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TempoJoséSocial;
de Souza.Rev.
O senso comumUSP,
Sociol. e a vida
S. cotidiana.Tempo Social;
Paulo, 10(1): 1-8, Rev.de
maio Sociol.
1998.USP, S. Paulo,A R1-8,
10(1): Tmaio
I Gde O
1998.
O senso comum e
a vida cotidiana
JOSÉ DE SOUZA MARTINS
RESUMO: A História bloqueada pelo capital e pelo poder fez da vida cotidiana UNITERMOS:
o refúgio para o desencanto de um futuro improvável. Os grandes embates vida cotidiana,
conhecimento de
pela redenção do gênero humano de suas limitações e misérias estão sendo
senso comum,
readaptados a esse novo território da vida e do viver. A sociedade está sendo sociologia da vida
reinventada e, conseqüentemente, a sociologia também está passando por cotidiana,
um processo de reinvenção. É nesse âmbito que ganha uma nova relevância a sociologia do conheci-
mento
mediação do conhecimento do dia-a-dia na construção das relações sociais.
O
interesse sociológico pela vida cotidiana tem resultado direta-
mente do refluxo das esperanças da humanidade num mundo novo
de justiça, de liberdade e de igualdade. Parece simples, mas é assim
mesmo que a progressiva constituição da vida cotidiana como ob-
jeto de conhecimento da sociologia tem sido justificada.
De certo modo, há nessas origens uma descrença na História, uma
renúncia à idéia de que o homem é senhor de sua História, de que pode
produzir o seu próprio destino. O interesse pela vida cotidiana se difunde
como um dos componentes mais nítidos do ceticismo decorrente das desilu-
sões que tem acompanhado a notável capacidade de auto-regeneração da
sociedade capitalista.
Para muitos, a vida cotidiana se tornou um refúgio para o desencanto
de um futuro improvável, de uma História bloqueada pelo capital e pelo poder.
Viver o presente já é uma consigna que encontra eco numa sociologia do deta-
lhe, do aqui e hoje, do viver intensamente o minuto desprovido de sentido, que Professor do Departa-
mento de Sociologia
poderia ser definida como sociologia pós-moderna1. Ou, então, que poderia si- da FFLCH-USP
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MARTINS, José de Souza. O senso comum e a vida cotidiana.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 1-8, maio de
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MARTINS, José de Souza. O senso comum e a vida cotidiana.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 1-8, maio de
1998.
mentos de criação.
A reprodução social, lembrou Lefebvre mais de uma vez, é repro-
dução ampliada de capital, mas é também reprodução ampliada de contradi-
ções sociais: não há reprodução de relações sociais sem uma certa produção
de relações – não há repetição do velho sem uma certa criação do novo, mas
5
Foi Henri Lefebvre quem não há produto sem obra, não há vida sem História. Esses momentos são
propôs de maneira soci- momentos de anúncio do homem como criador e criatura de si mesmo.
ologicamente mais con-
sistente a questão do É no fragmento de tempo do processo repetitivo produzido pelo
possível, articulando-a desenvolvimento capitalista, o tempo da rotina, da repetição e do cotidiano,
com o tema dos resídu-
os, do que não pode ser que essas contradições fazem saltar fora o momento da criação e de anúncio
capturado pelos poderes da História – o tempo do possível5. E que, justamente por se manifestar na
e, portanto, propõe e re- própria vida cotidiana, parece impossível. Esse anúncio revela ao homem co-
clama o novo. Uma ino-
vação essencial em sua mum, na vida cotidiana, que é na prática que se instalam as condições de
obra é a indicação de transformação do impossível em possível.
que além de dedução e
indução, a ciência social Heller disse que só quem tem necessidades radicais pode querer e
deve trabalhar com a fazer a transformação da vida6. Essas necessidades ganham sentido na falta
transdução, a lógica do de sentido da vida cotidiana. Só pode desejar o impossível aquele para quem a
possível. Entre outros li-
vros desse autor so- vida cotidiana se tornou insuportável, justamente porque essa vida já não pode
bre esses temas, cf. ser manipulada.
