pela
sociedade. Inversamente, nos dias atuais, com o degringolar dos valores e
normas que sempre articularam a conduta dos indivíduos, os modelos que
eventualmente afloram na cena social apresentam-se desprovidos de
substancialidade. Produtos da criatividade publicitária, veiculados pela TV e
pela mídia, Castoriadis considera que eles não podem ser realmente
introjetados, já que não oferecem modos de conduta valorizáveis que possam
orientar cotidianamente os indivíduos. O que subjaz a este perfil atual da so-
ciedade ocidental, onde maximiza-se a insatisfação com a vida, a incapacida-
de de investimentos em projetos e generaliza-se uma sintomatologia depressiva,
é a derrocada da consciência histórica e a ausência de projetos futuros.
Castoriadis é categórico: “Há um ponto no qual temos de insistir: Tudo isso
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está profundamente associado ao colapso das perspectivas para o futuro. Até


o início dos anos 70 e apesar do visível desgaste dos valores, esta sociedade
ainda mantinha representações do futuro, alimentando intenções projetos (...).
Havia imagens que apareciam como dignas de crédito e às quais as pessoas
aderiam. Essas imagens estavam se esvaziando internamente há décadas, mas
as pessoas não percebiam. E de repente, quase de um só golpe (...) a sociedade
descobriu-se sem ter representação, sem futuro, e sem projeto e também isto é
uma novidade histórica” (Castoriadis,1987, p. 101).
Mediante esse diagnóstico, Castoriadis acrescenta que a carência
da configuração prospectiva explicita a pulverização maximizada da imagi-
nação. O desaparecimento dessa, por sua vez, é acompanhada da degene-
rescência da vontade. O desejo do inaudito não pode prescindir da representa-
ção de algo que não possui ainda concreção. Ele requer a aspiração a algo que
não se circunscreva ao âmbito da repetição, mas que o supere e por isso exige
a imaginação: “Ora, não se percebe nesta sociedade nenhuma vontade relativa
ao que ela quer amanhã – nenhuma vontade além da salvaguarda temerosa e
intolerante do que hoje existe. Vive-se numa sociedade defensiva, tensa, retra-
ída, ressabiada” (Castoriadis,1987, p. 101). Destarte, a contemporaneidade
encontra-se eivada de uma letargia avassaladora que, em decorrência do des-
gaste de suas representações futuras, obstrui as energias sociais capazes de
prenunciar novas perspectivas para o amanhã ou de atribuir sentido ao mun-
do. Tal como Habermas, Castoriadis alude a esta imperspicuidade que torna
os homens incapazes de investir o real uma vez que a consciência histórica já
não é insuflada pelo pensamento utópico.
A essa altura seria interessante articularmos o ponto de encontro
entre os autores aqui aludidos com a discussão tecida na primeira parte do
texto. Ancorados nas observações precedentes, é possível precisar que a idéia
subjacente à argumentação de Habermas ou de Castoriadis é que hoje detecta-
mos na sociedade ocidental uma apatia generalizada, o desencantamento como
a modernidade cuja causa-mor residiria no colapso da expectativa de futuro
em função do desgaste das significações que nortearam o horizonte moderno.
No dizer de Castoriadis, os homens já não possuem imagens nas quais pos-
sam se representar e reconhecer, minimizando assim sua aptidão para imputar
sentido ao mundo. Em Habermas, o esgotamento das energias utópicas, a cons-
ciência histórica pulverizada da consciência utópica – em virtude dos instru-
mentos que poderiam majorar o percurso civilizacional terem se voltado con-
tra a civilização – denota que a sociedade ocidental minguou seu potencial
criativo necessário para encetar projetos futuros, além de mostrar-se debilita-
da no montante de confiança que consegue depositar em si mesma.
Ao contemplarmos as reflexões de Aulagnier fez-se perceptível a
influência do registro sociocultural sobre a constituição do Eu, a importância
do discurso do meio que ao presentificar a ocorrência de certezas comparti-
lhadas sobre a origem e a fundação alicerçam os investimentos sobre a possí-
vel verdade das pretensões futuras. O Eu constrói-se na relação com o outro e
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na medida em que interioriza os modelos identificatórios formulados pelo so-


cial. Para que o sujeito possa perenizar sua existência é condição inarredável
que ele invista seus objetos e só por meio destes investimentos ele pode asse-
gurar-se de sua existência. Nesse sentido, é pressuposto para a existência de
qualquer sociedade firmar um pacto com seus membros, qual seja, o contrato
narcisista. Por intermédio dele, as leis que orientam o grupo, através das quais
os sujeitos elaboram suas representações sobre o meio ideal, apresentam-se
afiançadas e o Eu encontra respaldo para sua constituição. Assim, a adesão ao
grupo social pelo sujeito implica a incorporação de uma série de enunciados
que, ao serem por ele repetidos, semeiam uma certeza imanente a um discurso
que, concomitantemente, garante a verdade do passado e viabiliza que haja
credibilidade em relação aos projetos futuros.
Ora, esta letargia da sociedade contemporânea detectada por auto-
res díspares como Habermas e Castoriadis e associadas com o colapso dos
projetos futuros não evidenciam justamente que a sociedade já não figura como
o locus propulsor dos enunciados identificatórios nos quais o Eu possa se cons-
tituir e vislumbrar sua história futura? Em outros termos, a falta de confiança
em si mesma que assola a sociedade contemporânea a que alude Habermas não
seria sintomática do rompimento do pacto narcisista, condição primordial para
a existência do Eu ou do indivíduo socialmente constituído?
Atentemos para um outro aspecto. Aulagnier salienta que a entrada
em cena do Eu equivale ao vislumbre de uma historicidade, ou seja, o apareci-
mento do Eu é concomitante ao aparecimento dos ideais que povoam seu hori-
zonte futuro. O indivíduo reivindica ao grupo, em troca do investimento que ele
deve realizar, um modelo ideal cuja denegação corresponderia à negação do
próprio meio. Tal modelo tem como característica essencial a qualidade de pre-
servar a ilusão de uma “persistência temporal” projetada sobre o Eu e sobretudo
sobre as perspectivas futuras deste meio que será preservada e assumida pelos
sucessores. Nesse sentido, seria lícito inferir que a contemporaneidade da socie-
dade ocidental é peculiarizada pela debilidade do contrato narcisista. A socieda-
de já não fornece instâncias paradigmáticas de identificação que ancorem o pro-
jeto futuro do Eu. Já que para existir o sujeito é condenado a investir, a interpre-
tar e atribuir sentido à sua realidade mundana – que não possui um porta-voz
que imponha o sentido definitivo além do período necessário para a emergência
do sujeito – para que possa estruturar-se, a ausência deste elementos resultaria
necessariamente na desestruturação maximizada da personalidade. Sob este pris-
ma, como enfatiza Castoriadis, proliferam subjetividades amenas, medíocres,
incapazes de grandes paixões e de grandes investimentos, condenadas a vagar
desorientadas, desprovidas de um arsenal valorativo num mundo pleno de insta-
bilidades no qual perdeu-se a necessária imaginação para a construção de proje-
tos futuros. O olhar perde-se no imponderável e o homem já não tem o estatuto
de ser desejante. Ou seja, no intuito de conservar-se, de evitar a mudança, já que
não possui os ideais sobre os quais possa se projetar, os homens desaprendem o
desejo e a erotização do mundo (abrindo espaço, vale notar, para a predominân-
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cia de utopias extra-mundanas).


No viés da perspectiva aqui exposta, o esfacelamento da relação
narcísica entre indivíduo e sociedade explicaria este tipo sobressalente no fi-
nal deste século, muito pouco similar ao homem criativo, agressivo e vital do
início dos tempos modernos, que possuía a consciência histórica irrigada pe-
las utopias. A derrocada do sentido histórico, o retraimento das utopias en-
gendrariam indivíduos incapazes de interpretar e significar o mundo, dotados
de personalidades possivelmente patológicas porque desestruturadas pela au-
sência de projetos identificatórios. Essa assertiva faz-se procedente desde que
consideremos que o aparecimento do Eu ocorre em concomitância com o
surgimento dos ideais e, como sublinha Aulagnier, sem a configuração destes
não há aparato social ou psíquico que possa constituir-se solidamente e
perenizar-se.
Embora esta argumentação ressalte a ausência de narcisismo em
face da desintegração do contrato narcísico entre indivíduo e sociedade, uma
interpretação destes tempos, nascida nas academias americanas, partindo dos
mesmos pressupostos vai sustentar que não se trata de ausência de narcisismo
– tal como poderíamos inferir da argumentação de Aulagnier –, mas de seu
excesso. Vamos a ela.

Narcísicos ou perversos? – tipos sobressalentes

A teoria designada cultura do narcisismo tem em C. Lasch o seu


expoente intelectual mais proeminente. Poderíamos dizer que é a teoria que
vem ocupar os vácuos deixados pelo retraimentos do marxismo – sobretudo
aquele matizado pelo estruturalismo –, pela crise das utopias, e, também, pela
generalizada crise das teorias sociais nas quais os paradigmas se tornaram
ineptos ou insuficientes para explicar a experiência humana.
Neste sentido, o que vai delinear fundamentalmente esta nova visa-
da teórica é o lamentar constante da perda dos ideais, a partir da qual os inte-
resses pessoais ocupam o palco e tornam anacrônicos a política e os interesses
de classe. Em outras palavras, inexiste o projeto universal. Se nos situarmos
especialmente na abordagem de Lasch, a atualidade deve ser compreendida
como tempo da degenerescência cujo estigma é a perda se comparada à socie-
dade burguesa em seu vigor. Predomina o esfacelamento de um imaginário
fertilizado por propósitos a serem perseguidos e o esvaziamento do sentido
histórico: “Viver para o momento é a paixão predominante, viver para si e não
para os que virão a seguir, ou para a posteridade. Estamos rapidamente per-
dendo o sentido da continuidade histórica, o senso de pertencermos a uma
sucessão de gerações que se originaram no passado e que se projetarão para o
futuro. É o enfraquecimento do sentido do tempo histórico em particular a
erosão de qualquer preocupação maior com a posteridade que distingue a cri-
se espiritual dos anos setenta das erupções mais primitivas da religião milenar
com as quais mantém semelhança superficial” (Lasch, 1983, p. 25).
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PAIVA, Rita. A constituição do Eu: os imperativos da interpretação e a perda de sentido. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.

Embora a perda do sentido histórico se configure como o traço pro-


eminente desta sociedade, ele se delineia em concomitância com outras
características. No período áureo da sociedade burguesa era vigente o indivi-
dualismo competitivo, a personalidade autoritária, o homem econômico que,
assediado pela culpa, acumulava bens e provisões para o futuro e olhava o
mundo como um deserto do qual deve se apropriar e moldar de acordo com
sua vontade. Em contraposição, a sociedade presente é a sociedade da deca-
dência. Nela impera o homem moribundo, doente, obsessivamente preocupa-
do consigo mesmo. Seu estado de espírito permanente é o da ansiedade, o que
o leva a exigir imediata gratificação das experiências. Já que vive em estado
de desejo, não é capaz de postergar o gozo. A rigor, a sociedade atual padece
a gradual extinção da sociedade burguesa. A crise cultural que se alastra, as-
severa Lasch, deslinda a derrocada dos referenciais coletivos que permearam
o estilo de vida burguês. Surge a estratégia da sobrevivência na qual tudo se
centraliza no Eu e o que importa é subsistir.
Jurandir Freire Costa, que introduziu a discussão sobre a cultura do
narcisismo no Brasil na década de 80, assinala que a cultura narcísica singula-
riza-se pela exacerbação da condição de desproteção e superfluidade do Eu
que, majorada pela dimensão material e simbólica, leva o ego a radicalizar os
mecanismos de conservação no intuito de esquivar-se da impotência e da an-
gústia. A pulverização da solidariedade social figura, assim, como decorrên-
cia da profusão de sujeitos cuja aflição e ressentimento é perpassada por um
sentimento de injúria narcísica que o leve a lançar mão de artifícios que pos-
sam obnubilar os sentimentos que perfazem seu mal estar incessante. Ou seja,
priorizam o auto-investimento, os interesses pessoais e a valorização do pra-
zer imediato em detrimento de projetos futuros que o vinculem a um papel a
ser assumido no âmbito social.
Referindo-se à noção de automatismo da preservação narcísica de
Freud, J.F. Costa vai notar que é função primordial das instâncias ideais con-
trolar este automatismo que, quando não submetido à sua legislação, é poten-
cialmente transgressor das limitações impostas pelas estruturas sociais e cul-
turais. Sob esse prisma, é a configuração das leis ideais socialmente instituí-
das que afiançam ao sujeito o direito de investir numa imagem de si mesmo
legitimada seja pelos outros, seja pelo conjunto de regras simbólicas
estruturadoras da vida social. “Abandonado a si próprio o narcisismo egóico
tende a recair conservadoramente cumprindo o papel ao qual se destina. De-
pende do narcisismo, esta ilusão estruturante responsável pela experiência de
identidade. Ele não é uma formação imaginária descartável, é a pré-condição
da nossa adaptação pragmática ao mundo” (Costa,1984, p. 33). Já que não
compete a este instinto de conservação qualquer compromisso com a conti-
nuidade da subjetividade ou da vida social, sua tendência primeira é a de pre-
servar o indivíduo seja da mudança ou de uma pertinência social insuflada
pela criatividade. Dessa forma, numa sociedade permeada pela cultura do
narcisismo, uma vez que o instinto de preservação é o único interesse que
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PAIVA, Rita. A constituição do Eu: os imperativos da interpretação e a perda de sentido. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.

subjaz às ações dos indivíduos, não há investimento em projetos ou vínculos


que possam preservar os elos sociais. Nesta perspectivação, J. F. Costa vai
asseverar – assim como Lasch – que no universo social narcísico as condutas
individuais são potencialmente desintegradoras da sociabilidade. Envolto numa
atmosfera de desesperança e ansiedade, o sentimento de responsabilidade que
acompanha os indivíduos oriundos de experiências de sociabilidades contun-
dentes se desvanece, e torna-se lícito inferir que a cultura do narcisismo é
produtora de subjetividades retraídas que se pautam pela perda dos referenciais
temporais e sociais.
Uma interpretação do perfil do homem contemporâneo que se con-
trapõe à teoria do narcisismo encontra-se na obra de Contardo Calligaris. Longe
de apontar o narcisismo como sintoma predominante da contemporaneidade,
Calligaris vai problematizar a perversão como patologia social. A rigor, o
interesse e a paixão humana em sair do conflito neurótico – ultrapassar a condi-
ção do que se é para atingir o que se deseja ser – levaria à alternativa da aliena-
ção da subjetividade reduzindo-a a uma instrumentalidade, a um artefato dos
sistema onde o gozo reside na conduta funcional, na subsunção a uma ordem:
“Esta paixão me parece uma tendência inercial de qualquer neurótico, a paixão
da instrumentalidade, a paixão de ser instrumento” (Calligaris,1991, p. 111).
A condição de instrumento figura sedutora na medida em que nos
induz à imersão num “saber sabido” que nos priva do sofrimento engendrado
pela incerteza, pela falta, mesmo que seu preço seja o da alienação e o da
instrumentalização. Embora Calligaris nos alerte de que o termo alienação
não é utilizado por ele com uma conotação psicanalítica usual, não podemos
nos esquivar de uma possível associação. Vimos que na abordagem de
Aulagnier o registro do Eu na sua relação com os ideais não é isento de confli-
tos, incertezas, inseguranças. Em última instância, o conflito presentifica a
própria possibilidade do desejo, já que é essencial à sua preservação. Assim,
o território da realização do desejo é o espaço do conflito. Um risco ao qual se
expõe o Eu durante toda a sua existência é o da alienação que poderia supri-
mir definitivamente a tensão entre o ego e os ideais: “A Alienação concretiza
uma tentação que (..) permanece presente na atividade de pensar em todo o
Eu: reencontrar a certeza, excluir a dúvida e o conflito. E é por isto que o
desejo de alienar é tentador para todo o sujeito confrontado com este tipo de
‘desejante’” (Aulagnier,1985, p. 35).
Se, por um lado, desde a castração, o percurso do Eu é prefigurado
como uma variabilidade infinita aberta para um futuro avesso à determinação
– o que também significa exposição sistemática para o sofrimento, para o
desejo e a incompletude –, por outro, o campo dos laços sociais é fértil na
oferta de ideais que excluem o conflito obnubilando ou poupando o Eu do
esforço do pensamento, de perseguir seus projetos identificatórios. Tais ofer-
tas personificam-se na entrega a uma instituição, a uma ideologia ou seita
onde o Eu é eximido de qualquer responsabilidade explícita sobre a verdade à
qual ele adere: faz-se presumível, portanto, conceber que a sedução alienante
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PAIVA, Rita. A constituição do Eu: os imperativos da interpretação e a perda de sentido. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.

ou “sedução totalitária” viabiliza comumente a substituição dos projetos


identificatórios – em cujo encalço o Eu deve aceitar a falta e vivenciar a an-
gústia da experiência oscilante nos momentos em que os ideais lhes pareçam
inverossímeis ou inatingíveis – pela entrega a uma instituição ou verdade que
oblitera o peso da dúvida e logra o reencontro da certeza. Tornar-se instru-
mento é, por conseguinte, libertar-se da angústia de ser responsável pertinente
ao Eu em sua relação com os ideais.
A própria peculiaridade associativa da humanidade, no dizer de
Calligaris, é perpassada por um verniz totalitário na medida em que a tendên-
cia natural da vida social reside na “alienação total do sujeito à sua posição
instrumental”. Em outros termos, na vivência fatídica e inexorável da sociabi-
lidade, todos terminamos por atuar como catalisadores da funcionalidade dos
vínculos. A situação instrumental, alienante por excelência, suprime todo o
sofrimento engendrado pela castração extinguindo a falta e o conflito. Diante
disto, o Eu já não tem razões para inquietar-se com o alcance de seus ideais
visto que o desejo de presentificá-los foi substituído pelo desejo imediato de
aderência a um “saber sabido” socialmente universalizado e que faz dos sujei-
tos seus instrumentos.
Ancorando-se na premissa de que o desejo de esquivar-se do sofri-
mento neurótico com a alienação da subjetividade, instrumentalizando-a, é
um sintoma social de nosso tempo e na idéia de que a paixão pela
instrumentalidade é imanente à vida social, sua tendência natural, Calligaris
postula: “O ideal político nunca é mais do que a procura de um equilíbrio
instável entre uma alienação necessária para a vida social e a resistência à sua
inércia totalitária” (Calligaris,1991, p. 116). Nos interstícios das proposições
do autor, associadas às reflexões de Aulagnier sobre a alienação, como um
risco a que estamos sempre expostos, é possível vislumbrarmos outra leitura
– ainda que não mais promissora – para o homem de nosso tempo. A rigor, se o
fascínio pela instrumentalidade é inerente aos laços sociais, e os ideais políticos
aparecem como uma alternativa possível para que a imersão no estado de alie-
nação não seja completo, como poderíamos interpretar a pulverização dos pro-
jetos, da perspectiva futura, o desvanecimento da confiança da sociedade oci-
dental em si mesma, como insistem os autores com os quais dialogamos?
Sob o prisma da sedução totalitária seríamos predominantemente
perversos, já que já não há o desejo da instabilidade gerada pelo ideal político
entre a necessária alienação e a resistência à sua completude. De tal perspec-
tiva, o esgotamento das energias utópicas, a pulverização da capacidade de
atribuir sentido ao mundo atrelado aos ideais políticos teriam sido engolfados
pela tendência natural da vida social: a inércia totalitária, eliminando a tensão
entre ideais e alienação. Em face disto, a apatia atual decorrente de um estado
de alienação generalizado livra-nos da nossa condição de neuróticos,
erradicando o conflito imanente à relação Eu-ideais. Nessa situação, abriría-
mos mão do direito à persecução de ideais em prol da instrumentalização
majorada da subjetividade que nos exime da responsabilidade e nos reinsere
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PAIVA, Rita. A constituição do Eu: os imperativos da interpretação e a perda de sentido. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.

na plenitude de uma certeza indubitável, tal como o infans quando sofre a


ação da violência primária submetendo-se aos enunciado da mãe. Analogia
que é pertinente desde que não nos esqueçamos que esta violência é necessá-
ria e passageira.
O estado de letargia desse “tempo nublado” (Paz, 1982, p. 322)
nos remete ao dualismo pulsional presente na gênese do Eu. Não seria viável
conjeturar, por conseguinte, que a opção pela instrumentalidade e pela aliena-
ção equivalem ao desejo de aniquilar qualquer representação que atuasse como
indício de uma cesura na relação psique-objeto? Seria a prevalência do desejo
de não pensar, do desejo de retorno a um estado anterior ao desejo e, portanto,
a volta ao desejo de não desejo? Seria lícito ou exagerado observar que estes
sintomas prenunciam um tempo em que as pulsões de morte ascendem gradu-
almente sobre os percursos da libido, deserotizando o mundo e fazendo de nós
a concreção antinômica do homem moderno que nasce sob a égide da
maximização de seu potencial criativo?
Neste artigo, tentamos tematizar o aparecimento do Eu coextensivo
às imagens de futuro que, além de redimensionarem seu próprio passado,
embasam o papel ao qual o sujeito não pode se furtar, qual seja, o de intérprete
de sua história cujo destino é inventar e pensar sentidos para o mundo. Já que
nos deparamos hoje com a proliferação de “Eus” que no intento de se conser-
var, se resguardar, denegam o inédito, as mutações, o risco, extinguindo o
intervalo entre o desejo e o desejado (narcísicos), ou com aqueles que haurin-
do os sofrimentos inerentes às dúvidas aderem a um discurso de certezas e
verdades instrumentalizando-se (perversos), constatamos a crescente tendên-
cia para a alienação, para a obliteração de todo o pensar. Subseqüentemente,
instaura-se o decreto do luto de todo agir criativo, de todo sonho de futuro.
Daí devém que o indivíduo prevalente na sociedade contemporânea é aquele
que não logrou a assunção da castração – acontecimento que nos priva da
quietude decorrente do sentimento de onipotência e nos insere na aventura
inquietante da pluralidade de formas que o desejo pode assumir –, empenhado
que está na volta a um estado primário no qual a psique ainda não se distingue
do mundo, no qual a ilusão de sua completude permanece intacta. Destarte,
desejoso de gozos absolutos, o homem contemporâneo faz da morte seu norte
de persecução.
Se finalizamos com conclusões indubitavelmente pessimistas, as-
severando que vivemos o triunfo regozijante das pulsões de morte sob a
potencialidade humana de erotizar o mundo, com o encanescimento da libido,
é preciso considerar que não se postula aqui um olhar apocalíptico sob o qual
caminharíamos para o fim da criatividade e da vida humana. O embate entre
Eros e Thanatos já era apontado por Freud como imanente à ordem
civilizacional. Destarte, a civilização emerge e prolonga sua existência nesta
instância dilemática; o seu significado reside nesta luta que, no dizer de Freud,
emblematiza a própria essencialidade da vida. Já que tal confronto torna com-
preensível que a civilização traga sempre embutida em si o espectro da
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PAIVA, Rita. A constituição do Eu: os imperativos da interpretação e a perda de sentido. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.

barbárie, resta pensar que os destinos da ordem social, oriundos da criação e


da imaginação humanas, povoam a esfera da indeterminidade, na qual inexiste
a medida possível do previsível, tal como os destino do Eu. E, se hoje consta-
tamos a prevalência do homem narcísico ou perverso – sem nos esquecer que
a pretensão à normalidade talvez só seja lícita para os bárbaros (cf. Freud,
1978, p. 175) –, não significa que vivemos um império despótico e absoluto
de Thanatos que atinja as raias da supressão do embate entre as pulsões. O
que significaria, aliás, o próprio fim do social.
Coincidimos, assim, com Castoriadis quando este afirma que a his-
tória é a criação incessante de novas formas imaginárias, e que não há um tipo
de vida social no qual a criatividade humana se plasme definitivamente. Daí
que a busca do paroxismo e a ilusão do seu encontro – desejos que nos movem
como seres faltantes no encalço de uma completude fictícia e impossível –
talvez possam por si mesmos nos lembrar a condição de seres irredutivelmente
castrados e, assim, nos despertar desta letargia epocal em que a alienação e a
conservação equivalem ao reencontro da onipotência. Estaríamos assim con-
victos de que não vivemos tempos terminais e poderíamos contemporizar com
os dizeres de Bataille:
Se alguém me perguntasse o que nós somos, eu lhe
responderia assim: que somos essa abertura para
todo o possível, essa espera que nenhuma satisfação
material acalmará e que o jogo da linguagem não
saberia iludir! Estamos à procura de um ponto cul-
minante. Cada um, se lhe apraz, pode negligenciar a
procura. Mas a humanidade em seu todo aspira a
esse ponto, que só ela o define, que só ela justifica e
lhe dá sentido (Bataille,1987, p. 253).

Recebido para publicação em outubro/1997

PAIVA, Rita. The constitution of Self: the imperatives of interpretation and the loss of sense. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 83-104, may 1998.

ABSTRACT: This article aims to approach the social constituition of de indivi- UNITERMS:
dual. In this direction its intention is to bring into subject the necessary self,
individual,
requirementes for de Self to keep its structure all life long as well as to refer
society,
to the discussions on what the prevalling human being at this end-of-the- ideal,
century is like. future.

103
PAIVA, Rita. A constituição do Eu: os imperativos da interpretação e a perda de sentido. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.

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104
GULLO,
Tempo Álvaro de Aquino
Social; e Silva.
Rev. Violência
Sociol. USP, urbana: um problema
S. Paulo, 10(1):social. Tempo
105-119, Social;
maio deRev. Sociol. USP,AS. Paulo,
1998. R T10(1):
I G O
105-119, maio de 1998.

Violência urbana
um problema social
ÁLVARO DE AQUINO E SILVA GULLO

RESUMO: O presente artigo reúne um conjunto de reflexões sobre diversos as- UNITERMOS:
pectos em que se manifesta a violência social. Essas reflexões, apresentadas em violência,
violência social,
momentos diferentes, como aulas, debates e num congresso, foram agrupadas
violência urbana,
sob o título de Violência Urbana porque concorrem para a compreensão da vio- marginalidade social,
lência cotidiana enquanto problema da sociedade urbana. Dos cursos regulares, símbolos sociais,
registro a concepção inicial, tomada da antropologia social, que leva à caracteri- meios de comunicação
de massa.
zação da violência na sociedade rural para fundamentar a gênese do problema
na sociedade contemporânea de classes sociais, focalizado na perspectiva da
marginalidade estrutural. Dos debates sucitados por acontecimentos traumáticos
envolvendo o aparato policial, resultou uma discussão sobre as causas da violên-
cia inerente ao desempenho da função institucional atribuída às polícias militar e
civil. Da participação em congresso sobre o novo Código de Trânsito Brasileiro,
resultou a parte final deste artigo que discute o papel e, particularmente, o signi-
ficado dos símbolos sociais divulgados pelos meios de comunicação de massa,
como fatores responsáveis pela crescente violência no trânsito.

Violência na perspectiva da antropologia social

A
violência, considerada como um fenômeno social, é analisada como
um filtro que permite esclarecer certos aspectos do mundo social
porque denota as características do grupo social e revela o seu signi-
ficado no contexto das relações sociais.
Nas sociedades primitivas, promove os mais aptos para se tornarem
os defensores do grupo. Nas sociedades contemporâneas, consolida estruturas Professor do Departa-
mento de Sociologia
de poder, particularmente as fora da lei sob o controle de grupos organizados da FFLCH-USP
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GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. Violência urbana: um problema social. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
105-119, maio de 1998.

como máfias, cartéis ou bandos paramilitares. Nas sociedades democráticas,


reflete os limites jurídico-legais da ação determinada pelo pacto social. Quando
a violência ultrapassa os parâmetros sociais, recebe as sanções corresponden-
tes, de acordo com os instrumentos institucionais disponíveis.
A violência é parte das relações que compõem a sociedade e, con-
seqüentemente, segundo Roberto DaMatta (1982), sua condição de “norma-
lidade” é precisamente o fato de ser reprimida e evitada. Se é um fato univer-
sal, teremos que tomar como ponto de partida suas singularidades e seus mo-
dos específicos de manifestação em cada sistema com seus valores, ideologias
e configurações que se combinam concretamente em situações históricas par-
ticulares. Dessa perspectiva, a violência é inerente às relações sociais e varia
de acordo com a particularidade dessas relações em diferentes grupos e socie-
dades historicamente considerados.
A abordagem desse problema pode ser feita através da análise teó-
rica que o considera como um processo social, um mecanismo social que é a
expressão da sociedade, uma resposta a um sistema que se associa à forma de
poder vigente onde a oposição entre dominante e dominado se reproduz de
acordo com o contexto das relações sociais que o grupo desenvolve e, conse-
qüentemente, desemboca em medidas legais e jurídicas do próprio sistema.
Por outro lado, a visão do senso comum ou popular aborda a vio-
lência como um mecanismo que resulta da experiência diária das pessoas, isto
é, dois seres em luta, tendo em vista uma perspectiva moral, a injustiça dos
destituídos e dos trabalhadores, algo concreto voltado contra um ser humano
palpável, real e não contra um grupo ou classe definidos por meio de critérios
políticos e econômicos.
Conclusões sobre a violência social:
1. A violência é um fenômeno social inerente a qualquer tipo de
sociedade;
2. A forma sob a qual se manifesta reflete o tipo de sociedade e
mostra o seu significado nessa sociedade;
3. A violência depende, portanto, de estímulos provenientes da pró-
pria sociedade.

O banditismo social na sociedade rural

A abordagem desse fenômeno social analisado através da


metodologia científica, cuja preocupação é a de buscar explicações baseadas
em dados empíricos levantados, selecionados e coligidos mediante técnicas
de observação e análise comuns a todo investigador, possui validade univer-
sal de acordo com as condições comuns em que o fenômeno social é conside-
rado. Devido à complexidade dos fenômenos sociais, as uniformidades e re-
gularidades variam de uma sociedade para outra, daí os seus resultados se
apresentarem como generalizações empíricas – menos rígidas do que a for-
mulação de “leis” do comportamento –, embora devido à sua natureza lógica
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GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. Violência urbana: um problema social. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
105-119, maio de 1998.

se configurem como uma representação conceitual da realidade.


Para ilustrar esse procedimento podemos citar o estudo de Eric J.
Hobsbawn (1976) sobre o banditismo social, mostrando sua notável unifor-
midade em todas as épocas e continentes. A análise do comportamento real do
bandido corresponde a um papel social que lhe foi atribuído no drama da vida
camponesa e o caracteriza como um produto da sociedade rural. São grupos
de homens que atacam, roubam e matam, configurando um tipo de bandido
que reflete uma forma de rebelião minoritária na sociedade rural. São proscri-
tos rurais, vistos como criminosos pelo Estado, mas que fazem parte da socie-
dade rural onde são considerados heróis, campeões, vingadores, paladinos da
justiça ou até como líderes da libertação. Os exemplos variam desde Robin
Hood na Idade Média, passando por Pancho Villa no México colonial, Lam-
pião no Brasil do início do século, até Salvatore Giuliano nos anos 50 no sul
da Itália.
Esse banditismo social é caracterizado pelo autor como:
1. um fenômeno universal da história que se apresenta com impres-
sionante uniformidade nas sociedades que se baseiam na agricultura e, conse-
qüentemente, mobiliza principalmente camponeses e trabalhadores sem ter-
ras, governados, oprimidos e explorados – suas principais formas de manifes-
tação são o ladrão nobre, o combatente primitivo que luta pela resistência e o
vingador impiedoso que semeia o terror;
2. um reflexo de situações semelhantes típicas da sociedade rural e
agrega um grupo médio surpreendentemente uniforme no decorrer do tempo,
de dez a vinte homens;
3. parece ocorrer entre a fase evolutiva da organização social
sangüínea (tribal ou clã) em desintegração e a transição para o capitalismo
agrário;
4. floresce em áreas remotas e inacessíveis devido à ineficiência
administrativa e burocrática;
5. tende a tornar-se epidêmico em épocas de pauperismo ou de crise
econômica e tende a voltar ao normal após o período de perturbações no equi-
líbrio tradicional.
As causas desse banditismo social são, portanto: a) a existência de
camponeses que se recusam à submissão – são jovens independentes e poten-
cialmente rebeldes; b) a existência de homens que se encontram excluídos da
carreira habitual que lhes é oferecida e, conseqüentemente, são forçados a um
comportamento proscrito e irregular, resíduo de uma população rural exce-
dente, devido à precariedade da economia agropastoril em áreas montanhosas
ou de difícil acesso, com solo relativamente pobre – são os sintomas de crise e
tensão na sociedade em que vivem; c) a existência de indivíduos que se preo-
cupam em restaurar uma ordem tradicional mítica daquilo que deve ser “jus-
to”, podendo passar do objetivo modesto da reforma para a revolução campo-
nesa se se tornarem símbolos ou ponta de lança da resistência ou ao rejeitarem
a submissão, sonhando com um mundo de igualdade e liberdade.
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GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. Violência urbana: um problema social. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
105-119, maio de 1998.

Podemos, então, afirmar que o bandido social é um proscrito, um


rebelde que se recusa a aceitar os papéis normais da pobreza e que firma sua
liberdade através da força, da bravura, da astúcia e da determinação. Como
grupo armado ou núcleo de força armada constitui uma força política, ou seja,
um reservatório de homens armados e descomprometidos à disposição de um
chefe local como aliados potenciais.
A transição de uma economia pré-capitalista para uma economia
capitalista complexa provoca uma transformação que altera a configuração
social do bandido e a violência passa a ser um reflexo dessa sociedade. A
evolução dos bandos mafiosos, com seus códigos de honra, originários da
tradição rural, mostra como esse tipo de violência se reorganiza num processo
de transição que vem desde o clã familiar e atinge as formas mais complexas
das atividades que se desenvolvem no âmbito da economia capitalista.

A marginalidade na sociedade urbano-industrial

A análise da marginalidade como fenômeno social considera a com-


plexidade de fatores que atribuem ao comportamento real do marginal um
papel social que lhe foi atribuído no drama da vida urbana. Os grupos de
homens que atacam, roubam e matam caracterizam um tipo de marginalidade
que reflete uma forma de resposta às contradições da sociedade urbana. Esses
marginais urbanos, vistos como criminosos pelo Estado, se encontram impos-
sibilitados de integração na sociedade urbana porque são considerados
perturbadores da ordem institucional. Formam grupos, bandos ou gangs e
geralmente habitam cortiços e favelas.
As características da marginalidade social são objeto de um traba-
lho de Manoel T. Berlinck (1977) que a considera como um fenômeno univer-
sal na história das sociedades que se baseiam no capital como forma de orga-
nização do mercado, da mercadoria, da tecnologia, da força de trabalho, do
lucro e da acumulação de capital. A marginalidade é um reflexo de situações
semelhantes que ocorrem nessas sociedades e pode se manifestar através de
grupos bem armados e bem organizados de acordo com a tecnologia utilizada
pela sociedade. Ocorre como parte integrante da dicotomia entre capital e tra-
balho que consolida o capitalismo industrial nas relações de produção. De-
senvolve-se geralmente em bolsões urbanos que se intercomunicam com a
sociedade inclusiva devido às contradições impostas pelo sistema social. Con-
seqüentemente tende a se tornar endêmica em épocas normais, considerando-
se a dualidade entre emprego-integração e desemprego-desintegração.
As causas mais freqüentes da marginalidade social podem ser:
1. a existência de indivíduos que não têm condições de se adaptar
ao processo de trabalho urbano-industrial devido a problemas de formação,
como os decorrentes da desorganização familiar, da falta de orientação educa-
cional e ocupacional, de condições precárias de moradia e que se encontram
excluídos do mercado de trabalho;
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2. a existência de mão-de-obra sem qualificação que se dedica a


ocupações irregulares, proscritas ou ilegais graças a uma dualidade estrutural
– não conseguiram acompanhar a transição de uma cultura para outra;
3. a existência do subemprego e do desemprego como resíduo do
processo de desenvolvimento econômico.
4. as características da estratificação social na sociedade de classes
onde a hierarquia social que estabelece os limites legais que marcam a separa-
ção entre os estratos sociais dependem do status social ou posição determina-
da ou definida por critérios ou atributos sociais. É composto de elementos
políticos, econômicos e culturais como educação, modo de falar, de vestir,
estilo de vida, ocupações intelectuais, cultura, atividade ocupacional e rique-
za. Numa sociedade estratificada por ocupações, o status atribuído caracte-
rístico da tradição é substituído pelo status adquirido característico da quali-
ficação competitiva. Essa associação do status com o processo de desenvolvi-
mento urbano-industrial-capitalista determina o sistema de classes sociais,
que consiste em um conjunto diferenciado de grupos de agentes definidos por
seu lugar no processo de produção econômico determinado por critérios polí-
ticos e ideológicos fundamentados em educação, ocupação e renda;
5. o desenvolvimento da tecnologia da comunicação de massa,
onde a relação que se estabelece entre o comunicador com seu aparato
tecnológico e o receptor é desigual porque, como conseqüência do desenvol-
vimento da tecnologia, o comunicador possui os mais poderosos e mais am-
plamente disseminados canais de informação. Dessa forma, pode atuar como
estímulo para o pensamento reflexivo e prelúdio para a ação inteligente ou
como inibidor dessas características. Trata-se de um meio de dominação que
varia desde a informação até a propaganda como estereótipo de massa, crian-
do uma nova ordem na distribuição do poder. Os dominantes que controlam
a produção da informação de forma empresarial e os dominados que conso-
mem o produto através da mensagem – a “industrialização da cultura”.
Considerando a marginalidade social sob estes aspectos verifica-
mos que ela pode se tornar fonte de violência social porque:
a) explora a força do trabalho da mão-de-obra não qualificada ou
exército de reserva do desenvolvimento que resulta dos efeitos da superpo-
pulação e das migrações;
b) consolida a dependência explicada pelas relações de dominação
decorrentes da dualidade que obscurece as relações de classe que se manifes-
tam na impossibilidade de ocupar papéis de maior produtividade no sistema;
c) intensifica as tensões ou insatisfações sociais capazes de gerar
violência social como decorrência de uma resposta variável da condição so-
cial que se expressa através do subemprego, do desemprego, da pobreza e da
desigualdade manifestada nos diferentes níveis da cultura;
d) é manipulada pelos meios de comunicação de massa.
Portanto, o problema de violência urbana analisado como um refle-
xo da marginalidade estrutural passa a ser uma condição dada para o sistema,
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e varia apenas na medida da variação do desenvolvimento político-econômico


do sistema neocapitalista.