Lefebvre (1958; 1957;
1965a; 1972). É aí que o reencontro com as descobertas das orientações
6
Cf. Heller (1978). O tema fenomenológicas ganha novo e diferente sentido. Pois, é no instante dessas
das necessidades radi- rupturas do cotidiano, nos instantes da inviabilidade da reprodução, que se
cais, as necessidades
que fundam a práxis instaura o momento da invenção, da ousadia, do atrevimento, da transgressão.
revolucionária ou ino- E aí a desordem é outra, como é outra a criação. Já não se trata de remendar as
vadora, aparece propos-
to originalmente em fraturas do mundo da vida, para recriá-lo. Mas de dar voz ao silêncio, de dar
Henri Lefebvre (1965b). vida à História.
MARTINS, José de Souza. Common sense and everyday life. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, 10(1): 1-8, may 1998.
UNITERMS: ABSTRACT: History blocked by Capital and power has turned everyday life into
everyday life, a refuge from the disenchantment of an unlikely future. The big struggles in
knowledge of common
order to redeem humankind from its limits and miseries are being readapted to
sense,
sociology of everyday this new territory of life and living. Society is being reinvented, and consequently
life, sociology is also experiencing a process of reinvention. In this context the
sociology of knowledge. mediation of knowlegde of the day-by-day gets a new importance in the
construction of social relations.
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MARTINS, José de Souza. O senso comum e a vida cotidiana.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 1-8, maio de
1998.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CARDOSO,
TempoIrene. Os silêncios
Social; Rev.da narrativa.
Sociol. Tempo
USP, Social; Rev.
S. Paulo, Sociol.
10(1): 9-17,USP,maio
S. Paulo, 10(1): 9-17, maio A
de 1998. R T I G O
de 1998.
Os silêncios da narrativa
IRENE CARDOSO
Ao Salinas, in memoriam
RESUMO: Leitura da narrativa Retrato calado, de Luiz Roberto Salinas Fortes, UNITERMOS:
que procura reconstruir alguns de seus traços, reconhecidos a partir de uma narrativa,
memória,
possível “experiência de leitura”.
silêncio,
tortura.
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CARDOSO, Irene. Os silêncios da narrativa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, maio de 1998.
lido” pela “lógica incontornável” das circunstâncias? (p. 50). “Como contor-
nar a lógica da tendência se o sabotador, com toda a sua malícia, instalou-se
dentro da cabeça, enfiou-se no interior do interior, sugando os esforços e com-
prometendo a objetividade do pensamento?” (p. 100). Como fazer fluir a me-
mória se as grades estão nela ainda “duramente plantadas”, “grades que con-
tinuam imaginárias, a me comprimir o cérebro?” (p. 100).
É desse modo que a narrativa vai se construindo, tematizando a sua
própria impossibilidade. As questões de modo angustiado e doloroso vão
emergindo sem nenhum tipo de censura ou complacência, especialmente em
relação a si próprio, a partir do silêncio, reencontrado na escrita.
Retrato calado, a narrativa que tematiza a impossibilidade da narra-
tiva, assume o risco da construção literária da experiência vivida que não pode
ser dita – a literatura falando daquilo que se cala (Sarlo, 1997, p. 27-28). É
necessário então o registro rigoroso da experiência, como diz Salinas “da sua
descrição, da constituição do material fenomenológico, da sua transcrição lite-
rária. Contra a ficção do gênio maligno oficial se impõe um minucioso relato
histórico e é da boa mira neste alvo que depende o rigor do discurso” (p. 29).
É desta posição que a narrativa vai se construindo, a da “boa mira”,
que se move e se desloca permanentemente ao longo do texto, sem se fixar
num fio condutor cronológico, dando lugar aos vários tempos da experiência
que se entrecruzam nas suas diferentes intensidades – tempo vazio, tempo da
morte, rotina da sobrevivência, abismo do tempo, intervalo, outro tempo, tempo
acelerado, tempos difíceis, espera – e que vão fazendo falar os até então mu-
dos sujeitos que não podiam emergir das suas posições armadas de fora, ar-
mação que no entanto cala fundo, retratos calados.
Narrativa ofegante e entrecortada que expressa a impossibilidade
de compreender os nexos entre as coisas e a própria condição de Coisa: “Que
me espera agora? Que crimes cometi, afinal?” (p. 37). “Vestido. De novo Gente.
Ou quase. Coisa, depois de tudo o que acontecera, que eu já nem julgava mais
possível” (p. 44).
Impossibilidade de compreender o ritmo delirante da realidade, que
não pode ser narrado a partir de nenhuma linearidade: “este real que parece
um delírio circular, ele também” (p. 103). Delírio circular do real, imagem que
convoca a “visão de espanto”, os “dedos remos”, a “caneta âncora para nave-
garem no mar das coincidências” (p. 103). “Jogo incessante de imagens que
se superpõem” (p. 92), “sem a mediação-deformação do narrador historia-
dor” (p. 91), como diz na análise que faz do filme visto em Paris, no tempo
agora livre da nova vida das ruas estrangeiras, mas familiares, na carta ao
amigo transcrita/inscrita no texto. A inserção/inscrição não gratuita da análi-
se do filme na narrativa induz o leitor a vê-la naquele registro do jogo inces-
sante de imagens que se superpõem, que é, no entanto, ainda, como diz a
respeito do filme, “fruto da mais inteligente construção” (p. 91).
Sem a mediação-deformação do narrador historiador a narrativa vai
se construindo através de um sujeito que constantemente se depõe de suas posi-
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CARDOSO, Irene. Os silêncios da narrativa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, maio de 1998.
ções e vai cedendo lugar a um outro que surge quando, como diz ainda Salinas a
respeito do filme, “de repente, o espectador sente de maneira intensa como sen-
do o lugar do trabalho do cinegrafista”, quando ainda o “jogo incessante de
imagens que se superpõem, se neutralizam num comentário, em que é possível
distinguir vários patamares expressivos” (p. 92). Um “achado narrativo” (p.
93) do filme, como diz, que parece ser também o da sua própria narrativa.
Lugar do trabalho insistente, da insistência narrativa a partir do
qual se pergunta: “Como deixar de me pôr totalmente em questão, ali diante
de tão vil desfecho? Como não me perguntar pelo sentido de todo esse movi-
mento passado, atendo-me exclusivamente à fria descrição dos eventos? Como
não mobilizar o espanto diante de tantos significantes de conseqüências tão
devastadoras?” (p. 37).
Posição do sujeito narrativo, que emerge da “boa mira” móvel, aqui e
ali no texto, diante das demais posições marcadas pelos “significantes” devasta-
dores, pelo “destino” que “ia se decidindo misteriosamente lá fora” (p. 86), pelo
“Mar das Coincidências” (p. 103-104), no qual se vê “envolvido, ilhado e circun-
dado por acasos mais pesados e fatais do que qualquer necessidade” (p. 104).
Cena Primitiva e Repetição: modos como o narrador nomeia a or-
denação possível do relato destas experiências a serem decifradas. Esta orde-
nação não pode ser a da ordem cronológica, embora o narrador se angustie
por retomá-la de algum modo: “Não confundamos as coisas e tentemos
reconstituir a chamada ordem cronológica, pois Cronos é um deus muito po-
deroso e voraz que nos consome tanto que já não podemos mais deter o fluxo,
o fluxo tão sonhado que de repente arrebenta” (p. 86).
Duas prisões em 1970, outras duas em 74. OBAN, DOPS;
DEIC, OBAN.
Cena Primitiva se abre no “velho edifício do largo General Osório”,
o DOPS, meses depois dos dez dias de detenção na OBAN. Mas agora as
coisas seriam bem diferentes e logo, “logo seria dado ao protagonista que vos
fala a ocasião única, o privilégio imerecido de vir a conhecer o famoso instru-
mento de tortura já há muitos e muitos anos corriqueiramente utilizado por
nossas forças policiais em toda a vastidão do território nacional” (p. 9).