A violência institucional: análise de casos

A violência da sociedade se contrapõe à violência dos excluídos e se


manifesta através do aparato policial, que caça, prende, tortura e mata cidadãos
protegido pelo pressuposto de que se trata da luta do bem contra o mal.
No caso particular das polícias militares cuja prática da violência é o
seu cotidiano, podemos analisar o comportamento de seus membros como de-
corrência da combinação de quatro fatores fundamentais: concepção, ideologia,
treinamento e impunidade.
As milícias estaduais passaram a desempenhar o papel de policias
militares por força do decreto-lei 667, de 2 de julho de 1969, promulgado duran-
te o regime autoritário instaurado a partir do golpe de abril de 1964. Transfor-
maram-se em forças de controle dos estados por parte do governo central. Em-
bora os governadores fossem escolhidos pelo governo central, as policias mili-
tares comandadas por membros do exército, garantiam a ordem autoritária e
evitavam possíveis desvios. Foram concebidas como instrumentos do poder
autoritário e, portanto, imbuídas de força repressiva contra as manifestações
populares indesejáveis.
Essa concepção repressiva desenvolveu nos comandantes a ideologia
da repressão policial fundamentada na visão militar de ordem, respeito à autori-
dade, submissão à vontade do comando e punição exemplar. As decisões ema-
nadas da cúpula por força da formação baseada no prestígio e poder hierárqui-
cos se consolidaram como norma de ação reconhecida como adequada à atuação
da instituição que se expressam numa ênfase à preparação para o combate urba-
no em detrimento da atividade assistencial de proteção ao cidadão.
Dessa perspectiva, todos os integrantes da instituição são adestrados
sob a égide desses valores que atingem com mais intensidade os jovens
ingressantes nas categorias de soldado, cabo ou mesmo sargento e subtenente,
cuja formação social na Polícia Militar do Estado de São Paulo é reconhecida-
mente deficiente porque, além de serem menos escolarizados, possuem baixo
nível econômico e moram em piores condições (20% de cabos e soldados mas-
culinos possuem o 1º grau completo e 25% da mesma categoria possuem o 2º
grau incompleto; 45% de cabos e soldados masculinos possuem o nível econô-
mico mais baixo e 30% de cabos e soldados moram em imóvel emprestado,
vaga, pensão ou república, com parentes ou conhecidos ou no quartel, cf. Gullo,
1992).
Esses policiais militares são selecionados a partir de uma massa de
candidatos pouco qualificados, por força da elevada taxa de desemprego e dos
salários pouco atraentes. Mais vulneráveis, tendem a assumir os valores autori-
tário-repressivos através de treinamento onde se dá pouca ênfase a questões
ligadas aos direitos humanos ou às diferenças inerentes às camadas sociais que
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compõem a sociedade. Apesar dessas deficiências, os policiais são imbuídos de


autoridade e poder objetivados pelo uso da farda como símbolo social e da arma
como suporte da ação, embora não estejam preparados social e psicologicamen-
te para usá-las dentro dos limites da lei. Trata-se de, no mínimo, um convite ao
exercício inadequado da atividade.
Do ponto de vista psicológico é a insegurança para assumir a ocupa-
ção que se manifesta na atividade ocupacional. Um sintoma disso é a tendência
que constatei na pesquisa citada onde mostro que 27% dos cabos e soldados
masculinos não usam a farda no percurso entre o local de residência e o local de
trabalho porque se sentem inseguros, não querem ser identificados e se sentem
constrangidos como PMs.
Do ponto de vista sociológico, considerando o fato de as classes su-
balternas, por aspirarem as posições de maior prestígio e poder das classes do-
minantes, assumirem os valores dessas classes e passarem a se orientar por
esses valores, mesmo contra os membros de sua própria classe social, é de se
esperar uma distorção na forma de perceber o suspeito na perspectiva do apara-
to policial. Sem reconhecer as diferenças sociais, os policiais militares tendem a
ter uma visão distorcida da população. O pobre, o negro, o desempregado, o mal
vestido são vistos como suspeitos e, portanto, passíveis de um tratamento re-
pressivo. No trabalho citado, 19% dos cabos e soldados masculinos afirmaram
que não recebem boa instrução, formação e supervisão adequadas e 44% se
julgam razoavelmente preparados para o exercício da atividade.
A impunidade fica sendo o fator que consolida o desvio da ação poli-
cial militar porque, apesar de existir uma justiça paralela e corporativa que ten-
de a proteger os seus pares, a justiça comum, quando atua de forma complemen-
tar, depende de inquéritos elaborados mediante graves distorções e sofre pres-
sões do aparato policial para evitar condenações que o desmoralizem.
A polícia civil apresenta desvios talvez até mais graves que a polícia
militar, caracterizado pelo arbítrio inerente ao autoritarismo dos que assumem o
papel de justiceiros por não compreenderem que a sua ação institucional é a de
instrumento da Justiça. Acrescente-se a isso a corrupção institucionalizada que
há muito contaminou o aparelho policial civil, conforme foi demonstrado em
análise sobre esse tipo de comportamento (cf. Mingardi, 1992). Verifica-se que
a violência institucional é inerente à sociedade que concebe e reforça a ideologia
da repressão em detrimento dos direitos humanos do cidadão.
Esse diagnóstico da violência institucional caracteriza uma socieda-
de cujos valores estão corroídos pela hipocrisia que caracteriza a situação de
classe. A violência só é lembrada quando atinge as classes dominantes, mas
poucos se lembram da violência que atinge as classes dominadas. A sentença do
juiz José Ernesto de Mattos Lourenço, da 18ª Vara Criminal de São Paulo, que
condenou os assassinos do famoso caso Bodega ocorrido em São Paulo lembra
que o crime praticado contra “jovens filhos de classe média, num bairro dos
mais finos desta cidade, provocou até mesmo o nascimento de um movimento
que intitulou-se Reage, São Paulo” (Juiz condena 4 réus do caso Bodega, O
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Estado de S. Paulo, Caderno Cidades, 25/03/97). Porém, segundo o próprio


juiz: “essa a face hipócrita da sociedade, sem embargo da necessidade de reação
contra a inoperância do Estado diante da violência crescente e assustadora”,
pois “essa mesma sociedade, todavia, jamais reagiu quando os filhos de famíli-
as miseráveis, nos confins da periferia regional e social, foram e continuam
sendo assassinados”. O juiz afirmou ainda que o “Reage, São Paulo não rea-
giu em favor dos nove jovens que foram barbaramente acusados e sofreram
para confessar um crime que não cometeram. Alguns desses jovens, que de
comum têm a vida infra-humana, a pobreza latente, a falta de esperança de
dias melhores, a miséria como companheira constante, a falta de ideal e pers-
pectiva de futuro, a cor da pele, ainda sofrem as conseqüências da perversida-
de. A conclusão é dolorosa: matar filho de rico em bairro de classe média alta
ou abastada dá notícia, repercute, revolta a sociedade, que reage; o mesmo
fato, quando atinge o marginalizado da economia não desperta reação”. Lem-
bra ainda os “métodos medievais para extorquir confissões de nove inocen-
tes” utilizados pela polícia civil, que submeteu esses jovens a sessões de tor-
tura para que confessassem o crime. Entretanto, não foi designado um “pro-
motor público para acompanhar o inquérito destinado a apurar a responsabi-
lidade dos policiais envolvidos na farsa”.
A violência institucional se prolonga na situação sub-humana em que
vive a população carcerária denominada pelo aparato policial de “reeducandos”,
como se fosse possível a reeducação de alguém nas terríveis cirscunstâncias em
que se encontram. “Há 150 mil presos confinados num espaço total com capaci-
dade para 60 mil. As condições sanitárias são horríveis e muitos presos estão
doentes, sem tratamento; o Estado não garante a integridade física dos detentos,
sendo comuns estupros e assassinatos; não são devidamente separados crimino-
sos perigosos de autores de pequenos delitos; muitos estão presos irregularmen-
te em celas de delegacias e aguardam julgamento por muito mais tempo do que
prevê a lei” (A Igreja e os presos. O Estado de S. Paulo, 15/02/97).
Nas prisões, as indignidades físicas e mentais chegam ao auge da
humilhação através de rebaixamentos e degradações que são responsáveis por
uma deterioração moral irreversível. Os “reeducandos” sofrem a violência de
um aparato policial e prisional que compromete irremediavelmente as suas pos-
sibilidades de reintegração à sociedade, tornando-os mais violentos. Muitas ve-
zes o indivíduo é atingido injustamente pelo aparato policial e é arremessado às
prisões. Comentando sobre a campanha da CNBB para o ano de 1997, que teve
como tema os encarcerados, um bispo afirmou que cerca de 15 a 20% dos encar-
cerados no Brasil são vítimas de flagrantes forjados pelo aparato policial.
Desse embate entre a violência dos excluídos e a violência repressora
institucional fica a evidência de que o modelo da violência exprime as contra-
dições plantadas pelo sistema político-econômico do capitalismo industrial.
As relações sociais que caracterizam a violência contemporânea são desen-
volvidas na sociedade urbano-industrial e resultam de um processo de filtragem
e discriminação que seleciona da população os indivíduos mais qualificados
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para viverem em determinada região e em determinado meio, por força de


suas condições socioeconômicas que resultam das diferenças existentes entre
as classes sociais. A mercantilização do espaço é um fator fundamental para
discriminar os moradores de determinadas regiões, que se contrapõem a ou-
tras regiões caracterizadas por bolsões onde se desenvolvem estilos de vida
diversos e competitivos. O confronto de estilos de vida opostos dá lugar às
lutas urbanas entre as diferentes classes sociais como ponto de partida para o
conflito que caracteriza a violência urbana.

A violência e os símbolos sociais: uma explicação da violência no trânsito

O papel do veículo de transporte como símbolo social


Dentre os símbolos sociais mais importantes na sociedade contem-
porânea (imóveis, roupas, eletro-eletrônicos), o veículo de transporte (carros,
motos, embarcações, aeronaves) desempenha um papel fundamental no imagi-
nário coletivo porque se transformou num referencial poderoso para a orienta-
ção do comportamento. A representação do seu significado social é mais forte e
definidora do comportamento do que o seu valor intrínseco. Além de meio de
transporte, é emoção, poder, prestígio, satisfação do desejo, respeito, conquista,
sucesso, felicidade enfim. Não é o que ele oferece objetivamente que mais im-
porta, mas o que ele representa no imaginário coletivo que o torna tão atraente,
um ser supremo e superior como um deus ex machina que o indivíduo venera e
se submete, na esperança de através dele atingir a felicidade ideal. Essa podero-
sa fantasia é alimentada pela máquina publicitária da propaganda mercadológica
divulgada pelos meios de comunicação de massa – rádio, televisão, cinema,
imprensa, discos e fitas, microcomputadores –, forças poderosas de controle
social comandadas por uma “elite” dirigente que bombardeia os indivíduos atra-
vés de comerciais, associando o objeto a sentidos simbólicos universais, valori-
zados pela sociedade contemporânea de classes sociais. Aqueles de detêm o
controle da tecnologia das comunicações e da informação, detêm o controle
psicossocial da população, que se transforma numa massa porque responde atra-
vés de um comportamento uniforme e, portanto, está sujeita às associações que
a “elite” apresenta para atender aos seus interesses político-econômicos e, con-
seqüentemente, culturais. A associação ao veículo como símbolo social vai des-
de a boa recepção, passando pelo reconhecimento, até chegar ao respeito – é a
consagração social. Através do veículo podem ser satisfeitos os desejos de li-
berdade, de usufruto da velocidade, da conquista do prazer prometido, da desco-
berta da sensualidade, do devaneio do erotismo, do deleite na sua plenitude,
representando a obtenção do sucesso e o conhecimento da felicidade.
Desde a força da audácia juvenil até o bem-estar do conforto da ma-
turidade, tudo converge na direção do veículo e ele passa a ser a aspiração su-
prema no imaginário coletivo porque a motivação se torna inevitável devido à
articulação dos valores com os quais a publicidade trabalha.
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Numa sociedade de classes sociais, que considera o status social ou


posição determinada ou definida por critérios ou atributos sociais como funda-
mental para o reconhecimento do lugar em que indivíduos ou grupos se situam
na hierarquia social, a associação do veículo ao status lhe confere importância
fundamental. A cada tipo de veículo corresponde um determinado status social
e através do veículo se “reconhece”, na concepção da máquina publicitária, o
nível socioeconômico, o nível educacional e o nível cultural. O veículo como
símbolo de status passa a ser um componente indispensável na formação da
ideologia na sociedade contemporânea. A publicidade desenvolve a aspiração e
a motivação inerente ao comportamento, consolida o valor do veículo como
inabalável e permanente no imaginário coletivo porque promove simbolicamen-
te a ascensão social.
Conclusões sobre o veículo de transporte como símbolo social:
1. O veículo de transporte se tornou um dos mais poderosos símbo-
los sociais contemporâneos;
2. Na sociedade contemporânea significa a passagem para o suces-
so e a felicidade e por esse motivo é adorado e venerado como um deus;
3. A técnica publicitária divulgada pelos meios de comunicação de
massa explora esse significado ao extremo, desencadeando estímulos coleti-
vos com grande intensidade;
4. Na sociedade de classes sociais essa associação adquire no ima-
ginário coletivo força poderosa capaz de promover simbolicamente a ascen-
são social.
O reforço da ublicidade através dos meios de comunicação
O desenvolvimento da tecnologia das comunicações atua sobre o pro-
cesso de aprendizado social ou socialização, mediante a exposição e o consumo
de elementos ou objetos aos quais são atribuídos valores que correspondem aos
anseios da sociedade urbano-industrial-capitalista, como poder, prestígio, auto-
afirmação, competição, sucesso, beleza, força, juventude ou sexo. O veículo,
especialmente carros e motos, como objetos de consumo e fonte de lucro, é
associado a valores sociais e os representa no imaginário coletivo como símbo-
los de ascensão social, constituindo modelos de comportamento que simboli-
zam essa ascensão social. O processo se consolida reforçado pela máquina pu-
blicitária, que utiliza os meios de comunicação de massa para a propaganda da
ideologia que justifica a mobilidade social. Cabe assinalar que, além da tecnologia
das comunicações, outras agências que promovem o aprendizado social tam-
bém vêm sofrendo o impacto da ideologia da mobilidade social – a família, a
escola, o grupo de pares, as organizações políticas, ocupacionais, esportivas e
religiosas.
A veiculação dessa propaganda é feita principalmente através de in-
divíduos eleitos que se destacam pelas suas características físicas ou ocupacionais
nas mais diversas esferas – no esporte, no cinema, no rádio, no teatro, na televi-
são, nas artes plásticas, na política, nas letras, na religião, enfim, em todas as
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áreas da cultura que servem de matéria-prima para a produção industrial da


cultura. Os heróis da mídia se transformam em modelos de comportamento. O
indivíduo Ayrton Senna se transformou num herói nacional dirigindo um carro
que se assemelhava a um computador, a 300 km por hora, vencendo a corrida,
associando essa atitude às cores da bandeira nacional e ganhando milhões de
dólares. Numa sociedade que valoriza a competição, a habilidade pessoal para
superar os limites, o vencedor, ao atingir o sucesso, que é transferido à nação,
recebe a suprema recompensa que é o prêmio milionário, transformando essa
conquista num motivo de adoração que é propagado pela tecnologia das comu-
nicações, elevando o indivíduo à categoria de semideus. O indivíduo foi trans-
formado em um símbolo social, em um mito, em um modelo de comportamento
que desencadeia a motivação necessária ao impulso coletivo que é incorporado
pelo processo de socialização. Todos aspiram, e os menos afortunados com maior
ansiedade, a reproduzir sob quaisquer condições o comportamento do símbolo
social, sintetizado na figura do eleito. O culto a esse herói permanece nas inúme-
ras rodovias, avenidas, praças e ruas que pelo país afora foram denominadas
pelos governantes de Ayrton Senna para preservar na memória o comportamen-
to do ídolo.
A sociedade, portanto, cultua o herói, idolatra o seu comportamento e
tudo o que ele significa objetivamente, inclusive a audácia da alta velocidade
como um valor supremo. Ora, a cultura da velocidade incentivada pelos meios
de comunicação de massa, dando plena divulgação às corridas de Fórmula 1,
Indy ou rallys, socializa o imaginário coletivo que aprende a ver na forma com
que o veículo (carros ou motos) é utilizado o meio de conquistar associações
que a ele são transferidas. Velocidade é sinônimo de emoção, de poder, de pres-
tígio, de auto-afirmação, de sucesso. Como contrapor à força da cultura da velo-
cidade a cultura do controle da velocidade que as agências fiscalizadoras lutam
para implantar através da sinalização, da orientação, da fiscalização e das san-
ções penais pela aplicação de multas ou reeducação? Estamos diante de uma
contradição imposta pela própria sociedade, onde o apelo mais atraente do pon-
to de vista emocional tende a prevalecer. Vender velocidade dá lucro, controlar a
velocidade significa economia. São mercadorias com sentidos sociais
diametralmente opostos, apenas equilibrados pelos interesses político-econô-
micos do sistema capitalista. A violência no trânsito, decorrente da velocidade,
deve ser analisada como um reflexo da estrutura da sociedade contemporânea e
passa a ser uma condição dada para o sistema que varia apenas na medida da
variação do desenvolvimento econômico da indústria automobilística. O con-
trole da velocidade tendo em vista diminuir seus efeitos violentos é a norma
ética que se contrapõe a essa condição do sistema.
A força que as associações atribuem ao veículo foram magistralmen-
te apresentadas em dois filmes recentes. Em Um dia de fúria (Falling down,
1993), de Joel Schumacher, o personagem central desencadeia a sua fúria de-
vastadora a partir das pressões a que se vê submetido, por força de um conges-
tionamento de trânsito onde sofre todo tipo de agonia e desespero, confinado em
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seu veículo, até que o abandona e parte para a violência. Já em Estranhos pra-
zeres (Crash, 1997), de David Cronenberg, o carro é a fonte da violência que
gera o prazer. O prazer erótico, sensual que a violência do desastre provoca. É
um filme sobre morte, sexualidade e tecnologia onde o carro é tratado como
mito devido à fascinação que exerce sobre o homem moderno. O carro represen-
ta potência sexual através do arranque do motor levando a uma excitação sexual
próxima da morte. Já nos anos 60, Jean-Luc Godard apresentou Week-end, onde
filmou acidentes numa auto-estrada para expressar o polo negativo de uma so-
ciedade em que o carro é elemento de massificação do comportamento quando
todos são compelidos a congestionar as estradas provocando terríveis acidentes.
Na verdade é uma violência pavimentar auto-estradas sem sinaliza-
ção ou fiscalização eficientes, entregar avenidas sem lombadas ou valetas, dei-
xar ruas e praças mal sinalizadas e sem qualquer tipo de controle do tráfego.
Reconhecemos que a fiscalização é insuficiente nos grandes centros urbanos, e
longas polêmicas jurídicas e legais sobre quem pode e deve aplicar multas de
trânsito, como vem ocorrendo em São Paulo, só servem para confundir os moto-
ristas e incitá-los ao desrespeito das leis do trânsito. Não será apenas a regula-
mentação do novo Código de Trânsito Brasileiro que possibilitará um controle
mais efetivo sobre o respeito às leis do trânsito. O sentido social antecede ao
princípio jurídico-legal da punição. A falta de uma política nacional para esta-
belecer os parâmetros sociais da ação dos motoristas quanto ao sentido social
dessa atividade, contribui mais para confundir sobre as normas de trânsito do
que para esclarecer sobre os direitos e deveres de quem sai dirigindo um veículo.
Na ausência de parâmetros gerais, cada um dá a sua interpretação do que é
permitido e assiste-se ao triste espetáculo de motoristas abusando das normas
mais elementares de respeito no trânsito. As campanhas de esclarecimento são
sempre circunstanciais, localizadas e transitórias, não chegam a desenvolver e
consolidar novas formas de comportamento, exceto como no caso do uso do
cinto de segurança em São Paulo, que, por força de multas elevadas, impôs seu
uso freqüente, que parece estar se consolidando como norma de comportamento
enquanto houver fiscalização. Todavia, o ex-prefeito Paulo Maluf, mentor da
medida, quando ocupava o cargo de prefeito, deu dois exemplos, registrados
pelas reportagens dos jornais Folha de S. Paulo, em 22/01/93 e de O Estado de
S. Paulo, em 30/05/94, de desrespeito às normas mais elementares do trânsito,
explicando suas infrações com as costumeiras evasivas de culpar terceiros por
atitudes de sua inteira responsabilidade. No primeiro caso, culpando o motorista
que estava às suas ordens, por ter “costurado” e andado a 130 km/h, e no segun-
do caso, a falta de fiscalização nas ruas e avenidas por onde “pilotou” seu Ja-
guar Lister modelo Les Mans a mais de 160 km/h. É o caso da autoridade des-
provida do sentido social de sua tarefa, apenas circunscrita a medidas legais
político-eleitoreiras.
Conclusões sobre o reforço da publicidade:
1. A socialização ou processo de aprendizado social incorpora a
ideologia da sociedade urbano-industrial através da publicidade divulgada pelos
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meios de comunicação de massa;


2. A publicidade reforça a ideologia do símbolo social atribuído ao
veículo através da associação com indivíduos eleitos pelas suas característi-
cas pessoais e ocupacionais como modelos do sucesso social;
3. Quando no caso particular o comportamento do eleito se caracte-
riza pelo uso do veículo em alta velocidade, os meios de comunicação se en-
carregam de reforçar no processo de socialização a cultura da velocidade como
um valor supremo que é incorporado simbolicamente pelos indivíduos.
4. Dessa forma, fica evidente uma contradição típica da sociedade
urbano-industrial-capitalista: a promoção da velocidade praticada pelos he-
róis da mídia se contrapondo aos esforços educativos das agências sociais
encarregadas do controle dos excessos da velocidade dos veículos.
O automóvel como símbolo da violência
Do que foi exposto podemos verificar que o automóvel e as motos
são cada vez menos utilizados como meio de transporte e cada vez mais como
símbolos sociais que, além de expressarem seu valor econômico, são também
forma de poder, prestígio, força, habilidade, destreza, sucesso, beleza, juventu-
de, felicidade enfim. Refletem, demonstram e consolidam a ascensão social pre-
tendida e aspirada e passam a ser um símbolo adorado como a representação de
um deus ex machina que conduz a um patamar superior na hierarquia social.
Trata-se de um mecanismo poderoso que se explica através da psicologia social
das massas consumidoras, socializadas sob o impacto de valores divulgados
pela tecnologia das comunicações, através de uma intensa publicidade como
forma de consolidar a propaganda estrutural que garante a reiteração da ideolo-
gia dominante do consumo capitalista. O escritor gaúcho Moacyr Scliar lembra
que: “As ditaduras exercem o totalitarismo mediante a prisão, a tortura, a censu-
ra, as máquinas de extermínio. Já o totalitarismo democrático se dá por meio do
consumo, que homogeneiza comportamentos, padrões estéticos e de gosto”.
Todas as outras agências sociais como a família, a escola, a igreja, a política, a
cultura em geral, podem ser contaminadas pelo poderio dessa força avassaladora
que é a tecnologia das comunicações, através da qual se pratica o totalitarismo
democrático. Desenvolve-se uma verdadeira indústria do consumo desses valo-
res que se utilizam dos objetos ou elementos sociais mais atraentes, como os
eletroeletrônicos, as roupas, os imóveis e especialmente os carros e motos, para
sintetizar esse processo de consumo.
O uso de símbolos sociais recém ou mal-assimilados pelas classes
emergentes na moderna sociedade de consumo distorce o valor a eles atribuído.
Quando o uso do carro como transporte se converte numa manifestação de po-
der, na ostentação da riqueza e, além das normas usuais estabelecidas para os
mesmos, traduz-se no excesso de velocidade, no desrespeito às leis do trânsito,
na supervalorização do veículo em relação ao pedestre, essa distorção se trans-
forma na agressividade que caracteriza uma forma de violência. Esse comporta-
mento caracteriza o trânsito nas cidades, cujo desenvolvimento do tráfego se
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apresenta em expansão desordenada e descontrolada por força do consumo de


objetos que simbolizam ascensão social. Acrescente-se a isso a insuficiência de
meios institucionais para que os agentes fiscalizadores possam aplicar as san-
ções correspondentes às infrações, temos como resultado a tendência ao aumen-
to da violência urbana no trânsito. Essa violência reflete as condições do siste-
ma e varia apenas na medida da socialização da população como decorrência
dos referenciais do consumo capitalista descontrolado, orientado por símbolos
sociais que expressam valores contraditórios em relação ao comportamento moral
vigente. A contradição resulta do confronto entre a transgressão incitada pelo
consumo e a repressão legal dos códigos e normas de conduta.
Conclusões sobre a violência e o automóvel ou moto:
1. O automóvel ou a moto representam um poderoso valor-de-troca
social que simboliza a ascensão social;
2. Devido à elevada dimensão do seu valor simbólico, o automóvel
ou a moto se transformam em objetos de adoração e veneração aos quais tudo
é permitido;
3. O automóvel ou a moto refletem e representam em si mesmos a
ideologia suprema do consumo na sociedade capitalista contemporânea;
4. Qualquer restrição à trajetória do automóvel ou da moto repre-
sentam um ultraje que desencadeia no motorista socializado sob as condições
simbólicas, aqui relatadas, respostas violentas porque significam uma ofensa
ao objeto de sua adoração;
5. Particularmente os membros das classes emergentes recém-trans-
portadas ao consumo e, especialmente, os jovens socializados em condições
precárias sob o impacto preponderante da publicidade maciça divulgada pe-
los meios de comunicação de massa tendem a assumir distorções que condu-
zem à agressividade no uso do veículo, resultando na violência coletiva como
norma de comportamento.

Objeto Símbolo social Mobilidade social Confronto entre a


(veículo de (associações a (ideologia dos legitimidade da alta
transporte) sentimentos sociais) significados divulgada velocidade e a legalidade do
pelos meios de controle da velocidade
comunicação de massa) (importância do apelo emocional)

1. Formação do Aprendizado social contraditório Distorções decorrentes Comportamento agressivo


enfraquecido pela ausência de um processo de assimilações manifestado pela velocidade,
comportamento social de uma política nacional para de valores contraditórios compartilhado através da violência
na sociedade urbano- estabelecer os parâmetros sociais e frágeis coletiva resultante, como norma
no uso do veículo de comportamento
industrial-capitalista.

Recebido para publicação em março/1998

118
GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. Violência urbana: um problema social. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
105-119, maio de 1998.

GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. Urban violence: a social problem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 105-119, may 1998.

ABSTRACT: This article contains some reflections on how social violence ex- UNITERMS:
presses itself. These reflections, presented in former moments as lectures, public violence,
social violence,
debates and at a congress, have been gathered under the title of Urban Violence
urban violence,
because they all try to comprehend everyday violence as a problem of urban social marginality,
society. Based on the lectures I have formulated the first part of this article, which social symbols,
deals with a conception taken from social anthropology: the characterization of mass media.
violence in rural society under the perspective of structural marginality, in order
to explain the genesis of this problem in the actual social class society. The
debates, that took place because of traumatic happenings related to the police
apparatus, have brought about a discussion of the causes of violence inherent to
the performance of the institutional functions’ of military and civil police. The last
part of this article is the result of my taking part in a congress organized in order
to debate the new Brazilian Traffic Code. It takes into account the role and,
particularly, the meaning of the social symbols divulged by the mass media as
aspects responsible for the increment of traffic violence.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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um antropólogo social. In: BENEVIDES, M.V. et alii. A violência
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119
GIDDENS,
TempoAnthony. Entrevista
Social; a Maria Lúcia
Rev. Sociol. USP,Garcia Pallares-Burke.
S. Paulo, Tempo Social;
10(1): 121-128, maioRev.
de Sociol. ENTREVISTA
1998.USP, S. Paulo, 10(1): 121-128,
maio de 1998.

Anthony Giddens

Entrevista concedida
a Maria Lúcia Garcia
Pallares-Burke, publi-
cada parcialmente no
jornal Folha de S. Paulo,
caderno Mais, 02/03/97,
p. 5-10.

RESUMO: Nesta entrevista, Anthony Giddens discorre sobre temas contempo- UNITERMOS:
râneos que instigam as ciências sociais no estudo de fenômenos sócio-econô- sociologia,
Brasil,
mico-políticos mundiais e suas relações com a América Latina e o Brasil.
LSE,
Fernando Henrique
Cardoso.

A
famosa London School of Economics ria da LSE mostra que, diferentemente do que
and Political Science, a escola da suas origens poderiam fazer supor, ela procu-
University of London mais conhecida rou pautar seu trabalho pelo espírito de impar-
pela sigla LSE, acaba, ao que tudo in- cialidade e abertura. Exemplo disso é que tanto
dica, de iniciar uma nova fase na sua existência encontramos em seus quadros os idealizadores
de mais de um século. Seu novo diretor, o do estado de bem-estar social, como Beveridge
renomado sociólogo Anthony Giddens, preten- e Marshall, como também defensores da econo-
de fazer dois acréscimos substanciais à sua mia de mercado, como Hayek, um dos vários
inquestionável excelência acadêmica: trans- ganhadores de Prêmio Nobel que a escola orgu-
formá-la num importante centro cultural de Lon- lhosamente coleciona. A variedade de perspec-
dres e envolvê-la na elaboração de uma nova tivas que seus dezoito departamentos têm abri-
agenda política, tarefa que, segundo ele, se tor- gado ao longo do tempo – e que possibilitou o
nou inevitável após a derrocada das antigas di- trabalho de figuras influentes e diversas como,
visões entre esquerda e direita. por exemplo, H. Laski, K. Popper, K. Mannheim,
Fundada em 1895 pelo casal de soci- B. Malinowski, R. H. Tawney e E. Power – se
ólogos e historiadores socialistas Beatrice e reflete também na variada clientela que a LSE
Sidney Webb – e com o apoio de socialistas da atrai. A diversidade étnica dos seus alunos de
Fabian Society, como Bernard Shaw – a histó- graduação e pós-graduação (quase 400 brasi-
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leiros nos últimos 10 anos) faz dela um centro medida que tem atraído, em antecipação, rea-
cosmopolita extremamente fértil para o diálogo ções divergentes e apaixonadas. Uma outra ta-
cultural e intelectual. Quanto ao sucesso dos que refa que o aguarda, essa bem mais agradável, é
passaram por seus bancos, basta lembrar que a entrega do grau honorário de DSc (Doctor of
dentre seus ex-alunos – oriundos de uma cente- Science) a Fernando Henrique Cardoso, home-
na de países – se encontram, pelo mundo afora, nagem de uma escola que se orgulha de todos os
23 primeiros-ministros, presidentes ou chefes de cientistas sociais que se destacam no cenário pú-
Estado, 41 presidentes de bancos, 120 minis- blico mundial.
tros, embaixadores ou consultores de governo e Dez dias após sua posse, ocorrida a 6
26 diretores de instituições de ensino superior. de janeiro de 97, Giddens nos recebeu em sua
Segundo os admiradores de Giddens, sala na LSE. Diplomata e cauteloso, de fala
suas credenciais acadêmicas, administrativas e mansa e quase monocórdica, e com modos de
empresariais o qualificam amplamente para fa- alguém ao mesmo tempo firme, confiante e des-
zer com que a LSE dê uma contribuição decisi- pretensioso, ele falou sobre suas novas ambi-
va aos rumos de um mundo envolvido em um ções, sobre os impasses das universidades e da
processo de globalização sem precedentes. Au- modernidade, sobre as fraquezas do neoli-
tor de 30 livros – que tratam desde a sociologia beralismo, sobre as realizações de Fernando
do suicídio e das emoções até a teoria da Henrique Cardoso etc.
estruturação social e as conseqüências da
modernidade – traduzidos em 22 línguas, uma
medida de sua reputação intelectual é o que se Um de seus mais eminentes predecesso-
chama de “indústria Giddens”, ou seja, os vári- res, R. Dahrendorf, ao assumir a direção des-
os livros dedicados por outros autores à discus- ta mesma instituição disse que “uma universi-
são da suas idéias. “Se houvesse prêmio Nobel dade não quer e não precisa ser dirigida... ba-
de Sociologia, Giddens estaria no topo da lis- sicamente ela se dirige por si só através de seus
ta”, disse recentemente um de seus entusiastas misteriosos ‘caminhos habituais’”. O que acha
colegas. Enquanto administrador, um de seus dessa visão?
grandes feitos foi estabelecer a Faculty of So- Concordo com ele que uma universidade
cial and Political Science na Universidade de não é uma empresa e que não pode ser dirigida
Cambridge, lugar hostil a inovações, e onde as como se fosse um negócio. Por outro lado, acho
ciências sociais ocupavam até o fim da década que hoje em dia a universidade também tem de
de 60 uma posição bastante marginal. Quanto a ser guiada, a liderança sendo crucial para o seu
seus dotes empresariais, a reputação e o suces- destino. Acredito que quando Dahrendorf fez
so da Polity Press, editora por ele fundada há aquela afirmação as universidades eram com-
dez anos, são por si só testemunhos de suas múl- pletamente financiadas pelo Estado e tinham um
tiplas habilidades. número de estudantes bastante estável. Agora,
Nem tudo será, no entanto, um mar ao contrário, elas enfrentam os mesmos proble-
de rosas nessa nova carreira de Giddens. Man- mas de muitas outras instituições modernas: de
ter a excelência da LSE e ampliar a sua esfera um lado, o Estado não mais vai sustentá-las to-
de atuação envolve a questão extremamente po- talmente e, de outro, elas não podem ser deixa-
lêmica e delicada do ensino público pago. Em das inteiramente nas mãos da iniciativa privada
princípio já aprovada a cobrança de anuidades porque não se encaixam na filosofia do merca-
por um comitê central, dependerá de Giddens, do. Instituições como hospitais e universidades,
no entanto, a implementação ou não de uma por exemplo, têm de encontrar um meio de se
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reestruturar num tipo de associação entre o Es- essas mudanças. Nesse quadro, acredito que a
tado e os incentivos de mercado. Numa era em LSE possa novamente fornecer recursos intelec-
que fica mais e mais evidente que os serviços tuais para atender a essas novas necessidades e
públicos não vão ser mais financiados como também influenciar a reação do governo diante
antes, o desafio dessas instituições – e isso, acre- desse novo estado de coisas. Sim, pois, no meu
dito, em muitas partes do mundo – é descobrir entender, as velhas instituições governamentais
que espécie de parceria deve ser criada para en- não podem se sustentar do mesmo modo que
frentar de modo eficiente, e sem nostalgia, uma antes. Este é realmente um mundo muito dife-
nova era. rente, que não só assiste ao colapso do socialis-
mo e do keynesianismo, mas que deve enfrentar
O que o atraiu para essa posição na um futuro que se torna mais e mais imprevisível.
LSE? Seguramente precisamos de algo bem mais con-
Uma série de coisas. Em primeiro lugar, creto e prático do que a resposta pós-modernis-
estava em busca de uma nova ambição. Tendo ta, que simplesmente cruza os braços diante do
estabelecido em Cambridge a Faculty of Social colapso do comunismo e das frustrações da
and Political Science e a Polity Press achei que modernidade. Dizer que o mundo escapou do
já havia feito lá tudo o que podia fazer. Dirigir a nosso controle, que nada podemos fazer, que en-
LSE, a mais famosa instituição de ciências so- trou numa espécie de Idade Média e que só nos
ciais do mundo, me pareceu uma oportunidade resta sorrir e ser irônicos, como quer o pós-mo-
incrível de influir no diálogo intelectual e tam- dernismo, é, no mínimo, insensato. Há coisas
bém no programa político do governo. Quando, que não só se pode como se deve fazer tanto no
após 1945, o estado de bem-estar social estava plano intelectual quanto prático.
sendo construído, a LSE desempenhou um pa-
pel central. O Primeiro Ministro da época, Uma das mais importantes questões
Clement Attlee, era um professor da LSE; Harold politicas que o senhor terá que enfrentar é a
Laski, também professor, era chairman do Par- que diz respeito à introdução do ensino pago
tido Trabalhista. Outras importantes figuras da na LSE, sabendo que qualquer que seja a de-
LSE, como T. H. Marshall e Beveridge, foram cisão final dessa instituição de ponta ela ser-
os idealizadores do estado de bem-estar social. virá de modelo para outras instituições de en-
A LSE foi, pois, uma instituição que exerceu sino superior britânicas. Como no Brasil, onde
uma influência pública maciça, não só no plano essa questão polêmica tem sido também dis-
nacional como mundial, já que o estado de bem- cutida, alguns argumentam que a cobrança é
estar social se tornou um fenômeno global. Não antidemocrática, e outros, ao contrário, que
vejo porque agora, sob minha direção, não pos- não cobrar é que é antidemocrático. O que
sa se iniciar uma espécie de renascimento da in- pensa dessa polêmica?
fluência que teve no passado. Pois eis-nos aqui, Só posso responder a isso de um modo
no final do século 20, sabendo que as divisões muito geral porque ainda estou estudando a si-
entre esquerda e direita não significam a mesma tuação financeira da LSE. Mas, em princípio,
coisa que no passado, e sabendo também que, há dois aspectos nessa questão: é, em geral, uma
devido à expansão do mercado e da tecnologia, minoria da população que se beneficia da edu-
o mundo está mudando numa rapidez sem pre- cação universitária e não é razoável imaginar que
cedente. Diante disso, precisamos tanto interpre- todo o restante da sociedade deva simplesmente
tar os novos rumos que o mundo está tomando financiar essa minoria. Diante disso, as univer-
como pensar numa resposta política razoável a sidades por todo o mundo estão tendo que fazer
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uma reestruturação financeira que, acredito, terá se pode mais depender das velhas soluções de
necessariamente que envolver muita contribui- esquerda. Acredito, pois, que o que Blair está
ção monetária das pessoas que usufruem desse tentando é fazer com que o Partido Trabalhista
ensino. De outro lado, qualquer que seja o siste- rompa com a velha esquerda, mantendo-se, ao
ma de financiamento escolhido, é crucial, no meu mesmo tempo, fiel a seus ideais de combate à
entender, que se defenda o acesso dos alunos desigualdade e de luta pela justiça social. Só que,
mais pobres ao ensino superior. Toda a questão hoje em dia, o desafio é tentar conciliar o ideal
da estratificação na sociedade moderna é real- de justiça social com um mercado global com-
mente muito difícil e é uma tolice imaginar que petitivo. Não penso que Blair tenha produzido
seja fácil de ser resolvida. As universidades, as- um programa final de governo a partir dessas
sim como as instituições de serviço médico, re- noções, mas, afinal de contas... quem já conse-
fletem a sociedade mais ampla e não podem re- guiu? Contrariamente ao que muitos pensam,
solver sozinhas os problemas da estratificação considero que Blair é o oposto do conservador.
social. Em sociedades como a nossa ou outras, Ele está pensando ousadamente e procurando se
como a brasileira, que são muito polarizadas, as afastar das tradições de seu partido. E, se vocês,
universidades devem desempenhar um papel no no Brasil, conseguiram ter um sociólogo como
processo de democratização, mas só podem fazê- presidente, não acho muito fantasioso querer que
lo em conjunto com outros programas de demo- a sociologia influencie o projeto de Blair.
cratização e igualização. A maioria dos esque-
mas em pauta propõe usar o pagamento dos alu- Quão importante é a América Latina em
nos de maior poder aquisitivo, feitos através de geral e o Brasil, em particular, para o senhor
empréstimos ou não, para manter os alunos me- e a escola que dirige?
nos afluentes. Imagino que algo como isso terá Não conheço ainda a escola suficientemen-
de ser feito. te para dar uma resposta muito detalhada sobre
isso. O que sei é que há muitas pessoas na LSE
Ouve-se falar muito, ultimamente, de sua bastante interessadas e conhecedoras da Améri-
grande afinidade com Tony Blair, o provável ca Central e do Sul. Quanto a mim, no entanto,
futuro primeiro-ministro. Como o senhor vê o posso dizer que o Brasil me interessa particu-
papel da LSE num governo trabalhista, após larmente não só por ser uma das maiores econo-
décadas de um governo conservador que, de mias globais, mas porque ali se vêem bons exem-
acordo com seus muitos críticos, solapou a plos das tendências e problemas mundiais que
educação britânica? desafiam o mundo moderno. Em alguns aspec-
Em primeiro lugar, devo dizer que falei tos, penso que o Brasil está na vanguarda de
com Blair em várias ocasiões, mas não sou e outros países, em outros bem atrás. Temos, de
não pretendo ser seu consultor direto. Acho que uma lado, uma sociedade bem sucedida econo-
isso nem seria apropriado para mim enquanto micamente mas, de outro, este sucesso está con-
diretor da LSE. O que eu sou é um simpatizante finado a uma minoria da população. É também
do projeto de Blair, que entendo que seja pauta- uma sociedade com uma história bastante inte-
do pelo reconhecimento de alguns pontos: de que ressante de relações étnicas, e apesar de se po-
o mundo está mudando em seus traços funda- der dizer que quanto mais alto na escala social
mentais, de que a globalização determina mu- se está mais branco se é, quando se compara o
danças de todos os níveis na vida das pessoas, e Brasil com os EUA a diferença é gritante. O grau
de que, diante do fato de que a realidade de hoje de segregação que lá se encontra não existe en-
é muito diferente da de 20 ou 30 anos atrás, não tre vocês. No Rio fiquei realmente impressiona-
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do com uma miscigenação tão visível e tão rara. exemplo, não podem ser resolvidas por ele. Em
Pessoas jogando bola na praia e todas se mistu- terceiro lugar, o mercado parece produzir con-
rando é o que não se vê na maioria dos demais seqüências polarizadoras, o problema da
países. A vivacidade essencial brasileira – que estratificação social sendo um dos mais cruciais.
deve ser o resultado da cultura e não da econo- O que é bem óbvio no Brasil está se tornando
mia – faz também do país um lugar especial- também mais e mais óbvio na Europa, onde é
mente interessante e atraente. Eu penso que o visível uma crescente desigualdade econômica
que acontece no Brasil provavelmente tem a cha- após um período em que a igualdade estava
ve para o que acontece, em certo sentido, em toda crescendo e se impondo. Tudo isso exige algum
a América Latina. É, pois, um país-chave no pal- tipo de solução que talvez seja achada por al-
co mundial. guns teóricos da economia, mas que serão, com
toda probabilidade, pensadores bem diferentes
No Brasil, os economistas adquiriram dos neoliberais: economistas que certamente
nas últimas décadas um status bastante alto pensarão mais historicamente, mais em conjun-
que, paradoxalmente, não diminuiu com o fim to com outros cientistas sociais, e que estarão
do chamado Milagre Brasileiro e os crescen- interessados em ver as questões não só sob um
tes problemas econômicos que o país passou a ângulo predominantemente técnico.
enfrentar. Para alguns, o poder e a autoridade
que os economistas usufruem são bastante Como se sabe, Fernando Henrique Car-
injustificados. Concorda com essa crítica? E doso, um eminente sociólogo de esquerda,
diria que os sociólogos ou cientistas sociais como o senhor, tem sido acusado de conduzir
são, em geral, mais qualificados para exercer uma política neoliberal desde que se tornou
poder e autoridade? chefe de estado. Como vê esta mudança?
É, na verdade, fácil entender que em uma Acho que qualquer um na sua posição se-
época em que o neoliberalismo é a teoria domi- ria alvo desta acusação. A mesma crítica é feita
nante, os economistas ocupem uma posição cen- aqui contra Blair, apesar de ele não ter começa-
tral. Querendo ou não, com a morte dos velhos do como um sociólogo, mas, sim, como mem-
sonhos marxistas estamos vivendo numa “civi- bro de um partido que tem uma tradição de es-
lização dos negócios”, e neste tipo de civiliza- querda; e, segundo os críticos, Blair está se dei-
ção a teoria da concorrência e a economia de xando seduzir por uma filosofia de direita. O
mercado (em que se resume, essencialmente, o que imagino que Cardoso esteja tentando fazer
neoliberalismo) desempenha um papel central. – e o que é muito difícil quando se está no po-
Por outro lado, estamos, acredito, aprendendo a der – é realmente encontrar um caminho para
reconhecer as limitações e as dificuldades do além do velho dilema direita-esquerda. Na ver-
neoliberalismo, que são de vários tipos. Em pri- dade, superar esse dilema é o que todos nós ou
meiro lugar, é uma espécie de filosofia contra- fomos liberados para fazer ou estamos conde-
ditória que mistura autoritarismo moral com fi- nados a fazer. Quero dizer que há muitas ques-
losofias libertárias de mercado. As mesmas pes- tões – como as ecológicas e as relativas à
soas que se curvam às leis do mercado querem globalização – que claramente escapam ao sim-
Estado e família fortes. Ora, essas duas exigên- ples dilema entre esquerda e direita. Dito isto,
cias são contraditórias, incompatíveis. Em se- é, no entanto, verdade que como o neolibe-
gundo lugar, é inegável que o mercado não pode ralismo é tanto a ideologia da globalização
tomar decisões de longo alcance e que questões quanto a teoria da globalização, parece inevi-
centrais da humanidade, como as ecológicas, por tável que se tenha de se adaptar um pouco a
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ele, não importa o que se tente fazer no país. de bem-estar social. Há muitas pessoas que gos-
Apesar de tudo, estamos todos tentando imagi- tariam de assistir a um renascimento disto, o que
nar qual poderia ser uma outra teoria política. não é possível. Suponho que Cardoso seja con-
Quando se está no poder é bem mais difícil pen- tra o que eu chamo de nostalgia de direita ou de
sar teoricamente e haverá sempre os que dirão esquerda. Entendo por nostalgia de esquerda a
que não estamos agindo de acordo com nossos nostalgia dos sonhos do estado de bem-estar so-
ideais. Lembremos que Max Weber disse que se cial, enquanto que nostalgia de direita é a nos-
tem, na verdade, duas escolhas: ou se é um inte- talgia da chamada família tradicional e dos sím-
lectual, relativamente puro, ou se é um líder po- bolos tradicionais da nação. Para os nostálgicos
lítico que necessariamente está envolvido com de uma ou outra ordem, é muito fácil criticar as
o poder, a política e todos os compromissos que pessoas no poder. É possível que Cardoso tenha
isso implica. Considero que tentar unir essas cometido grandes erros, mas como um observa-
duas coisas é algo que denota bastante bravura. dor de fora eu diria que ele, dentro dos limites
É bem mais fácil permanecer na biblioteca e con- do possível, conseguiu muito.
denar os que ousam fazer isso. Não quero, en-
tretanto, dizer que os intelectuais se tornam ne- Para os países que estão na periferia ou
cessariamente bons líderes políticos, do mesmo na semiperiferia da vida intelectual do ociden-
modo que acho que bons líderes não são neces- te parece que os centros não prestam muita
sariamente bons intelectuais. Nisso Weber esta- atenção ao que é produzido fora deles. Pen-
va certo, pois parece que normalmente as vidas sando no Brasil, podemos, por exemplo, no-
contemplativa e ativa exigem personalidades di- mear sociólogos, como Florestan Fernandes,
ferentes, com algumas poucas exceções. Estou que fizeram contribuições bastante inovado-
muito longe de ser um especialista em Brasil, ras ao pensamento sociológico desde os anos
mas por tudo que sei parece que Cardoso fez 50, mas que são desconhecidos dos intelectu-
fundamentalmente um bom trabalho diminuin- ais ingleses, com exceção dos brasilianistas.
do a inflação. Haveria algo mais significativo Concorda que há, de fato, um tal descaso? Se
do que isso a ser feito nesse curto espaço de tem- sim, o senhor tentaria sanar isso procurando
po? Acredito que não. Quanto a saber se essa desenvolver um tráfico de idéias em duas di-
realização vai ser duradoura, só se pode espe- reções e criar condições para uma um verda-
cular. Um livro recente chamado The death of deiro diálogo intelectual?
inflation sugere que a queda da inflação é parte Essa é uma situação que existe, de fato,
de uma tendência global e que, portanto, se um em muitas partes do mundo, mas que, no meu
hábil líder político conseguir se unir a essa ten- entender, está melhorando bastante nos últimos
dência, a inflação pode cair e se manter assim. tempos. O que me impressiona quando viajo é
Mas, fora especulações como essas, as coisas verificar que o debate intelectual está se tornan-
não são previsíveis e, no meu entender, a queda do muito mais globalizado. Você encontra pes-
da inflação é umas das grandes realizações de soas discutindo os mesmos problemas em todo
Cardoso. Outra questão é que para ninguém ain- o mundo, o que significa que intelectuais de vá-
da está muito claro qual deveria ser a alternati- rias origens podem se comunicar porque há
va ao neoliberalismo. O que se sabe claramente muito menos dificuldades, menos tradições in-
é que não deve ser a restauração do keynesianis- telectuais diferentes do que no passado. É ine-
mo – que era a teoria de esquerda típica, defen- gável, no entanto, que o imperialismo da língua
sora da colaboração dos sindicatos e do Estado inglesa é uma realidade difícil de contra-atacar
e da redistribuição da riqueza através do estado e que gera problemas. Há, por exemplo, traba-
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lhos inferiores escritos em inglês que dão fama nheiro que cada um carrega no bolso. Ora, isso
aos seus autores e trabalhos superiores escritos, não é diversidade, mas, sim, uma espécie de
por exemplo, em português que não são tradu- estandardização. Pode não haver leis universais
zidos e relegam seus autores à obscuridade. Isso sobre isso, mas certamente há a necessidade de
é o que tem acontecido e não tenho uma solução se generalizar, já que é uma situação que gera
muito clara para isso. Eu espero que a LSE seja conseqüências para todas as regiões do globo,
um centro de comunicação dialógica porque, no inclusive as menos desenvolvidas. Tem-se, en-
meu entender, o futuro do mundo depende do tão, que relacionar o geral e o particular e negar
diálogo para combater a violência. Quer sejam a idéia de que não se pode mais generalizar so-
duas nações, duas áreas culturais, ou dois indi- bre nada. Afirmar que só há diversidade e que
víduos, o mundo só poderá sobreviver se as pes- não existe qualquer afirmação válida que possa
soas puderam conversar umas com as outras, en- se aplicar a todas as diversidades é, essencial-
tender umas as outras. Na verdade, acredito que mente, uma falsa idéia pós-moderna.
esse diálogo intelectual já está sendo imple-
mentado pois a democracia é uma das idéias O senhor escreveu um livro de grande
triunfantes da atualidade. Não há, hoje em dia, sensibilidade sobre a intimidade e, ao mesmo
muitos estados no mundo que ousariam não se tempo, tem a reputação de ser alguém que nun-
chamar de democráticos, apesar de poderem, na ca se mostra em seu trabalho e de ser uma pes-
realidade, não o ser. De qualquer modo, demo- soa fria, que esbanja em eficiência, mas que
cracia pressupõe diálogo, soluções comunicati- carece de emoção; uma pessoa “tão seca como
vas para problemas que no passado eram resol- um biscoito”, conforme a descrição do The Ti-
vidos pela violência. Estamos, pois, assistindo mes. Como explica esse aparente paradoxo?
ao fomento de instituições democráticas não so- Por aí se vê como as notícias correm! O
mente dentro dos estados nacionais, mas em ter- jornalista que me descreveu como sendo seco
mos transnacionais. Sem negar todos os riscos como um biscoito estava se baseando nas infor-
que o futuro implica, as forças já estão, em cer- mações contidas no Who’s Who (que eu próprio
to sentido, aí a produzir diálogo, a produzir co- não forneci, pois não me importo com isso), onde
municação. não consta nenhum interesse ou hobby meu.
Quanto a ser uma pessoa fria, não me vejo como
O senhor acha que os teóricos sociais de- tal, preferindo, no entanto, deixar meu lado pes-
vem preferencialmente buscar leis gerais que soal fora do domínio público. Mas, talvez ajude
governam qualquer sociedade ou, ao contrá- saber que eu não teria escrito esse livro sobre a
rio, que eles devem, como os teóricos da de- sociologia das emoções não fossem os 5 anos
pendência, partir de diversidades – como, por de psicoterapia que me ensinaram a me perce-
exemplo, a tensão entre centros e periferias – ber melhor, a ver melhor os outros e me desper-
e teorizar a partir dessas perspectivas? taram intelectualmente para a importância das
Penso que não se pode começar com ne- emoções, assunto banido das ciências sociais e,
nhuma das duas; tem-se que partir, em certo sen- talvez de um modo geral, da cultura intelectual
tido, de ambos os pólos. Sou muito contrário à do ocidente. A vida sexual e emocional tem
idéia pós-moderna de que tudo é relativo ao con- muito mais impacto na cultura intelectual do que
texto, que só há diversidade, pois acredito na é usualmente reconhecido. Há dados sobre a in-
existência de forças muito gerais movendo o timidade de Marx e Max Weber e sobre suas vi-
mundo; por exemplo, os mercados monetários das emocionais torturadas que são bastante
mundiais têm uma influência fantástica no di- reveladores da importância crucial das emoções
127
GIDDENS, Anthony. Entrevista a Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 121-128,
maio de 1998.