“Só quando chegamos percebo, de repente, o que me espera e en-
tendo o sorriso. É que o tal do magricela nervosinho e gozador me mandara
carregar, envolto em jornais, para disfarçar, nada mais, nada menos do que o
aparelho de choque, a cujas iluminações, dali há pouco, paudeararizado, viria
eu a ser submetido graciosamente. O grupo explode em gargalhadas quando o
pacote é desembrulhado, deixando a descoberto aquela sorte de pequeno rea-
lejo, cubo de madeira com uma manivela pendurada de um dos lados. E eu,
atônito, catatônico, arremessado de repente em meio ao inferno, transferido
de súbito para esta dimensão nova onde tudo se passa velozmente, embora
dure uma eternidade e embora se propague pela eternidade afora” (p. 9-10).
Na reconstrução da Cena, o jogo rápido de alternância das imagens,
que se traduz nos modos diversos de enunciação possíveis: o sujeito narrativo
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CARDOSO, Irene. Os silêncios da narrativa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, maio de 1998.
oscila entre posições que dão origem ora a uma fala que está colada à Cena,
ora àquela do distanciamento em relação a ela, que parece tão penoso cons-
truir. Oscilação entre um eu colado e um ele que produz a distância, que ex-
pressa literariamente a quase que impossibilidade de reconhecimento da Cena,
do seu absurdo. Não é possível que aquele personagem da Cena seja eu, e no
entanto ele é a minha irredutível condição.
“Nu, completamente nu. Obrigam o paciente a sentar no chão.
Amarram-me as mãos, que protegem com uma cobertura de pano, uma contra
a outra. Forçam-no a manter os joelhos unidos, dobrados contra o peito e
envolvidos pelos braços amarrados. No vão entre os braços e o joelho enfiam
uma barra de ferro e penduram-na – penduram-me – em dois cavaletes. Rápi-
dos, eficientes, bem treinados” (p. 10). E vão fazendo “funcionar o aparelhinho
que eu mesmo carregara como perfeito idiota” (p. 11). “Com seu paciente
trabalho junto à manivela, o hílare servidor, arrebatado por formidável furor
científico, ia buscando estabelecer a verificação empírica da veracidade das
proposições que eu formulava e respondia e vomitava em meio à dor, ao pâni-
co e à reconfortante revolta que não mais me abandonaria” (p. 12).
Abertura da Cena Primitiva e, como diz, “repetição monótona da
macabra cena inaugural do espetáculo pirotécnico do Brasil grande do fim da
década de 60 e do começo dos 70” (p. 11).
As questões vão se colocando, “perguntas que não deixam de se
impor e insistir o tempo todo” (p. 12), deslocando os sujeitos emudecidos,
confrontando o real e o imaginário, dissolvendo os delírios num movimento
de entrelaçamento da busca de uma consciência de si, a partir da vida cesurada
e de uma consciência do real para além dos seus também delírios circulares.
Como diz: “Tais perguntas ou dúvidas, talvez suspeitas ou supér-
fluas aos olhos do entendimento, só se justificam nesta sua configuração
hiperbólica, se o que pretendemos é justamente nos dedicar às questões radi-
cais, ou se o que nos inquieta é a radicalização das questões que prolongam no
espaço da reconstituição a Questão primeira, tornando tão difícil a exposição
dos eventos e toda a lítero-analítica a que nos conduz obrigatoriamente a ne-
cessidade do exorcismo” (p. 13).
Diante da situação da tortura no DOPS se pergunta: “Terei falado
demais?, herói ou covarde? É certo que o herói perfeito jamais colocaria tais
questões, o que significa, talvez, que pelo simples fato de enunciá-las já me
denuncio como Guerreiro pouco valente. Ou me desqualifico para as finais da
copa do heroísmo” (p. 12). Situação que repete a da OBAN, meses antes,
diante da exigência da “colaboração”, que tortura o “espírito até hoje” embo-
ra sem “conseqüências mais dramáticas”: “Como agir? Que dizer? Nada fa-
lar, tal como o vietcongue?” (p. 20).