na trajetória intelectual das pessoas. Weber, por determinante para a sua obra foi, por exemplo,
exemplo, sabe-se que foi a pessoa mais fria e o seu envolvimento com movimentos sexuais
sexualmente reprimida que se possa imaginar. libertários, e quão criativo foi o período em que
Pois bem, uma coleção de suas cartas – que a ele – que parece não ter jamais consumado seu
Polity Press pretende publicar – revela quão casamento – teve várias amantes!

Recebido para publicação em setembro/1997

GIDDENS, Anthony. Interview to Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 121-128, may 1998.

UNITERMS: ABSTRACT: In this interview, Anthony Giddens speaks about contemporary


sociology, problems of the social sciences and their relationship with Latin America and
Brazil,
Brazil.
LSE,
Fernando Henrique
Cardoso.

128
BARBOSA,
Tempo Maria Ligia Rev.
Social; de Oliveira.
Sociol.ParaUSP,
onde S.
vaiPaulo,
a classe10(1):
média: 129-142,
um novo profissionalismo
maio de 1998. no Brasil? Tempo
D O Social;
S Rev.
S I Ê
Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 129-142, maio de 1998. TRABALHO

Para onde vai a classe média


um novo profissionalismo no Brasil?
MARIA LIGIA DE OLIVEIRA BARBOSA

RESUMO: Este texto pretende demonstrar que a profissionalização, tanto sob UNITERMOS
a forma de assalariamento quanto de trabalho autônomo, é ainda uma das profissionalismo,
profissionalização ,
possibilidades abertas à classe média brasileira. Os componentes mais impor-
classes médias
tantes do conceito de profissionalismo seriam o controle sobre o trabalho, a brasileiras.
capacidade de definição dos problemas e o papel central da educação. Pode-
mos encontrar no Brasil, ao longo do século XX, mas também, e especialmen-
te, nestas últimas décadas, vários indicadores da presença desse
profissionalismo.

P
or meio da leitura de jornais, ou da escuta de depoimentos pessoais,
poderíamos supor que esta categoria social encaminha-se para
extinção muito rápida. Aparentemente a classe média foi o grupo
mais atingido pelos processos de mudança pelos quais o país tem
passado e as suas formas tradicionais de existência tendem a desaparecer ou,
pelo menos, a tornar-se mais precárias.
Para ir além das aparências é necessário examinar com algum cui- Texto integrante da me-
sa redonda Para onde
dado as formas de inserção social que são criadas pelos grupos de classe mé- vai a classe média, or-
dia ou que se apresentam a eles como possibilidades. Trata-se de analisar os ganizada pelos GT's
Trabalho e Sociedade e
processos de criação de identidades e de formas de representação mediante os Educação e Sociedade,
quais esses grupos produzem e modelam o seu lugar na sociedade. Como no XX Encontro Anual
da ANPOCS, de 22 a
estamos diante de um conjunto muito diversificado de atividades e de relações 26/10/1996.
sociais, é importante deixar claro desde logo que pretendo tratar de um tipo
específico de trajetória. O meu argumento é que a profissionalização é um Professora do Departa-
mento de Sociologia e
caminho significativo de organização de estratégias de estratos da classe mé- Antropologia da UFMG

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BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. Para onde vai a classe média: um novo profissionalismo no Brasil? Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 129-142, maio de 1998.

dia, e que a representação do mundo social construída a partir do ponto de


vista do profissionalismo tende a se tornar dominante como forma de regulação
dos trabalhos e das relações sociais em amplos setores do espaço social.
Este argumento será desenvolvido em três partes: inicialmente, uma
caracterização teórica do profissionalismo. Em seguida, procurarei mostrar as
diferentes faces da profissionalização no Brasil, para, na última parte, anali-
sar algumas das marcas do profissionalismo presentes na nossa sociedade.

Profissionalismo e profissionalização

Tratado sob os mais diversos aspectos, o processo de profissionali-


zação é considerado como um dos traços mais importantes e distintivos das
modernas sociedades ocidentais. Norbert Elias, no seu estudo sobre a socie-
dade de corte, destaca a mudança resultante da criação de um espaço específi-
co para o trabalho:
Nesta última (a sociedade burguesa) é dentro da esfe-
ra profissional que se exerce, em primeiro lugar, a
pressão dos constrangimentos sociais e de configu-
ração social. A vida privada é modelada em função
de sua dependência com relação à situação
profissional.O homem da sociedade burguesa de
massa sabe, em geral muito bem, como ele deve se
comportar na esfera profissional. Todos os esforços
de modelagem da sociedade visam esta esfera. É so-
bretudo dentro da esfera profissional que a socieda-
de exerce a sua coerção (Elias, 1985, p. 113-114).
Elias procura destacar aqui a importância da esfera profissional não
só como uma das mais centrais nas sociedades modernas, mas principalmente
como espaço significativo para constituição de agentes que efetivamente mol-
dem o espaço social, tanto do ponto de vista da sua socialização, quanto da
perspectiva de sua ação. Mas podemos encontrar nos trabalhos de autores
contemporâneos os elementos teóricos que nos permitem analisar adequada-
mente o caráter e o significado dessa ação.
Em texto recentemente publicado no Brasil, Eliot Freidson afirma que
o profissionalismo é definido por meio das circuns-
tâncias típico-ideais que fornecem aos trabalhado-
res munidos de conhecimento os recursos através
dos quais eles podem controlar seu próprio traba-
lho, tornando-se, desse modo, aptos a criar e a
aplicar aos assuntos humanos o discurso, a discipli-
na ou o campo particular sobre os quais têm jurisdi-
ção (Freidson, 1996, p. 141).
Mantendo-se em sintonia com a produção americana, especialmen-
te as linhas originadas na obra de Parsons, o autor dá ênfase à dimensão
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BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. Para onde vai a classe média: um novo profissionalismo no Brasil? Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 129-142, maio de 1998.

cognitiva na definição do profissionalismo, ressaltando de maneira especial a


autonomia do trabalho profissional. Para Freidson, o principal traço do que
ele chama de renascimento do profissionalismo é a persistência de uma carac-
terística que já distinguia as corporações medievais: o controle sobre o pró-
prio trabalho (cf. Freidson, 1994). Este é, sem dúvida, um ponto importante.
Mais ainda se consideramos o conceito de jurisdição. Segundo Andrew Abbott,
jurisdição é o laço que liga um grupo profissional ao seu campo da divisão
técnica do trabalho, sendo um conceito que estabelece vínculos mais sociais
que propriamente técnicos entre os grupos profissionais e as tarefas por eles
desempenhadas (cf. Abbott, 1988). Sob essa ótica, um grupo que realizasse
determinado tipo de trabalho só poderia ser considerado uma profissão se
estabelecesse jurisdição reconhecida, legitimada, sobre a sua área específica 1
Jean Michel Chapoulie
de atuação. Jurisdição, nesse caso, implicaria em controle autônomo sobre (1973) chama a aten-
esta área. ção para o “sucesso”
Talvez em razão do caráter instituidor que o modelo parsoniano social alcançado pelo
modelo parsoniano de
teve em ralação às profissões1, a crítica à idéia de autonomia profissional – profissões que é basea-
em geral, associada ao que se chamou de “ideal de serviço”2 – acabou trans- do nos médicos: cada
“ocupação” que pre-
formando profissões autônomas em profissões liberais, associando autono- tendia obter o status
mia a trabalho por conta própria. Como se verá a seguir, esta ótica limita as de profissão passou a
possibilidades de compreensão do fenômeno profissional. enfatizar as caracte-
rísticas apontadas por
Modelos analíticos weberianos introduziram um conceito funda- Parsons como defini-
mental para entender, para além da dimensão cognitiva e da prestação de ser- doras de uma profis-
são. Entre essas carac-
viços comunitários, o significado dos processos de profissionalização: poder. terísticas podemos
(Deve-se notar que Freidson não nega a dimensão de poder no exercício pro- destacar o fato de se-
fissional. Como se verá, a novidade dos autores que tratarei a seguir é o cará- rem praticantes de al-
gum ramo do conhe-
ter relacional da sua utilização.) Em seu belo livro The social transformation cimento científico ou
of american medicine, Paul Starr (1982) recorre ao conceito de autoridade a busca de autonomia,
nas formas definidas
cultural para explicar o processo pelo qual os médicos americanos constroem abaixo.
o seu lugar na sociedade. Inicialmente, estabelecendo parâmetros comuns de 2
O estudo de Gyamarti
conhecimento e exercício da atividade médica – eliminando charlatões de todo (1975) procura de-
monstrar como a idéia
tipo, mas também formas concorrentes de exercício da medicina, como as de autonomia – não se
parteiras e os homeopatas, e gerenciando as escolas médicas –, esses profissi- trata propriamente de
um conceito, mas de
onais estendem seu poder para além da sua área própria de trabalho. Isso é uma noção bastante
feito mediante o controle da alimentação infantil, do estabelecimento de crité- vaga – é associada à
rios de normalidade em oposição à doença e à loucura, do controle da legisla- de “ideal de serviço”:
no modelo por ele cri-
ção sobre as empresas privadas prestadoras de serviços de saúde e das políti- ticado, as profissões
cas publicas nessas áreas, além de outras práticas que tornaram a sociedade seriam grupos sociais
livres de maiores con-
americana uma das mais medicalizadas do mundo. Aqui podemos retomar a troles por parte da so-
idéia eliasiana de que a esfera profissional adquire caráter central e se torna a ciedade porque, além
base fundamental para configuração das regras de funcionamento do mundo de serem portadores
de um conhecimento
social. As profissões não só têm controle sobre a sua jurisdição, mas vão além específico, seriam
disso: elas procuram dizer como o mundo deve ser. também dedicados
servidores das comu-
Neste ponto, o trabalho de Magali Sarfati Larson é de fundamental nidades nas quais par-
importância. Esta autora define o profissionalismo como um projeto coletivo ticipavam.

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BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. Para onde vai a classe média: um novo profissionalismo no Brasil? Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 129-142, maio de 1998.

de mobilidade social (Larson, 1977). Nas sociedades contemporâneas criam-


se novos padrões de desigualdade social, cuja base deixa de ser origem fami-
liar ou outros critérios semelhantes. Nas nossas sociedades torna-se um prin-
cípio dominante a idéia de ganhar status via trabalho. Nesse sentido, pode-
mos definir sociedades profissionalizadas como aquelas em que predominam
princípios de classificação social baseados no mérito da ocupação. Do ponto
de vista de cada profissão, o projeto de mobilidade se traduz numa tendência
a monopolizar as oportunidades de renda no mercado de serviços ou de traba-
lho e também dos privilégios de status e trabalho na hierarquia ocupacional
(Larson, 1977, p. 51).
Duas características do processo de profissionalização sobressaem
para meu argumento: a importância da educação, especialmente de nível su-
perior, como fundamento de posição social e o papel que as profissões têm na
definição e resolução dos problemas enfrentados pelos leigos. Larson salienta
o fato de que “o novo critério de estratificação inaugurado pelas profissões
depende, portanto, da emergência de um sistema educacional orientado para a
moderna divisão do trabalho” (Larson, 1977, p. 70). Desenvolvendo-se sob a
forma de universidades e outras instituições de ensino superior, esse sistema
se torna elemento fundamental de orientação e alocação dos indivíduos no
mercado de trabalho e um dos pilares, ao lado das grandes corporações e do
Estado, da estrutura de classificações sociais. O termo credencialismo procu-
ra descrever o tipo de sociedade em que os critérios meritocráticos, certifica-
dos via diplomas universitários, tornam-se a base mais importante de
posicionamento social.
Por outro lado, temos um outro efeito da profissionalização que é a
capacidade dos grupos profissionais de definirem, ou redefinirem, os proble-
mas com que lidam os leigos. Paul Starr demonstra esta possibilidade para o
caso dos médicos, que é, provavelmente, o mais claro. Na relação médico-
paciente ou na participação ativa dos médicos na definição de certas políticas
públicas fica evidente o poder profissional. Mas não devemos nos esquecer de
outras profissões, um pouco mais modestas, talvez. Engenheiros rivalizam
com médicos na definição das condições ergonômicas ideais para os diversos
trabalhos. Decoradores, modistas, cabeleireiros, tanto quanto psicólogos, ad-
vogados, padres ou engenheiros, ainda que partindo de pressupostos diferen-
tes, apresentam o mesmo traço em comum: a pretensão de dizer qual é o pro-
blema do leigo. Evidentemente, a solução também é encaminhada pelo mes-
mo profissional ou colegas.
Em Larson e Starr encontramos a possibilidade de estender a idéia
de controle sobre o trabalho profissional e vinculá-la às relações sociais en-
volvidas. Trata-se aqui de vincular o conceito de profissionalismo a processos
sociais mais amplos, que configuram características fundamentais das socie-
dades. Agregando os elementos mais importantes tratados, podemos dizer que
a profissionalização é um processo pelo qual se estabelece o que Freidson
chama de princípio ocupacional (cf. Freidson, 1994, p. 61-74) como base para
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a formação, identificação e hierarquização dos grupos sociais. Com isso, po-


demos estender o conceito de controle do trabalho para além da esfera pura-
mente organizacional, para o conjunto das relações sociais. É bom salientar
que, ainda que o conceito não permita por si só afirmar qualquer coisa sobre o
grau de dominância do profissionalismo numa dada conjuntura histórica ou
sociedade, ele nos aponta os elementos principais para caracterização de es-
paços profissionalizados: o controle sobre o trabalho, a capacidade de defini-
ção dos problemas e o papel central da educação nos sistemas de estratificação.

As faces do profissionalismo no Brasil

Numa caracterização tão rápida do profissionalismo como a que


foi feita nos parágrafos anteriores não é possível distinguir todas as suas ca-
racterísticas. Uma delas, bastante importante, é a disputa entre os diversos
grupos pelo domínio do espaço profissional. Cada grupo procura moldá-lo à
sua imagem e semelhança, segundo os seus próprios princípios, sua lingua-
gem particular. No Brasil não encontramos muita dificuldade, pelo nível dos
conhecimentos atuais, em estabelecer os grupos profissionais dominantes ao
longo de nossa história recente bem como os respectivos projetos.
Podemos dizer que o processo de profissionalização no Brasil co-
meça com a introdução do que Simon Schwartzman (1987) chamou de sabe-
res modernos como recurso na luta interelites. Certamente que, antes dos en-
genheiros e sanitaristas, havia no país os advogados. Nossos bacharéis, cuja
formação acadêmica foi muito bem caracterizada por Sérgio Adorno (1988),
não poderiam, a não ser muito grosseiramente, ser tratados como profissio-
nais. A base de afirmação e de legitimação do seu poder, o ponto de partida da
sua atuação não era o seu saber, o seu conhecimento dos meandros da legisla-
ção, como ocorre com seus colegas atuais, mas a sua situação de classe, o seu
patrimônio familiar de relações sociais e políticas. No máximo, poderíamos
aproximá-los das profissões de status (cf. Elliott, 1975), características da
Inglaterra até o século XVIII. Nada a ver com as modernas profissões que são
base dos atuais sistemas de estratificação.
No início do século, os sanitaristas cariocas destacam-se como por-
tadores do saber científico que pretendia racionalizar a vida de todos os cida-
dãos, pelo menos do Rio de Janeiro. Em 1902, o presidente Rodrigues Alves
transforma em prioridades do seu governo a regeneração da capital federal,
conhecida na época como “túmulo de estrangeiros” (cf. Vieira, 1994). Tal
regeneração seria feita em duas frentes principais: o novo prefeito do Rio,
engenheiro Gabriel Pereira Passos, seria o encarregado da reforma urbana e a
reforma sanitária seria feita pelo médico sanitarista Oswaldo Gonçalves Cruz,
chefe da Diretoria Geral de Saúde Pública, do Ministério da Justiça. Os dois
processos são exemplos históricos muito claros do modo pelo qual as profis-
sões conseguem definir os marcos sobre os quais se organizam relações soci-
ais. A Revolta da Vacina tornou evidente o conflito entre a perspectiva cientí-
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fica e as práticas populares – e não só populares, visto que boa parte dos
médicos, em especial os positivistas, tinham uma visão bastante crítica em
relação aos procedimentos do diretor de saúde pública. Mas a representação
médica das condições saudáveis de vida social interferiu também no trabalho
de engenheiros e arquitetos, tanto no planejamento das vias públicas, quanto
na definição do formato das casas, das formas de iluminação e arejamento que
deveriam ser incorporadas às novas construções3.
Nos anos 1950/1960 vamos ter o período áureo dos engenheiros.
Num trabalho de instituição que se inicia no final do século XIX, onde deve-
mos destacar a Escola de Minas de Ouro Preto, esses profissionais vão ser os
responsáveis pela redefinição das formas de atuação do Estado e pela criação
de critérios meritocráticos para alocação de trabalhos em certos setores do
Estado. A partir da ocupação de cargos-chave na administração João Pinheiro
no governo do estado de Minas Gerais, os engenheiros formados na Escola de
Minas gestaram o primeiro empreendimento estatal para intervenção na eco-
nomia. Foi a primeira experiência brasileira de planejamento estatal, já reali-
zada em moldes bastante próximos do que hoje conhecemos. Um primeiro
passo de diagnóstico, o mais completo possível, da situação econômica do
Estado, para em seguida construírem estratégias de atuação que incluíam des-
de a criação de instrumentos mais eficazes de gestão do Estado até a criação
de uma cidade industrial (Contagem), passando também pela criação de em-
presas em setores considerados deficitários, de infra-estrutura (a Cemig, a
Usiminas e, mais tarde, a Açominas são os exemplos mais conhecidos desse
processo criativo). Mediante uma espécie de acordo, pactuado entre as elites
modernizantes e os setores mais atrasados do Estado (cf. Dulci, 1983), os
engenheiros mineiros transferem sua criatividade para a capital federal e, es-
pecialmente no segundo governo Getúlio Vargas, estendem sua ação para ou-
tros setores da economia, destacando-se o seu trabalho no Conselho Nacional
de Petróleo, no embrião do que veio a ser a Siderbrás e, mais tarde, no Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico (cf. Martins, 1985). Nos setores
onde conseguiram ter uma ação eficaz, os engenheiros introduziram novos
princípios de classificação social, com ênfase especial para os critérios
meritocráticos para organização de carreiras nas empresas públicas. Para isso,
introduziram também novos formatos para as empresas sob sua direção, esta-
belecendo regras modernas para a utilização da força de trabalho. A estrutura
organizacional da Usiminas, na época da sua criação, é um exemplo perfeito
da perspectiva desses profissionais, e entre as inovações introduzidas por eles
podemos destacar o estabelecimento de uma nova proporcionalidade entre
trabalhadores manuais e engenheiros, bem como a criação de um setor de
3
pesquisa para o desenvolvimento de soluções técnicas que permitissem racio-
A esse respeito, ver o
trabalho de Madel nalizar e economizar na produção (Barbosa, 1993).
Terezinha Luz (1988), O grupo seguinte que pode nos fornecer bons indicadores do traba-
bem como os citados
por Vieira (1994) e lho profissional de instituição de padrões específicos de organização das rela-
Belisário (1993). ções sociais é o dos economistas. Filhos diletos dos engenheiros – alguns dos
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nossos economistas mais importantes são engenheiros de origem, mas tam-


bém várias das escolas de economia foram criadas por engenheiros, como é o
caso da UFMG –, esses profissionais tiveram a partir do final dos anos 60 a
possibilidade de demonstrar eficientemente a sua perspectiva de como deveria
ser o mundo social. Desde o controle quase absoluto sobre o planejamento
estatal (o que talvez explique a crença, bastante difundida entre eles, de que
basta estabelecer leis economicamente racionais para que elas sejam seguidas
pelos agentes dispersos pela sociedade) até a definição do padrão
organizacional para as empresas privadas (por exemplo, por meio de exigên-
cias formais nesta área para concessão de empréstimos oficiais), os econo-
mistas constituíram um amplo leque de elementos reguladores das atividades
sociais no Brasil dos anos 70 e 80. O conhecimento popular dos termos técni-
cos da ciência econômica, as discussões acirradas em torno de taxas e indica-
dores, a palpitologia sobre a pessoa que deverá ocupar o Ministério da Fazen-
da semelhante ao processo de indicação do técnico da seleção brasileira de
futebol, são todos indicadores importantes da eficiência e do sucesso dos eco-
nomistas na busca de definição da sua própria posição no mundo social.
Talvez como efeito perverso da atuação dos economistas (Roberto
Campos afirma que todo advogado deveria ter a escultura de um economista
num lugar sagrado do seu escritório), mas também como resultado das mu-
danças produzidas pelo processo de democratização no Brasil, que levou a
uma redefinição da legalidade no país – a Constituição de 1988 é o marco
mais visível dessas transformações –, os advogados voltaram a ganhar papel
de destaque dentro do campo profissional brasileiro. Na sua forma atual de
trabalho, com caráter profissional stricto sensu, eles vem realizando, talvez
de modo mais destacado, a função prevista por Norbert Elias para a esfera
profissional: a de configurar o conjunto das relações sociais. Isso é feito por
meio da produção de um novo conjunto de regras legais, pela afirmação de
jurisprudências, enfim, pela jurisdicização da vida social, semelhante à
medicalização da sociedade americana. Analisando o processo de constitui-
ção do Estado francês, Pierre Bourdieu (1994) mostra a importância da con-
centração do aparelho judiciário, destacando o papel deste grupo profissional
na constituição das modernas concepções de legalidade, direitos e deveres de
cidadania, bem como a sua força na definição da eficácia prática dessas con-
cepções. Em circunstâncias históricas e sociais bastante diferentes, os advo-
gados brasileiros, no entanto, mostram-se como sérios candidatos a repetir
seus colegas franceses.
Mas aqui já estamos entrando na última parte do argumento: as
evidências contemporâneas da profissionalização.

As marcas do profissionalismo na sociedade brasileira hoje

Os conceitos discutidos anteriormente bem como as “histórias”


mencionadas nos oferecem os elementos para buscar a construção de evidên-
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cias para o argumento de que há na sociedade brasileira atual um forte e signi-


ficativo movimento de profissionalização. Antes de discutir cada um deles,
seria importante mencionar que todos os argumentos colocados em pauta aqui
demandariam pesquisa empírica mais aprofundada que permitisse mensurar
as tendências – de estabelecimento por conta própria ou de profissionalização
–, o peso de cada uma delas e, sobretudo, as diferenças sociais entre os candi-
datos a uma ou outra trajetória.
Poderíamos apontar cinco tipos de evidência que favorecem o ar-
gumento da profissionalização. Em primeiro lugar, o crescimento do contin-
gente populacional portador de diplomas de curso superior, bem como da de-
pendência em relação aos saber profissional. Em segundo lugar, temos a in-
tensificação da busca de controle do trabalho pelos próprios profissionais.
Em terceiro lugar, a reorganização do Estado no Brasil. Em quarto lugar, o
tipo de exigência de qualificação demandada pelas empresas atualmente, que
reforça o princípio ocupacional. Por último, mas não menos importante, te-
mos o crescimento da PEA de “classe média”.
O crescimento do número de “Doutores”
O aumento do número de pessoas portadoras de diploma de nível
superior é bastante conhecido e pode ser comprovado por uma série de dados.
Entre 1981 e 1990 a taxa de crescimento da PEA com segundo grau e superior
completo foi de 91,46%. Por outro lado, a matrícula em cursos superiores
cresceu a uma taxa de 344,64% no período 60/70, 223,70% entre 70/80 e
9,53% entre 81 e 89. No caso do primeiro grau, o crescimento foi, respectiva-
mente, de 83,75%, 44,22% e 22,95% (cf. Pires, 1995).
A dependência em relação aos saberes profissionais é um pouco
mais complicada de ser medida mas podemos encontrar evidência do seu cres-
cimento na medicalização da sociedade brasileira ou na sua “jurisdicização”.
Não é difícil demonstrar o crescimento das exigências de uso dos serviços de
profissionais, médicos, advogados, engenheiros, arquitetos. No caso dos mé-
dicos, há uma pesquisa interessante, ainda em fase de produção de relatórios,
sobre a medicalização do tratamento de picadas de cobras (cf. Diniz, 1995).
Os procedimentos populares para combater o veneno e tratar os seus efeitos
foram sendo substituídos, nos últimos 20 anos, por “procedimentos científi-
cos” realizados em hospitais, segundo regras médicas. A população de risco
cada vez menos conhece os procedimentos tradicionais, recorrendo em pro-
porções crescentes ao atendimento médico-hospitalar. É interessante obser-
var que não há avaliação de diferentes graus de eficiência dos tratamentos por
parte dos entrevistados.
A intensificação da busca de controle dos profissionais sobre seu trabalho
A busca de reconhecimento oficial da existência da profissão – com
todos os efeitos que tem para os profissionais e para o público de clientes –
pode ser acompanhado nos últimos anos para os casos dos sociólogos, dos

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Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 129-142, maio de 1998.

jornalistas e publicitários, mas também para outras profissões menos visí-


veis, como é o caso dos farmacêuticos. Trata-se de um tipo de processo que
ainda hoje acontece, e que o caso dos jornalistas ilustra bem: depois da lei de
reconhecimento definiu-se claramente uma área de trabalhos que só podem
ser realizados por pessoas com diplomas desta profissão. Também os advoga-
dos são exemplares nesse assunto, pois preparam toda uma série de regula-
mentações que minuciosamente delimita suas áreas de atuação. E, mais im-
portante, explicitamente procuraram impedir ou, pelo menos, dificultar o fun-
cionamento de certas instâncias jurídicas que dispensariam os serviços desses
profissionais, como é o caso dos juizados de pequenas causas.
Há, no entanto, uma outra dimensão, qualitativa e, provavelmente,
de difícil mensuração, que podemos ver de forma exemplar no caso dos ge-
rentes. Há evidências fortes, que podem ser vistas nos trabalhos de Grün (1996),
Marques (1995) e de Mello (1995), de que os gerentes tem desenvolvido es-
tratégias importantes de profissionalização. Profissionalização que pode ter
formas sociais bastante diferenciadas (assalariamento, estabelecimento de
carreiras em empresas, consultores etc.), mas que guardam entre si um ponto
comum importante: a permanência do princípio ocupacional como critério de
identificação social. Eles buscam sempre o reconhecimento do seu trabalho
nos moldes profissionais, procuram estabelecer critérios profissionais de ava-
liação dos pares e até a definição de cursos superiores específicos distintivos
do grupo (contabilidade e administração aparecendo como os candidatos mais
fortes), bem como a definição de limites jurisdicionais para exercício da pro-
fissão (sendo este último o mais complicado, seja pela ausência de diplomas
específicos, seja pela inexistência, muito reclamada pelos próprios profissio-
nais, de paradigmas científicos reconhecidos como particulares da profissão).
A reorganização do Estado
O debate sobre a reforma do Estado tem se intensificado nos últi-
mos tempos, mas não é um assunto propriamente novo. Independentemente
das posições de apoio ou crítica aos diversos projetos nesta área, uma caracte-
rística se destaca: todos eles propõem uma racionalização do funcionamento
da máquina estatal baseada em critérios que são fundamentalmente aqueles
mostrados por Freidson como componentes do princípio ocupacional. Pode-
mos ver isto na luta pela estruturação das burocracias segundo a lógica dos
médicos ou dos economistas, na participação da associação dos engenheiros
na discussão sobre a privatização da Petrobrás. Mas é na organização das
carreiras do Banco Central, da Receita Federal (Auditores Fiscais do Tesouro
Nacional) e nas diversas instâncias do Poder Judiciário que temos exemplos
de maior clareza: o processo de delimitação de áreas de jurisdição a partir de
um conjunto de conhecimentos específicos em determinados assuntos e o re-
conhecimento da competência a partir de credenciamento em instituições de
ensino superior (é muito interessante observar que, especialmente no caso dos
AFTN – concursos mais disputados nos últimos anos no Brasil –, há uma
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Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 129-142, maio de 1998.

exigência apenas da posse de diploma de terceiro grau, condição mínima para


inscrição. No entanto, a possibilidade de aprovação está fortemente associada
à posse de certos conhecimentos específicos. No caso do último concurso, na
área de Direito Tributário, no anterior, na área de Contabilidade). Uma outra
característica do princípio profissional presente tanto nas propostas de refor-
ma do estado como nos casos das instituições mencionadas acima é a organi-
zação das carreiras e dos seus mecanismos de mobilidade de forma estrita-
mente profissional. Isto é, ascende-se na carreira pela aquisição de conheci-
mentos e experiência em determinado tipo de trabalho e não mais por tempo
de serviço. O princípio profissional, pelo menos nessas áreas, sobrepõe-se ao
que poderíamos chamar (com um certo grau de inconsistência, visto que não
há uma oposição entre os dois) de princípio estritamente burocrático.
O fato de que, apesar da deterioração de inúmeras carreiras no inte-
rior do Estado, os concursos públicos ainda consigam atrair número significa-
tivo de candidatos demonstra que a profissionalização através do Estado ain-
da é uma estratégia importante para os agentes de classe média. O problema
que permanece é verificar quais setores dentro dessa classe têm a maior pro-
babilidade de se encaminhar para um ou para outro campo de carreiras.
Os critérios de recrutamento nas empresas
Há alguns meses a revista Veja publicou uma reportagem sobre o
novo perfil dos profissionais desenhado no mercado. Na reportagem são
indicadas algumas características que vêm se tornando marca do trabalho pro-
fissional no Brasil dos anos 90, e uma delas merece ser analisada porque indi-
ca uma diferença interessante para o argumento que aqui se desenvolve. Entre
as décadas de 70 e 90 “o grau de escolaridade é sua ferramenta de comando”,
enquanto que, hoje em dia, “sua performance é sua ferramenta de comando”
(cf. Veja, 19/10/94, p. 91) Não se trata de dizer que a escolaridade perdeu
importância. O que se alterou é que o ensino superior banalizou-se de tal
forma que não é mais critério suficiente de distinção. Não houve uma dimi-
nuição quanto às exigências de formação. Elas apenas se tornaram um requi-
sito mínimo e banal. Por outro lado, inúmeras publicações, dirigidas a empre-
sários e executivos, investem grandes quantidades de espaço na apresentação
das condições e da necessidade de se fazer cursos de pós-graduação (MBA
especialmente) para se obter colocações razoáveis no mercado.
A idéia central aqui é que a escolarização, em especial a de terceiro
grau, permanece sendo critério de seleção: mesmo tendo sua importância re-
4
Novamente aqui po- duzida, ainda é exigência mínima a posse de um diploma superior para ocupar
demos encontrar vári- certos cargos. A este podem ser agregados outros critérios4.
os trabalhos sobre re-
quisitos empresariais O crescimento da PEA de “classe média”
em algumas áreas,
mas ainda não temos O crescimento da porção feminina da PEA vem acontecendo no
pesquisa empírica
abrangente e sistemá- Brasil há décadas, mas nos anos 80 a taxa de aumento da escolarização das
tica sobre o assunto. mulheres foi especialmente alta para os estratos superiores: o número de mu-

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BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. Para onde vai a classe média: um novo profissionalismo no Brasil? Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 129-142, maio de 1998.

lheres com segundo grau e curso superior aumentou 105,80% entre 1981 e
1990. No mesmo período homens tiveram um aumento de 80,89% e na PEA
total o crescimento foi de 91,46%.
Num nível menor de agregação podemos verificar a feminização de
certas profissões tradicionalmente masculinas. É visível o aumento da pro-
porção de mulheres entre estudantes de medicina e odontologia em qualquer
universidade. Essas mulheres acabam se inserindo no mercado como profissi-
onais, gerando um aumento substantivo dos trabalhadores de classe média na
PEA. Trabalhadores que se inserem como profissionais no mercado. Por com-
plicado que seja atribuir a certos trabalhos o status de classe média – como é
o caso de muitas das ocupações que se abrem para mulheres, que são quase
sempre tarefas administrativas subordinadas –, ainda assim é importante lem-
brar que tais grupos buscam alguma forma de afirmação profissional. Isto se
reflete nas reivindicações quanto aos critérios de delimitação de tarefas e de-
finição de carreiras, na realização de cursos como forma de ascensão e aper-
feiçoamento e também na realização de seminários e simpósios, nos moldes
daqueles das nossas associações científicas. Atualmente há um movimento
entre secretárias – especialmente aquelas vinculadas às estatais, federais ou
estaduais – no sentido de criar cursos superiores de secretariado em universi-
dades federais.

Conclusões

Não há muitas dúvidas sobre o crescimento da dependência da so-


ciedade em relação aos saberes profissionais. Tanto a medicalização quanto a
jurisdicização da vida social são visíveis a olho nu, bem como algo que pode-
ríamos chamar de “economicização”, se o termo não fosse tão feio.
Algumas mudanças vêm ocorrendo, entretanto, na forma de orga-
nização social do trabalho profissional. Para alguns grupos, como os executi-
vos e gerentes de Grün, criam-se alternativas a um dos pilares tradicionais de
atribuição de status – universidades, Estado e grandes organizações – : a pos-
sibilidade de uma trajetória independente, com novas estratégias de carreira
onde o recurso básico não é mais a burocracia da empresa, mas uma posição
no mercado como trabalhador independente.
Trata-se de um tipo de trabalho que, mesmo valendo-se de outros
recursos, mantém ainda como central o princípio ocupacional: a idéia de que o
trabalho profissional seja controlado pelo próprio profissional ou pelo grupo
e/ou suas elites.
Assim, o crescimento da PEA de “classe média” não pode ser visto
como causa: ele é o resultado visível do trabalho de instituição realizado por
um conjunto de grupos com recursos sociais suficientes para tornar suas es-
tratégias eficazes. Assim, vemos profissionais que, de um lado, convencem o
público, as empresas e o Estado de que são indispensáveis (para o atendimen-
to de certas necessidades, para a racionalização da produção, do Estado, ou
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BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. Para onde vai a classe média: um novo profissionalismo no Brasil? Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 129-142, maio de 1998.

porque caminhamos para uma sociedade de serviços etc.) e, de outro, criam


mecanismos de exclusão que são parte fundamental da própria definição de
profissão. Ou seja, a própria competição no mercado de trabalho, entre os
diversos grupos sociais, com diferentes graus de poder na definição das regras
de posicionamento social, acaba resultando nesse crescimento das posições
de classe média, num processo semelhante àquele descrito por Stark (1980)
para profissionais americanos no período entre guerras. Segundo ele, “longe
de constituírem um conjunto de ‘lugares vazios’, à espera de serem preenchi-
dos por integrantes de uma ‘classe contraditória’, os profissionais de classe
média tiveram papel ativo na criação e formulação de suas posições, através
da elaboração de uma projeto profissional que lhes abriu um novo espaço de
classe” (Stark,1990, p. 11).
Visto deste ângulo,o problema não é mais de definir as profissões
pela substância da sua atividade ou pela forma legal da relação de trabalho,
mas sim de verificar a forma social de controle do trabalho. Ou seja, de que
forma e em que medida certos grupos sociais conseguem fechar nichos de
mercado e estabelecer as condições de trabalho nos mesmos. E, a partir daí,
exercer também algum tipo de poder, modelando formas específicas de rela-
ções sociais.
Finalmente, é importante salientar o papel das instituições de ensi-
no superior. No que diz respeito ao tema aqui tratado, duas questões desta-
cam-se: quais são os grupos sociais que ainda se valem da universidade como
recurso de posicionamento social? Os processos recentes de reorganização
empresarial tem produzido novos formatos para a divisão social do trabalho
que não correspondem (?) mais à representação dessa divisão vigente nos
cursos das nossas universidades. Como ficaria então o princípio ocupacional?
O título universitário passa a ser apenas um título nobiliárquico?