“Deveria ter saído do país? Não sei. Partido para a clandestinidade
e me comprometido com a luta armada, desta vez para valer? Talvez. Mas,
que perspectiva nos oferecia, que não a suicida, a ação violenta contra o regi-
me? Não estaríamos antes obrigados a resistir sobrevivendo, do que a morrer
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CARDOSO, Irene. Os silêncios da narrativa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, maio de 1998.
lançando a força contra a força neste combate desigual (...)?” (p. 33-34).
Radicalização das questões que incide sem complacência sobre si
próprio, mas também pode discriminar o tipo de lógica da tortura que leva
aqueles que são a ela submetidos, e que não são inteiramente destituídos da
própria subjetividade, a se constituírem nas figuras do herói ou do traidor, na
polaridade entre heroísmo e vergonha, lógica incorporada em certa medida
pelos próprios torturados e grupos aos quais pertenciam.
Questões radicais que podem pensar “os delírios circulares do real”,
sem nenhum tipo de condescendência com o regime, com a sua aceitação pela
sociedade e também com o “militantismo radical”.
“Lá fora, o melhor dos mundos, como se nada tivesse acontecido.
Os generais prosseguiam, meticulosos, na patriótica azáfama; o povo brasi-
leiro deixava-se salvar ao som estridente do ‘eu te amo meu Brasil’ e se prepa-
rava para o Grande espetáculo, enquanto seu pacífico esquadrão [não o da
Morte], sob o comando de Pelé e Tostão, aprestava-se para as próximas bata-
lhas, que as Tvs transmitiriam do México” (p. 33). “Regime hipócrita e todo-
poderoso de um lado. De outro, grupos de combatentes decididos mas
amadorísticos, com escasso apoio popular, cegos pelas suas estreitas catego-
rias teóricas ou pela fé ingênua nas virtudes do militantismo radical, acredi-
tando que um assopro seria suficiente para conduzir à conflagração geral, à
avassaladora explosão das massas enfurecidas, pondo abaixo o edifício da
iniqüidade” (p. 34).
“Tomar consciência do real”. “Aceitar calmamente, este real que
parece um delírio circular, ele também”: o “Mar das Coincidências”, o dos
“acasos mais pesados e fatais do que qualquer necessidade” (p. 103-104), do
qual é preciso emergir.
Repetição – modo como nomeia outro movimento da narrativa – que
produz “a sensação de destino”, que “converte (...) a vida em morte” (p. 86).
“Meu destino ia se decidindo misteriosamente lá fora” (p. 86). “Pois
é, depois da OBAN e do DOPS, o DEIC. (...) Não imediatamente: quatro anos
depois” (p. 77). E ainda novamente a OBAN.
Como reconstruir o tempo, como interromper o tempo da repetição,
delírio do tempo? Como inscrever as experiências que não têm registro, que “teó-
rica e oficialmente nunca existiram” e “residem no território da ficção”? (p. 81).
Entrecortada pelas questões, a narrativa vai se construindo a partir
mesmo dos cortes – que outro modo? – da vida cesurada, do corte bem fundo,
bem no fundo.
“Como manter a lucidez em meio à complexidade? Como proceder
à leitura do texto denso, desvendar os liames sutis, os vínculos que se
entremostram, como evitar as pistas falsas, como fugir à tentação preguiçosa
da facilidade? Às vezes a relação parece nítida, a correlação rica em promes-
sas de resultados fecundos. Da minha janela, olho o muro em frente, do outro
lado da rua [naquela época eu passava horas e horas em contemplação do
muro da rua em frente, sentado em frente à janela] e sonho com o mundo em
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CARDOSO, Irene. Os silêncios da narrativa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, maio de 1998.
que não haveria polícia. Mas ela insiste em me acompanhar. Lembro-me bem
daquele dia em que olhava pela janela e contemplava o muro cinzento em
frente, do outro lado da rua. De repente eles chegaram, de novo. Rádiopatrulha,
vermelho e negro, dois guardiões. Estacionaram o carro na entrada da vila e
um deles desceu. Teria sido um sonho? Até hoje não sei muito bem. Teria sido
projeção da megalomania que de mim se apoderara e que me dotara do senti-
mento permanente de trazer guardada dentro de mim a mensagem fatal, defi-
nitivamente fatal para a ordem vigente? Mas naquele momento nada pare-
cia mais real” (p. 100).
Repetição ainda, mas também agora, a possibilidade do “exorcis-
mo”, como diz, “que se renova a cada instante, a cada hora, a cada dia, a cada
semana, a cada ano, a esperança que rejuvenesce, de quebrar as grades, voar,
essas grades imaginárias” (p. 100).
À imagem do muro cinzento em frente, que contempla sentado jun-
to à janela, se superpõe a do “muro alvo”, no jogo incessante delas que atra-
vessa a narrativa: “Aqui no meu muro alvo, imitando o mestre, as confissões.
Tramadas no inferno e recapturadas à luz das ruas ensolaradas, vestidas de
cor e corpo completo sonhado, não mutilado (...) Os inimigos nos olharão
com desprezo: coitado, dirão, até hoje ainda falando de tudo isto. E os traços
da aventura menor já foram talvez até apagados dos arquivos, borrados dos
anais e certamente suplantados por milhares de outras histórias mais excitan-
tes que se repetem diuturnamente e eu aqui insistindo sobre tão insignifican-
tes eventos” (p. 105).
Insignificantes eventos, que no entanto calaram fundo, bem no fun-
do, cuja intensidade só pode ser reconstruída a partir de um outro movimento
da insistente narrativa, inter-calado entre os outros dois, Suores noturnos,
que reabre os sentidos, já não fechados, de Cena primitiva e repetição.
Suores noturnos são páginas de um Diário escritas por Salinas em
59 e 60 – num quarto de pensão em São Paulo, vindo da “interiorana cidade
natal”, como diz – transcritas e inscritas na narrativa Retrato calado.
“Sinto-me só. Fora do mundo. Como personagem do livro ‘The
Outsider’ de Colin Wilson (...). Diz este autor: ‘Quem sou eu? Eis aí o proble-
ma essencial do Estrangeiro’. E eis aí porque me identifico.
O futuro me parece um abismo. Tenho medo. Acho que sempre fui
assim, pensando bem. O mundo sempre me pareceu hostil (...) Não sei onde é
o meu lugar certo. Sempre fiquei meio de fora, como um estranho, mesmo
entre os amigos mais próximos.
O futuro está aí, ao meu lado, imenso, incerto, desconhecido. É pre-
ciso decidir logo, agora mesmo. É preciso me libertar destes naufrágios quoti-
dianos. Devo escolher um caminho e sofrer até o fim as conseqüências dessa
escolha (...) meu destino é o de refletir sobre mim mesmo e o mundo.
Devo me libertar antes de tudo da tirania do outro. Mas para isto é
preciso, talvez, mergulhar cada vez mais na solidão.
Sinto-me limitado, tenho dúvidas acerca das minhas possibilida-
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CARDOSO, Irene. Os silêncios da narrativa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, maio de 1998.
des. Que fazer? Antes de tudo, quero enxergar claro. Lucidez: eis a principal
exigência” (p. 64-5).
Destino, Lucidez, Medo, inquietação diante da “radicalização das
questões”, aqui como lá.
Destino: “acabo de ler ‘L’Espoir’ de André Malraux. Belo, belo.
Diz ele que a ‘possibilidade infinita’ do destino dos homens é mais ‘inquie-
tante’ do que ‘sua presença sobre a terra’” (p. 67).