Recebido para publicação em setembro/1997

BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. Where are going the middle classes: a new professionalism in
Brazil? Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 129-142, may 1998.

UNITERMS ABSTRACT: This text aims to show that a new kind of professionalization is still
professionalism, one possible path open to the middle classes in Brazil. The most important
professionalization ,
components in the concept of professionalism are the control over work, the
middle classes in
Brazil. power of defining problems and situations and the central role of education.
One can find in Brazil, during the twentieth century and especially on the last
decades, some indicators of this professionalization of the middle classes.

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BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. Para onde vai a classe média: um novo profissionalismo no Brasil? Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 129-142, maio de 1998.

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142
GRÜN,
Tempo Roberto. A classe
Social; média
Rev. no mundo
Sociol. USP,do S.
neoliberalismo.
Paulo, 10(1):Tempo Social; Rev.
143-163, maioSociol. USP, S. Paulo,D10(1):
de 1998. O 143-163,
S S maio
I Ê
de 1998. TRABALHO

A classe média no mundo


do neoliberalismo
ROBERTO GRÜN

Resumo: O texto procura dar conta das recentes transformações na maneira UNITERMOS
como as classes médias brasileiras apreendem e dão sentido à sua vida na classes médias,
neoliberalismo,
esfera econômica. Para isso, utiliza dados e análises de pesquisas sobre trans-
sociologia econômica,
formações em ambientes de trabalho burocráticos, construção de espaços convenções cognitivas,
argumentativos dos gerentes, formas tradicionais e mais recentes do pequeno convenções econômicas.
comércio e sobre o também recente fenômeno do desemprego gerencial. Pro-
cura entender o problema mediante um estudo de transformações das conven-
ções cognitivas implícitas nas formas de se entender o mundo social e seus
reflexos nas vivências da esfera econômica. Da análise emerge um interes-
sante caso de cegueira institucional, onde todas as evidências que põem em
xeque a nova ordem são descartadas e onde a antiga divisão das classes
médias em estratos assalariados e autônomos tem de ser repensado.

Introdução

O
espaço das classes médias brasileiras tem sido revolvido por Texto integrante da me-
sa redonda Para onde
mudanças freqüentes nas suas formas legítimas de ocupação. Um vai a classe média, or-
emprego não-manual numa repartição pública assegurado por ganizada pelos GT's
Trabalho e Sociedade e
concurso ou pistolão; duas ou três casinhas de aluguel, uma “letra de Educação e Sociedade,
viúva” e mais um portfólio de ações da Light e outras concessionárias de serviços no XX Encontro Anual
da ANPOCS, de 22 a
públicos; um cargo de gerente numa empresa pública; o “encarreiramento” numa 26/10/1996.
empresa multinacional – desde o início do século e com o suceder das gerações, a
posse de cada um desses trunfos isoladamente ou em conjunto foram, em seu Professor do Departa-
mento de Engenharia de
tempo, boas garantias de um “lugar ao sol” para quem os obtinha ou herdava. Produção da UFSCar

143
GRÜN, Roberto. A classe média no mundo do neoliberalismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 143-163, maio
de 1998.

Num olhar retrospectivo, todas aquelas estratégias “garantidas” de


se alcançar as seguranças econômica e estatutária necessárias para caracterizar
padrões de vida típicos da classe média desmancharam-se no turbilhão das mu-
danças sociais e econômicas. Sempre que uma delas entrava em crise, podíamos
observar sua expressão na imprensa da época, através de matérias bombásticas
e de impacto sobre a “crise da classe média”, “os expulsos do paraíso” ou, mais
geralmente, “o fim da classe média”. Faltava aos analistas e à imprensa o neces-
sário “background sociológico” para entender que se tratava de uma recriação
contínua das posições médias, cada vez a partir de um substrato econômico
diferente ? Ou estavam todos submetidos a um poderoso consenso que prescre-
via que as formas vigentes em cada um daqueles momentos correspondiam exa-
tamente à essência imortal da classe média? Já que a definição possível de uma
situação faz parte de sua “verdade”, penso que a segunda resposta é a única
sociologicamente sustentável e procuro analisar a produção contemporânea de
consenso que está se formando em torno de franquias, de fundos de pensão
móveis e de administração da empregabilidade. Essas novidades estão sendo
consideradas formas de inserção e de gestão de riscos econômicos “sistêmicas”
na nova ordem “neoliberal”, sendo rapidamente naturalizadas pelo consenso
que se forma em torno delas. No presente trabalho enfatizarei a franquia e suas
relações com as outras formas de inserção.
Os novos instrumentos de gestão segura da esfera econômica da
vida das classes médias fazem parte de um novo sistema econômico de
governança, no seio do qual estão sendo institucionalizados por uma conven-
ção cognitiva. Esse resultado é possível porque eles são a expressão de um
sistema classificatório compartilhado e naturalizado em nossa sociedade (cf.
Douglas,1986a, p.46). A natureza humana é vista como a realização do ideal
do Homo oeconomicus dos manuais de economia: os homens são seres egoís-
tas que procuram maximizar suas utilidades, e uma boa sociedade é aquela
onde os apetites inerentes à “essência do ser humano” são canalizados para
promover o bem comum, independente das vontades pessoais. O comporta-
mento oportunista é natural; esperar altruísmo por parte do próximo é o cami-
nho mais rápido para a ruína. Portanto, o altruísta deve ser visto como alguém
com “defeito de fabricação”, no mínimo, um otário1. Assim, paradoxalmente,
ainda que possamos encontrar comportamentos altruístas no atual momento
* Este artigo é resulta- ideológico (ou talvez o mais correto seria falarmos em “momento cognitivo”,
do de pesquisas finan-
ciadas pela Fapesp e dada a robustez apresentada pelos pré-julgados), eles encontram-se de tal
1
pelo CNPq. maneira deslegitimados, que acabam tendo de defender sua coerência através
Poupo o leitor da comu-
nidade sociológica da dos circunlóquios economicistas (cf. Rieder, 1990, p. 190-213).
explicação do altruís-
mo como uma espécie Convenções econômicas e cognitivas
de egoísmo, típico dos
circunlóquios econo-
micistas. Por dever de Podemos examinar o surgimento e robustecimento das novas con-
ofício, indico que me
inspiro mais uma vez venções econômicas inspirando-nos no estudo de situações análogas, como aquela
em Douglas (1992). que surgiu quando as instituições do Ancien Régime foram substituídas pelas
144
GRÜN, Roberto. A classe média no mundo do neoliberalismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 143-163, maio
de 1998.

novidades que acabaram instituídas pelo efeito dos vagalhões sucessivos pro-
duzidos pela Revolução Francesa. W. Reddy (1986) fornece-nos pistas, traba-
lhando baseado em dois dicionários de comércio de tecidos de sucesso, que
expressavam o consenso entre os negociantes nos momentos respectivos de suas
aparições: o primeiro é anterior à Revolução (1723) e o segundo de 1839. O
Autor descreve-nos as diferenças que aparecem na forma de apreciação “evi-
dentes”, que o negociante avisado deveria empregar para avaliar os tecidos que
mercava. No primeiro caso, numa época que a produção daquela mercadoria
estava totalmente submetida ao sistema de guildas, toda a expertise residia em
avaliar a qualidade e a procedência do produto, não fazendo o menor sentido
uma discussão sobre os métodos de fabricação, já que esses eram apanágio da
respectiva guilda (tecidos não produzidos por guildas eram tão ilegítimos/sem
qualidade, que não apareciam no livro e não se concebia que um comerciante
bem estabelecido trabalharia com eles). O dicionário da época (Savary) refletia
essa convenção. Em 1839, o mundo tinha mudado drasticamente: o dicionário
surgido do estabelecimento da nova convenção cognitiva enfatizava os métodos
de produção e as matérias-primas necessárias para sua produção correta. Mais
do que esse resultado bem conhecido, Reddy relata os titubeios dos interessados
no interregno decorrido entre os indícios do fim da validade dos ensinamentos
do primeiro dicionário e a aparição do segundo. Diante dos movimentos gover-
namentais que indicavam o fim das guildas, os comerciantes temerosos do imenso
salto no escuro que o mundo estava prestes a realizar advertiam os governos
para o previsível estado de anarquia econômica e social que se sucederia: os
trabalhadores, livres da disciplina imposta pela relação mestre/aprendiz, esta-
riam disponíveis para seguir seus baixos instintos e cair em tentação. Pior ainda,
já que ninguém poderia garantir a qualidade dos produtos, seria instaurado o
reino da contrafação. O comércio tenderia a se desorganizar pela falta de garan-
tia de qualidade, e com ele a nação como um todo.
Para fazer face às inquietações dos patrícios urbanos, a argumenta-
ção padronizada escorava-se nos princípios da Declaração dos Direitos do
Homem: se os homens são iguais, não se pode atribuir privilégios a ninguém,
nem os estatutários, nem os econômicos. Por mais interessantes e justos que
os princípios pudessem parecer, eles eram muito abstratos para prevenir as
falsificações econômicas e aliviar o sentimento de insegurança dos indiví-
duos. Entretanto, eles estavam ali para ficar. Querendo ou não, o mundo cul-
tural em que a atividade econômica do Ancien Régime estava enraizada esta-
va superado e nada nem ninguém poderia trazê-la de volta. As virtudes
regulatórias do livre-mercado ainda não eram conhecidas, apenas tornou-se
inconcebível a vida social com a manutenção dos antigos privilégios.
Estaríamos agora diante de uma situação análoga? No caso histórico
examinado por Reddy, sabemos o desfecho. Falar para o nosso caso da
“inevitabilidade da prevalência do neoliberalismo e da globalização” seria
entregarmo-nos à forma mais tradicional do sociologismo barato: o fatalismo
do provável. Mas, se a análise de Reddy foi facilitada pela certeza do resultado
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GRÜN, Roberto. A classe média no mundo do neoliberalismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 143-163, maio
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histórico consolidado, para a nossa trocamos o conhecimento prévio do resulta-


do pela possibilidade de examinar as operações simbólicas cotidianas que con-
tribuem para a realização da mudança da convenção cognitiva, que parece, como
no caso examinado pelo autor, igualmente abstrata, mas nem por isso menos
atuante. Ela age no sentido de, para largas parcelas das classes médias brasilei-
ras, tornar “impossível” o convívio com os constrangimentos próprios das gran-
des organizações. Este texto tenta indicar alguns desses passos examinando o
alcance das transformações recentes das maneiras de vivenciamento das estra-
tégias de inserção e re-inserção econômicas por que passa a classe média brasi-
leira. Para tanto utilizo material oriundo de duas “frentes de trabalho teórico”: a
2
Cf. Fama (1980). É di- primeira delas trata da relação que os atuais gerentes e ex-gerentes desemprega-
fícil deixar de lado a dos têm com seus empregos e perspectivas; a segunda examina o robustecimento
tentação de classificar a
“Agency Theory” como das formas “neoliberais” de inserção econômica para as classes médias. A liga-
uma continuadora mo- ção entre elas é óbvia: os indivíduos são simbólica e economicamente tangidos
derna da “Economia a abandonar a esperança de carreiras profissionais nas grandes empresas e no
Política vulgar” que
tanto incomodava K. governo e a procurar alternativas no pequeno comércio ou indústria.
Marx (1971, p. 453 ss.),
“pecadilho” que, de
alguma maneira, C. As transformações no espaço social das grandes organizações
Perrow (1990) comete
ao criticá-la, de manei- A partir da segunda metade dos anos 1950, a gestão das grandes
ra pertinente quanto à
lógica interna, quando empresas norte-americanas caracterizou-se pela prevalência do chamado “pon-
parece-me que o mais to de vista financeiro” (cf. Fligstein, 1990, p. 239 e ss.). Nas duas décadas se-
correto seria entendê-la
como um artefato sócio- guintes ele amadureceu, criando uma espécie de “comunidade intelectual” entre
cultural poderosíssimo, os especialistas financeiros das grandes corporações e os agentes do mercado
que fornece sentimen- financeiro, esses últimos, obviamente, já nascidos sob o signo da prevalência
tos de segurança, coe-
rência e progressismo dos critérios financeiros de medição da performance empresarial. No início da
para os arautos da nova atual “revolução dos acionistas”, a visão financeira ganhou estatuto científico,
era. Mas talvez eu este-
ja exagerando: cf., no e, portanto, “endureceu-se” como artefato cultural através da Agency Theory 2.
sentido contrário, a a- Esta, por sua vez, vendo a empresa como um “feixe de contratos”, embasa teo-
nálise da difusão da ricamente alguns dos instrumentos de gestão estratégica empresarial mais em
“Reaganomics” por W.
Parsons (1990), particu- voga atualmente: a reengenharia e a terceirização. A prevalência das duas
larmente da chamada tecnologias de gestão leva a um importante resultado: ao anunciar aos quatro
“curva de Laffer”, no
início dos anos 1980, ventos, numa interessante coalizão com a imprensa, que os empregos não são
onde o autor mostra a mais seguros e que cabe aos próprios profissionais preocupar-se com suas car-
progressiva irrelevância reiras (ao invés da situação anterior, onde a grande empresa tomava para si a
da chancela erudita para
assegurar a veracidade responsabilidade de prever a carreira de seus colaboradores graduados), ela rompe
e operacionalidade po- com as expectativas de crescimento da chamada sociedade gerencial, o mundo
lítica das “teorias eco-
nômicas vulgares”, ori- das grandes organizações que oferecia milhões de empregos e traçados de car-
undas do consenso do reira de qualidade nos países centrais, desde pelo menos o fim da Segunda Guerra
mercado financeiro nor- Mundial e desde o começo do século para os EUA3.
te-americano, ao con-
trário do que se passou No centro da mudança de padrão atual, a novidade é a exigência do
com o avanço do keyne- cumprimento efetivo do mandato gerencial de fazer valorizar ao máximo o re-
sianismo e do moneta-
rismo “erudito” de Mil- torno financeiro dos aportes fornecidos pelos acionistas, que esta sendo popu-
ton Friedman. larmente chamada de “Revolução dos acionistas”. Esse “mandato imperativo”
146
GRÜN, Roberto. A classe média no mundo do neoliberalismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 143-163, maio
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contrapõe-se cognitivamente ao managerial capitalism, visto como um sistema


onde os diretores prepostos das empresas teriam adquirido um grau de liberdade
tão grande, que eles privilegiariam seus interesses particulares em detrimento
dos acionistas. Numa outra versão, tratar-se-ia do retorno à opção de “lucro
máximo no curto prazo” em detrimento do “crescimento a todo custo” que seria
a estratégia típica dos diretores profissionais ávidos de mais poder4. Diante das
incertezas postas pela existência das duas maneiras de se medir o desempenho
das empresas, surge a questão da mensuração da performance das empresas que
visam lucro. Numa aproximação simplista, lucro é simplesmente “o resultado
(diferença entre receitas e [custos + despesas]) apurado segundo os princípios
contábeis geralmente aceitos”. Esse resultado seria apurado pelos contadores da
3
empresa e ratificado ou corrigido pelos auditores externos. Mas esse mundo Até pouco tempo atrás,
era “evidente” que o
idílico da contabilidade também desmancha-se no ar. Os experts contábeis es- mundo gerencial esta-
tão cada vez mais contestados no próprio mercado de capitais5. Uma vez que a ria encolhendo na es-
estrutura das carreiras dos auditores independentes é enormemente afunilada, tabilidade oferecida,
no tamanho e na remu-
eles seriam obrigados a manter ótimas relações com os clientes, que poderão neração de seus mem-
tornar-se seus futuros empregadores, já que a maior parte dos auditores é obri- bros. Hoje começam a
aparecer dados nos
gada a trocar de emprego no meio de sua carreira, não sendo admitido o trânsito EUA que contradizem
entre firmas de auditoria. Evidentemente, esse constrangimento opera sobre a essa visão. Ver a respei-
própria vontade de apontar problemas nas demonstrações contábeis que são to: Swinnerton & Wial
(1995); seguido de
oferecidas à sua perícia. controvérsia: Diebold
Tendo indagado sobre a prevalência dessa tendência internacional & Neumark & Polsky
(1996); e tréplica:
no Brasil, fomos informados por auditores e ex-auditores engajados nas gran- Swinnerton (1996).
des empresas do setor que entre nós essa tendência é ainda mais acentuada, já Fica o registro da possí-
que muitos dos cargos mais importantes nas empresas de auditoria internaci- vel decalagem entre a
apreciação subjetiva da
onais aqui instaladas são ocupados por indivíduos vindos das matrizes, situação de emprego
afunilando ainda mais as pirâmides dos mercados internos de trabalho. Por- para gerentes e a situa-
ção “objetiva”, até não
tanto, nenhum espanto diante das recentes reclamações da imprensa sobre a aparecerem sinais de
talvez conivência das empresas de auditoria externa com as administrações consenso entre os econo-
das empresas nos casos Banespa/Eletropaulo, Nacional e Econômico... mistas (afinal, dizem
que a economia é uma
Mas os problemas da mensuração não se restringem àqueles oriun- ciência exata).
4
dos dos constrangimentos nas carreiras dos contadores. Sociologicamente, a Ver Useem (1993). Es-
tamos certamente dian-
contabilidade é vista mais genericamente como um processo de legitimação (cf. te de uma tentativa de
Fligstein, 1990; Meyer, 1994). Cada época do campo empresarial gera as suas inversão do fenômeno
próprias formas de medir o lucro, em geral incompatíveis com as anteriores e que J.K. Galbraith po-
pularizou como o “poder
com as posteriores. Como conseqüência, em momentos de transição como os da tecnoestrutura” (cf.
que passamos atualmente, convivem diferentes instrumentos de mensuração, 5
Galbraith, 1982, cap. 6).
Uma análise sociológi-
que permitem a diferentes organizações, ao mercado financeiro, ou mesmo ca desse processo de
subgrupos dentro das organizações, considerarem que “vão bem” ou que “vão deslegitimação pode ser
mal”, sem correspondência necessária com a opinião dos agentes externos6. encontrada em Mon-
tagna (1990).
Para os fins deste texto, devem ser ressaltados os efeitos dessa 6
Uma visão parcialmente
“plasticidade” sobre a avaliação de chances – de seguir carreira ou de asso- interna das dificuldades
por que passa a profis-
ciar-se como franqueados ou fornecedores de serviços terceirizados – que os são no momento, produ-
agentes da amostra efetuam nas suas relações com as grandes empresas. Essa zida pelos propugna-
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GRÜN, Roberto. A classe média no mundo do neoliberalismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 143-163, maio
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plasticidade da avaliação das performances aumenta o alcance das estratégias


não-diretamente econômicas de legitimação das empresas, complexificando,
em muito, a relação das empresas com os órgãos de legitimação, tais como a
imprensa de negócios e a própria academia.

O Brasil na modernidade

Os ecos dessa situação chegam rápido ao Brasil, com o anúncio de


processos de enxugamento organizacional que se repetem monotonamente des-
de o início de 1990. Surge daí a questão da propagação de rumores negativos
e a (super-)estimação subjetiva das probabilidades de que “isso pode aconte-
cer comigo”. Na falta de indicadores seguros sobre o que está “realmente acon-
tecendo” na empresa ou no ramo em que nossos agentes trabalham, a per-
cepção genérica de que vivemos num mundo organizacional em contração,
reiterada por todos os meios de comunicação, acaba substituindo as avalia-
ções mais circunstanciadas sobre empresas e ramos de negócios específicos
(cf. Einhhorn & Hoggarth, 1985). E é realmente notável o fenômeno da de-
bandada dos agentes que entrevistamos até o momento: mesmo os que procu-
ram o re-emprego em grandes empresas já imaginam sua nova situação como
dores da “contabilidade muito mais instável do que a anterior, imaginando-se já como poupadores
crítica” – professores
universitários da disci- agressivos de parcelas significativas de seu (talvez-) futuro salário e prepa-
plina em situação de rando-se – por meio da realização de cursos de aperfeiçoamento, da renova-
vanguarda intelectual –
pode ser encontrada em ção e manutenção de laços profissionais externos e da “constante busca de
Hopwood & Miller emprego ainda que o atual seja satisfatório” – para enfrentar com mais chances
(1994). Uma outra visão uma futura situação de desemprego. Reparemos que não se trata mais dos
das dificuldades de se
atingir a objetividade na tradicionais “prestar mais atenção na política interna da empresa para não ser
contabilidade, no espíri- pego numa armadilha” ou “dedicar-se com mais afinco a conhecer os segre-
to da nova Antropologia
da Ciência, em Porter dos do negócio da nova empresa”, ou “apresentar provas cada vez mais fortes
(1995, p. 89-112). de dedicação e lealdade” que víamos em outras épocas.
7
A situação “lógica”
brasileira era análoga
à francesa, descrita O formato das mudanças
por P. Bourdieu e L.
Boltanski (1976).
8
Mesmo internamente A mudança dos sistemas simbólicos pode ser apresentada através da
às empresas privadas, sucessão de pólos de significado positivo/negativo que se sucedem, conforme a
os diversos grupos as- figura 1 abaixo. Podemos situar o fim dos anos 1960 e início dos 70 como um
cendentes que disputa-
vam posições com ou- período onde, tipicamente, a grande empresa (sem distinção entre as privadas e
tros já estabelecidos as estatais) era vista positivamente como “aberta”, racional porque instrumentava
tentavam rotular de
“funcionários” seus a lógica de seus administradores profissionais, encarnando o progresso econô-
oponentes, na eviden- mico, e contraposta à pequena empresa, que era vista como intrinsecamente
te intenção de associá- negativa, “fechada”, irracional porque existia apenas para satisfazer a lógica
los aos membros do
setor público da eco- pessoal ou familiar de seus proprietários, inimiga do progresso7 etc.; no fim dos
nomia e assim desva- anos 70 a contraposição muda, aparecendo um pólo positivo representado pelo
lorizá-los por uma es-
pécie de “efeito de setor privado da economia, que aparecia necessariamente contraposto ao pólo
halo” (cf. Grün, 1985). estatal8, esse último recebendo a carga negativa e sendo responsabilizado pelas
148
GRÜN, Roberto. A classe média no mundo do neoliberalismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 143-163, maio
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mazelas do país. A passagem de t0 para t1 pode ser ilustrada pelo ataque que os
meios de comunicação realizaram contra o setor público da economia a partir do
fim dos anos 1970. E, finalmente, nos anos 90 assistimos à consolidação de
uma outra polarização, agora entre o pólo dos “empreendedores”, englobando
os homens de iniciativa, em geral no setor privado e em pequenas unidades de
negócios (ou grandes, mas com pouco staff), que se contrapõe ao pólo negativo
dos “burocratas”, que poderiam ser encontrados indistintamente no setor pú-
blico ou privado da economia.Um ponto a ressaltar sobre as mudanças na pas-
sagem de t1 para t2 é que em t2 a polarização aparece entre indivíduos e não mais
entre organizações, como nos “tempos” anteriores, abrindo algum espaço sim-
bólico para tentativas de aggiornamento do setor público. De uma maneira
geral, como se pode ver, fechamos o círculo, com a inversão do sentido associa-
do à “pequena empresa” no início do período.

grande empresa privado empreendedor


t0 t1 t2
pequena empresa público burocrata
1. os pólos de
significado

Em termos das concepções gerais de sociedade e de “contrato social 9


Esse princípio de jus-
implícito”, podemos, usando o mapa cultural sugerido por Mary Douglas (fig. 2), tiça/reciprocidade/
falar da passagem de um mundo econômico tipicamente assentado sobre a idéia hierarquização pode-
ria ser, por exemplo,
de sociedade hierárquica, com obrigações de reciprocidade que garantem a per- o caso de uma organi-
cepção da sociedade, ou, mais precisamente, das organizações que dela fazem zação que justifica
parte como sendo justas e que, portanto, as estabilizam9 (quadrante “C” da figu- sua hierarquia pelo
conhecimento e, ao
ra) para um outro mundo, individualista, onde o empreendedor merece todas as oferecer treinamento
recompensas, onde “quem não se arrisca, não petisca” e onde o próprio con- e oportunidades de
aprendizagem em ge-
ceito de organização é cognitivamente complicado (quadrante “A”)10. Nessa ral para todos os seus
passagem, saímos de uma situação onde o indivíduo, “vestindo a camisa da membros, concede a
empresa”, trabalha duro hoje, esperando (implicitamente, tendo direito) uma todos a chance de au-
mentar os seus conhe-
recompensa no futuro, para outro tipo regulação, onde “o quê você merece hoje, cimentos e, portanto,
você recebe hoje”, sem comprometimentos de longo prazo. Evidentemente, sub- de galgar postos na
empresa. Ver Douglas
sistem indivíduos (quadrante “B”) e organizações (quadrante “D”) com outras (1996, p. 43 ss.) e
características, mas que têm dificuldades de manter legitimidade face ao mundo Goodman (1978, esp.
circundante. De uma maneira geral, o esquema de Douglas sugere que, dado que p. 10 ss.).
10
No mundo dos empre-
o quadrante “A” não assegura estabilidade para a organização social, provavel- endedores individua-
mente estamos diante de uma ofensiva ideológica que desembocará simples- listas, toda dinâmica é
produzida pelos ato-
mente num outro tipo de sociedade hierárquica, só que estabilizada por um ou- res com suficiente for-
tro princípio de justiça/reciprocidade. ça de vontade e, nes-
Sobre as razões da prevalência dessa “máquina de pensar”, a pista se caso, as organiza-
ções são vistas como
geracional parece ter forte poder explicativo. Em diversos campos que causadoras de dificul-
pesquisamos (gerentes, profissionais de recursos humanos, líderes sindicais, dades que impedem a
maximização do re-
jornalistas), a adesão ao novo credo parece ser uma marca geracional que coesiona sultado agregado da
os desafiantes da esfera estudada (evidentemente, segundo as possibilidades ação dos empreende-

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expressivas de cada uma delas). Por exemplo, entre o pessoal de recursos huma-
nos, na discussão da imputabilidade individual dos custos das greves, enquanto
a “velha guarda” insistia na necessária manutenção do espírito paternalista da
C.L.T., entendendo os operários “de base” participantes dos movimentos como
inocentes úteis, os seus desafiantes mais novos frisavam a necessidade de “tor-
nar o operário consciente de suas faltas” através de punições rigorosas. Mesmo
no movimento sindical, na discussão das táticas a serem adotadas durante uma
greve, os líderes mais antigos insistiam na necessidade de se construir a coesão
do coletivo, enquanto seus êmulos mais novos pensavam num processo de
mobilização que insistia nos benefícios econômicos diretos dos operários, con-
siderados como indivíduos11. Ao que essas pesquisas indicam, estamos diante
de uma “guerra cultural”, onde nas diversas variantes, os jovens que procuram
antecipar a ocupação dos lugares que ainda estão nas mãos dos mais velhos
lançam mão de linhas de argumentação sincrônicas e que imputam ao indivíduo
a responsabilidade pela sua situação, que são típicas do quadrante “A”.
Correlativamente, eles tentam desvalorizar os méritos passados de seus concor-
rentes mais velhos, os quais, por sua vez, justificariam sua proeminência hierár-
quica numa lógica argumentativa típica do quadrante “C”. Entretanto, fica a
sugestão de Douglas registrada no parágrafo acima, que nos permite inferir que
o furor anti-burocrático atual só durará até os atuais fundamentalistas sentirem-
se seguros nas posições conquistadas e daí em diante passarão a tentar justificar
sua proeminência nos méritos passados e tenderão para o quadrante “C”.
2. O “mapa cultural” Isolamento cultural Hierarquia conservadora
Fonte: M. Douglas:
"Thought Styles", Sage B C
(1996), p. 43 (ligeira-
Isolamento por escolha ou compulsão, Grupos fortemente integrados com
mente adaptado).
literalmente sós ou isolados em estrutura complexa – hierárquica com
estruturas complexas. obrigação de reciprocidade.

(valores ecléticos) (organizações “tradicionais” – antigas


e modernas)

Estrutura fraca, incorporação fraca. Grupos fortemente integrados com


estrutura fraca.
(individualismo competitivo; mundo
dos empreendedores) (seitas igualitárias, mas também certas
dores existentes na empresas modernas: de consultoria ou
sociedade. Sobre a ló- do chamado “capitalismo carismático”
gica cognitiva desse – Avon, Amway etc.)
mundo, muito próxi-
ma daquela que inspi-
ra o conservadorismo
A D
norte-americano atual,
Individualismo ativo Enclave dissidente
ver Lakoff (1996, so- A literatura internacional começa a dar conta das conseqüências da
bretudo p. 94; 181-183).
11
Para o primeiro caso, cf. nova situação, em especial, da quebra do contrato implícito de “lealdade recí-
Grün (1993); para o se- proca” entre a grande empresa e seu “colaborador graduado” por meio de
gundo, ver Zilbovicius
& M., Ferro, J.R. & textos dirigidos a dirigentes de empresas e gerentes passíveis de serem atingi-
Grün, R (1986). dos pela vaga de demissões, mas caucionados por recomendações de autores
150
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consagrados no mundo sociológico norte-americano, como R. Kanter e B.


Bluestone12. Eles apresentam a nova situação para o gerente insistindo nas
suas virtualidades positivas: a antiga situação de segurança gozada nas gran-
des empresas é associada à idéia popular de burocracia, de trabalho maçante,
previsível, pouco enriquecedor e contraposta à nova situação, onde o indiví-
duo teria chances de fazer desabrochar todas as suas possibilidades, onde o
desafio de cada nova situação propiciaria um maior enriquecimento pessoal,
onde a instabilidade no emprego seria benéfica, pois forçaria o indivíduo a
questionar-se sistematicamente, investir em novas qualificações, enfim, tor-
nar-se mais aberto e flexível, com repercussões positivas em sua vida privada.
De maneira um pouco hilariante para quem acompanhou a evolução
dos sistemas simbólicos utilizados pelos gerentes do setor privado nos últimos
15 anos, saímos de uma situação onde os gerentes do privado haviam consegui-
do colar a pecha de “burocratas” para a maior parte dos administradores do
setor público (num processo bastante complexo, é claro, onde convergiram os
interesses de vários grupos de agentes) e chegamos atualmente a uma configura-
ção, onde o conteúdo do trabalho dos gerentes do setor privado é considerado
em princípio, como “burocrático”, e instantaneamente desvalorizado.
E finalmente, um neologismo começa a freqüentar a literatura e as
conversas da moderna administração de recursos humanos: aparece o termo
“empregabilidade” – uma das principais funções da nova administração de
recursos humanos seria a de treinar continuamente os empregados da empre-
sa, de forma que, uma vez tornados “redundantes” na empresa, eles possam
conseguir novo emprego rapidamente. Essa nova atividade, ao lado do nosso
já conhecido out-placement, constituiriam-se na resposta empresarial às difi-
culdades de se manter a lealdade dos empregados nos tempos do downsizing
e da terceirização. Podemos adiantar que, embora a literatura sobre adminis-
tração de pessoal já fale há algum tempo do out-placement e começe a falar
na empregabilidade, nenhum dos membros de nossas amostras obteve qual-
quer uma dessas compensações quando foi demitido do seu último emprego.
Essa discrepância faz-nos pensar que os novos instrumentos de suavização do
choque do desemprego ainda estejam na sua fase de “retórica”, funcionando
mais como instrumentos de relações públicas das empresas em relação à mídia
do que propriamente como “ferramentas gerenciais”. Mas é provável que num
momento próximo e/ou mais necessário, a atividade torne-se uma prática efe-
tiva, já que, nessa zona do mundo econômico, é notável a rapidez com que a
criação e a identificação do problema gera o aparecimento de um novo espaço
social, onde se produzem especialidades e especialistas.
A literatura citada acima pensa a situação de maneira simplória:
no antigo mundo dourado, os gerentes teriam sido colaboradores felizes das
grandes empresas, num contrato tácito de longo prazo, e essa relação quase
nunca teria sido perturbada. Nas minhas pesquisas anteriores (cf. Grün, 1995), 12
Destaco Heckscher
os gerentes, principalmente os membros das novas gerações, procuravam in- (1995); e Johansen &
cessantemente maneiras de se libertarem da homogeneização das grandes or- Swigart (1994).
151
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ganizações, vislumbrando a possibilidade do estabelecimento por conta pró-


pria como consultores. Ainda que essa alternativa não se concretizasse para a
maioria das amostras, ela era sempre lembrada como uma boa alternativa para
o futuro dos agentes entrevistados. Essa discrepância com a literatura sugere
que podemos estar diante de uma reconstrução do passado, necessária para
ressaltar, em termos cognitivos, as dificuldades da nova situação de emprego.
Mas, para entender a sua vitalidade, é necessário dizer que o “novo mundo”
fala alto para o imaginário dos gerentes: é uma espécie de “canto da sereia”,
manipulando sua ambigüidade em relação à lealdade e seus antigos desejos.

Ataque e defesa

13
Sobre o cotidiano ge-
rencial nas grandes Mas, apesar do ataque coordenado do mercado financeiro e de seus
empresas assim con- “agentes” internos das organizações, da imprensa e da academia, a sociedade
cebidas, ver Jackall gerencial resiste de alguma forma, mostrando que a antiga idéia que representa-
(1988). Uma interes-
sante avaliação críti- va a grande empresa como uma espécie de comunidade onde os gerentes tinham
ca dos pressupostos droit de cité, desde que “vestissem a camisa”, não está morta. Podemos obser-
da idéia de que “orga-
nizações menores são var essa sobrevivência em diversas frentes. Na verdade, as virtudes da
diferentes e mais fá- reengenharia, sobretudo por meio do seu corolário, o downsizing, vêm sendo
ceis de serem contro- objeto de crescentes impugnações, mesmo na imprensa de negócios. Podemos
ladas” pode ser en-
contrada em Douglas mesmo apontar uma disputa entre dois projetos de modernidade organizacional:
(1986b, p. 21 ss.). aquele baseado no TQC (Controle Total da Qualidade) e o projeto baseado na
14
Mas o sentido do ma-
terial exposto pela im- Reengenharia, que refletem, dentro das organizações, as possibilidades polares
prensa não é unívoco: do destino da sociedade gerencial. A prevalecer o primeiro projeto, as organiza-
aparecem matérias crí- ções adotarão processos de aggiornamento incrementais, num processo de aper-
ticas em relação à re-
engenharia, embora feiçoamento contínuo onde a própria “tecnoestrutura” define os rumos de sua
em muito menor quan- modernização. Assim, a estrutura das organizações continuará sendo guiada
tidade. Se pensarmos
essa situação face ao pelo espírito gerencial. Já a prevalência da segunda possibilidade, onde predo-
processo de difusão de mina a utilização de mecanismos de controle “macro”, inspirados na Agency
outros “hits” organiza- Theory, que devem alinhar os interesses dos gerentes com os dos acionistas
cionais, verificaremos
uma importante dife- mediante incentivos e penalidades diretamente econômicos e de curto prazo,
rença: Administração indicará o controle da razão financeira (principalmente de seus portadores) e a
por objetivos, orça-
mentos base-zero, subordinação da sociedade gerencial àqueles desígnios. No esquema ideal, a
CCQs, TQC, todas es- grande empresa é dividida “teoricamente” em unidades contábeis pequenas, que
sas siglas tiveram um são monitoradas na sua lucratividade como se fossem empresas independentes,
enorme período de pro-
paganda apenas positi- devendo produzir lucros compatíveis com seu capital estimado, caso contrário
va, antes de começa- elas devem ser vendidas e o resultado apurado pela venda empregado em algu-
rem a aparecer suas
mazelas. Não acontece ma aplicação que garanta pelo menos o lucro mínimo esperado. O pressuposto
a mesma coisa em re- é de que as pequenas unidades são mais fáceis de serem controladas, tanto pelo
lação à reengenharia, preposto em relação a seus subordinados diretos, quanto na relação entre a admi-
talvez por causa da as-
sociação imediata que nistração central e o gerente que ela indica13.
se faz entre essa ferra- Podemos mesmo dizer que estamos diante de um conflito simbóli-
menta organizacional e
a dispensa maciça de co que corta toda a sociedade. Interessantemente, ele apareceu e teve seus
empregados, que, por significados e instrumentos desenvolvidos principalmente no espaço
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organizacional. Muito além do espaço que estamos analisando, é evidente a


importância de seu desfecho para o futuro da relação entre sociedade e Estado
em sua generalidade, influenciando toda a ação estatal e o sentido das inter-
venções privadas na esfera pública.
O conflito começa a se evidenciar em diversos espaços. Ele aparece
evidente no material que coletamos nas publicações de negócios e na grande
imprensa brasileira (Exame, Gazeta Mercantil, Folha de S. Paulo, Estado de
São Paulo) e ecoa nos discursos de nossos entrevistados. Grosso modo, aparece
na amostra a idéia da incompatibilidade entre os dois projetos – que muitas
vezes são vendidas como as “duas fases de um mesmo projeto” pelas empresas
de consultoria ávidas de novas encomendas –, embora com muita dificuldade na
sua vocalização plena. Os ex-gerentes sentem-se traídos, já que muitos deles
sua vez, também é no-
tornaram-se propagandistas entusiastas dos programas de TQC, que enfatizavam tícia. Uma vez que
justamente a canalização do entusiasmo de todos os “colaboradores” da empre- Exame é dirigida para
sa no sentido da melhora contínua dos diversos processos organizacionais, rei- o público gerencial
como um todo e Gaze-
terando nas suas esferas de percepção o antigo contrato de “lealdade à toda ta Mercantil mais vol-
prova versus garantia de emprego e carreira”; para depois virem-se “jogados às tada para o pessoal da
mercado financeiro,
traças” pelo downsizing. A maior parte do material coletado na imprensa, que não é por acaso que o
se inspira justamente nas empresas de consultoria, repete a idéia da compatibi- tema parece muito
lidade organizacional entre os projetos, “desarmando” nossos agentes e inibin- mais presente na pri-
meira publicação do
do o desenvolvimento lógico de suas observações14. Examinar as linhas de for- que na segunda. Mas,
ça simbólicas e materiais que se formam em torno dessa definição do “melhor de alguma forma, esse
questionamento na im-
futuro” das organizações, entre elas o Estado, é uma tarefa sociológica que difi- prensa de negócios é
cilmente pode ser relativizada. Sócio-logicamente, o próximo passo da análise mais do que compen-
deve ser o exame do papel de órgãos de fomento na criação da nova pequena sado pela sua apre-
ciação positiva na im-
burguesia e a relação/inspiração da atuação desses órgãos com o pensamento prensa não-dirigida,
acadêmico dominante15. Seguindo os passos de Bourdieu, a conclusão lógica onde a moda gerencial
é vista como uma es-
dessa análise poderá levar-nos a um estudo mais geral sobre a complexificação pécie de “santo remé-
dos mecanismos de poder na sociedade brasileira atual, onde os portadores dos dio para todos os ma-
diversos tipos de poder (econômico, cultural, político, social) tem sua ação cada les”. Seria interessan-
te verificar se há con-
vez mais dependente dos portadores das outras formas, num processo de entre- flitos geracionais aná-
escoramento que aquele Autor chama de “allongement des circuits de logos nos órgãos da im-
prensa que dão cober-
légitimation” (cf. Bordieu, 1989, p. 548). tura mais favorável à
reengenharia, o que in-
Velho e novo pequeno comércio dicaria paralelismo en-
tre os dois campos.
15
Procurei ordenar a ação
E como os pequenos comerciantes entram nesse “admirável mundo desses fatores numa
análise sobre as estra-
novo”? Aparentemente por meio da franquia, mas só aparentemente. Está fir- tégias de legitimação
memente estabelecido que a nova sociedade é aquela do “conhecimento” e o das empresas do setor
pequeno comerciante tradicional é o “homem prático” por excelência: portanto, de papel e celulose e do
impacto dessas estraté-
não haveria lugar para mais esse “dinossauro”. Entretanto, pesquisando um uni- gias nas relações com a
verso “paralelo” – pequenos empreendedores de origem armênia, atuando no imprensa de negócios,
com a academia e com
setor de calçados na cidade de São Paulo (cf. Grün, 1992) – pudemos registrar os órgãos de financia-
uma situação onde os jovens mantinham-se na especialização funcional inaugu- mento. Cf. Grün (1994).
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rada por seus ancestrais e, diante da sociedade, eram compelidos a adotar uma
situação ambivalente em relação aos valores do sistema escolar: se de um lado
eles tinham a obrigação social de prosseguir seus estudos até o terceiro grau,
obtendo um diploma de nível superior, tornado praticamente obrigatório para a
apresentação do indivíduo nas interações sociais mais amplas (mercado de ca-
samentos, relações com fornecedores, com bancos ou mesmo com empregados
graduados); por outro lado, a qualidade desse diploma importava pouco, já que
naquele ambiente considerava-se que o essencial da capacitação do empreende-
dor dar-se-ia através do engajamento precoce na atividade econômica tradicio-
nal da colônia. Como conseqüência, os jovens daquela amostra acabavam ma-
triculando-se em escolas noturnas privadas de Administração ou Economia,
pertencentes a grupos educacionais de reputação pouco expressiva. Mas, mes-
mo neste caso, a relação mais direta com o conhecimento formal é complexa: os
relatos aparecem recheados de situações de conflito geracional, que opõem a
sua “maneira moderna” de gerir os negócios da família – não só os econômicos,
mas também os emocionais – aos métodos “tradicionais, mas que sempre de-
ram certo” de gestão empregados pelos seus pais na condução dos diversos
negócios. Esses “armênios da nova geração” estão assim vinculados parcial-
mente ao mundo da economia moderna – e sujeitos as suas seduções ideológico-
existenciais – mediante uma variação da situação clássica de constrangimento
double bind: diante de seus colegas “estudiosos”, eles afirmam a irredutibilidade
dos conhecimentos práticos adquiridos na sociabilidade primária da sua etnia;
perante seus pais e transmissores do savoir-faire e da cultura étnica, eles apre-
sentam-se como portadores do know-how da administração científica e, portan-
to, como os mais aptos, no interior da família, a tomar conta e a direcionar as
suas atividades econômicas, com todos os benefícios que o recebimento precoce
das heranças lhes pode trazer16.
Uma primeira apreciação poderia fazer-nos pensar que os membros
das classes médias assalariadas, entrando para as camadas auto-empregadas da
sociedade, iriam adotar o padrão que acabamos de descrever. Entretanto, a so-
cialização anterior dos membros da amostra atual, onde o investimento escolar
é central, certamente ajuda a produzir uma identidade diferenciada em relação
aos pequenos empreendedores tradicionais, mesmo os das “novas gerações”.
De fato, o novo tipo de pequeno empresário liga-se à grande empresa por uma
série de laços, sem com isso perder a auto-imagem de “independente”. A pró-
16
O conceito de double pria percepção de que os “ativos intangíveis” – a pesquisa de mercado sistemá-
bind aparece constan- tica que estabelece os bons pontos de venda e tipos de clientelas, a necessidade
temente na obra de
Elias e de Bourdieu. de acompanhamento das atividades do franqueado para se conseguir uma ga-
Acredito que sua for- rantia de qualidade, o valor da marca como fundo de comércio – vendidos pelos
mulação mais rigoro- franqueadores são bens escassos que merecem seu preço já é uma prova da
sa, atentando tanto
para as conseqüênci- influência exercida pela maneira gerencial de ver o mundo. A aparente continui-
as sociológicas quan- dade “objetiva” entre o novo pequeno empreendimento personificado na fran-
to as psicanalíticas, é
aquela exposta em quia e os pequenos comércios e indústrias tradicionais mascara uma diferença
Gilman (1986). de percepção que deve ser considerada em vários eixos. O primeiro deles, e o
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mais importante, é estético: nossos entrevistados no negócio da franquia acham


que são evidentes as diferenças entre seus negócios e “a padaria do português”,
ou a “lojinha do turco”, mesmo quando, aos olhos do pesquisador, a continuida-
de, inclusive de clientela, parece flagrante17. Se acompanharmos Bourdieu,
estamos aqui diante de estratégias de distinção bastante explícitas (cf. Bordieu,
1979), onde o grupo que estamos analisando faz absoluta questão de marcar
suas diferenças justamente com seus vizinhos mais próximos na estrutura so-
cial. Se quisermos ser mais radicais, podemos aceitar a sugestão de Douglas
sobre o caráter profundamente revelador das manifestações de desgosto ou de
nojo. Acompanhando a Autora, a situação que descrevemos revela uma verda-
deira situação de guerra cultural, onde o nosso grupo só existe cultural e social-
mente por oposição àquele assinalado de forma negativa. Nesse caso, conside-
rar as semelhanças “objetivas” mais importantes do que as diferenças “subjeti-
vas” significaria perder de vista a lógica da invenção social, onde o magnetismo
que atrai os atores para as novas formas de inserção é produzido justamente
pela necessidade social de distinguir-se e, portanto, de dar sentido à vida
(cf. Douglas, 1996, p. 50 ss.).
Tudo assim indica que o acesso a um léxico moderno para expres-
sar as circunstâncias da atividade econômica (do marketing, das finanças e da
17
qualidade) ocupa um lugar importante entre os produtos comercializados pe- Em Negócios & famí-
lias (Grün, 1992), os
los franqueadores, conferindo aos franqueados uma legitimidade importante membros das novas
diante deles mesmos e de suas redes de relações sociais. Essa faceta pouco gerações de comer-
ciantes de calçados de
explicitada do produto franquia, conferindo aos franqueados a aura social- origem armênia julga-
mente essencial de “modernos”, de indivíduos inseridos num tipo de atividade vam que o fato de li-
econômica que se distingue do “português da padaria” ou do “turco da loji- darem com uma clien-
tela “de shopping” os
nha”, responde assim por grande parte de seu apelo comercial. Portanto, não é distinguia positiva-
por acaso que o perfil dos adquirentes de franquias que começa a se esboçar mente de seus pais,
que caracterizar-se-
de nosso trabalho de campo registra uma forte presença de ex-gerentes ou iam por estabelecer
familiares próximos de gerentes profissionais em atividade, que acumularam seus pontos comer-
o capital necessário para dar início à empreitada a partir da atividade do pri- ciais em zonas chama-
das “de combate”, li-
meiro. Ainda que nossos dados não permitam afirmar categoricamente esta dando com clientelas
tendência, podemos dar voz a um especialista: “Até há alguns anos, as fran- de baixo poder aqui-
sitivo. Embora a ques-
quias eram compradas por executivos para a mulher ou para os filhos. Hoje, é tão da franquia não
o próprio executivo – que está deixando o cargo em busca de uma nova ativi- estivesse em evidên-
dade – que entra no setor” (Cherto, M., Folha de S. Paulo, 26/06/94, p. 9-2). cia naquele momento,
os membros da “jo-
Um outro ponto de distinção entre a franquia e o pequeno negócio vem guarda” ressalta-
tradicional é a questão da caracterização propriamente econômica dessa nova vam que eles acumu-
lavam os conhecimen-
forma. Colocando para dialogar colegas economistas especializados em or- tos tradicionais de
ganização industrial com colegas administradores especializados em seus pais com os da
mercadologia e distribuição, pudemos constatar que o negócio da franquia é administração cientí-
fica, donde podemos
visto pelos membros do primeiro grupo como levando as pessoas nele inferir que eles tam-
engajadas a uma especialização em franquias, quaisquer franquias, inde- bém atribuiriam pou-
co valor aos produtos
pendentemente do produto ou serviço a ser comercializado. Nesse caso, os intangíveis ofertados
novos comerciantes passariam a desenvolver sobretudo uma boa percepção pelos franqueadores.
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dos riscos e vantagens de cada tipo de contrato de franquia, reaplicando


seus excedentes em novas franquias. Já os colegas administradores vêem a
franquia como um começo de especialização do novo comerciante no ramo
do negócio em que a franquia foi aberta. Nesse caso, por exemplo, o fran-
queado num negócio de fast-food, tendo realizado lucros suficientes na sua
primeira investida comercial, deveria abrir um novo negócio para si próprio
no mesmo ramo de fast-food, só que, nesse segundo momento, sem precisar
da assistência do franqueador e, correlativamente, sem precisar pagar os
royalties da marca consagrada. Reparemos nas conseqüências dessa dife-
renciação: a prevalência do primeiro tipo de empreendedor assinalaria que a
franquia representa uma novidade perene na constituição da nossa nova pe-
quena burguesia – estaríamos diante de um novo comerciante em “estado
puro”, pouco engajado nas sutilezas do produto que merca, adotando diante
de seu negócio uma postura análoga à do banqueiro que empresta dinheiro –
preocupado apenas com os resultados financeiros do empreendimento. Ele
personificaria o ator racional dos manuais de economia. Já a prevalência do
segundo tipo poderá nos induzir a pensar que a aquisição da franquia é uma
espécie de estratégia de rattrapage, onde o novo comerciante paga ao
franqueador uma espécie de custo de aprendizado para se estabelecer por
conta própria. Uma vez aprendido o novo ofício, a tendência seria o
restabelecimento do antigo padrão de pequeno burguês independente. Acha-
18
mos que existe a forte possibilidade de que o segundo tipo de comporta-
Dois estudos sobre o
comportamento da mento seja seguido mais freqüentemente por indivíduos oriundos das “na-
imprensa de negócios, ções comerciantes” (vimos alguns casos nesse sentido), mas nossos dados
que estou realizando/ ainda não permitem uma conclusão mais firme. De qualquer maneira,
realizei juntamente
com meus alunos de reproduzo uma colocação do especialista em franquia, portanto, interessado
mestrado (respectiva- na prevalência da primeira interpretação: “Nos EUA, há montes de
mente sobre a difusão
de métodos participa- franqueadores desse tipo (que não entendem nada do negócio franqueado –
tivos de organização o autor se refere a salões de cabeleireiro e lojas de “fast-food”) Um dia
do trabalho e sobre o perguntamos a John Amico (empresário do ramo, muito festejado nos Esta-
Controle Total da Qua-
lidade) também de- dos Unidos) que diabos eles tem a ver com sanduíches ou cortar cabelos e a
monstram a total pre- resposta foi: ‘Meu negócio não é vender sanduíches, nem cortar cabelos.
valência de notícias
que podemos conside- Meu negócio é franquia. Do que, não me interessa’” (Cherto, M., Folha de
rar positivas sobre as S. Paulo, coluna franquia, 14/11/94, p. 2-2). Contrapondo-se a esse qua-
novidades organiza- dro, a única menção negativa ao sistema que encontrei na imprensa foi um
cionais em questão.
Esse estilo de divulga- seminário intitulado Os mitos da franquia, realizado em julho de 1994 –
ção contrasta com as não por acaso – na Câmara de Comércio Brasil-Israel18.
posições constatadas
dos órgãos da impren-
sa internacional em A expansão e a possível crise da franquia
que os jornalistas bra-
sileiros entrevistados
dizem se mirar (prin- Os números e sobretudo a velocidade referentes à expansão do sis-
cipalmente as revistas tema de franquia dão uma idéia da sua importância crescente: segundo esta-
Business Week e The
Economist). Ver tam- tísticas da Associação Brasileira de Franquia, o setor registrava no final de
bém a nota 12 acima. 1994 a expressiva quantia de 53 mil franqueados, contra apenas 8 mil no final
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de 1990. Do “outro lado do balcão”, apareceram 1.203 empresas franquean-


do. A mesma fonte clama que em torno de 10% do PIB nacional passa por
essa forma de negócio. Outro ponto importante, assinalando uma evolução do
setor, é o número cada vez maior de empresas que oferecem franquias cujo
investimento total para a instalação é inferior a cinco mil reais – como chavei-
ros, sapateiros e serviços de entrega a domicílio. A enorme energia social
aplicada no setor fez com que atualmente tenhamos no Brasil empresas de:
consultoria em preparar uma organização para se tornar franqueadora (locali-
zamos quatro); consultoria no traçado do perfil do candidato a franqueado,
para que o mesmo possa escolher o ramo de franquia em que se engajará
(duas); cursos de capacitação para executivos das empresas franqueadoras
(sete); escritórios de advocacia especializados em questões e contratos na área
(treze); empresas de comunicação visual que trabalham exclusivamente para
o segmento (uma); revistas especializadas na área (três). Anotamos também a
existência de quatro Institutos e associações ditas sem fins lucrativos, que
aconselham pessoas interessadas em se tornar franqueados ou franqueadores,
incluindo o setor do Sebrae que mais cresce atualmente.
A rápida institucionalização do “negócio franquia” é um fenômeno
evidente, criando-se em torno dele um “campo”, de forma que as ações que
podem por em risco a existência do sistema de forças como um todo são for-
temente penalizadas. Ainda não podemos dizer muito sobre a efetividade dos
mecanismos de controle disponíveis para os franqueados, mas podemos infe-
rir alguma coisa lembrando que uma das principais características da nova
situação é o papel importante da publicidade da marca franqueada diante dos
possíveis compradores de franquia, e que essa publicidade se faz “boca-a-
boca” (os manuais do franqueado, tanto nacionais quanto norte-americanos,
recomendam fortemente aos candidatos a franqueados a consulta a vários
empreendedores já estabelecidos na rede de franquia que o interessado está
vislumbrando) e através de órgãos de imprensa interessados na ampliação do
“negócio franquia” como um todo e, portanto, dotados de alguma indepen-
dência em relação a cada franqueador, inibindo dessa forma situações de grande
contraste entre a situação prometida ao franqueado e a marcha efetiva dos
negócios, uma vez estabelecida a franquia.
Começamos a estudar os fatores que contribuem para a robustez do
produto e constatamos, entre outros pontos, o interessantíssimo “efeito-teo-
ria”19 que é exercido pela visão do “produto franquia” como parte integrante
da modernidade desejada para o Brasil, sustentada pelos economistas e jorna-
listas participantes do debate público (e também aqueles que, na academia,
dão suporte intelectual aos nomes mais evidentes na mídia), que sustentam os
“intelectuais do ramo” – revistas de franquia e pequenos negócios; colunistas
especializados na mídia periódica. Num primeiro momento, esboçamos a aná-
19
lise do “campo simbólico-econômico” mais direto (os periódicos e colunistas Sobre o conceito
de “efeito-teoria”,
especializados no assunto) que vive da franquia, principalmente através do cf. Bourdieu (1982,
fornecimento de consultorias e secundariamente pelo rendimento direto da p. 100 ss.).
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GRÜN, Roberto. A classe média no mundo do neoliberalismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 143-163, maio
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atividade periodista; e que também fazem viver o ramo, fornecendo-lhe a ne-


cessária legitimidade. Esse esforço está se revelando prometedor, mas clara-
mente insuficiente, já que os indivíduos que se vinculam à “comunidade da
franquia” como seus “intelectuais”, só se sustentam nesse papel porque são
secundados pelos economistas, administradores e “grandes jornalistas” cita-
dos no início do parágrafo. A lógica dessa “produção da crença”20 obedece, de
alguma forma, uma mecânica análoga àquela descrita por Marx na análise da
relação entre o setor produtor de bens de capital e o de bens de consumo. No
nosso caso, o “bem de capital” é a “produção de idéias genéricas” sobre o
rumo que deve tomar a economia e a sociedade, principalmente sobre “quais
são os componentes legítimos da nova ordem”; enquanto que o “bem de con-
sumo” consiste nas idéias específicas que referendam o campo e as posições
dos atores no seu seio21.
Uma maneira interessante de observar as coalizões cognitivas e
“práticas” que operam no campo está sendo fornecida atualmente pela crise
econômica. A partir do final de 1995, o setor, visto como imune a crises,
20
começou a emitir alguns sinais inquietantes. Vários franqueados e
Inspiro-me novamen-
te em P. Bourdieu franqueadores apresentavam dificuldades e alguns faliram. Diante da novida-
(1977). de embaraçosa, os “intelectuais” do setor avançaram diversos tipos de expli-
21
Aparentemente, a for- cação, interessantes pela lógica interna. Podemos agrupá-las em torno de duas
mulação acima é uma
versão desnecessaria- posições polares: de um lado, as explicações que diziam que o problema con-
mente complicada da sistia na falta de profissionalismo dos franqueadores, que vendiam franquias
relação entre produtor
e divulgador de fatos ou produtos mal-definidos ou mal-acabados a seus franqueados, resultando
científicos em geral. no desastre para ambos. A questão central residiria então na necessidade de
Mas, no caso em que uma regulação do sistema, no sentido de coibir a comercialização de franqui-
estamos trabalhando,
é necessário pensar a as “amadoras”. O outro grupo de explicações fazia menção à falta de preparo
influência do “divul- ou vocação dos franqueados. E, apesar de ir contra a lógica mesma do produto
gador” sobre o “pro-
dutor” de formulações franquia, que promete realizar a tarefa de selecionar e preparar os franquea-
econômicas. Para is- dos, essa explicação teve mais repercussão do que a precedente. A retração de
so, o uso da adaptação diversos mercados consumidores só poderia fazer aumentar o problema, e
feita por Bourdieu do
modelo de Marx per- assim prossegue a luta pelo estabelecimento de suas causas e maneiras de
mite o vislumbre de superá-lo. Podemos notar que os dois tipos de explicação remetem a defini-
relações mais comple-
xas entre essas duas ções opostas também do que seria a franquia, notavelmente próximas das
ordens de atores. Ao formulações eruditas sobre a nova forma econômica que anotamos acima.
que tudo indica, es- Para os campeões do primeiro grupo, mais próximo ao pensamento econômi-
tamos diante de uma
relação de sustenta- co neoclássico (no seu desenvolvimento institucional), a franquia é um tipo de
ção recíproca, tanto negócio muito diferente do pequeno comércio tradicional, onde o pequeno
econômica quanto in-
telectual: simplifica- investidor torna-se um especialista em contratos de franquia, aprendendo a
damente, o desenvol- lidar com seus negócios da mesma maneira que o banqueiro lida com os capi-
vimento do circuito de tais: a sua ligação com a substantividade do bem ou serviço comercializado
educação continuada
(cursos de treinamen- passa apenas pela rentabilidade oferecida. No segundo caso, onde é evidente a
to gerencial, seminá- proximidade em relação à explicação dos mercadólogos ouvidos, enfatiza-se
rios para executivos,
relatórios de uso fe- a vocação necessária para o ramo de negócio específico, donde a franquia é
chado para uso no apenas uma forma de comercialização, que deve ser comparada a diversas
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outras. De qualquer forma, ainda que as explicações divirjam, é importante


notar que em nenhum momento as dificuldades do setor foram generalizadas
como sendo uma “falha sistêmica” do negócio franquia, o que, ao meu ver,
demonstra a vitalidade do setor enquanto prática social legítima. Se compa-
rarmos essa apreciação implícita com aquela que aparece diante de notícias
sobre, por exemplo, problemas de qualidade na prestação de algum serviço
público por parte de uma agência estatal, o contraste não poderia ser mais
marcante.

Conclusão

Apresentamos diversas restrições teóricas e empíricas à viabilida-


de do novo mundo “neoliberal”. Ainda que elas possam fazer sentido, a
constatação que se impõe é a da robustez do novo universo ideológico. Está
firmemente estabelecido em nossa sociedade que o emprego na grande empre-
sa é uma forma de inserção econômica em contração. As produções de senti-
do que davam prestígio às carreiras nas grandes empresas estão em refluxo e
os grupos de indivíduos identificados com a noção popular de classe média planejamento empre-
estão sendo instados a pensar em outras formas de ganhar a vida e, sobretudo, sarial etc.), abre espa-
de dar sentido a ela. Permito-me uma inferência: apesar da desvalorização ço para a atividade
(bem) remunerada dos
evidente das perspectivas de carreira nas grandes empresas e do incentivo à produtores de idéias
inserção independente, na estabilização futura do novo “modo de regulação” nas empresas e asso-
ciações de empresári-
deveremos ter um fluxo de pessoal intenso, e nos dois sentidos, unindo os dois os; para atingir essa
setores. As antigas restrições ideológicas e habitualidades que separavam o demanda, os divulga-
pequeno empresário do gerente atenuaram-se, e muito provavelmente a pe- dores em geral mon-
tam as atividades e
quena empresa funcionará como uma espécie de buffer de mão-de-obra convidam os produto-
gerencial para as corporações, fornecendo trabalho para as necessidades tem- res, que legitimam es-
ses últimos diante das
porárias ou sazonais e absorvendo esse contingente no resto do tempo. A platéias e do público
regulação legal para esse tipo de arranjo começa a aparecer, por exemplo, consumidor de notíci-
através dos contratos de trabalho temporários, em via de regulamentação no as empresariais em
geral. A reiteração
momento da conclusão deste artigo. Nesse ponto é difícil deixar de notar a contínua desse padrão
congruência entre a ação governamental federal e o fatalismo do provável em gera uma afinidade,
onde a produção aca-
termos da evolução possível das relações de trabalho. ba entrando em “sin-
O robustecimento do novo universo ideológico também pode ser tonia fina” com a di-
observado por outros ângulos. De um lado, ele aparece através do conflito vulgação. (É claro que
aí ganha o senso co-
entre o TQC e a reengenharia, as duas possibilidades polares de vetores para mum em detrimento
a modernização empresarial, ainda que escondido pelo processo de desarma- da atividade científica,
vista como intrinseca-
mento simbólico imposto pelos intelectuais e pela mídia em relação às possí- mente crítica, mas tal-
veis percepções das linhas de força do embate. No outro lado da economia, a vez isso já seja rumi-
franquia aparece como o exemplo acabado de inserção legítima para os mem- nação nostálgica do
passado dourado da
bros das classes médias. A análise do processo social de produção de um atividade intelectual,
sentido geral para as dificuldades por que passa atualmente o emprego de e, de qualquer forma,
estamos querendo fa-
longo prazo e, correlativamente, da particularização das dificuldades das no- zer Sociologia e não
vas formas aponta para a fascinante questão dos mecanismos de funciona- política científica).
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mento do campo do poder no Brasil contemporâneo. Tanto no que diz respeito


às operações intelectuais que sustentam a nova situação, quanto nos aspectos
mais mundanos das trocas materiais que se estabelecem entre os vários parti-
cipantes do “condomínio”, podemos constatar que estamos falando de um
jogo com um número cada vez maior de participantes, não só quantitativamente
quanto no aspecto qualitativo. Nessa nova situação, o poder relativo de cada
agente repousa na aquiescência dos outros membros do circuito. Isso faz com
que o poder seja uma realidade cada vez mais desencarnada, impessoal, cada
vez mais “um sistema”, o resultado de interações múltiplas e cada vez mais
difíceis de serem controladas por algum ator isolado. A constatação dessa
realidade torna a tarefa da sociologia crítica muito mais complexa do que em
outros tempos: de um lado, se pensarmos numa definição mínima de demo-
cracia, como um sistema de contrapeso, a situação que está se delineando
torna a vida econômica e a vida pública em geral muito menos sujeita a “von-
tades” e a manipulações individuais. De outro lado, é bom frisar que é da
lógica das sociedades individualistas a falta de interesse pelos malsucedidos.
Diante da sensação de falta de alternativa à nova ordem, uma tarefa dos inte-
lectuais passa a ser a exposição da falta de justiça nas condições de competi-
ção: a sociedade brasileira equipa seus filhos de maneira muito desigual para
a “batalha da vida”, e essa é uma das poucas críticas que tem possibilidade de
se tornar audível nesse momento ideológico e assim produzir clamor público
contra as nossas desigualdades sociais. É evidente a obsolescência dos instru-
mentos tradicionais de denúncia, ficando cada vez mais difícil localizar um
inimigo de carne-e-osso a quem possa ser imputadas as desgraças do nosso
mundo. Para sair desse impasse é necessário estudar com profundidade as
relações que unem o mundo da produção de idéias com o mundo “material”
sem cair na armadilha reducionista do denuncismo, que perde qualquer alcan-
ce numa sociedade cada vez mais acostumada com a injustiça.

Recebido para publicação em setembro/1997

GRÜN, Roberto. Middle classes in the world of neoliberalism. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, 10(1): 143-163, may 1998.

UNITERMS: ABSTRACT: The text tries to analyse recent transformations in the manner how
middle classes, the Brazilian middle classes perceive and signify their lives in the economic
neoliberalism,
sphere. For this I make use of dates and analyses produced in researches
economical sociology,
cognitive conventions, about the transformations of the bureaucratic-work milieu, about the construction
economic conventions. of managers’ argumentative spaces, about traditional and more recent forms of

160
GRÜN, Roberto. A classe média no mundo do neoliberalismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 143-163, maio
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the small trade and about the also recent phenomenon of management
unemployment. I try to understand the problem based on a study on the
transformations of the cognitive conventions inherent to the way people
comprehend the social world and experience the consequences of its changes
in the economic sphere. The analysis shows that there exists an interesting
case of institutional blindness in which all the evidences that threaten the new
order are rejected and in which the old division of the middle classes between
employed and autonomous strata has to be rethought.

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Tempo Marli.Social;
Repensando a teoria
Rev. da proletarização
Sociol. USP, S. Paulo,dos profissionais. Tempo Social;
10(1): 165-184, maio de Rev.1998.
Sociol. USP, S.DPaulo,
O 10(1):
S S I Ê
165-184, maio de 1998. TRABALHO

Repensando a teoria
da proletarização dos
profissionais
MARLI DINIZ

RESUMO: A autora analisa a tese da proletarização dos profissionais com o UNITERMOS:


objetivo de verificar até que ponto ela capta os processos reais de mudança profissionais,
proletarização,
que têm afetado as profissões. A questão central que a autora procura respon-
desprofissionalização,
der é se os profissionais assalariados por burocracias públicas e privadas pre- autonomia técnica.
servam em medida considerável suas qualificações técnicas, o controle do
conhecimento altamente especializado e sobre o processo de trabalho. Utili-
zando-se uma vasta bibliografia sobre o trabalho profissional em indústrias de
diversos setores (metal, mecânico, eletrônico), conclui que as evidências de
crescente assalariamento de algumas das chamadas profissões liberais não
constituem suporte adequado para a tese da proletarização dos profissionais
quando este termo é adequadamente entendido. As investigações têm mos-
trado que mesmo quando o profissional assalariado perde o controle sobre as
condições em que trabalha, ele o mantém sobre o processo do seu trabalho;
isto é, ele conserva sua autonomia técnica.

F
uncionalistas, neoweberianos e neomarxistas parecem concordar em Texto integrante da me-
sa redonda Para onde
que o conhecimento especializado dos profissionais – sua expertise – vai a classe média, or-
garante-lhes, ao contrário do que ocorre com outras categorias ganizada pelos GT's
Trabalho e Sociedade e
ocupacionais – e em particular com os trabalhadores manuais – uma Educação e Sociedade,
considerável autonomia no trabalho. Para usar uma terminologia mais em voga, no XX Encontro Anual
da ANPOCS, de 22 a
os profissionais teriam, individualmente, um extenso controle sobre o proces- 26/10/1996.
so de trabalho1. As divergências situam-se na interpretação do processo pelo
qual, nas sociedades modernas contemporâneas, esta autonomia estaria su- Professora do Departa-
mento de Sociologia e
postamente sendo solapada. Ritzer e Walczak (1988) argumentam que a auto- Metodologia em Ciên-
nomia do profissional, o controle que ele exercia sobre o processo de trabalho cias Sociais da UFF
165
DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
165-184, maio de 1998.

ou sobre a utilização de sua expertise está se tornando em larga medida coisa


do passado, conservando-se apenas suas formas simbólicas, na medida em
que critérios de racionalidade formal – com sua ênfase em estruturas, regras e
regulamentos – são introduzidos como parâmetros do trabalho profissional.
Os médicos, por exemplo, ou se tornam assalariados em grandes hospitais ou
empresas de prestação de serviços de saúde – sujeitando-se a regras e regula-
mentos e a critérios de rentabilidade – ou se submetem à mediação de uma
terceira parte (empresas de seguro médico ou o próprio Estado, entre outras)
em seus contatos com os clientes, perdendo o controle da relação. Como con-
seqüência, os critérios propriamente profissionais de racionalidade substanti-
va – com sua ênfase em valores tais como autonomia, autoridade sobre o
cliente, altruísmo – tornam-se subordinados ou secundários2. A economia ca-
pitalista e as organizações burocráticas constituem os loci privilegiados do
processo de racionalização formal e, por isso, nas sociedades capitalistas e
nas organizações de grande porte os profissionais estariam se tornando cada
vez mais assemelhados aos burocratas e aos capitalistas – com sua ênfase em
eficiência, preditibilidade, calculabilidade e substituição de tecnologia huma-
na pela não-humana (cf. Ritzer & Walczak, 1988, p. 7). Este é o registro
1
Sobre a autonomia dominante – embora não seja o único – na literatura sobre processos de
dos profissionais nas
diferentes vertentes desprofissionalização, e as conclusões dos estudos apontam invariavelmente
teóricas da sociologia, para a tendência à racionalização do trabalho dos profissionais – assalaria-
cf. Diniz (1995).
2
Seguindo Weber, Ritzer
mento, padronização da base cognitiva, especialização, rotinização dos pro-
e Walczak observam cedimentos – e suas conseqüências para o solapamento das bases sobre as
que a racionalidade quais eles tradicionalmente assentaram suas reivindicações por autonomia no
formal “refere-se a in-
divíduos fazendo es- trabalho, autoridade sobre os clientes, monopólio da prestação de serviços,
colhas em termos de poder e prestígio.
meios e fins. Neste
caso, entretanto, esta
A versão marxista do processo de desprofissionalização é a tese da
escolha é feita por re- proletarização dos profissionais em cuja base está a seguinte analogia: o que
ferência a regras, re- vem ocorrendo com os profissionais é semelhante ao que ocorreu, primeiro,
gulamentos e leis uni-
versalmente aplica- com os artesãos e, em seguida, com os operários especializados na virada do
das. Estas, por seu tur- século. À sujeição ao controle formal do capital ocorrida com a venda da
no, são derivadas de
estruturas de grande
força de trabalho (assalariamento) seguiu-se a sujeição ao controle real quan-
escala, especialmente do os trabalhadores foram expropriados tanto do seu saber sobre o processo
burocracias e a econo- de trabalho quanto do controle sobre este mesmo processo, e submetidos a
mia” (Ritzer & Walczak,
1988, p. 3). Quanto à uma maciça desqualificação. A analogia tem algum fundamento ?
racionalidade subs- Antes de avançar nesta questão vale a pena examinar criticamente a
tantiva, o seu aspecto
distintivo “é que o es-
tese da desqualificação do trabalhador especializado; pois se esta não se sus-
forço para encontrar o tenta, então a analogia perde inteiramente o sentido e com ela a tese da
meio mais racional proletarização dos profissionais. Com este propósito parece ser adequado to-
para a realização de
fins é delimitado por mar como referência o estudo de Braverman (1977) sobre a degradação do
um conjunto coerente trabalho no séc. XX, um clássico da literatura neomarxista e um marco nas
de valores sociais”
(Ritzer & Walczak,
análises neomarxistas sobre o processo de trabalho, fixando apenas os princi-
1988, p. 4). pais pontos de sua argumentação.

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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
165-184, maio de 1998.

Braverman e a degradação do trabalho

Embora a compra e venda de força de trabalho exista desde a anti-


güidade, ela só se tornou uma relação predominante com o advento do capita-
lismo industrial. Ela constitui a diferença específica da produção capitalista.
O trabalhador vende sua força de trabalho – isto é, faz o contrato de
trabalho – porque as condições sociais não lhe oferecem outro meio para ga-
nhar a vida. Esta é, quase sempre, a única forma pela qual eles têm acesso aos
meios de produção, agora propriedade dos capitalistas. Estes, por seu lado,
desejando ampliar a sua unidade de capital convertem parte deste capital em
salário. Assim é posto em movimento o processo de trabalho que é, de fato,
um processo de expansão do capital e de criação do lucro, e que se realiza
quando o capitalista emprega todos os meios para aumentar a capacidade de
produção da força de trabalho que ele comprou e pôs em operação.
Na primeira fase do capitalismo industrial, a estratégia empregada
pelo capital para aumentar a produção era obrigar o trabalhador à jornada mais
longa possível. Entretanto, esta forma de extração da mais-valia deixava intacta
a autonomia técnica e social do trabalhador especializado, que permanecia como
seu próprio mestre e o mestre dos seus auxiliares não especializados. O núcleo
do processo de trabalho continuava intacto: cada operação dependia ainda da
força, destreza, rapidez e firmeza do trabalhador individual ao usar os instru-
mentos de trabalho. Por isso, era ainda formal a sujeição do trabalho ao capital.
Tratava-se apenas do início da proletarização, da produção de uma classe ope-
rária subordinada à classe dos capitalistas e com esta em conflito.
O núcleo da tese de Braverman consiste na argumentação de que a
divisão técnica do trabalho destrói a autonomia do trabalhador e retira dele o
controle sobre o processo de trabalho. A análise do processo do trabalho
consiste na separação de procedimentos que se somam na fabricação de um 3
O exemplo de Braver-
produto integral, mas todas eles executados por um mesmo trabalhador3; mas man: o funileiro que
a divisão do trabalho, que é específica do capitalismo, fragmenta as tarefas tenha de produzir fu-
nis em quantidade
em operações mais simples e repetitivas atribuídas a diferentes operários. Os não os fabrica um a
diferenciais individuais de habilidade e perícia se reduzem ou mesmo desapa- um: antes, faz, primei-
ro, um gabarito; de-
recem, e esta homogeneização do trabalho destrói o “capital” do trabalhador pois, risca na chapa a
especializado. Em termos de mercado, a força de trabalho pode ser comprada quantidade desejada
mais barata como elementos dissociados do que como capacidade integrada de funis; corta-os to-
dos, um a um; enrola-
num só trabalhador. Ao mesmo tempo em que esta “lógica do capital” destrói os etc. O funileiro
a perícia e a habilidade do trabalhador, também retira do seu controle o pro- “descobriu que maio-
res quantidades serão
cesso de trabalho. A gerência científica, encarnada no taylorismo, irá intensi- produzidas com me-
ficar esta tendência. nos trabalho e maior
Ao mesmo tempo que destrói o ofício como processo sob o contro- economia de tempo
deste modo do que
le do trabalhador, o capitalista o reconstitui, mas agora sob seu próprio con- acabando cada funil
trole, o controle gerencial. A gerência foi desde o início uma criação da pro- individualmente antes
de começar o seguin-
dução capitalista para controlar o trabalho: a reunião dos trabalhadores numa te” (Braverman, 1977,
oficina e a fixação da jornada de trabalho; a supervisão dos operários para p. 74).
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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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assegurar sua diligência; a fixação de mínimos de produção etc. Mas foi com
o advento da administração científica que a centralidade do controle sobre o
processo do trabalho adquiriu dimensões sem precedentes. Para Taylor o con-
trole era uma necessidade absoluta da gerência adequada, o que significava
impor ao operário um plano rigoroso de execução do trabalho, destitui-lo de
qualquer margem para deliberação. O trabalho do cérebro foi separado do
trabalho das mãos, a concepção da execução, a oficina do escritório. Cabia à
gerência codificar em regras e fórmulas todo o conhecimento possuído pelos
trabalhadores, e com base neste conhecimento planejar detalhadamente a ta-
refa atribuída a cada um na intensificada divisão técnica do trabalho: cada
atividade na produção devia ser prevista, pré-calculada, experimentada,
comunicada, alocada, ordenada, conferida, inspecionada, registrada.
Simultaneamente, a mecanização da produção de larga escala iria
completar o processo de degradação do trabalho. Se o elemento fundamental
4
A seguinte citação co- na evolução da maquinaria industrial é a maneira pela qual suas operações
lhida num estudo de
empresa brasileira no são controladas, segue-se que no momento em que o controle da máquina
setor metalmecânico foge das mãos do trabalhador que a opera, ou melhor, no momento em que a
ilustra este ponto: “Os
operadores de MFU, velocidade da máquina e a seqüência mecanizada ou automizada de suas ope-
de modo geral, possu- rações predetermina os movimentos e o ritmo do operador, completa-se o
em muita destreza e processo de proletarização, de sujeição real do trabalho ao capital.
experiência em lidar
com máquinas para Contemporaneamente isto ocorreria, por exemplo, com a introdução de
fabricar produtos dife- tecnologia microeletrônica no processo produtivo (máquinas ferramentas de
renciados (pequenas
séries, lotes e peças controle numérico – MFCN, robôs etc.) em substituição à tecnologia de base
sob encomenda). In- eletromecânica (máquinas ferramentas universais – MFU). O saber altamente
terpretam os desenhos especializado de um torneiro-mecânico que controla uma MFU lhe é expro-
do projeto, fixam e
centralizam a peça, priado e transferido para uma fita perfurada (programa) que comandará uma
selecionam ferramen- MFCN em todos os detalhes de sua operação4. Conseqüentemente, “o mecâ-
tas, regulam a máqui-
na, controlam o corte nico especializado é, por esta inovação, considerado deliberadamente obsole-
e a refrigeração da to como a ventoinha ou o telégrafo de Morse, e via de regra substituído por
ferramenta e trocam a três espécies de operadores” (Braverman, 1977, p. 173)5.
ferramenta quando
necessário. Assim, Observe-se, finalmente, que o processo de degradação do trabalho
são profissionais com no sistema capitalista de produção não afetaria apenas os operários das fábri-
longa experiência de
trabalho valorizada e cas. Segundo Braverman, a mecanização e racionalização dos escritórios
reconhecida pela em- rotinizou os processos mentais exigidos dos funcionários, ou fez com que se
presa. tornassem uma parcela menor do que a das operações manuais no conjunto do
As funções dos opera-
dores de MFCN são trabalho; por outro lado, os salários pagos a estas categorias de empregados
bastante reduzidas e desceram ao nível daqueles pagos aos trabalhadores manuais menos qualifi-
menos exigentes em
relação à qualificação. cados. Desta forma, e por suas condições de trabalho, o segmento dos funcio-
As principais opera- nários de escritório tornou-se um “vasto proletariado sob nova forma”
ções realizadas por (Braverman, 1977, p. 300). O mesmo processo de degradação do trabalho e
eles são: colocar a fita
do programa, fazer a de proletarização estaria começando a afetar as “camadas médias” do empre-
montagem da peça go: engenheiros, técnicos, quadro científico, os níveis inferiores da supervi-
para usinagem e das
ferramentas necessá- são e da gerência, empregados especializados e “liberais” etc. Entre desenhis-
rias, colocar a máqui- tas e técnicos, entre engenheiros e contadores, entre enfermeiros e professo-
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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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res, entre os pequenos gerentes, chefes e supervisores, na consciência de todas


estas categorias de assalariados “a forma proletária começa a afirmar-se e a
imprimir-se” a despeito dos privilégios de que ainda gozam. Entretanto,
Braverman cautelosamente evita prever para as “camadas médias” o mesmo
destino proletário que reconhece para os empregados de escritório; limita-se a
apontar os seus “sintomas”.

Críticas à tese da degradação do trabalho

A despeito do impacto da tese de Braverman nos estudos sobre o


processo de trabalho e sua imediata adoção pelos neomarxistas como ponto
de referência, bem cedo as críticas se tornaram numerosas o suficiente para
limitar o alcance que inicialmente ela parecia ter. De modo geral, inúmeros
estudos vieram mostrar que as associações estabelecidas por Braverman –
por exemplo, entre tecnologia e desqualificação do trabalho – são bem mais na no ponto de parti-
da, iniciar a operação
complexas do que ele fazia crer; que importantes fatores mediatizantes de e fazer a supervisão
natureza macrossocial ou macroeconômica foram por ele negligenciados em da usinagem. Como a
interpretação do dese-
favor de uma abordagem restrita aos fatores localizados “no ponto de produ- nho é realizada antes
ção”; que em inúmeros casos a tese é simplesmente desconfirmada por deta- e o próprio programa
lhados estudos in loco do processo de trabalho. No que segue são apresenta- contém a velocidade
exata do corte, do flu-
dos de forma sintética exemplares desta literatura crítica. xo de refrigeração e
Em Braverman e nos neomarxistas o controle do processo de traba- da sucessão de ferra-
mentas, resta ao ope-
lho parece ser um propósito dominante do capitalista. Como observou Wilkinson, rador muito pouco a
para Braverman a tecnologia “não é apenas um dado exterior às empresas, mas decidir, assumindo na
ela é deliberadamente concebida para aumentar o controle da direção sobre o prática a função de
monitor da máquina”
processo de produção e reduzir o custo da mão-de-obra, desconsiderando e (Sousa, 1988, p. 103).
5
desqualificando progressivamente o trabalho” (Wilkinson, 1984, p. 448). E en- Por via de regra o tra-
balho executado pelo
tre escolher uma tecnologia que reduza custos e outra que maximize o controle, oficial mecânico espe-
o capitalista de Braverman escolherá, aparentemente, a última (cf. Jones & Wood, cializado ao operar
1984, p. 409). Da mesma forma, os que seguiram a trilha aberta por Braverman uma MFU foi fracio-
nado em três partes,
às vezes se esquecem de que “o foco básico do interesse do capitalista é a acu- cada qual atribuída a
mulação, não o controle direto de todos os aspectos do processo de trabalho um trabalhador que
pode ser apenas semi-
como um fim em si mesmo” (Whalley, 1986, p. 239). especializado: o “pro-
Se outras formas de controle estão ao alcance do capitalista, não há gramador da peça”,
por que supor a priori que a desqualificação do trabalho será a estratégia que registra as espe-
cificações do desenho
preferida (Whalley, 1986); os proponentes da tese da desqualificação “igno- técnico numa folha de
ram a vasta literatura que sugere que sob condições de rápida mudança na planejamento previa-
mente tabulada e pa-
tecnologia e no ambiente das empresas um desenho organizacional mais ade- dronizada; o operador
quado implica em emprego mais flexível do trabalho e maior autonomia ao da máquina que con-
trabalhador” (Whalley, 1984, p. 123). Identicamente, “não se obtém necessa- verte a folha de pla-
nejamento numa lin-
riamente um ótimo econômico por uma redução máxima do trabalho vivo” guagem (programa/
(Kern & Schumann, 1984, p. 399). fita perfurada) legível
para a MFCN; o ope-
A classe capitalista de Braverman é excessivamente coesa na ado- rário que monitora as
ção de estratégias de controle, e a classe trabalhadora excessivamente dócil ao operações da MFCN.
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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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controle via desqualificação do trabalho, uma versão incorreta dos fatos e da


realidade histórica, pelo menos no que concerne aos Estados Unidos na virada
do século. Braverman ignora não apenas a divisão entre os capitalista quanto
à adoção do taylorismo, mas também os conflitos entre capitalistas e os “ge-
rentes científicos” e as lutas dos trabalhadores contra a racionalização do tra-
balho (Stark, 1980). Mais recentemente, estudos de caso sobre introdução de
tecnologia de controle numérico mostram que as “qualificações das diferentes
categorias de trabalhadores dependem da luta pelo controle no interior das
empresas e não simplesmente das características próprias a uma dada
tecnologia” (Wilkinson, 1984, p. 454).
A imagem elaborada (e idealizada) por Braverman de uma socieda-
de povoada de trabalhadores especializados (skilled craftsmen) não reflete
corretamente a composição da força de trabalho na virada do século nos Esta-
dos Unidos. Embora os trabalhadores especializados fossem centrais no pro-
cesso produtivo, sua importância numérica era reduzida e a grande massa era
composta de operários semi-especializados ou não-especializados. Desta for-
ma, o cenário de um processo unilinear e massivo de desqualificação do tra-
balho ou de proletarização é historicamente inexato (cf. Stark, 1980).
Braverman e os neomarxistas sistematicamente ignoram variáveis
macroeconômicas ou macrossociais na explicação dos níveis de qualificação
dos trabalhadores, privilegiando fatores relativos ao local de trabalho (“ponto
de produção”), certamente porque estes últimos facilitam a ênfase nas estraté-
gias de controle. Todavia, “a introdução de novas tecnologias de produção
não é guiada simplesmente por um objetivo universal de controle, mas ditada
de maneira crucial por fatores tais como as características do mercado de tra-
balho e de produtos, a organização sindical e patronal (nas empresas e em
6
Sindicatos que organi- setores industriais particulares) e por outras características de estratégia e tá-
zam trabalhadores em
ocupações especiali- ticas de gestão” (Jones & Wood, 1984, p. 409). Na Inglaterra, o declínio de
zadas para a admis- algumas regiões, flutuações nos gastos governamentais, escassez de matéria
são nas quais preva- prima, a preponderância de pequenas empresas e as altas taxas de falência na
lece o aprendizado
(apprenticeship) ou indústria enfraqueceram os sindicatos de trabalhadores especializados6 e re-
treinamento equiva- duziram sua capacidade de controle sobre a descrição de tarefas (craft control
lente.
7
Para os sindicatos tra- of job description)7; trata-se, todavia, de “um aspecto constante da vida in-
ta-se não apenas de dustrial britânica que vem do século dezenove”, e não de alguma “perda de
preservar a descrição controle” trazida pelo “capital monopolista” (Lee, 1981, p. 71).
de certas posições
(jobs) como “artesa- Braverman e os neomarxistas não distinguem entre desqualificação
nais”, mas de elevar do trabalho e desqualificação do trabalhador (cf. Lee, 1981; Whalley, 1984).
outras a este mesmo
status e de controlar o Uma posição (job) pode ser desqualificada, mas o trabalhador absorvido em
sistema de apprentice- outras tarefas especializadas criadas pela mudança de tecnologia. De qual-
ship. Tentam com isso quer maneira, se o interesse está no exame da proletarização da força de tra-
controlar o oferta no
mercado de trabalho balho, o importante é o total das oportunidades que o trabalhador tem para
(restringindo oportu- exercer suas habilidades, e estas não estão necessariamente determinadas so-
nidades de aprendiza-
gem ou aumentando a mente ao nível do local de trabalho. Outros fatores importantes são a deman-
duração desta). da agregada e o nível de emprego, o crescimento de novos setores dinâmicos
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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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na indústria, assim como outras variáveis macroeconômicas.


Várias pesquisas têm mostrado que a introdução de máquinas de
controle numérico não leva necessariamente à desqualificação do trabalho.
Num estudo de trinta e duas empresas (pequeno e médio porte) da indústria
mecânica francesa, Cavestro (1984) observou que o comando numérico per-
mite uma gama diversificada de intervenções por parte do operador, e que
certos conhecimentos tradicionais (conhecimento dos materiais, o “sentido da
frisagem e do torneamento”) e experiências convencionais próprias dos ope-
rários qualificados são indispensáveis na operação das máquinas de controle
numérico. Pesquisando empresas em setores dinâmicos da industria alemã
(automobilística, construção mecânica, química), Kern e Schumann detecta-
ram um processo de reprofissionalização da força de trabalho através da ate-
nuação da divisão do trabalho, o inverso do que haviam encontrado em pes-
quisa nos anos setenta: “quanto mais se avança em direção de produtos de
qualidade, de alta complexidade, e em direção ao emprego em grande escala
de novas tecnologias, mais as concepções de uma utilização ótima do trabalho
se orientam para definições mais amplas de tarefas e para a utilização mais
completa das qualificações” (Kern & Schumann, 1984, p. 402). Na indústria
britânica, “a introdução de maquinaria computadorizada provocou uma mu-
dança, mas não destruição das habilidades tradicionais; no geral, o efeito da
mudança tecnológica foi o de transferir os requisitos de qualificação da pro-
dução para a manutenção” (Lee, 1981, p. 72). Este mesmo efeito de transfe-
rência foi observado por Freyssenet (1984) numa empresa francesa do setor
automobilístico (com requalificação dos operários de produção) e por Souza
(1988) em empresas brasileiras nos setores automobilístico e metalmecânico.
Reavaliando a experiência internacional com introdução de tecnologia de con-
trole numérico, Falabella (1988) observa que em alguns países escandinavos
os operadores desenham a fita (perfurada) e, conseqüentemente, controlam o
processo de transformação do seu saber produtivo em software. Examinando
pesquisas empíricas conduzidas na Inglaterra sobre novas tecnologias e
desqualificação do trabalho, Gill concluiu que “recentes trabalhos empíricos
sobre o impacto de novas tecnologias sobre o processo de trabalho não permi-
tem concluir por uma tendência inelutável à desqualificação do trabalho” (Gill,
1984, p. 563). Após um exame da literatura específica e de estudos empíricos
sobre o impacto de tecnologias de base microeletrônica sobre as qualificações
dos trabalhadores, Schmitz concluiu que em si mesma esta tecnologia não é
desqualificante, embora forneça à gerência recursos poderosos para o contro-
le do processo de trabalho; entretanto, há restrições a este controle e há efeitos
indesejáveis: “a adoção de um modelo taylorista rígido é contraproducente no
caso da automação. As interrupções imprevistas e o alto custo da ociosidade
dos equipamentos exigem acima de tudo uma força de trabalho flexível, en-
volvida e atenta, e a responsabilidade passa a ser uma qualidade mais impor-
tante do que a simples qualificação técnica” (Schmitz, 1985, p. 667).
Todas as observações anteriores, e as inúmeras outras que pode-
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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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riam ser acrescentadas ao estoque considerável de críticas à tese de Braverman


e dos neomarxistas, não significam adesão às teses sobre a sociedade pós-
industrial na qual máquinas sofisticadas se encarregariam das tarefas rotinei-
ras, liberando para outras funções mais “nobres” uma força de trabalho está-
vel, bem remunerada e altamente qualificada8. De fato, não se trata aqui de
adjudicar entre teorias antagônicas, mas simplesmente de demonstrar que se a
tese da degradação do trabalho não tem a generalidade que reclama no seu
próprio campo de aplicação – isto é, entre os trabalhadores manuais –, então,
não constitui ela uma base sólida para a tese da proletarização dos profissio-
nais.

Examinando a tese da proletarização dos profissionais.

À semelhança da imagem equivocada que Braverman apresenta da


composição da força de trabalho no séc. XIX nos Estados Unidos, os
neomarxistas parecem identificar nas sociedades mais avançadas na virada do
século uma camada diversificada de profissionais autônomos exercendo suas
atividades sob a forma “liberal”, mas submetidos pela lógica da acumulação
capitalista ao longo do presente século a um inexorável processo de assala-
riamento e, conseqüentemente, de perda de controle sobre seu trabalho e de
desqualificação.
Entretanto, seria adequado lembrar, ainda a respeito de Braverman,
que “as atuais camadas médias não tiveram um passado róseo. De fato, não
tiveram qualquer passado, dado que muitas delas não existiam. Elas não fo-
ram proletarizadas: foram criadas” (Gagliani, 1981, p. 281). Igualmente, a
maioria das profissões contemporâneas é de criação recente e já nasceu assa-
lariada. Analisando os dados do censo americano para 1970, Freidson (1986)
concluiu que a tendência ao assalariamento tem sido um processo lento que
afeta rigorosamente apenas aquelas quatro categorias de profissionais que no
passado caracterizavam-se pelo exercício autônomo: médicos, dentistas, ad-
vogados (mas não os juízes) e arquitetos. Os engenheiros, surgidos no séc.
XIX, foram desde o início assalariados ou pelo Estado ou por grandes empre-
sas. Ademais, somadas as quatro categorias “clássicas”, elas correspondem,
ainda segundo Freidson, a apenas 6% do total da força de trabalho técnico-
profissional. Constituindo uma exceção mais do que a regra, é absolutamente
incorreto tomá-las como representativas de tendências para o universo de pro-
fissionais.
No Brasil, o sistema de ensino superior só se institucionalizou e
diversificou a partir da década de trinta, com a criação das primeiras universi-
dades, o que significa que a maioria das profissões hoje constituídas é bastan-
8
A formulação clássica te recente. Nasceram quase todas como profissões assalariadas, fruto da ex-
sobre a sociedade pós-
industrial é de Bell pansão do aparelho estatal e das empresas do setor produtivo privado. Poucas
(1977). haviam sido regulamentadas até a década de 60 (cf. Tabela 1).

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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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Ano Nível Nível Total Ano Nível Nível Total


médio superior médio superior
1931 1 2 3 1963 - 1 1
1933 - 1 1 1966 5 31 36
1942 1 - 1 1967 - 4 4
1945 2 - 2 1968 11 3 14
1946 1 1 2 1969 - 3 3
1952 - 1 1 1970 1 2 3
1956 4 1 5 1971 1 7 8
1957 - 2 2 1973 - 2 2
1960 1 1 2 1978 2 3 5
1961 2 2 4 1979 1 5 6
Tabela 1 - Profissões
1962 1 3 4 1980 - 2 2 regulamentadas
Total 34 76 110 Fonte: CIEE, 1981.

Das profissões mais antigas, a engenharia nasceu predominante-


mente assalariada e restariam como profissionais tipicamente “liberais” os
médicos, os dentistas, os advogados e os arquitetos9. Ainda que não existam
estatísticas em séries históricas mais longas relativas à posição na ocupação,
presumivelmente estas quatro categorias profissionais tornaram-se
crescentemente assalariadas ao longo do tempo; entretanto, somadas elas cons-
tituíam em 1985 aproximadamente 18% de todo o estoque de profissionais de
nível superior no país (MEC, s.d.), o que ainda é uma cauda relativamente
pequena num cão muito grande, para usar a expressão de Freidson. Note-se,
todavia, que com exceção dos médicos, a proporção de assalariados tem
diminuído entre os dentistas, advogados e arquitetos (tabela 2).
Anos | 1970 | 1980 | 1988 |
Profissões Conta Empre- Empre- Conta Empre- Empre- Conta Empre- Empre-
própria gado gador própria gado gador própria gado gador

Engenheiro 11.8 1.4 86.8 9.1 2.8 88.1 8.6 1.5 89.9 Tabela 2 - Posição na
ocupação para
Arquiteto 23.2 4.7 72.1 42.8 5.6 51.6 44.7 4.5 50.8 algumas profissões:
Médico 32.0 0.3 67.7 24.8 7.3 67.9 26.1 6.2 67.6 1970, 1980, 1988.
Fonte: IBGE - Amostras
Dentista 69.6 0.3 30.1 64.7 4.0 31.3 66.6 11.7 21.7 dos Censos de 1970 e
Advogado 47.4 0.6 51.9 49.3 5.3 45.4 53.8 7.1 30.1 1980; PNAD - 1988.

Delimitado assim o possível âmbito de aplicação da tese da


proletarização dos profissionais, a questão central é se o assalariamento im-
plica em desqualificação e em perda da autonomia técnica no trabalho ou, em
outras palavras, se ao assalariamento segue-se o controle do trabalho dos pro-
fissionais por hierarquias gerenciais heterônomas, e nestes termos a questão
9
pode ser estendida aos profissionais que, como os engenheiros, não tiveram Sobre as origens assa-
lariadas da engenha-
um passado “liberal”. Como se verá, a tese da proletarização dos profissio- ria no Brasil, cf. Diniz
nais encontra escasso suporte na literatura. A resposta de Freidson (1986) é (1995).
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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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que o assalariamento não conduz à perda da autonomia técnica, embora certa-


mente implique alguma perda do controle sobre os termos e condições do
trabalho. Trata-se, segundo Freidson, de um paradoxo: os profissionais assa-
lariados são simultaneamente dependentes e autônomos; permanecem com o
controle do processo de trabalho, mas dentro de circunstâncias que eles não
controlam. Basicamente, a gerência – no setor privado – ou os administrado-
res do Estado – no setor público – controlam a alocação de recursos, e ao
fazê-lo estabelecem os limites dentro dos quais os profissionais podem exer-
cer a autonomia técnica. Trata-se, evidentemente, de uma limitação real; mas
a margem de liberdade e independência no trabalho de que ainda assim gozam
os profissionais não é de forma alguma trivial, sobretudo se comparada à de
outras categorias de empregados. Em ambientes organizacionais em que o
profissional é dominante na divisão do trabalho (engenheiros em empresas de
consultoria técnica, advogados em grandes escritórios ou firmas de advogacia,
médicos em hospitais etc.) sua autonomia técnica inclui a autoridade para
controlar e coordenar o trabalho de outros empregados, uma função normal-
mente alocada à gerência em outros contextos (cf. Freidson, 1993). O exem-
plo dos hospitais é paradigmático: na medida em que os médicos prestam e
controlam o serviço básico, também o controle dos serviços de suporte
(paramédicos) ocorre por ordens deles e não da gerência administrativa que
mantém, entretanto, a autoridade sobre a alocação de recursos10. Dent (1993)
refere-se a um tipo de autonomia responsável para descrever o que ocorre
nos hospitais ingleses por força das crescentes pressões do governo por redu-
ção nos custos dos serviços de saúde, com um visível impacto sobre a ativida-
de dos médicos que perderam muito da antiga autonomia; eles ainda retêm o
controle sobre as situações de trabalho, mas não podem mais comprometer
recursos adicionais como conseqüência unicamente de suas decisões clínicas.
As decisões alocativas tornaram-se prerrogativas da gerência.
Estudos sobre os engenheiros sugerem que a tese da desqualificação
do profissional assalariado é, no mínimo, conceitualmente equivocada e pode
ser questionada também com relação às estratégias gerenciais de controle. Os
estudos de Whalley (1984; 1986) e de Whalley & Crawford (1984) sobre
duas empresas britânicas (uma no setor de produção de equipamentos eletrô-
nicos e de laser para a indústria gráfica; a outra no setor de produção de
10
componentes metálicos para a indústria automobilística) mostram, em pri-
Num estudo sobre a
medicina, Freidson meiro lugar, que no caso dos engenheiros o conceito importante para a análise
(1970) mostrou que os da desqualificação é o de carreira e não o de tarefa (task) ou o de posição
médicos podem dar
ordens e intervir nos (job) no processo produtivo. Pois, como observa Whalley, “mesmo se deter-
vários serviços hospi- minadas tarefas tornam-se rotinizadas ou desqualificadas (deskilled) – o que
talares sob justificati- não é inevitável, mesmo quando tecnicamente possível –, o que é importante
va da ocorrência de
uma real ou imaginá- para o engenheiro é se o conjunto de oportunidades disponíveis para ele no
ria (mas freqüente- mercado de trabalho oferece as ocasiões, durante uma carreira normal, para o
mente ambígua) situ-
ação de “emergência exercício da autonomia e para o uso de suas habilidades” (Whalley, 1984,
médica”. p. 126). Numa das empresas estudadas, as posições ou tarefas rotinizadas
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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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eram apenas um ponto de passagem, pois os engenheiros eram encorajados a


avançar na carreira até os cargos de gerência11. Ademais, o engenheiro pode
mover-se no mercado de trabalho, trocando uma posição desqualificada numa
empresa por outra mais qualificada em outra empresa. Em segundo lugar, é
necessário distinguir a desqualificação da posição da desqualificação do
profissional. Na outra empresa estudada, a rotinização de certas tarefas não
desqualificava o engenheiro por força de dois mecanismos: a gerência evitava
a concentração de tarefas rotinizadas em postos de trabalho particulares, e
procurava assegurar-se de que postos de trabalho rotinizados não fossem
alocados permanentemente a um grupo particular de engenheiros.
Embora Whalley nunca enderece diretamente a questão, ele sugere
que pelo menos nas duas empresas estudadas o trabalho dos engenheiros é
susceptível de algum grau de rotinização, mas nada semelhante ao grau de
taylorização a que pode ser submetido o trabalho do operário industrial; por
outro lado, ele não sugere em momento algum que o saber do engenheiro
possa ser expropriado, desqualificando o profissional. Assim, o interesse das
suas pesquisas reside na demonstração de que, ao contrário do que propõe a
tese da degradação do trabalho, a gerência não está nem necessariamente inte-
ressada nem compelida pela “lógica do capital” a desqualificar o trabalho do
engenheiro. Pelo contrário, a “lógica do capital” pode requerer que as tensões
entre expertise técnica e maximização do lucro sejam dissolvidas ou atenua-
das por estratégias que garantam a autonomia do profissional e, por esta via,
a permanência na empresa de um “empregado confiável” (Whalley, 1986).
Ao contrário das de Whalley, as pesquisas de Zussman em duas
empresas americanas (numa, produção de componentes metálicos para má-
quinas; noutra, produtos eletrônicos) respondem diretamente à questão da
desqualificação do trabalho dos engenheiros. Adquirida principalmente na
experiência com indústrias e processos muito particulares, a expertise dos
engenheiros em ambas as empresas é quase idiossincrática e, conseqüente-
mente, altamente resistente à racionalização. O processo de especialização
ocorrido nas últimas décadas anteriores à pesquisa não resultou em
desqualificação dos engenheiros os quais, por outro lado, percebem o traba-
lho nestas posições mais especializadas como parte do desenvolvimento da
carreira. Em ambas as empresas os engenheiros gozam de considerável auto-
nomia no trabalho, inclusive para distribuir seu tempo entre os diversos proje-
tos de que simultaneamente participam, e embora poucos deles tenham auto- 11
Como nota Whalley
ridade formal sobre os operários, muitos exercem de fato esta autoridade: ve- (1984) e Whalley &
Crawford (1984), na
rificam a qualidade do trabalho de produção, supervisionam os operários que Inglaterra a carreira de
constroem as máquinas, e até mesmo concebem os componentes e as seqüên- um engenheiro normal-
cias do próprio processo de trabalho dos operários. Em síntese, não foram mente engloba diver-
sas posições distribuí-
encontradas evidências de proletarização ou, num sentido mais amplo, evi- das numa hierarquia
dências de que os engenheiros “têm sido, ou estão a caminho de ser absorvi- que se estende do ní-
vel do “técnico” até o
dos na classe operária” (Zussman, 1984, p. 224). do “gerente”, passando
Nesse ponto, e em vez de acrescentar outros exemplos aos anterio- pelo de “engenheiro”.
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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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res, melhor será registrar que mesmo entre os neomarxistas a extensão da tese
de Braverman para o âmbito das profissões é claramente questionada. Por
exemplo, para Derber “os profissionais, ao contrário dos operários, resguar-
daram do emprego dependente aquilo que emergiu como o fundamento da sua
auto-estima e status peculiar: uma considerável medida de preservação das
suas competências técnicas e do continuado controle de conhecimento alta-
mente especializado. Assim, os profissionais retêm uma autoridade anômala
invejada e inatingível por outros empregados, a autoridade da profissão e da
expertise, mesmo em face do emprego subordinado” (Derber, 1983a, p. 317).
A especialização associada ao trabalho dos profissionais não significa frag-
mentação nem implica em desqualificação, mas em aprofundamento do co-
nhecimento e das habilidades técnicas. Num trabalho posterior, Derber obser-
va que o termo “patrocínio” (sponsorhip) é mais adequado do que
assalariamento para descrever a diversidade das formas de inserção dos médi-
cos no mercado: os “patrocinadores” ou provedores de capital (hospitais,
empresas de seguro-saúde, clínicas particulares etc.) não são basicamente
empregadores capitalistas e a fragmentação de seus interesses de classe enfra-
queceu sua capacidade de exercer controle sobre o trabalho dos médicos os
quais contam com “formidáveis recursos próprios para exercer controle e para
resistir a ele” (Derber, 1983b, p. 563). Quanto ao profissional “liberal”que se
torna assalariado, o que ele perde ao entrar numa relação de emprego é o
controle sobre os fins do seu trabalho, já que ele não formula nem influencia
as políticas da organização que o emprega, resultando disso uma perda do
sentido ético do trabalho, dos valores aos quais ele deveria servir (cf. Derber,
1983a).
Que Derber chame a isto de “proletarização ideológica” parece ser
uma escolha puramente arbitrária e sem conexão com a tese clássica do mar-
xismo. Mais importante é observar que para várias categorias de profissio-
nais assalariados nem mesmo a “proletarização ideológica” ocorre, já que a
profissão nasceu subordinada a hierarquias gerencias heterônomas – eles ja-
mais tiveram efetivamente o controle das políticas organizacionais e é prová-
vel que muitos não a desejem. Para os “liberais” que de fato experimentaram
um processo de assalariamento, a questão é saber se obter o controle sobre os
fins do seu trabalho é mais importante do que conservar a autonomia técnica
para a manutenção de sua identidade profissional. Pois, como observou Larson,
o assalariamento só conflita com as expectativas profissionais quando o que o
profissional aspira é obter poder na organização, e não apenas preservar a
autonomia técnica no desempenho das tarefas; porque numa organização o
poder – isto é, a legitimidade e a capacidade para formular políticas – é uma
propriedade não da função profissional, mas da função gerencial (Larson, 1977,
p. 198). Ainda assim – e num esforço de fidelidade às categorias marxistas de
análise –, Larson (1980) concede que o assalariamento objetivamente conduz
à “alienação econômica” (sujeição formal do profissional à autoridade
heterônoma do capitalista ou do gerente estatal), e que esta contém a semente
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da “alienação organizacional” (objetivamente, o trabalho em grandes organi-


zações implica para o profissional numa “cooperação forçada” e, em princí-
pio, em sujeição às normas e critérios burocráticos); entretanto, a expertise
do profissional, por sua relevância e escassez, e porque falta à gerência
heterônoma a competência para controlá-la, constitui uma barreira segura à
“alienação técnica” (perda do controle sobre a execução do trabalho), e não
ocorrendo esta não se produz a fusão das alienações necessárias para o
surgimento da clássica condição proletária.
Evidentemente, Larson está atenta para a existência de ocupações
cujo status profissional é bastante “diluído” pela ausência de uma base cognitiva
consistente. Desta forma, os riscos da condição proletária estão desigualmente
12
distribuídos. Quando a profissão conta com uma base cognitiva independente- O credencialismo ge-
neralizado e a conse-
mente desenvolvida, estabelecida e validada – isto é, uma base cognitiva que qüente “inflação de di-
independe do locus da sua utilização –, o assalariamento ou o emprego em gran- plomas” estimula os
des organizações dificilmente expõe o profissional aos riscos da racionalização empregadores a recru-
tar pessoal de nível su-
do trabalho. O contrário ocorre com os profissionais cujos títulos resultam mais perior mesmo quando
da generalização do credencialismo acadêmico (e da preferência dos emprega- as posições ou cargos
a serem preenchidos
dores por empregados com educação de nível superior, independentemente do exigem apenas educa-
conteúdo desta e da natureza das posições ou cargos a serem preenchidos) do ção de nível médio. Na
que de uma firme inserção na divisão social do trabalho. De fato, a maioria dos pior das hipóteses, o di-
ploma serve como cri-
casos em que ocorre racionalização do trabalho mental refere-se a profissionais tério inicial de seleção.
13
assalariados em posições subordinadas, e cujas credenciais acadêmicas não são Uma exceção parece
ser o trabalho de Luz
requeridas como resultado de necessidades técnicas das organizações emprega- (1989) sobre o impac-
doras, mas de mecanismos de seleção social artificialmente estimulados pelo to da introdução do
credencialismo generalizado12. computador no traba-
lho dos contadores.
Isto posto, restaria ver os resultados de alguns estudos sobre o pro- 14
Mais precisamente, o
cesso de “proletarização” (já agora, entre aspas) dos profissionais no Brasil. livro de Prandi trata
das relações entre de-
As teses de Braverman estimularam inúmeras pesquisas sobre o impacto da gradação do ensino
introdução de novas tecnologias sobre o processo de trabalho na indústria universitário e degra-
nacional, mas o processo de trabalho dos profissionais foi largamente ignora- dação do mercado de
trabalho profissional
do13. Via de regra, alguns raros cientistas sociais voltaram sua atenção, direta no Brasil. O “capital
ou indiretamente, para o processo de assalariamento de algumas profissões monopolista” (o mo-
delo de desenvolvi-
“clássicas”: no primeiro caso está a pesquisa de Donnangelo (1975) sobre os mento capitalista) é,
médicos na região metropolitana de São Paulo, e no segundo o ensaio de Durand previsivelmente, o vi-
(s.d.) sobre a profissão de arquiteto, ambos elaborados anteriormente ao tra- lão da história.
15
A autora utilizou os
balho de Braverman. O livro de Prandi (1982) sobre os “favoritos degrada- cadastros do IBGE, a
dos” está mais sintonizado com o espírito da bravermania, pretende ser uma partir dos quais foi
elaborada uma lista-
análise válida para todo o universo de profissionais, obedece às categorias de gem de 5.381 médicos
análise de um marxismo ortodoxo, mas não apresenta qualquer evidência de em atividade na gran-
degradação do trabalho dos profissionais14. de São Paulo, diplo-
mados até 1968. Des-
A pesquisa de Donnangelo, conduzida com uma amostra de 905 ta listagem retirou-se
médicos15 distribuídos por diferentes especialidades, revela a diversidade das uma amostra de 1.166
médicos, reduzida a
formas de trabalho que caracteriza a medicina, e comprova que o assalariamento 905 devido à “não-co-
tende a se tornar a forma predominante: embora apenas 28% dos médicos bertura” de 261 casos.
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estivesse em condições exclusivas de trabalho assalariado, o assalariamento


estendia-se efetivamente à quase totalidade da amostra (83,4%), corres-
pondendo a modalidade exclusivamente liberal a apenas 8,4% dos profissio-
nais. Embora a autora não procure estabelecer associações entre o
assalariamento e a autonomia profissional, é possível inferi-las através da
relação entre “medicina de organizações” (hospitais, clínicas etc.) e controle
do trabalho16: como observa Donnangelo, “a proporção relativamente baixa
de trabalho isolado e a predominância de hospitais entre as organizações, faz
supor que considerável parcela dos profissionais se encontra atualmente su-
jeita, em seu trabalho, a algum tipo de direção ou controle. A julgar, entretan-
to, pelas descrições oferecidas pelos médicos a respeito de sua atividade pro-
fissional, esse controle parece referir-se menos aos aspectos propriamente
técnicos, envolvidos na execução de cada tarefa, e mais à necessidade de
racionalizar o uso coletivo de instrumentos de trabalho”(Donnangelo, 1975,
p. 71)17. Ou ainda: “sem perder o controle técnico sobre seu trabalho, o
médico deve, entretanto, subordiná-lo ao modo como estão estruturadas as
relações entre a clientela e as instituições, e entre estas e os demais médicos
ou outros profissionais, e ao tipo de controle que a instituição exerce sobre os
instrumentos de trabalho” (Donnangelo, 1975, p. 73)18.
O ensaio de Durand sobre os arquitetos apresenta escassas indica-
ções sobre a extensão do assalariamento na profissão, e menos informações
ainda sobre o processo de trabalho. Sua hipótese é de que à época do estudo –
originalmente uma tese de mestrado apresentada em 1972 – a proporção de
arquitetos autônomos na cidade de São Paulo não ultrapassava os 10% numa
população estimada em dois mil profissionais. Mas como observava pruden-
temente o autor, “a hipótese exige comprovação empírica quantitativa”
(Durand, s.d., p. 103). Quanto ao que Durand chama de “processo objetivo de
proletarização” – conteúdo do trabalho, status, remuneração e/ou posição hie-
rárquica cada vez mais próximos daqueles dos trabalhadores manuais –, ele
lembra o caráter introdutório do estudo para justificar a “impossibilidade de
um juízo categórico sobre a tendência à proletarização, em todos os seus as-
16
64,5% (n = 584) dos pectos, do arquiteto, pela precariedade dos dados disponíveis” (Durand, s.d.,
médicos da amostra
trabalha exclusiva ou p. 105). As estimativas do autor sobre assalariamento dos arquitetos são, pro-
predominantemente vavelmente, exageradas; de qualquer forma, no Censo de 1981 do Conselho
em organizações, o Federal de Engenharia e Arquitetura, aproximadamente 74% dos 5.512 arqui-
que não significa que
estejam todos sub- tetos que responderam ao questionário (numa população estimada de 23.379
metidos ao mesmo profissionais) declarou pertencer à categoria “dos autônomos, sócios, pro-
grau de assalaria-
mento. Mas todos os prietários ou diretores”19.
assalariados “puros” A pesquisa de Luz sobre os contadores (assalariados em empresas,
(n = 253) trabalham e autônomos em escritórios de contabilidade em Belo Horizonte) é uma das
em algum tipo de or-
ganização. raras que se endereçam ao tema da degradação do trabalho profissional pela
17
Grifo nosso. introdução de nova tecnologia (computadores). Optando por uma abordagem
18
Grifo nosso.
19
Veja-se ainda a tabe- longitudinal, a autora comparou o trabalho de contadores e de técnicos em
la 1 neste artigo. contabilidade antes e depois da introdução do computador; e com o auxílio de
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uma detalhada lista de atividades executadas pelos 77 entrevistados ela sepa-


rou-as segundo a predominância de elementos técnicos, susceptíveis de fácil
padronização e codificação, ou de elementos de indeterminação, menos sus-
ceptíveis de transferência para o computador. A conclusão do estudo é que,
isoladamente, “a variável tecnológica parece não ter influência sobre a auto-
nomia, a qualificação e a variabilidade do trabalho (aspectos centrais da tare-
fa)” (Luz, 1989, p. 15). Os seus efeitos surgem de sua combinação com outras
variáveis como, por exemplo, a da hierarquia na organização: a desqualificação
de tarefas (perda ou transferência de parte da tarefa para o computador) ocor-
re basicamente no nível operacional, onde predomina o componente técnico, e
a qualificação (criação ou acréscimo de atividade não rotineira ou complexa,
sem qualquer transferência para o computador), nos níveis de supervisão, chefia
intermediária e direção, onde predomina o componente de indeterminação.
Ou seja: o computador elimina, absorvendo-as, as tarefas mais rotineiras, mas
sua introdução na área contábil resulta também na criação de outras tarefas
mais complexas. Outra conclusão da pesquisa é que a automação não provo-
cou desemprego entre os contadores e, em alguns casos, está criando novos
empregos.
Mencione-se, finalmente, a pesquisa de Simões (1989) com uma 20
Os exemplos de Lar-
amostra de engenheiros no Rio de Janeiro. Trata-se de um estudo sobre a son: “a necessidade de
coletar evidência esta-
posição de classe dos engenheiros, no qual a questão da proletarização é fun- tística a respeito de
damental. A tese da autora é de que os engenheiros assalariados estariam per- terapias ainda incer-
tas requer, no caso da
dendo o controle sobre o processo do seu trabalho, experimentando portanto a leucemia, a padroni-
alienação técnica que é, em última instância, o critério crucial para a perda da zação de tratamentos.
autonomia e para a degradação do trabalho profissional. Para firmar seu argu- Após feito o diagnós-
tico, ao clínico que
mento Simões utiliza as categorias de alienação econômica, organizacional e aceita o protocolo da
técnica formuladas por Larson. pesquisa resta apenas
a escolha mecânica
Como foi visto anteriormente, para Larson os profissionais experi- entre terapias padro-
mentam a alienação econômica e organizacional, mas não a alienação técnica, nizadas, cujos resulta-
pois para controlar o processo de trabalho a gerência teria de obter o domínio dos ele apenas regis-
tra. A análise é deixa-
da mesma expertise, o que normalmente não ocorre. Quando se observa risco da aos planejadores
de rotinização de trabalho especializado de alto nível, ele ocorre mais como da pesquisa. Uma ten-
dência semelhante
resultado da divisão do trabalho entre profissionais: por exemplo, entre o tra- ocorre também com a
balho de pesquisa e o de aplicação prática20. O que Larson quer enfatizar é engenharia estrutural:
que, a despeito desta diferenciação interna que gera hierarquias de habilida- casos excepcionais e
processos de investi-
des, “os germes da alienação técnica são rapidamente dissolvidos em efeitos gação que são difíceis
de uma divisão do trabalho que aparentemente tende a continuar exproprian- de serem analisados
são transferidos para
do altos níveis de competência e concentrando-os em relativamente poucas técnicos de nível mais
mãos ou mentes” (Larson, 1980, p. 169). Com isso, o conhecimento técnico alto, hierarquicamen-
permanece sob o controle da profissão e dos profissionais. Simões, entretan- te superiores em ter-
mos sociais e ideoló-
to, dissolve a distinção entre a alienação técnica e a organizacional: “embora gicos, restando ao en-
haja sérias limitações à racionalização do trabalho profissional, gerentes com genheiro comum a
aplicação de soluções
conhecimento técnico teriam certamente condições para redefinir tarefas, im- padronizadas” (Larson,
por ritmos e materiais de trabalho que poderiam afetar o conteúdo técnico do 1980, p. 169).
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processo de trabalho” (Simões, 1989, p. 168). Em suma, sua tese, ao contrá-


rio da de Larson, é a de que “uma forma de tornar viável a alienação técnica
do trabalho profissional é exatamente mantendo o conhecimento dentro dos
grupos ocupacionais através das divisões de classe e de hierarquia dentro da
categoria” (Simões, 1989, p. 176). Isto posto, restaria a Simões exibir as evi-
dências de que decisões administrativas (redefinir tarefas, impor ritmos e ma-
teriais de trabalho) acarretam de fato alienação técnica, sempre que em sua
amostra encontrasse engenheiros supervisionando o trabalho de outros enge-
nheiros. Não é o que ela faz; pelo contrário, com base em tabelas destinadas a
mostrar como alguns engenheiros tomam decisões sobre o trabalho de outros
engenheiros (ritmo e materiais de trabalho), Simões dá por demonstrado o
que permanece ainda suposição: a ocorrência de alienação técnica. Uma leitu-
ra atenta da pesquisa de Simões mostra exatamente o oposto do que ela dá por
demonstrado. De fato, um dos achados da pesquisa é que “o ritmo de trabalho
parece ser uma prerrogativa da grande maioria (89,1%)” (Simões, 1989, p.
193-4). Na verdade a redação da questão n. 29f do questionário (Simões,
1989, p. 491) indica que também a quantidade de trabalho está sob o controle
de 89,1% dos engenheiros, já que ritmo e quantidade comportam a mesma
freqüência de respostas no questionário21.

Conclusão

A tese da proletarização dos profissionais é apenas a versão mais


radical de certa linha de análise que descobre sob as transformações por que
têm passado as profissões “clássicas” ao longo do século uma persistente
erosão da autoridade dos experts. Outros autores também atentos a estas mu-
danças diagnosticam um acentuado processo de “desprofissionalização”, ter-
mo pelo qual entendem os efeitos cumulativos de fatores (institucionalização
do trabalho profissional, clientela mais informada e mais exigente, introdução
de tecnologia sofisticada que reduz o coeficiente de intervenção individual do
profissional etc.) que restringem a autonomia e a autoridade socialmente san-
cionada que, no passado, teriam gozado os profissionais “liberais” para esta-
belecer as condições de seu trabalho, os procedimentos técnicos do seu mis-
21
A questão 29f (Si- ter, o preço dos serviços e o padrão de relacionamento com a clientela.
mões, 1989, p. 491) Ora, os argumentos sobre a erosão da autoridade profissional pare-
tem a seguinte reda-
ção: “Quem decide cem bem menos convincentes ou fundamentados quando vistos da ótica de
quanto trabalho você um determinado padrão global de autoridade. Não existem evidências de que
tem que executar, ou
o ritmo do seu traba- a autoridade profissional tenha perdido espaço para outros tipos de autorida-
lho durante o dia?” de, e é em termos desta eficiência social relativa que a tese da “desprofis-
com as seguintes al- sionalização” deve ser avaliada (Beckman, 1990). Tome-se, para exemplo,
ternativas: a) você; b)
outro engenheiro; c) duas dimensões desta variável: a) a importância relativa das conseqüências de
outra engenheira; d) ações orientadas pela autoridade profissional, em comparação com a de ou-
pessoa de outra ocu-
pação (especifique) tros tipos de autoridade; b) o valor de troca da autoridade profissional para a
[grifo nosso]. aquisição de outros tipos de autoridade.
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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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Como observa Beckman, se a política econômica de um país é for-


mulada por um pequeno número de economistas profissionais, as conseqüên-
cias desta formulação tem uma tal magnitude que só por um equívoco pode-se
falar em “desprofissionalização” com base no crescente assalariamento dos
médicos. Da mesma forma, se os títulos profissionais são uma “moeda” cada
vez mais forte para a aquisição de autoridade burocrática em diferentes tipos
de organização, não há como falar em “desprofissionalização” tendo em vista
a freqüência com que os profissionais são encontrados em posições burocrá-
ticas (cf. Beckman, 1990, p. 135).
Bem observadas as tendências, as profissões continuam a exercer
controle sobre esferas fundamentais do saber, e por isso dispõem de um “man-
dato de conhecimento” que lhes confere autoridade técnica e moral para estabe-
lecer para toda a sociedade definições sobre aspectos ou segmentos particulares
da realidade – o que é “saúde” ou “doença” e, de maneira mais geral, o que é
ordem ou desordem (Halliday, 1985). Isto posto, é analiticamente mais adequa-
do e empiricamente mais correto detectar nas mudanças por que têm passado as
profissões a fase mais avançada do mesmo processo de racionalização formal
que nos primórdios do capitalismo competitivo criou as condições de mercado
para os primeiros movimentos profissionais. Ritzer e Walczak, com quem abri
este artigo, estão corretos na descrição das mudanças; todavia, o diagnóstico da
“desprofissionalização” parece estar amplamente equivocado.

Recebido para publicação em setembro/1997

DINIZ, Marli. Rethinking the theory of professionals’ proletarianization. Tempo Social; Rev. Sociol.
USP, S. Paulo, 10(1): 165-184, may 1998.

ABSTRACT: The author analyzes the theory of the professionals’ proletarianization UNITERMS:
with the objective of verifying to what extent it captures the real processes of professionals,
proletarianization,
change that have been affecting the professions. The central questions that the
deprofessionalization,
author addresses are whether professionals employed by public and private technical autonomy.
bureaucracies preserve their technical qualifications, and whether they preserve
control over their highly specialized knowledge and over their work process. Using
an extensive bibliography on professional work in several industries (metal,
mechanic, electronic), the author concludes that the evidences of growing
employment of some of the liberal professions does not constitute support for the
thesis of the professionals’ proletarianization when this term is appropriately
understood. The research has shown that even when the professional employee
loses the control over his work conditions, he keeps the control over his own
work, that is, he conserves his technical autonomy.

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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
165-184, maio de 1998.

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maio Rev. Sociol. USP,
de 1998. D S.OPaulo,
S 10(1):
S I Ê
185-214, maio de 1998. TRABALHO

A competição profissional
no mundo do Direito
MARIA DA GLORIA BONELLI

RESUMO: Este artigo focaliza o mundo profissional do Direito numa comarca UNITERMOS:
de médio porte do interior do Estado de São Paulo, analisando a dinâmica profissões,
direito,
deste campo centrada na competição profissional entre juízes, advogados,
comarca paulista.
funcionários de cartório, promotores de justiça e delegados de polícia. O mun-
do do Direito engloba, além dessas competições interprofissionais, as compe-
tições intraprofissionais que são estudadas detalhadamente aqui para o caso
dos juízes, dos delegados de polícia e dos funcionários de cartório. Esta con-
cepção procura relacionar os lugares ocupados por eles no sistema das profis-
sões como fatores condicionantes das suas interações, estabelecendo as pos-
sibilidades e fornecendo os recursos para as mudanças buscadas através das
disputas profissionais. A análise das tensões entre o Judiciário e o Legislativo
delimitam o pertencimento dos profissionais ao mundo do Direito, configuran-
do-o como um grupo com uma dimensão comum, em conflito com as posições
tomadas pelos legisladores.

E
ste trabalho focaliza o campo profissional que circunda a atividade
da justiça numa comarca do interior do Estado de São Paulo. Ele é
parte de uma pesquisa mais ampla sobre as relações profissionais
na área do Direito. Nela, focalizamos as formas como as inter-
dependências dessas diversas especializações no mundo do trabalho judicial
condicionam seus conflitos e disputas.
A concepção que norteia a pesquisa identifica as profissões que
atuam nesta área como constituindo um campo movido pela interação e pela
Professora do Depar-
competição entre os diversos profissionais que lidam com esta temática como tamento de Ciências
seu trabalho cotidiano. No caso da região investigada, eles são os juízes, os Sociais da UFSCar

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promotores de justiça, os delegados de polícia, os advogados e os funcionários


de cartório judicial.
A abordagem adotada aqui identifica, na base da relação mantida
por estes profissionais, uma interação competitiva dada pela posição que eles
ocupam no universo das profissões. A própria estrutura que estas profissões
formam ao se relacionarem umas com as outras gera a interdependência das
diferentes ocupações e as diversas perspectivas que elas adotam sobre a justi-
ça e seu funcionamento.
Os lugares de onde cada uma dessas profissões e seus segmentos
internos se relacionam no universo profissional condicionam as interações
mantidas entre elas ao mesmo tempo que geram possibilidades de ação em
busca de melhores posições dentro do sistema profissional. Tanto os cons-
trangimentos quanto os incentivos que esta estrutura engendra se materiali-
zam nas tensões, nos conflitos e na dinâmica do campo da justiça e pode ser
captada na forma como ela se concretiza na região estudada, facilitando a
compreensão de sua lógica.
A competição profissional é enfocada aqui sob dois prismas com-
plementares: as disputas intraprofissionais e as interprofissionais. A primeira
delas se refere à competição entre os pares profissionais e está relacionada à
própria estratificação de cada ocupação. A segunda examina as tensões de-
correntes das disputas entre profissões distintas que atuam em áreas próxi-
mas e procuram imprimir sua forma de lidar com a questão comum a elas.
Ambas as formas de competição são condicionadas pela posição que a profis-
são e o profissional ocupam neste sistema1.
As profissões que serão estudadas aqui estão organizadas de uma
maneira independente umas das outras com carreiras próprias. A concepção
de que elas formam um sistema baseia-se no desenvolvimento prático da ati-
vidade profissional, nas áreas de fronteira que possuem e no objeto que tem
em comum que é a justiça, embora lidem com ela sob perspectivas diferentes.
Essas relações originadas em decorrência do trabalho neste campo configu-
ram o que chamaremos de ‘mundo do Direito’.
O objetivo do trabalho aqui desenvolvido é vincular o enfoque ex-
posto acima com a lógica que movimenta o ‘mundo do Direito’, numa comarca
de médio porte, aplicando o modelo analítico a uma realidade empírica. Para
tanto, analisaremos as relações profissionais, as redes de conexões entre esses
indivíduos, as suas características morfológicas, como a origem social e a
trajetória profissional, além dos diferentes formatos organizacionais de cada
profissão e das suas respectivas estruturas internas, procurando demonstrar
como tal campo jurídico construído teoricamente ganha existência real na prá-
1
Para uma revisão da tica do exercício profissional. Neste sentido, o trabalho priorizará o uso dos
bibliografia da Socio-
logia das Profissões dados coligidos para dar maior transparência à forma como esse modelo de
que discuta e apro- análise auxilia a compreensão do objeto de estudo.
funde tal concepção,
cf. Bonelli & Aguiar A comarca investigada, que será denominada de Branca, é compos-
& Donatoni (1994). ta de dois municípios e dois distritos, com uma população total em torno dos
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177 mil habitantes em 1991. A comarca Branca possui quatro varas cíveis,
duas varas criminais e um juizado de pequenas causas. Como se trata de uma
cidade de médio porte, a comarca é de terceira entrância. O Poder Judiciário
possui também comarcas de primeira entrância, de segunda entrância e de
entrância especial, de acordo com o tamanho da cidade. Elas vinculam-se à
primeira instância do Poder Judiciário. São nas varas dessas entrâncias que
um processo começa a caminhar na roda que movimenta a justiça.
A segunda instância configura-se como uma possibilidade de re-
curso na estrutura do Poder Judiciário, onde atuam os desembargadores. No
Ministério Público, os profissionais vinculados ao segundo grau são procura- 2
O Ministério Público
dores de justiça e os de primeiro grau são promotores de justiça2. segue a mesma estru-
O ingresso em ambas as carreiras começa pela posição de juiz subs- tura, embora ele não
seja parte do Poder Ju-
tituto ou promotor substituto. Esta denominação é originária do fato do re- diciário. Esse órgão
cém-concursado ser designado para trabalhar em uma circunscrição judicial possui um posição ins-
(comarcas maiores que englobam administrativamente as menores) que já titucional sui generis,
não sendo diretamente
possui promotores ou juízes vitaliciados. A progressão na carreira para subordinado a nenhum
vitaliciado se dá num prazo de dois anos, mas como há falta de profissionais, dos três poderes da
União. A Constituição
o substituto acaba sendo promovido para a primeira entrância antes de se de 1988 fortaleceu al-
tornar vitalício. Conforme vão surgindo vagas eles vão galgando novas posi- gumas mudanças que o
ções nas comarcas maiores, desde que se inscrevam para tal. Ministério Público vi-
nha implementando,
Cada uma das varas que compõe a comarca Branca conta com um ampliando o papel
juiz e um cartório judicial. São, portanto, 6 juízes, sendo 4 cíveis e 2 crimi- mais claramente volta-
do para a defesa dos in-
nais. O Juizado Especial de Pequenas Causas é acumulado pelos juízes da teresses da sociedade,
vara cível, sendo que a direção é exercida por um deles de forma fixa e o com mais poder para
trabalho decisório sobre os processos é feito num sistema de rodízio, assu- levar adiante esta fun-
ção. O promotor de jus-
mindo a cada seis meses um dos juízes dessas varas. No Ministério Público, a tiça representa o lado
distribuição dos promotores pelas áreas se inverte. Há 6 promotores, sendo 2 ativo da justiça e o juiz
o seu lado passivo. O
ligados à esfera cível e quatro à esfera criminal. juiz não dá partida a
Já as delegacias de polícia da região possuem uma outra estrutura um processo. Este pa-
que apresenta pontos de conexão com a do Judiciário e do Ministério Público pel cabe ao promotor
de justiça. Entre eles,
locais. Elas são vinculadas ao Poder Executivo, que é responsável pela ativi- há auto-identificações
dade policial militar e civil. Os delegados de polícia vinculam-se à Polícia distintas no que tange
à sua função primor-
Civil, desempenhando funções de Polícia Judiciária, enquanto a Polícia Mili- dial. Uns falam de si
tar faz a parte preventiva do policiamento. mesmo como fiscais da
A Delegacia Seccional de Branca abrange os cinco distritos poli- lei e outros como os ti-
tulares da ação penal,
ciais do município, as delegacias de polícia de outros seis municípios da re- os defensores da soci-
gião (Verde, Vermelho, Amarelo, Azul, Marrom e Cinza), além do Primeiro edade. A nuance na di-
ferença é que um fis-
Distrito Policial de Verde, da Delegacia de Investigação de Entorpecentes cal da lei pode identi-
(DISE), da Circunscrição de Trânsito (Ciretran) da região, da Delegacia de ficar-se prioritaria-
Polícia de Defesa da Mulher e da Delegacia de Polícia de Investigações e mente com o sistema
legal, a ordem, o Esta-
Infrações Contra o Meio Ambiente (DIMA), que entrou em funcionamento do, enquanto que o se-
em setembro de 1994. A Delegacia Seccional de Branca está subordinada à gundo vê-se atuando
em nome da sociedade,
Delegacia Regional de Prata. Esta é uma das dez delegacias regionais existen- na proteção do interes-
tes no Estado de São Paulo, que aglutinam as delegacias de sua área. As dele- se público e social.

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gacias regionais se reportam ao DERIN – Departamento das Delegacias de


Polícia de São Paulo e Interior, cujo responsável é o delegado-geral, chefe da
Polícia Civil nomeado pelo Secretário de Segurança Pública.
Na região estudada, a estrutura organizacional da Delegacia
Seccional é maior do que a da comarca de Branca, abrangendo esses seis mu-
nicípios que estão sob a jurisdição de outras 4 comarcas. Portanto, a popula-
ção afeta à Delegacia Seccional é de 283.461 habitantes. O número de proces-
sos que entraram em tramitação nos cartórios judiciais no ano de 1992 foi de
12.125. O número de inquéritos policiais abertos nas delegacias da Seccional
de Branca, em 1993, foi de 3.510. A Delegacia Seccional conta com 29 dele-
gados, sendo duas mulheres.
Há dois caminhos básicos para um processo ter início. Quando se
trata de um processo criminal, ele começa na delegacia de polícia com a
preparação do inquérito policial. Este é aberto quando há infração penal e é
presidido pelo delegado de polícia. O inquérito reúne as provas colhidas durante
a investigação voltadas para a apuração do crime. As delegacias têm 30 dias
para concluir o inquérito e protocolá-lo junto à autoridade judicial. Se
necessitarem de uma prorrogação de prazo podem solicitar outros 30 dias ao
juiz. O caso só vai para o Judiciário se o delegado de polícia abrir o inquérito
policial. Se o inquérito não for aberto, o caso ‘morre’ na delegacia. Um inqué-
rito mal preparado, com falhas técnicas e omissões de informações pode atrasar
e dificultar a tramitação do processo na justiça. A maioria dessas falhas é
atribuídas ao despreparo profissional, mas há quem aponte também a omissão
intencional, a corrupção, onde o delegado age desta forma para evitar a abertura
3
Alguns desses pro- ou o andamento de um processo. A delegacia de polícia tem responsabilidade
fissionais exercem
atividades docentes nos processos vinculados à justiça criminal. Quando se trata de um processo
nas faculdades de Di- cível, a responsabilidade sobre sua abertura é do advogado, que prepara a
reito da região. Minis-
trar aulas costuma ser ação e a protocola. O cartório distribuidor a encaminha, aleatoriamente, a um
uma ocupação secun- dos cartórios judiciais e a ação se constitui, a partir de então, em um processo.
dária que a lei permi- Quando é um inquérito policial (afeto à justiça criminal) o cartório distribuidor
te que seja desempe-
nhada pelos juízes e encaminha-o para o Ministério Público. Se o promotor constatar que tem um
promotores. Outras caso, ele faz a denúncia e o inquérito se transforma em processo criminal. É
atividades profissio-
nais são vetadas a es- esse poder de iniciar ou não a movimentação da máquina judiciária que dá o
sas duas profissões. caráter ativo ao Ministério Público e o caráter passivo à Magistratura.
Há delegados de polí- Além desses personagens atuando no campo da justiça, os advoga-
cia que prestam servi-
ços de consultoria em dos e os funcionários do Poder Judiciário completam as posições profissio-
segurança. Em geral, nais existentes em Branca3. Lá, a OAB registra cerca de 580 filiados, sendo
os advogados não so-
frem restrições legais que a estimativa é de 150 profissionais atuando como advogado em Branca.
para o exercício de O total de funcionários dos cartórios judiciais é de 135.
outras ocupações. Há A comarca é estruturalmente organizada em 6 varas e cada uma des-
outras posições pro-
fissionais no campo sas varas possui um cartório. Há dois fóruns, um criminal, com duas varas e um
jurídico que não fo- cível, com quatro varas. A posição mais alta da hierarquia profissional local é a
ram detectadas na re-
gião, como é o caso do juiz responsável pela vara, que responde aos desembargadores do Tribunal
dos jurisconsultos. de Justiça, em São Paulo. Dois cargos estão subordinados diretamente ao juiz: o
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de diretor de cartório e o de oficial de justiça. Este último está funcionalmente


atrelado à vara e não ao cartório. Vinculados ao diretor do cartório estão os
escreventes-chefes de setor, os escreventes e os auxiliares judiciários.
Há seis categorias de auxiliar judiciário, mas as quatro primeiras se
referem aos faxineiros, às encarregadas da copa e da limpeza do prédio. As
funções administrativas são afetas ao topo da escala dos auxiliares judiciá-
rios, que desempenham atividades como atendimento ao público, arquivo,
autuação de processo e encaminhamento de cargas para advogados, promoto-
res, juízes, contadores e escreventes.
O escrevente tem como responsabilidade ‘tocar o processo’, fazer
mandato, preparar ofícios. O escrevente-chefe distribui as atividades, encar-
rega-se da parte de provimentos, do que é publicado no Diário Oficial, e da
organização das pastas individuais com o histórico dos funcionários. O dire-
tor do cartório mantém contato com os chefes, estrutura o organograma do
cartório, distribui as funções, supervisiona o trabalho e é o responsável pela
conexão entre o juiz e o cartório. Junto com o juiz, decide promoções e a
alocação de funcionários em cargos de confiança (alguns cargos de chefia e a
posição de oficial-maior, que é o substituto do diretor).
O oficial de justiça cumpre mandatos que partem diretamente do
juiz. Ele faz a intimação de uma testemunha para comparecer a uma audiên-
cia, dá ciência a um réu, a um devedor executado, cumpre ordens de despejo e
penhora de bens. O oficial de justiça só se reporta ao juiz e é a ele subordina-
do. O ingresso no Poder Judiciário se dá via concurso, tanto para auxiliar
judiciário e escrevente quanto para oficial de justiça e magistrado. O mesmo
acontece nas posições do Ministério Público e das delegacias de polícia. Entre
os recém-formados há a imagem de que o concurso para magistrado é o mais
difícil, com exigências de conteúdo superiores aos do Ministério Público. Os
exames para ingresso nessas carreiras reproduzem a hierarquia profissional,
na forma como se percebe a valorização social dessas profissões.
A estrutura organizacional da comarca Branca conta com 8 direto-
res de serviços, 23 escreventes-chefes e oficiais maiores, 56 escreventes, 14
auxiliares de justiça, além de 2 fiéis e um menor colaborador. O número de
oficiais de justiça é de 31.
Quanto aos advogados que atuam em Branca, mais de 80% o fazem
nas áreas cível e trabalhista. As ações mais freqüentes são as de despejo e
cobrança ou aquelas vinculadas à família, como separação judicial, divórcio e
pensão alimentícia. A OAB de Branca estima que 30% de seus filiados sejam
do sexo feminino.

A morfologia dos profissionais entrevistados:


a socialização no mundo do direito

O que dá a estes grupos profissionais uma lógica de pertencer ao


mesmo universo é que, além do fato de lidarem com a questão da justiça,
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vivem cotidianamente uma intensa socialização no mundo do Direito, com


uma linguagem própria, um jeito de agir e até uma aparência semelhante no
vestir, dada predominantemente pelo ambiente do fórum. Embora este padrão
se modifique nas delegacias, ele é um patamar distintivo para o delegado de
polícia, em relação às demais posições na hierarquia interna da polícia civil.
Os delegados usam paletó e gravata e são bacharéis em Direito tal como os
advogados, os juízes e os promotores, tendo partilhado uma formação univer-
sitária comum a deles, que atribui características altruístas à justiça e valoriza
corporativamente os profissionais que lidam com tais questões.
Por outro lado, apesar dos funcionários de cartório não precisarem
ter como pré-requisito obrigatório o diploma de Direito, o mais comum é en-
contrar entre eles pessoas já formadas ou cursando esta faculdade. Esses fun-
cionários judiciais vivem intensamente a socialização no fórum, local onde
trabalham e reelaboram com mais ênfase o padrão acima de conduta e de
valores profissionais.
Embora o grau de exposição a esta lógica e a intensidade do pro-
cesso de socialização possam ser distintos na trajetória de vida dos informan-
tes, cada profissão que atua neste universo apresenta semelhanças internas
que permitem enfocá-las enquanto grupos ocupacionais. Observamos inclusi-
ve como o processo de recrutamento tende a priorizar a homogeneização de
cada um desses grupos. Analisaremos, portanto, as semelhanças e as diferenças
tendo como unidade básica de referência as ocupações mencionadas acima.
Os juízes
Todos os juízes entrevistados são homens brancos. A maioria deles
procede dos estratos sociais inferiores, sendo originários de famílias com bai-
xo grau de escolaridade. Dos seis entrevistados, dois eram filhos de trabalha-
dores rurais, um o pai era contínuo no Tribunal de Justiça, um era metalúrgico,
outro era contador e apenas um era filho de advogado. A ascensão social é o
padrão na carreira de juiz da comarca Branca, revelando-se ainda mais intensa
do que o processo de mobilidade social ascendente detectada no corpo da
Magistratura brasileira como um todo.
A distribuição da origem social dos juízes de Branca diferencia-se
daquela observada na pesquisa por amostragem realizada em cinco estados
brasileiros, em 1993, pelo Idesp (cf. Sadek, 1994). Nessa amostra obteve-se a
seguinte distribuição para a profissão paterna: 34% procedentes dos segmen-
tos médio-baixo e baixo da estrutura social, com ocupações de baixa qualifi-
cação no trabalho não-manual (contínuo, auxiliar de escritório), ocupações
manuais (ferroviário, operário) e trabalhadores rurais; 32% provenientes do
segmento médio-médio, com ocupações burocráticas e de escritório ou pe-
quenos comerciantes; e 34% nos segmentos médio-alto e alto, sendo que 20%
destes estavam ligados às atividades jurídicas. Este survey identificou uma
participação feminina da ordem de 11% na carreira de juíza.
Os quatro juízes de origem social mais baixa eram filhos de mulhe-
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res cuja atividade estava concentrada no lar. Eram donas de casa. Já os dois
restantes eram filhos de professoras.
A Faculdade de Direito freqüentada pela maioria deles é privada.
Embora não tenhamos informação para um deles, encontramos um juiz for-
mado no Mackenzie, dois na Unaerp, em Ribeirão Preto, e um na Faculdade
Municipal de São Bernardo. Apenas um juiz cursou a USP, na capital.
Três dos entrevistados ingressaram na Magistratura bem cedo em
suas carreiras profissionais (até 25 anos), dois começaram em torno dos 30
anos (29 anos e 33 anos) e apenas um tornou-se magistrado aos 43 anos.
Hoje, a idade mínima para o ingresso é de 23 anos e exige-se uma experiência
anterior como advogado ou promotor de dois anos. Se o candidato já é funci-
onário de cartório, ele é dispensado desta última exigência e pode prestar
concurso assim que se graduar, caso tenha a idade necessária. A incidência de
juízes que tiveram uma longa experiência profissional em cartório é muito
elevada na comarca Branca. Dos seis juízes, quatro passaram toda a sua ju-
ventude trabalhando em cartórios judiciais de outras comarcas, onde ingres-
saram com idades entre 10 e 13 anos. A intensa socialização no ambiente e
nos valores do fórum, quando jovem, favorece a procura por este tipo de car-
reira, e parece auxiliar a aprovação no exame de seleção. Desses quatro, dois
exerceram a advocacia por mais de 10 anos antes de ingressar na carreira de
magistrado, mas acabaram se redirecionando para ela. Dos demais juízes da
comarca Branca, um exerceu a advocacia por pouco tempo e o outro foi pro-
motor por dois anos e meio.
No momento da entrevista, em 1994, a distribuição desses magis-
trados por faixa etária era: um com mais de 50 anos, dois entre 40 e 49 anos e
três entre 30 e 39 anos. O interior de São Paulo é a região de origem da maio-
ria desses juízes, embora nenhum seja de Branca. Apenas um veio da capital
de São Paulo e um do Rio de Janeiro.
Os promotores
Todos os seis promotores são homens, sendo que um deles poderia
não ser classificado como branco, se ele assim indicasse. Dois desses promo-
tores se recusaram a conceder entrevista, o que reduz a amostra a quatro. Mais
ainda do que os juízes, os quatro promotores entrevistados fizeram mobilida-
de ascendente, sendo filhos de pessoas de origem social mais baixa. Dois ti-
nham como ocupação paterna atividades do setor rural, um como trabalhador
e outro como sitiante. Os pais dos dois restantes trabalharam, um como escri-
turário e o outro como contínuo. Diferentemente dos juízes, todos os promo-
tores eram procedentes dos segmentos mais baixos da hierarquia social, não
encontrando nenhum de origem no estrato médio-alto ou outro segmento aci-
ma deste. A ocupação materna era dona de casa.
As faculdades que todos os entrevistados cursaram eram particula-
res e localizavam-se fora da capital do Estado. Dois freqüentaram a Faculda-
de de Direito de São José do Rio Preto, um cursou a de Osasco e um fez em
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BONELLI, Maria da Gloria. A competição profissional no mundo do Direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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Pirassununga.
A faixa etária dos promotores entrevistados oscilava entre 32 e 47
anos. Dois estavam na faixa dos 30 e dois na faixa dos 40 anos. Apenas um
deles nasceu na capital de São Paulo e um no Nordeste. Os dois restantes
nasceram em municípios do interior do Estado.
A experiência profissional anterior ao ingresso no Ministério Pú-
blico mostra uma aproximação e uma socialização no universo do Direito, da
norma e da ordem, mas não aponta para a experiência de trabalho no fórum,
como o constatado entre os juízes. Assim, um promotor começou a trabalhar
aos 16 anos, num escritório de advocacia e ficou neste emprego até ingressar
no MP dez anos depois. Outro, freqüentou a escola de sargentos, e foi militar
até ingressar na carreira de promotor. Um terceiro, embora aprovado também
para a Magistratura, optou pelo Ministério Público. Ele havia cursado a facul-
dade de História, mas a abandonou preferindo estudar Direito, embora o pai
preferisse que ele cursasse Agronomia. Uma trajetória semelhante, de ter con-
tato com outro curso superior antes de ingressar em Direito, também foi ob-
servada num promotor que fez uma opção mais tardia, pela carreira do MP
Antes, cursara Letras e seguira a trajetória de professor. Atuava como diretor de
escola ao mesmo tempo que exercia a advocacia, quando se tornou promotor.
Os delegados de polícia
Quando iniciamos o trabalho de campo a Delegacia Seccional de
Branca contava com 15 delegados, mas ela recebeu um reforço de 14 novos
delegados. Deste total de 29, entrevistamos 18, sendo seis recém-ingressos.
Essa amostra é composta de 17 homens e uma mulher. Tal como observado
entre os promotores, um deles poderia não ser classificado como branco se
fizesse tal opção.
Há oito delegados na faixa etária dos 25-30 anos, 5 na faixa dos
31-40 anos e 5 com mais de 40 anos, sendo que o mais velho tinha 51 anos. A
última faixa só é encontrada entre os profissionais antigos, mas as duas outras
são detectadas em ambos os grupos: os que acabaram de ingressar e os que já
trabalhavam antes.
A origem social desses delegados também aponta para o processo
de mobilidade intergeracional ascendente, mas com um percurso de distâncias
sociais menores. Nenhum dos informantes tinha seu pai trabalhando no meio
rural. O ponto de partida mais baixo para a ocupação paterna é o trabalho
manual urbano com alguma qualificação. Quatro delegados têm sua origem
social no estrato médio-inferior, onde a ocupação do pai era a de motorista,
marceneiro ou mecânico; sete no estrato médio-médio (comerciante, dono de
taxi, sargento); cinco no estrato médio-superior (professor secundário, oficial
de cartório, funcionário público com diploma de advogado) e dois no segmen-
to alto (advogado e contador).
O processo de socialização nos valores do mundo da ordem, seja
pela lógica do Direito, seja pela da polícia, antecede o ingresso na carreira
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BONELLI, Maria da Gloria. A competição profissional no mundo do Direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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para oito entrevistados. Estes, já no ambiente familiar conviveram com tais


perspectivas, já que quatro pais exerceram atividades profissionais na Polícia
Militar e na Civil e outros quatro obtiveram título de bacharel em Direito.
A maioria dos delegados entrevistados acabou intensificando esta
socialização prévia com os valores vigentes neste universo mediante o ingres-
so nas delegacias para trabalhar como investigador ou escrivão de polícia (11
deles). Outros quatro tiveram experiências como militar ou como funcionário
do fórum. Apenas cinco afirmaram não ter experiência profissional nesta área,
embora um deles fosse filho de policial, tivesse um irmão delegado e uma
irmã que foi investigadora de polícia. O condicionante da socialização ante-
rior atua fortemente nesta carreira, tal como a tendência endogâmica obser-
vada no processo de recrutamento e seleção na Magistratura.
A grande maioria das mães (13 delas) dedica-se à atividade domés-
tica, quatro são professoras e uma foi cozinheira. A região de origem dos
delegados entrevistados tem a predominância do interior de São Paulo, com
destaque para aqueles nascidos nos municípios da Seccional de Branca e re-
dondezas. Dos 14 delegados provenientes do interior, oito são desta área. Há
três da capital e um da região do ABC.
As faculdades de Direito cursadas pelos delegados são todas priva-
das. A Faculdade de Direito de Branca é a de maior incidência na amostra,
com cinco delegados tendo concluído seu curso lá. A grande maioria cursou
faculdades particulares do interior do Estado ou de municípios da Grande São
Paulo, excluindo a capital, onde apenas um estudou, se formando no Mackenzie.
Os advogados
Entrevistamos 16 advogados atuantes na comarca de Branca, sen-
do cinco mulheres. Destes, cinco estão na casa dos 30 anos, quatro estão na
faixa dos 40/50 anos, quatro na faixa dos 50/60 anos e outros três com mais
de 60 anos. Dois são filhos de fazendeiros (um deles também era político), um
é filho de dentista, um de professor secundário, outros sete são filhos de co-
merciantes, um trabalha com expedição de mercadorias numa indústria, um
era filho de cabeleireiro, um de sitiante, um de carroceiro e um último era filho
de um trabalhador rural. A ocupação materna predominante é a de dona de
casa, embora haja uma professora, uma enfermeira, uma lavadeira e uma tra-
balhadora rural entre as mães desses advogados.
A origem social destes informantes não permite estabelecer uma
proporcionalidade para o grupo dos advogados desta comarca, já que repre-
senta uma parcela muito pequena do contingente de advogados atuantes na
região. Em geral, a mobilidade social ascendente é um fator que caracteriza os
profissionais do campo do Direito nesta comarca, mas no caso dos advogados
parece que entre eles é mais facilmente detectado aqueles indivíduos de uma
procedência social mais favorecida, oriundos dos segmentos superiores da
hierarquia social. Se comparados com os juízes e os delegados da comarca de
Branca, há mais profissionais advogados que são filhos de membros das elites
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BONELLI, Maria da Gloria. A competição profissional no mundo do Direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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locais, embora haja migração para a região e haja também ascensão social
local via obtenção do diploma de advogado. Como a maioria dos entrevista-
dos neste grupo profissional é proveniente dos segmentos médios ou altos, as
possibilidades concretas de realizarem mobilidade ascendente foram meno-
res, já que partiram de um patamar mais elevado. Como um conjunto, os juízes
e os promotores de Branca percorreram distâncias sociais maiores, partindo
de famílias mais desfavorecidas e alcançando o topo da hierarquia social. Já
os delegados de polícia originam-se principalmente de famílias médias.
Para o exercício da advocacia, os laços sociais e as conexões locais
parecem ser mais relevantes, já que é necessário se obter clientela. As ativida-
des profissionais ligadas ao setor público podem dispensar esta característica,
já que a renda mensal não provém deste tipo de vínculo. Este fator pode ter
alguma relevância na explicação das diferenças nas origens sociais destes gru-
pos profissionais.
Todos os 16 entrevistados são provenientes do interior do Estado
de São Paulo, sendo oito deles da região de Branca. Quanto à Faculdade de
Direito que freqüentaram, também aqui predominam os cursos particulares
do interior do Estado, com destaque para a faculdade localizada no município
de Branca. Um dos informantes estudou na USP, na capital.
A experiência profissional destes informantes é predominantemen-
te no exercício da advocacia, com escritório próprio, embora o padrão do es-
critório e da atividade liberal seja bastante diferenciada, de acordo com o grau
de profissionalização de cada um deles. Assim, entre os que estão numa situa-
ção mais favorável, há um ex-juiz da comarca de Branca, que após a aposen-
tadoria retomou a atividade de escritório e um advogado que era presidente da
OAB local quando concedeu entrevista. As situações profissionais que estão
numa condição oposta podem ser ilustradas pelo caso de uma mulher formada
há quatro anos, que, além de dar aulas de Inglês em um curso, exerce a advo-
cacia em casa e atende no escritório de uma conhecida alguns clientes do pro-
grama oficial da Secretaria da Justiça em convênio com a OAB local, para dar
assistência advocatícia à população carente da região.
Um outro padrão de difícil profissionalização na região é o dos
homens que concluíram tardiamente o curso de Direito, ingressando na práti-
ca profissional depois dos 40 anos. Quando este procedimento está ligado ao
acúmulo de posições no mercado de trabalho, como funcionário público e
advogado, a transição entre as duas atividades parece mais segura, já que só
se completa com a aposentadoria na primeira ocupação. Assim, embora a si-
tuação do escritório possa ser menos profissional, as conseqüências para o
advogado são menos dramáticas. Quando esta transição é tardia, mas envolve
uma redefinição profissional por perda da posição anterior, o tipo de ingresso
possível neste mercado de trabalho torna-se tão adverso, que parece marcar o
desenvolvimento da profissionalização para sempre, estabelecendo limites no
tipo de clientela, nas causas obtidas e nos rendimentos auferidos. Esses advo-
gados se tornam inimigos mortais dos Juizados de Pequenas Causas, que atin-
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BONELLI, Maria da Gloria. A competição profissional no mundo do Direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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ge diretamente a faixa de clientela potencial para quem eles se voltam.


Embora a profissão de advogado se distribua por um hierarquia de
status profissional, que tem seu pólo dominante entre os sócios das grandes
firmas de advocacia, em Branca não identificamos nenhum advogado classifi-
cado nesta posição. Outro situação que também não identificamos na região é
a dos advogados assalariados por empresas. O padrão local é o da terceirização
destes serviços. A polarização da condição do exercício profissional se dá sob
o rótulo da atividade liberal. Todos os entrevistados se definem como advoga-
dos atuando em escritório, mas a estratificação dentro desta denominação é
muito grande e gera, além das disputas comuns por clientes, conflitos mais
substantivos motivados pela identificação de uma desigualdade de oportuni-
dades, de favorecimentos, de panelinhas e outras tensões decorrentes das com-
petições provenientes da segmentação profissional.
Embora haja uma barreira dificilmente ultrapassada por aqueles que
se profissionalizaram tardiamente, quando a trajetória no campo se inicia mais
cedo, as limitações parecem menos segmentadas. Ou seja, é possível alguma
ascensão e mudança na situação profissional conforme a carreira do jovem
advogado vai se desenvolvendo. Assim, são principalmente os informantes
mais jovens, que estão construindo sua profissionalização, que recorrem aos
convênios entre a OAB e a Secretaria de Justiça para obter clientes, adquirir
experiência e algum rendimento. Esta prática pode ser abandonada depois
que a carreira do advogado se consolida um pouco mais na região.
O tamanho do escritório, a quantidade de advogados atuando, o
perfil da clientela, o tipo de causa e a área de especialização dão a dimensão
da estratificação dentro da carreira. O exercício liberal esconde discrepâncias
muito grandes nas condições concretas de trabalho, mas, apesar de os jovens
estarem em uma situação bem mais difícil do que os profissionais mais madu-
ros, tal condição pode ser modificada com a consolidação de sua
profissionalização. Os advogados que começaram tardiamente encontram di-
ficuldades que se perpetuam mais para eles do que para os que ingressaram no
campo numa faixa etária considerada padrão.
Os funcionários judiciais
Entrevistamos sete funcionários, sendo dois auxiliares judiciários,
um escrevente-chefe, um escrevente, um diretor de cartório e dois oficiais de
justiça. Como no caso dos advogados, a amostra não tem objetivo de repre-
sentação proporcional, tendo sido escolhida para ilustrar as atividades desem-
penhadas no cartório e na vara. Dos entrevistados, duas informantes são do
sexo feminino.
Apenas um deles não cursou Direito. Era formado em Ciências So-
ciais, pela Unesp e havia sido professor de OSPB e de Moral e Cívica, entre
1973 e 1979, na rede particular e depois na rede estadual de ensino de um
município perto de Branca, antes de ser chamado para ocupar a função de
oficial de justiça. Os demais entrevistados cursaram ou estavam cursando a
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BONELLI, Maria da Gloria. A competição profissional no mundo do Direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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Faculdade de Direito de Branca.


Há uma predominância de cinco entrevistados na casa dos 25 anos,
e dois entre 35 e 45 anos de idade. As perspectivas profissionais para estas
duas faixas etárias são distintas. Em geral, os mais moços pensam em realizar
concursos para outras carreiras, como a Magistratura e o Ministério Público,
enquanto os mais velhos pretendem seguir no fórum. A carreira mais valori-
zada é a de juiz, seguida pela de promotor e de procurador.
A origem social dos informantes é bem típica da classe média, com
a predominância de vínculos com o serviço público ou com o mundo do Direi-
to, seja por parte do pai ou da mãe. Assim, quando o pai era de origem social
mais baixa, a mãe era funcionária pública ou professora. Este é o caso dos
dois informantes mais velhos. Um deles era filho de um barbeiro e o outro de
um alfaiate. Na geração mais jovem, os pais tinham ocupações como as de
funcionário público, advogado, corretor, viajante e professor. Apenas duas
mães eram donas de casa. Outras duas eram funcionárias públicas, sendo uma
formada em Direito e trabalhando em cartório e três outras eram professoras.
Alguns deles são de Branca ou de cidades da região. Embora haja
também mobilidade geográfica na amostra entrevistada, ela é menor do que a
observada entre juízes e promotores e foi toda feita dentro do próprio Estado
de São Paulo, como é o caso da amostra de advogados.
O ingresso no fórum se deu através de concurso para escrevente ou
auxiliar judiciário. Os que tinham cargos de chefia obtiveram essas promoções
internamente. Elas são vinculadas ao juiz da vara, que escolhe seus critérios de
seleção. Assim, alguns juízes podem optar pela promoção por antigüidade, ou-
tros por mérito, por confiança, por uma composição destas qualidades. Como
os cargos de chefia são de confiança, os escreventes podem ser substituídos por
outros, mas as carreiras administrativas têm um prosseguimento, já que são
desempenhadas na estrutura do judiciário, um ambiente onde o juiz tem a garan-
tia da vitaliciedade e o funcionário é um servidor público.

A competição interprofissional

Ao examinarmos estas profissões atuando em interação no mundo


da justiça observamos como a competição interprofissional se manifesta con-
dicionada pelo lugar que o profissional ocupa neste contexto. É esta
interdependência das posições profissionais que estrutura a disputa por
enfoques, perspectivas, privilégios, monopólios sobre objetos, campo de atua-
ção e poder de decisão. O conflito é decorrente da existência objetiva desses
diferentes lugares no sistema das profissões e não se restringe a concepções
de âmbito individual. Embora condicionados, os conflitos profissionais im-
pulsionam mudanças e dão a dinâmica do sistema das profissões. O lugar
ocupado neste campo condiciona as competições profissionais e fornece tam-
bém os recursos para fomentar as mudanças demandadas pelos profissionais
nas situações de conflito. Este elo complexo entre condicionar e impulsionar
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BONELLI, Maria da Gloria. A competição profissional no mundo do Direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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essas relações se manifesta no âmbito das mudanças em profissionais que


focalizavam determinada questão por um lado do espectro de opinião, e pas-
sam a aderir a uma nova forma de ver tal questão, tanto em decorrência do
novo lugar ocupado no sistema profissional quanto da antecipação da oportu-
nidade de mobilidade, favorecendo a reconstrução da identidade profissional
e da socialização neste novo contexto de trabalho. Assim, a opinião de um
juiz que passa a ser advogado ou de um delegado que vira promotor público
sofre redefinições em função desta nova posição de onde passa a interagir no
mundo da justiça, mas sua experiência anterior também o acompanha nas
interações que estabelece na nova posição colaborando para modificá-la.
Os tipos de conflitos observados nesta pesquisa apontam para a
existência de maior tensão entre aqueles que estão em posições mais próxi-
mas, reforçando a noção de que é a proximidade nos lugares ocupados no
sistema das profissões que aumenta a disputa entre eles. É possível se detectar
a distância entre as posições profissionais, em função da forma mais amena,
mais cordial ou mais externa com que os entrevistados se referem às profis-
sões que atuam no mundo do Direito. Esta distância é detectada principal-
mente na hierarquia ocupacional. O contato entre auxiliares judiciais e juízes
é espacialmente próximo, mas é socialmente distante. As questões que provo-
cam a manifestação de opiniões mais veementes e conflituosas são aquelas
cuja proximidade profissional as coloca em disputa, seja jurisdicionalmente,
seja negando-lhe a aceitação desejada através da contestação contínua.
Os casos de competição interprofissional identificados com mais
freqüência na amostra entrevistada tem uma direcionalidade na hierarquia das
profissões que reproduz a da estrutura social: são os imediatamente inferio-
res, seja em poder ou em prestígio social, que mais colocam em questão as
posições dos que estão próximos, mas num patamar acima nesta escala de
força profissional e institucional. Assim, a tensão maior da Magistratura está
voltada para o Poder Legislativo, que cria as leis a serem aplicadas pelo Poder
Judiciário. Na divisão de poder entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário,
este último é o que obtém a menor cota.
Os promotores se tensionam prioritariamente com os juízes, co-
mentando com certa ironia a característica passiva deste poder. Nesta linha, se
juntam os advogados, acrescentando a crítica que procura acentuar o aspecto
de funcionário público acomodado e moroso às carreiras do Poder Judiciário.
Os delegados de polícia manifestam sua ‘irritação’ com os membros do Mi-
nistério Público e com as conquistas mais recentes dessa corporação, que au-
mentam inclusive o poder dos promotores sobre os delegados. Os funcioná-
rios de cartório concentram sua artilharia contra os advogados, caracterizan-
do alguns como desconhecedores dos trâmites legais. Em geral, estes funcio-
nários são bacharéis em Direito.
Exemplos da competição interprofissional com esta direcio-
nalidade, dos imediatamente abaixo para os que estão logo acima, são
reproduzidas a seguir.
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Depoimentos de magistrados referindo-se ao Poder Legislativo:


Acredito que muitos processos têm uma tramitação muito morosa, que
é por força da própria legislação que é ultrapassada. Quem faz a lei é o depu-
tado e o senador. Nós trabalhamos com o instrumental legal que temos à dis-
posição...
É discutível que um deputado que possa estar com processo de cassa-
ção esteja fazendo a fiscalização do Judiciário. A questão é saber qual legiti-
midade, qual moral teria essa pessoa... Então, embora eu não seja contra esse
controle (controle externo do Poder Judiciário), eu sou contra a forma que está
se pretendendo criá-lo, talvez até como instrumento de pressão política.
Depoimentos de promotores públicos a respeito da Magistratura:
Eu prestei concurso para o Ministério Público e a Magistratura e fui
aprovado nos dois... Fiz opção pelo Ministério Público por diversos fatores:
em 1º lugar, porque o MP não tem funcionários subalternos. O promotor é
aquele que exerce sua atividade sozinho. Todo o trabalho que tem que ser re-
alizado é por ele efetuado e por mais ninguém. Então, não existe aquela preo-
cupação de policiar o desempenho dos funcionários; em 2º lugar, porque o
promotor é um fiscal da lei, ele não é um órgão inerte. Ele tem sempre que
estar efetuando atividades para que o juiz possa julgar; em 3º lugar, entre pro-
motor e juiz não existe nenhuma diferenciação nos vencimentos, nas garanti-
as, nas carreiras e o promotor tem um amplo campo de atividade. Daí, então,
ter me interessado pela carreira no Ministério Público. E também tem mais
um porém: eu gosto muito de atuar no Tribunal do Júri e como juiz eu não
teria essa opção, uma vez que o juiz tão somente preside os trabalhos. Daí minha
escolha pelo Ministério Público.
Entre promotores e juízes há uma recíproca fiscalização. Toda condu-
ta que eu faço vai para apreciação do Judiciário. Passa pelo crivo do juiz, que
se discordar, achar que o crime era de vulto relativamente grave e não deve-
ria conceder remissão, ele deve fazer as razões dele e remeter ao procurador-
geral, que funciona como o chefe do Ministério Público. Se ele achar que o
juiz tem razão, ele pode designar outro promotor para tomar aquela provi-
dência que o juiz achava que eu devia ter tomado. A mesma coisa acontece
com as decisões judiciais. Eu tomo ciência e se não concordar com a medida
que o juiz adotou, eu recorro ao tribunal, que funciona como o órgão superior
ao juiz de primeiro grau, ele pode reformar aquela decisão dele e aplicar a
medida que eu postulei e o juiz não aplicou. Então, há realmente, um sistema
de freios e contrapesos. Eu diria que existe uma fiscalização recíproca entre
ambos.
Depoimentos de advogados sobre a Magistratura:
Eu entendo que o controle externo da Magistratura é importante...
Quando a Ordem defende este controle, eles não estão simplesmente enten-
dendo que a sociedade como um todo deve participar do conjunto de medidas
que regem o Judiciário com maior transparência... A sociedade tem que to-
mar conhecimento. Afinal de contas, é o Estado que paga, é a sociedade que
paga. Ela tem que saber como ela está pagando e porque... O controle externo
seria por uma maior tramitação da justiça, melhor funcionamento dos cartó-
rios e questão de prazo.
O juiz, geralmente, o magistrado, ele fica bitolado. Ele não tem as ja-
nelas abertas para a vida, ele fica bitolado dentro da lei e dentro da jurispru-
dência. Ele fica como um autômato diante dessas circunstâncias da jurispru-
dência e da lei, da aplicação da lei e da jurisprudência do tribunal, que valem
mais do que as próprias leis objetivas: penal, processual, cível, comercial, todos
os ramos da advocacia. São intermináveis.
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Depoimentos de delegados de polícia sobre os promotores públicos:


Os delegados não são, assim, um grupo tão unido. Tem a sua união,
mas é uma união um tanto quanto frágil. Tanto que as reivindicações da ca-
tegoria raramente são aceitas e cada ano que passa a carreira está perden-
do mais apoio e mais prestígio e mais força de trabalho, tendo em vista jus-
tamente a falta de união. Nós podemos traçar um parâmetro com o MP, por
exemplo, os delegados de polícia e os promotores. Você retornando 10, 15
anos atrás e comparando a força de um delegado de polícia com a força de
um promotor público, não existia termo de comparação. O delegado era mui-
to mais forte, tinha mais força, muito mais poder. Era muito mais atuante do
que um promotor público, que sempre ficava ali, à margem. Mas a união do
MP é muito poderosa. Eles são uma classe muito unida, tanto que hoje se
equiparam financeiramente aos juízes e passaram a léguas de distância os
delegados de polícia em termos de poder, de força, de prestígio.
Existem grupos radicais entre promotores e até entre juízes, no sen-
tido de adquirir a subordinação da Polícia Judiciária a eles. Mas desde o
início do Código do Processo Penal que existe o inquérito policial e ele é
presidido pelo delegado, que é bacharel em Direito, igual ao promotor e ao
juiz. Então, não tem que existir vinculação hierárquica, nem administrati-
va, nem judiciária. Eu acho que tem que haver uma conjugação entre as três
atividades e o delegado ser reconhecido como realmente é: um bacharel em
Direito, igual ao juiz e igual ao promotor. A faculdade que nós fazemos é
igual à faculdade que eles fazem. Não existe bacharel de segunda ou pri-
meira categoria, nem sangue azul ou sangue verde; todos são iguais. Exis-
tem grupos radicais entre juízes e promotores que entendem que a polícia
deve ser subordinada a eles...
Depoimento de funcionários de cartório sobre advogados e pro-
motores públicos:
Tem advogado, às vezes, recém-formado que é difícil a gente traba-
lhar. Às vezes, vem fazer pergunta para o escrevente, ver como que funciona
um processo... Então, isso tem uma certa influência. Também deveria ser
mais rígido o controle da seleção... É o advogado que tem que saber como
funciona um processo e não o escrevente. Então, isso dificulta a gente...
Quem manda, quem determina, quem dá as ordens no cartório é o
juiz de Direito. Quer dizer, não é o promotor. O promotor vai requerer por
escrito. Se tiver que tomar alguma medida, é o juiz. É isso que acontece via
de regra. O promotor não manda. Quem determina é o juiz corregedor. O
promotor pode requerer alguma coisa, para que o juiz tome essa medida.
Aí, sim, se o juiz entender que a medida deve ser tomada, ela vai ser feita.
Mas, diretamente, nós não estamos ligados ao promotor.
Se há uma competição interprofissional partindo daqueles que es-
tão em posições próximas, mas inferiores, que é alimentada pelos valores
dominantes na estrutura social brasileira, há a perspectiva inversa, embora
ela seja registrada em menor grau. A reação daqueles que estão nas posi-
ções superiores se manifesta quando seus competidores conseguem repre-
sentar ameaças, dada alguma vulnerabilidade, algum ponto sensível que
evidencia a fragilidade da posição superior, em relação ao competidor. Des-
ta forma, aquela profissão que pretende conquistar mais força corporativa
para a sua atividade ajuda a difundir uma imagem pública negativa dos que
ocupam a posição mais cobiçada. A competição interprofissional se proces-
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sa mais intensamente nos dois sentidos quando há possibilidades concretas


de ameaças. Nestes casos, ela é observada em todas as profissões envolvi-
das na competição, tanto de baixo para cima quanto de cima para baixo na
hierarquia profissional. O que a caracteriza e dá origem é a proximidade das
posições ocupadas, e o que a intensifica é a possibilidade de conquistar
novas áreas de domínio profissional.
Assim, ela pode ser observada nos depoimentos dos entrevistados,
em situação inversa da verificada acima, partindo agora dos que estão em
posições superiores referindo-se aos que, embora estejam ocupando posições
inferiores, estão muito próximos ou estão em situação cujas questões que são
objeto de disputa ainda não se transformaram em conquistas monopolizadas
por nenhum dos competidores.
Entre os juízes e os promotores, observa-se uma competição maior
partindo destes últimos para os primeiros. Uma parte dos juízes entrevistados
sequer identifica a pressão e a ameaça vinda dos promotores. Seus olhos estão
principalmente voltados para o problema com o Legislativo, para a discussão
sobre controle externo do Poder Judiciário e as acusações de morosidade.
Apesar disto, registramos intensas reações às ameaças que a nova posição do
Ministério Público pode representar, colocando para os juízes a necessidade
de reforçar a distinção e a superioridade de sua função.
Situação semelhante pode ser observada na reação dos magistrados
às visões dos advogados sobre o Poder Judiciário que, recentemente, enfren-
tou o tensionamento da competição interprofissional na questão do controle
externo do Judiciário e da obrigatoriedade ou não da presença de advogados
nos processos encaminhados aos Juizados Especiais de Pequenas Causas.
Depoimentos de juízes sobre promotores:
Eu não vou entrar a fundo naquilo que eu acho pessoalmente porque
é até deselegante falar da carreira do outro. Acho que o MP , ter uma estru-
tura, uma reforma, alguma outra situação que dê outro caminho para o MP
Não só ficar aí, além de propor a ação penal, ter uma atividade mais direta
junto ao processo em si. Para o MP ter uma ação mais direta nos processos
da polícia, ser até mais atrelado à polícia no aspecto penal. Não ficar sim-
plesmente aguardando o que o delegado faz, para depois dar a seqüência.
O MP tem que participar mais direto das investigações, atingir mais o in-
vestigado (...). Agora, no Brasil, o MP fica esperando, embora podendo pe-
dir diligências, fica esperando, esperando acontecer...
O Ministério Público, na minha opinião, é um poder que atrapalha.
Ele não faz nada, atrapalha. Houve um tempo que não existia MP Os advo-
gados eram nomeados pelos juízes. Isso nos anos 20, 30, e ofereciam de-
núncias nas versões penais e o processo funcionava tão bem ou melhor que
hoje. De forma que minha opinião sobre o MP não é muito interessante...
Mas o que eu questiono em relação ao MP é a finalidade da instituição. Ago-
ra, evidentemente que existem homens de bem e valor no MP. O que eu não
concordo é com a instituição em si, da forma que ela está sendo levada e
conduzida hoje, como também existe o Ibsen Pinheiro, que é promotor pú-
blico. Ele ganhou um apartamento onde ele mora e não sabe de onde veio...
Eles querem sob todos os aspectos se transformar no 4º poder. Eles querem
chegar ao lugar do juiz, sem serem juízes e isso é ruim para o povo. O que o
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povo precisaria, no meu modo de ver, seria um MP que fosse atuante dentro
de sua função específica, que era a proteção do interesse coletivo.
Depoimento de um magistrado sobre os advogados:
O advogado hoje, infelizmente, eu acho que, como em todas as car-
reiras, o nível caiu muito, o nível do ensino caiu muito. Então, não é uma
questão de péssimos advogados. Eu acho que existem péssimos médicos,
dentistas, enfim, acho que toda profissão, toda carreira hoje, não sei se as
pessoas chegam muito fácil ou se proliferaram as faculdades. Isso faz com
que aumente o número de profissionais em cada área, então há uma perda
da preparação. Eu acho, como em todas as carreiras, há um decréscimo da
formação profissional. Infelizmente nós temos visto trabalhos ruins porque
os novos não estão bem preparados. Os advogados antigos, a gente percebe
que eles se formavam com outro conteúdo, com outro preparo. Hoje não. O
advogado se forma, pensa que é advogado, vai advogar e o trabalho dele eu
acho que é um trabalho muito difícil de executar. Às vezes parece fácil na
prática, que ele se formando e tendo uma máquina de escrever ele pode
peticionar, mas o trabalho que o advogado faz fica escrito, e qualquer um
pode vir e examinar as falhas profissionais... Se o advogado move uma ação
ruim, fica escrito. Ninguém vai conseguir apurar que o médico errou na sala
de cirurgia, ao passo que outro profissional da mesma área vai verificar que
o advogado errou naquele processo, entrou com a ação errada... A advoca-
cia é uma profissão difícil de se exercer porque aquilo que a gente escreve
fica arquivado, e amanhã qualquer um pode chegar e ver o erro, a imbecili-
dade do advogado em questão. Então, é muito difícil no dia a dia.
Depoimentos de promotores públicos sobre os delegados de polícia:
A polícia, eu acho que ela é um pouco lenta, ela tem retardado um
pouco as investigações, mas decorrente do próprio excesso de trabalho. Se
lá existe lentidão, aqui já existe uma pressa bem maior.
Na polícia existe corrupção, principalmente nos grandes centros. É
preciso haver um controle muito grande para evitar a corrupção. Na Magis-
tratura a corrupção é coisa raríssima, então, na polícia é mais comum, infe-
lizmente. O grande problema da polícia é esse daí: corrupção. Mas, não ge-
neralizando, dizendo que todos são corruptos, mas é preciso um controle bem
grande, porque eles estão trabalhando numa atividade que é muito propícia.

O conflito com o poder legislativo

Esta questão unifica os profissionais do campo da justiça, que se


aglutinam em torno do Judiciário, para manifestar seu descontentamento com
o Legislativo, principalmente no que se refere ao estado da legislação e das
leis processuais, consideradas ultrapassadas e inadequadas para o andamento
eficaz do sistema judiciário. Promotores, advogados, delegados de polícia,
funcionários de cartório, todos se juntam aos magistrados identificando as
acusações de morosidade da justiça como responsabilidade do Poder Legislativo
e dos instrumentos legais à disposição. Portanto, se há pontos de tensão entre as
profissões vinculadas ao mundo do Direito, há pontos de união, de interesses
comuns, que configuram este universo como um sistema profissional específi-
co, como um campo próprio que chamamos aqui de mundo da justiça. Os con-
flitos com o Legislativo dão a dimensão de que os profissionais do Direito vin-
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BONELLI, Maria da Gloria. A competição profissional no mundo do Direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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culados ao Judiciário constituem um campo diferenciado dos demais.


Opiniões dos membros do Ministério Público sobre o Legislativo:
Uma parte dessa crise vem das leis processuais, que permitem mui-
tas vezes recursos intermináveis. Então, as leis tinham que se aperfeiçoar
no sentido que estamos presenciando agora com a criação dos Juizados de
Pequenas Causas.
No tocante à morosidade da justiça, isso é um problema legal, não é
problema praticamente da justiça, mas um problema de lei, onde existem pra-
zos estipulados que devem ser observados. Além, obviamente, da necessi-
dade do advogado, por exemplo, em obediência ao princípio do contraditório.
Aí existe interesse do advogado em procrastinar o andamento do feito. É isto
que traz lentidão...
Opiniões de um delegado de polícia a respeito da ação do Legislativo:
No aspecto criminal, eu acho que se deveria atacar principalmente
o sistema penitenciário, porque nós estamos atacando, o legislador está ata-
cando o processo ao contrário. Em vez de procurar retirar da sociedade o
delinqüente e procurar recuperá-lo, eles estão investindo nesta parte e afrou-
xam as leis. Então, dá abertura dentro das leis penais para que o juiz e até o
promotor pleiteiem a liberdade do delinqüente sem ele estar recuperado. Até
por pena da pessoa, de recolhê-lo a uma cadeia pública, a uma penitenciá-
ria, a uma casa de detenção, e isso prejudica a sociedade que é obrigada a
conviver com o delinqüente na rua e em alta rotatividade, porque o delin-
qüente pratica o crime, é preso pela polícia, vai para a cadeia, passa por um
estágio lá dentro para se aperfeiçoar e é solto pela justiça, porque a própria
lei permite e o indivíduo volta para a sociedade para delinqüir novamente...
Então, eu acho que o sistema jurídico, os legisladores deveriam dinamizar
as cadeias, as penitenciárias, aumentar o suficiente para acolher todos os
delinqüentes, inclusive os menores de idade, mas no sentido de recuperá-
los, de educá-los, de fornecer trabalho para eles lá dentro como uma tera-
pia ocupacional. Obrigar a cumprir a pena realmente e o sistema processu-
al ser mais rígido, muito mais rápido. Está sendo ao contrário. Eles afrou-
xam é o sistema processual, que o indivíduo que é preso em flagrante hoje,
amanhã ele é solto, não porque o juiz quer, não porque o promotor quer,
porque o legislador fez a lei afrouxar o sistema processual.
Opiniões de advogados sobre a atuação dos legisladores:
O Poder Legislativo não legisla de acordo com o hodierno político,
criminal, social. Eles, os nossos legisladores que são deputados no âmbito
federal, estadual e mesmo no âmbito municipal, têm dificuldades em elabo-
rar leis com a perfeição que nós desejamos. Não existe essa perfeição. Exis-
tem muitos tropeços e muitas dificuldades que eles encontram e não têm o
anteparo necessário para que as leis sejam mais céleres e mais consentâneas
com a realidade da sociedade.
Tudo gira em torno da legislação. O juiz tem que se ater à legisla-
ção, o promotor também, todos que trabalham na vida judiciária, eles têm
um rito a observar e o rito é estabelecido por lei. Então, se o rito fosse sim-
plificado seria melhor.
Opiniões de funcionários judiciais sobre a legislação:
Eu percebo que a morosidade não está, assim, nitidamente na jus-
tiça em si, mas nas leis, porque as leis concebem prazos muito longo para
determinado tipo de procedimento, dentro do andamento do processo. Os
juízes, naturalmente, têm que respeitar as leis, os promotores também e

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eles fazem isso. Então, a morosidade não é deles na verdade, é própria das
leis mesmo.
As pessoas aqui fazem o que podem. Tem pessoas que reclamam do
Judiciário, mas a lei emperra muita coisa... Se a lei é falha, eles têm como
escapar mesmo. Um maior rigor na lei consegue amenizar um pouco a mo-
rosidade... O sistema americano é diferente. O cara é preso e em nove dias
ele é julgado. Já é diferente do nosso, os nossos processos têm ritos dife-
rentes. O nosso é assim e funciona desse jeito. Nós temos que nos enqua-
drar nesse sistema de andamento de processo...
As disputas entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo se agu-
çaram com a Constituição de 1988, já que este foi um momento de modifica-
ção na legislação e na distribuição de forças entre as instituições que atuam
no campo da justiça no Brasil. No momento da realização da pesquisa, as
tensões entre os dois poderes estavam sobrepondo-se às tensões do Judiciário
com o Executivo porque se colocava a oportunidade de alteração na Consti-
tuição através de sua revisão. As possibilidades de mudanças reacenderam as
disputas e a defesa dos interesses específicos entre as diversas instituições
envolvidas com a questão da justiça – como a Magistratura, o Ministério Pú-
blico, as Delegacias de Polícia e a OAB – e os diferentes lobbies no Legislativo.
Embora esse momento específico seja muito propício às tensões
entre o Judiciário e o Legislativo, por ser uma ocasião de disputa jurisdicional,
a mudança na composição ocupacional dos membros do Congresso Nacional
pode ter alguma influência no aumento da tensão entre estes dois poderes.
Esta hipótese, que requer investigação à parte, focaliza a diminuição no nú-
mero de legisladores com formação em Direito como um fator capaz de inten-
sificar os conflitos entre os dois poderes, mesmo sabendo-se que tais tensões
se originam na esfera da política e da relação entre os poderes, questões que
extrapolam a dinâmica profissional. Entretanto, uma bancada no Congresso
com uma participação menor de advogados que viveram uma socialização
profissional e um treinamento ideológico nos valores do mundo do Direito,
partilhando sentimentos comuns típicos do processo de formação profissio-
nal, pode atuar como tensionador e como diversificador desse corpo de legis-
ladores, que experimentaram outras vias de socialização nas suas trajetórias
anteriores ao ingresso no parlamento.
A mudança na composição ocupacional dos membros da Câmara
Federal é uma evidência de como este fator pode ajudar a tensionar as rela-
ções entre o Judiciário e o Legislativo, em momentos mais críticos desses
4
embates institucionais. Na legislatura de 1967-1971, a Câmara Federal con- Dados extraídos de
Deputados Brasilei-
tava com uma participação de quase 50% de deputados com formação em ros, 6º Legislatura,
Direito4. Na legislatura de 1991-1995 esta participação caiu para 1/35. A di- 1967-1971, Biblio-
versificação profissional entre essas duas legislaturas materializa-se no total teca da Câmara dos
Deputados.
de profissões declaradas pelos deputados, tendo a primeira cerca de 30 ocupa- 5
Dados extraídos de
ções e a segunda 45. Além disto, observa-se um aumento neste último perío- Folha de S. Paulo,
18/09/94, Caderno
do de deputados economistas, engenheiros e daqueles com ocupações prove- Especial “Olho no
nientes dos estratos sociais menos privilegiados. Voto”.

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BONELLI, Maria da Gloria. A competição profissional no mundo do Direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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A competição intraprofissional

O outro tipo de competição que movimenta o mundo do Direito


refere-se às disputas e tensões vivenciadas pelos pares no interior da profis-
são a que pertencem. As distintas posições que compõem a profissão, que se
apresenta estratificada em diferentes subgrupos, pode inclusive favorecer a
segmentação por gênero, etnia ou geração, com grupos profissionais mono-
polizando critérios de seleção de novos pares, introduzindo novas discrimina-
ções e multiplicando conflitos entre seus membros. A idéia central no concei-
to de competição intraprofissional opõe-se à visão da profissão como um gru-
po coeso, com uma única identidade coletiva. Ele procura mostrar esta cons-
trução como uma perspectiva ideológica, que se propõe a fortalecer a profis-
são como corporação. Isto não significa que tal estratégia obtenha sucesso em
anular as tensões decorrentes dos diferentes lugares existentes na hierarquia
interna do campo profissional, mas ela é bem sucedida em gerar o sentimento
de pertencer a uma corporação e a um grupo profissional apesar dos conflitos
internos.
As associações profissionais e os demais órgãos de classe enfatizam
a construção desta identidade comum, mas a estrutura profissional se encarrega
de dificultar tal percepção, gerando disputas e competições intraprofissionais.
Os recursos de poder profissional que estas entidades controlam reforçam a
adesão a elas. Entretanto, as associações constroem sua legitimidade junto aos
seus filiados através da ênfase no papel político e social que o grupo profissio-
nal desempenha, buscando reforçar os laços profissionais minados pelos confli-
tos internos, decorrentes das distintas posições na hierarquia da profissão.
Há, na percepção dos profissionais, a sensação que sua atividade
possui maiores dificuldades de agir como um grupo unido, identificando na-
queles um pouco mais distantes uma integração maior, uma ação coletiva mais
eficaz, um sentimento de comunidade maior. Esta é uma característica decor-
rente da proximidade com que o profissional focaliza seu grupo e do
distanciamento com que vê o outro. Assim, a perspectiva de sua visão é dis-
tinta num caso e noutro. Para o seu grupo de pertencimento, ele utiliza uma
lente de aumento, já que o conhece por dentro. O grupo ao qual atribui um
poder maior de organização e força é geralmente visto de fora, com menos
conhecimento da situação interna, o que permite construir esta visão de maior
unidade e poder. As lentes utilizadas para examinar ambas as situações têm
capacidades distintas, alterando o resultado encontrado. A competição
intraprofissional é detectada tanto nas profissões mais fortes quanto nas mais
fracas, embora possa ter efeitos diferentes em cada uma delas.
O que garante a força profissional não se reduz a uma questão de
unidade a priori como se os interesses fossem comuns por natureza ou por
decreto. É necessário controlar outros fatores, como a seleção do grupo, o
monopólio do exercício profissional, o controle do mercado de trabalho, a
autonomia profissional, a capacidade de criar o problema que a profissão se
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BONELLI, Maria da Gloria. A competição profissional no mundo do Direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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propõe a solucionar através da produção de conhecimento abstrato, a titulação


superior e as credenciais que diferenciem seu possuidores. A conjugação des-
ses fatores mostra-se muito mais eficaz para o poder profissional do que a
perspectiva de uma única identidade comum.
Vejamos como a competição profissional se manifesta em cada
profissão estudada.
A Magistratura
Entre os magistrados, tal competição foi identificada de duas for-
mas. A primeira delas reflete uma tensão entre primeira e segunda instâncias
do Poder Judiciário, que se materializa nos cargos de juiz e desembargador,
dois patamares da estrutura hierárquica da carreira, embora os juízes cons-
truam uma lógica para a profissão, onde eles se apresentam como indepen-
dentes e sem nenhuma autoridades acima da sua, já que eles têm plena auto-
nomia para julgar. A noção de justiça se alicerça na independência do juiz
para julgar. É na primeira instância que o juiz julga um processo. A segunda
instância é outro grau de jurisdição. Nela, julgam-se os recursos. O juiz deixa
de judiciar nos processos e passa a julgar recursos de processos. Em todas as
entrâncias da primeira instância o juiz julga processos, ouve as partes, colhe
testemunhas. Na segunda instância, os tribunais rejulgam ou reavaliam a de-
cisão do juiz através do recurso, se a parte que não está satisfeita com a deci-
são assim desejar. Não cabe ao tribunal fiscalizar o juiz de primeira instância.
Este papel pode ser exercido pela Corregedoria Geral da Justiça e pelo Conse-
lho Superior da Magistratura. Os juízes não possuem um chefe. Esta é uma
das características da autonomia profissional, mas um desembargador tem
mais prestígio social e força na corporação, representando uma etapa acima
na carreira da Magistratura. Essa tensão, quando captada nas entrevistas, apa-
recia como uma forma dos informantes referirem-se a alguma lentidão maior
no andamento dos processos na segunda instância e não na primeira instância
aonde eles atuavam.
Outra forma de competição registrada nas entrevistas auxilia a cons-
trução de uma imagem pública séria, competente, dedicada ao trabalho, com
vocação para a carreira de juiz. Tal identidade faz contraponto com o compor-
tamento daqueles magistrados que mais se assemelham ao lado negativo do
funcionário público, que despacha o mínimo necessário para continuar sua
trajetória sem maiores problemas éticos ou de desempenho. Há alguma asso-
ciação entre a trajetória profissional anterior ao ingresso na Magistratura e
esta auto-imagem, mas ela não pode ser reduzida a isto. Entre os que tiveram
experiência na advocacia, a demarcação com o padrão funcionário público
parece mais intensa do que entre os que fizeram sua carreira anterior apenas
no cartório.
O juiz funcionário é uma construção do outro. É uma forma de usar
o estereótipo para se diferenciar. É uma maneira de falar de si mesmo como
ativo, dedicado, trabalhador, com uma carga diária de 12 horas de serviços,
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levando processo para casa nos fins de semana. Ninguém se identifica na po-
sição do funcionário que faz corpo mole no trabalho. Ela serve para reforçar a
dedicação, a vocação, a competência, a melhor qualificação e o merecimento
de tal posição profissional prestigiada.
Sou vocacionado para a Magistratura e enquanto advogado tinha o
maior prazer em advogar, mas senti que era o momento de eu conseguir ser
juiz... Todo juiz deveria, necessariamente, ser previamente advogado por um
período de no mínimo cinco anos, com muita dedicação... O juiz, ele tem uma
carga de serviço que vai muito além daquilo que seria o ideal. O juiz tem
que trabalhar diariamente de 12 a 14 horas. Eu estou falando de juiz que
trabalha. Não estou falando de alguns que tem realmente uma exceção que
não é muito ligada em trabalho, não é vocacionada e deveria estar em outro
ramo, menos na Magistratura. Mas a maioria ainda é dada a trabalhar...
Os juízes que vieram de uma carreira relativamente curta como ad-
vogado, eles sabem conduzir melhor os processos, sabem decidir melhor,
têm mais sensibilidade, mais vivência e, principalmente, ele sabe olhar os
dois lados. Ele sabe olhar o lado da Magistratura, do poder público, mas
também sabe olhar o lado do advogado, que, até por dispositivo legal, é um
auxiliar da justiça. Ele não é um estranho. Essa interação entre Poder Judi-
ciário e o advogado tem-se bem. É diferente de um juiz, por exemplo, que
saiu dos quadros de funcionário do fórum, porque ele era funcionário e via,
de um modo geral, o advogado como um adversário, porque para o funcio-
nário o advogado que faz pedido de balcão, ele vê o advogado como adver-
sário, alguém muito chato, que só enche o saco, aborrece, que só faz pedi-
dos esdrúxulos. Enfim, quando ele entra, passa em concurso, ele continua
mais ou menos com a mesma visão do advogado. Ele nunca foi advogado e
se ele nunca exerceu a profissão, ele não sabe como funciona e não sabe o
aperto do advogado em certas ocasiões... A minha experiência diz que, com
algumas exceções, aqueles juízes que vieram dos quadros da advocacia são
excelentes, são bons juízes. Aqueles outros que vieram da faculdade direto
para a carreira por concurso ou vieram de cartório deixam a desejar um
pouco, pelo menos no começo.
As Delegacias de Polícia
A competição intraprofissional detectada entre os delegados de po-
lícia manifestou-se principalmente de quatro formas:
a) hierarquicamente, captada nas críticas à política de promoção.
Neste caso, observamos críticas de delegados que ascenderam por tempo de
serviço feitas aos que obtiveram promoção por merecimento. Há uma demar-
cação claramente negativa deste padrão de comportamento, associando os
promovidos por mérito com a politicagem, o “puxa-saquismo”, enquanto a
promoção por antigüidade obtém o reconhecimento legítimo neste grupo. A
promoção por mérito aparece como um fator de ressentimento entre os que
não galgam tais posições. Talvez eles estejam mais concentrados no interior
do que na capital.
Existem dois modelos (de ascensão na carreira): primeiro, por anti-
güidade, e segundo, por merecimento. Por antigüidade, abrem-se as vagas.
Os mais velhos, a metade dos candidatos vão por antigüidade. Então, os mais
velhos vão subindo hierarquicamente. A outra metade é composta de puxa-
sacos, maçanetas e outros puxas mais. Estou falando a verdade, só progri-
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dem desta forma os puxa-sacos, maçanetas e outras coisas mais. A minha


(carreira) é efetivamente trabalhada, eu não estou na ala dos puxa-sacos,
isto eu garanto.
b) entre a geração formada a partir da democratização do país e
aqueles treinados no momento de repressão associado aos governos militares.
Os que demarcam mais esta diferença valorizam o trabalho baseado no co-
nhecimento, no estudo das leis, em uma certa erudição, na imagem da delega-
cia como um lugar para ajudar a população em vez de ser temida por ela, uma
instituição a ser procurada, capaz de atrair o cidadão.
Na época de repressão, os direitos individuais quase sempre são es-
quecidos. Isso é óbvio, né? E hoje, a formação do delegado de polícia é com-
pletamente voltada justamente para respeitar os direitos individuais. Pode
observar, hoje em dia, o delegado de polícia, antes de autuar alguém em fla-
grante, ele toma muito cuidado antes de fazer isso aí. Antigamente não se
pensava muito, certo? Então já se respeita. A Constituição indica vários di-
reitos do cidadão, no caso que está sendo autuado, ou que está sendo acusa-
do da prática de algum crime. Esses direitos todos são observados com pres-
teza, sob pena de estar também incorrendo aí num abuso de autoridade, num
abuso de poder, porque a própria lei hoje exige que seja assim. Não tem ou-
tro jeito. Nós não temos como trabalhar de forma diferente disso hoje. Te-
mos que trabalhar em cima do que reza a Constituição e as leis. Já a Cons-
tituição daquela época é diferente. Hoje, a Constituição tem um rol de direi-
tos inimagináveis... Hoje, um processo por abuso de poder ou de autorida-
de, com certeza, vai prejudicar a sua progressão na carreira, sem dúvida,
mas não digo assim, abuso de poder ou de autoridade, mas um eventual en-
gano, erro ou talvez abuso de um policial quando ele está em meio de uma
ocorrência. Isso não é tão mal visto quanto um outro delito praticado con-
tra o patrimônio, por exemplo, pelo funcionário público. Esse sim, prejudi-
ca sobremaneira a vida funcional... Esses delitos (contra o patrimônio,
corrupção, peculato) causam muito mais rejeição, é mais difícil de aceitar.
c) entre os delegados com perfil mais operacional e os mais volta-
dos para a atuação de rua, diferença pautada na experiência profissional ante-
rior na delegacia, dada pelas atividades de escrivão e de investigador. De certo
modo, esta forma de competição se interliga àquela das diferenças geracionais,
com uma preferência pelo trabalho cartorário em detrimento do investigativo,
pelo menos nesta região do interior do Estado.
O melhor para o delegado seria ter sido escrivão, porque o escri-
vão conhece o inquérito, conhece como proceder no cartório. O investi-
gador não, o investigador trabalha na rua, faz mais serviço de rua. Então,
é mais difícil para ele aprender como se manuseia o inquérito... A imagem
do delegado mudou. Mudou porque a população está muito descrente. Ela
não acredita mais na polícia. Antes acreditava mais. Não sei se por impo-
sição, não sei o porquê, mas ela acreditava mais na polícia... Os antigos
tinham mais respaldo na lei, né? Hoje está muito difícil de trabalhar na
polícia. Antigamente você falava: sou polícia. O cara te respeitava. Hoje
dão risada e, certo? (...) A lei dificultou um pouco não, ela dificultou total-
mente, porque com a criação dos direitos humanos, não que não tenha que
ter direitos humanos, mas os direitos humanos teriam que ser para todos e
não só para os marginais (Foi investigador por muitos anos em São Paulo.
Ingressou como delegado 10 anos depois de formado em Direito. Estava no
início da carreira, em Branca e esperava voltar para a capital)
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d) uma demarcação da distinção entre a atuação do delegado no inte-


rior do Estado e na capital. Procura-se construir uma relevância maior para o
trabalho do interior diante da prioridade da capital sobre as cidades menores,
fato que se verifica em quase todos os campos de atividade profissional.
Na capital você é um lugar comum, você é uma pessoa, você não tem
um destaque, você é um a mais na multidão. Você vai, você trabalha, você
faz o seu plantão, volta para a sua casa e esquece que existe plantão, dele-
gacia, polícia... No interior é completamente diferente. No interior você já
não tem uma vida privada, com tanta liberdade. Você é mais vigiado, você é
localizado com maior facilidade, você precisa estar sempre atento aos pro-
blemas da comunidade. Na capital você tem mais violência e mais liberda-
de. No interior você tem menos violência, em compensação você tem menos
liberdade. Você é mais marcado. Você é uma pessoa destacada. Você tem que
saber o que fazer porque vai ter muita gente que vai estar te olhando... Ago-
ra, é claro, é muito mais fácil você subir por merecimento na capital, que
existe muito mais casos de maior relevância do que no interior... Um polici-
al que resolve um caso envolvendo uma pessoa de maior destaque vai ter
muito mais repercussão interna do que um outro delegado, que resolveu um
caso de uma pessoa que não tem destaque na sociedade.
Observamos também alguma tensão entre a delegacia da mulher e
as demais. A informante deixou evidente que sua atividade é vista como algo
menor, no interior da profissão, se comparada com as questões que são en-
frentadas pelos delegados. A discriminação da mulher afeta a atividade da
própria delegacia.
A única coisa que eu costumo reclamar é sobre a maneira que a ad-
ministração encara a delegacia da mulher. Isto é uma coisa que às vezes me
incomoda bastante. Embora eu ache que os colegas da administração fa-
çam tudo para que a gente não se sinta assim, eu acho que há uma discrimi-
nação por parte dos próprios colegas e por parte da administração... Eu ob-
servo que algumas delegacias recebem muito mais reconhecimento, muito
mais apoio. Aquela delegacia sempre tem maiores necessidades, ela é mais
importante, ela precisa mais. Então, quanto ao trabalho da delegada, das
funcionárias da delegada, é aquela coisa de que ‘isso é uma bobagem qual-
quer, marido e mulher, sabe? Isso aí não dá, isso aí não tem peso social. Tan-
to mais a mulher vai brigar a vida toda, a mulher vai apanhar sempre do
marido, sempre, desde que o mundo é mundo isto acontece, sabe?’ Inclusive
e porque tirou dos distritos esse tipo de problema, porque ninguém quer aten-
der, ninguém gosta de lidar com esses problemas e porque a delegacia da
mulher tem uma função muito especial. Acho que a maior atividade da dele-
gacia da mulher é a social porque ela atende esse tipo de problema: famili-
ar. Eu acho que a delegacia da mulher deveria ter um aparato maior, inclu-
sive com profissionais melhor preparadas, eu diria assim: uma assistente
social, uma psicóloga que pudessem atender...
Os cartórios judiciais
Observamos três padrões de competição intraprofissional entre os
funcionários vinculados ao fórum:
a) da parte de funcionários antigos em relação aos novos, demar-
cando sua experiência, sua relevância, seu esforço e sua superioridade,
enfatizando a falta de conhecimento dos que chegam;
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b) entre os auxiliares judiciários e os escreventes, onde os primei-


ros procuram reforçar sua qualificação ao desqualificar o cargo imediatamen-
te superior e
c) entre as posições de chefia e os oficiais de justiça. A proximida-
de hierárquica dessas duas ocupações é que gera a possibilidade de disputa.
É justamente porque os oficiais de justiça não são subordinados
aos diretores de cartório que se cria a oportunidade de uma disputa efetiva. A
situação dos auxiliares judiciários em relação aos escreventes é semelhante,
embora eles estejam um degrau abaixo do escrevente na estrutura de cargos
dos cartórios judiciais. Este lugar de fronteira inferior aparece no discurso dos
auxiliares judiciários quando procuram descaracterizar alguma competência
maior nos ocupantes das posições de escrevente. A negação da diferença evi-
dencia a hierarquia dos cargos, onde os auxiliares judiciários ocupam um pa-
tamar inferior ao dos escreventes.
A crise do Judiciário que eu acho que poderia existir seria, por exem-
plo, uma parte diz respeito à admissão de funcionário. Seria muito mais rá-
pido um funcionário aprender o serviço que ele faz, que ele irá fazer no caso,
se ele soubesse na prática exatamente como lidar com um tipo de processo,
quais são os procedimentos que ele vai ter que seguir e não existe isso. O
funcionário faz uma prova de Português, conhecimentos gerais na área de
Direito, Matemática e se for aprovado faz a datilografia que ele vai usar
normalmente. Quando aprovado ele entra assim, sem saber nada do cartó-
rio. Ele só estudou, mas de procedimento processual não dá para ter noção.
Então, seria legal que houvesse um curso, tipo 10 dias. (...) Eu estou aqui há
três anos, sou auxiliar. Eu lido com processo, mas há pouco tempo tinha um
escrevente que estava lá há dois anos e não sabia absolutamente nada sobre
o processo. Então, até que esse escrevente se adapte, aprenda como ele deve
proceder em processo, já foi muito tempo. Tomar iniciativa, pegar um pro-
cesso e realmente estudar, batalhar para ver como ele funciona. Ele não vai
aprender, então, isso é falta de preparo para ver se a pessoa tem aptidão
para exercer aquela função que nem sempre tem. Às vezes, uma pessoa pas-
sa no concurso. Ele é ótimo, assim, por exemplo, como motorista do judici-
ário. Ele seria ótimo para cuidar dos serviços gerais, encanamento, essas
coisas, mas não teria aptidão para mexer com processos.
A carreira de oficial de justiça é diferente de algumas outras carrei-
ras, como por exemplo, da carreira de escrevente. A carreira de oficial de
justiça não tem uma hierarquia. Não há, por exemplo, um oficial de justiça-
chefe, um oficial de justiça diretor, como acontece com a de escrevente. En-
tão, o oficial de justiça é subordinado diretamente ao juiz da vara em que
ele está lotado. Não há uma diferenciação de hierarquia dentro da carreira.
O oficial de justiça, a grosso modo, ele é a extensão ou exteriorização da-
quilo que acontece, daquilo que é decidido, se infere, decorre, que se dá em
audiência, decisões judiciais no fórum... Ele é a forma que o Judiciário tem
de exatamente executar aquilo que foi determinado.
Ao mesmo tempo que observamos, no decorrer desta pesquisa, como
a proximidade na hierarquia ocupacional é causadora de tensão e disputa,
verificamos que a distância nessa pirâmide profissional gera deferência so-
cial. Assim, embora os funcionários de cartório sejam os personagens mais
presentes no cotidiano da Magistratura, são eles que ocupam a posição estru-
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tural mais distante dos juízes, levando-se em conta seu lugar no sistema pro-
fissional. É da intensa socialização no fórum e desta posição claramente su-
bordinada ao juiz que partem as avaliações e as opiniões de maior reverência
ao prestígio e ao destaque do magistrado. A maneira como os magistrados são
tratados internamente, nos cartórios, contribui para realimentar sua importân-
cia social. A formalidade do tratamento de Vossa Excelência extrapola o am-
biente das audiências e se incorpora ao cotidiano do fórum com freqüência,
quando há uma platéia externa. Os funcionários judiciais são decisivos nesse
processo da construção da deferência ao juiz, porque procuram obter para a
sua posição profissional algo deste reconhecimento do público, deste temor,
deste respeito. A condição de funcionário de escalão subalterno é reelaborada,
para o público externo, pela criação de uma conduta de superioridade, de po-
der, que o funcionário incorpora à sua imagem, para caracterizar a forma como
quer ser identificado. O fato de trabalhar vinculado ao terceiro poder da repú-
blica brasileira acaba marcando o tratamento que destina à clientela, ao assu-
mir para o seu cargo a condição de autoridade, de terceiro poder, junto a quem
precisa da justiça. Realimentar a deferência à Magistratura tem resultados
práticos imediatos na própria percepção de sua valoração social6.
Não é por acaso que há competição intraprofissional entre os juízes
que vieram da advocacia e aqueles provenientes dos cartórios judiciais. A
simbologia em torno da carreira é mais acentuada no segundo grupo do que
no primeiro. Os funcionários passaram muitos anos de sua vida profissional
construindo tal distinção para a Magistratura e acreditam nela com mais em-
penho do que aqueles que viveram essa socialização em menor grau.
Outro aspecto que a abordagem da competição profissional ajuda a
desnudar é a de uma maior interdependência entre as profissões exercidas no
âmbito do Estado e a produção de decisões políticas nesta esfera, que alteram
as correlações de força no mundo profissional. Essas conexões entre os dois
mundos ficam evidentes na tensão entre o Legislativo e o Judiciário no con-
texto analisado acima, nas recentes tensões entre o Judiciário e o Executivo no
quadro político brasileiro e nas mudanças no prestígio da profissão de delega-
6
do de polícia. Assim, se há uma lógica própria ao sistema das profissões, ela
É possível que tal con-
duta seja mais acen- não está desconectada de outras esferas de poder. Quando enfocamos a com-
tuada em comarcas do petição profissional no mercado de trabalho privado, percebemos como as
interior e de regiões mudanças tecnológicas são relevantes para alterar a condição de uma profis-
de médio e pequeno
porte, do que na capi- são neste sistema. Assim, o fortalecimento da profissão de jornalista não pode
tal. Entretanto, obser- ser desvinculada dos avanços obtidos pela mídia, em termos de tecnologia e
vamos mesmo nos Tri-
bunais de Alçada, na de expansão do sistema de informação. Ao analisarmos o campo da justiça, as
segunda instância do mudanças profissionais que detectamos aparecem mais vinculadas à esfera do
Poder Judiciário, uma Estado e a da democratização da participação política. Este aspecto é o res-
padrão semelhante de
lidar com o público ponsável pela alteração no prestígio dos delegados de polícia, pelo menos na
externo, acentuando a forma como eles têm percebido a questão. Partindo de uma autopercepção
distância e a auto-
ridade da instituição onde se reconheciam num patamar superior de força profissional perante a
sobre o cidadão. sociedade, os delegados agora identificam sua posição como desprestigiada
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pelo poder público, ajudando a abalar sua imagem na comunidade.


A democratização acompanhada da elaboração de uma nova Cons-
tituição fortaleceu o Legislativo após um longo período autoritário. Esta mu-
dança acabou reforçando para o próprio Judiciário a percepção de sua posi-
ção mais desfavorável na partilha dessas forças. Dos três poderes, o Judiciá-
rio é aquele que mais precisa dos símbolos de prestígio e deferência sociais,
porque sua posição em relação ao Legislativo e ao Executivo é mais vulnerá-
vel do que é mostrado no discurso dos juízes enfatizando a sua independência.

Conclusões

Este trabalho procurou analisar como as profissões do mundo do


Direito interagem na prática de uma comarca de médio porte, no interior do
Estado de São Paulo, dando uma dimensão concreta à concepção do sistema
das profissões.
Esta construção teórica identifica a competição profissional como
inerente a tal mundo. Enfocamos a competição interprofissional entre juízes,
promotores, delegados de polícia, advogados e funcionários de cartório na
comarca selecionada.
Se a competição interprofissional deu a dimensão das disputas nes-
te campo, a análise da forma como eles se percebem em tensão com o
Legislativo, no papel que este tem de elaborador das leis a serem aplicadas
pelos profissionais do Direito, dá a eles o vínculo e a interdependência
constitutivos de um mundo da justiça.
A competição intraprofissional foi enfocada tomando como refe-
rência cada um desses grupos profissionais, para captar as formas como de-
marcam internamente suas diferenças. Observamos como os entrevistados em
cada uma dessas atividades apresentavam um estereótipo da conduta profissi-
onal que desaprovavam, para se distinguir deste modelo e construir sua traje-
tória de uma forma afirmativa. Assim, a competição intraprofissional se ma-
nifestava no modo como os informantes desqualificavam o comportamento
desses ‘pares’, que pareciam fictícios, já que não é comum no universo profis-
sional alguém se auto-identificar como inativo, moroso, incompetente, cor-
rupto, violento, apadrinhado, egoísta, antiético, sem-vergonha, inescrupuloso.
Os resultados deste trabalho de campo permitem concretizar uma
análise das tensões profissionais, aguçadas no momento de sua realização
pelas perspectivas de mudanças institucionais através do processo de revisão
constitucional. Esses momentos abrem o campo para a disputa jurisdicional,
criando a possibilidade de se alterar a correlação de força no interior desse
mundo. As discussões sobre o controle externo do Poder Judiciário, sobre a
introdução dos Juizados Especiais de Pequenas Causas Criminais, sobre a
obrigatoriedade ou não da presença de advogado nos tribunais informais, so-
bre o papel do Ministério Público e as atribuições dos delegados de polícia
refletem as recentes oportunidades de redefinição no mundo do Direito
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introduzidas por mudanças que extrapolam o sistema das profissões. Estudar


estas profissões no Brasil requer que se repense a problemática profissional,
estruturada em boa parte da bibliografia internacional sobre o papel das asso-
ciações profissionais no controle e regulamentação da atividade no mercado e
no pressuposto da autonomia da profissão frente ao Estado. A experiência
brasileira aponta para uma relação muito mais estreita entre as profissões do
direito e o Estado, contrastando com o modelo predominante nessa literatura
que focaliza as profissões no mercado, fora da política e resistindo à ação
estatal.

Recebido para publicação em maio/1997

BONELLI, Maria da Gloria. Professional competition in the judicial world. Tempo Social; Rev. Sociol.
USP, S. Paulo, 10(1): 185-214, may 1998.

UNITERMS: ABSTRACT: This paper focuses on the interprofessional and intraprofessional


legal profession, competition among judges, prosecutors, lawyers, police chiefs and judicial
Brazil,
registry personnel. It is based in a qualitative case study of a judicial district in
judicial district.
the state of São Paulo. The paper emphasizes the importance of plancing the
focus of the study on interdependencies of Brazilian legal professions to
understand the dynamics of the judicial world.

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