Lucidez: “Por que escrevo? Alinhar palavras, construir frases (...) de
que adianta tudo isto? As coisas continuam a deslizar pelo abismo do tempo afora.
(...) Não sei por que escrevo, mas não importa. Vou continuar es-
crevendo, vou me submeter às palavras e deixar que elas corram livremente.
Alguma coisa vai ser retida, talvez, quando futuramente eu procurar fazer um
‘balanço vital’” (p. 67-68).
Medo: “Tenho me lembrado muito ultimamente daquele antigo, di-
gamos, surto neurótico infantil. A mesma cena repetiu-se durante muitas noi-
tes seguidas (...) De repente, uma horrível visão me atacava e me botava em
verdadeiro pânico. Era a seguinte: eu me via, de repente, morto, dentro da
sepultura. O que mais me aterrorizava era o fato de eu não compreender como
poderia a alma – que me haviam ensinado imortal – desprender-se do corpo,
libertar-se dele. Acreditava que isto não fosse possível, imaginava então que
continuaria consciente, (...) na eterna escuridão tenebrosa da sepultura (...)
Até mesmo os terrores do inferno me apareciam como menos terríveis do que
a perspectiva de uma prisão perpétua dentro da cova (...). Fazia esforços so-
bre-humanos para compreender o enigma, suava e estremecia, e o fracasso da
investigação obscura me arrancava lágrimas de pânico” (p. 65-66).
Retrato calado, a narrativa que não se fecha. Que não imobiliza a
existência num “sempre passado”, morto, mas se constitui em “obra de uma
memória viva, vital, que quer e pode recuperar o tempo em seu próprio movi-
mento” (Blanchot, 1997, p. 237). A construção insistentemente retomada, a
forte impressão causada pela leitura de Suores noturnos, mas também regis-
trada por Salinas, no que escreve como acréscimo posterior, quando da prepa-
ração dos originais, referindo-se à noturna cena relatada: “mas o episódio
contém certamente muito material, traz certamente oculto nele muitas pistas
para a explicação do ulterior evoluir. A ele devo retornar. E insistir. Tentar
decifrá-lo” (p. 67).
Narrativa que não se fecha, mas que fechou a vida de Salinas. Como
ele disse, ainda, no Diário, referindo-se à morte recente de Camus – “este meu
amigo íntimo”: “essa figura foi ludibriada, sua vida convertida em ‘destino’,
como dizia Malraux, porra, como a morte é uma coisa besta” (p. 70).
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CARDOSO, Irene. Os silêncios da narrativa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, maio de 1998.
CARDOSO, Irene. The silences of narrative. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 9-17, may
1998.
ABSTRACT: A reading of Luiz Roberto Salinas Fortes’ narrative “Retrato Cala- UNITERMS:
do” based on the reconstruction of some of its characteristics through a “reading narrative,
memory,
experience”.
silence,
torture.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
17
ADORNO,
Tempo Sérgio. Conflitualidade
Social; e violência:
Rev. Sociol. USP,reflexões sobre10(1):
S. Paulo, a anomia na contemporaneidade.
19-47, A RRev.
maio de 1998. Tempo Social; TSociol.
I GUSP,O
S. Paulo, 10(1): 19-47, maio de 1998.
Conflitualidade e violência
reflexões sobre a anomia na
contemporaneidade
SÉRGIO ADORNO
RESUMO: A partir de uma análise crítica de ensaio de Ralph Dahrendorf, Law UNITERMOS:
and Order (1985), sobre a erosão da lei e da ordem na sociedade contemporâ- anomia,
autoridade,
nea, procura-se desconstruir os argumentos contidos no ensaio sugerindo as
lei e ordem,
mudanças que incidem sobre o modo de assujeitamento dos indivíduos. Mais violência,
do que liberação dos indivíduos dos liames e controles sociais, para além de crime organizado,
um problema de “ligaduras”, o que parece estar no centro das radicais transfor- narcotráfico.
mações da ordem neste final do século é o modo como os indivíduos gover-
nam a si e aos outros (Foucault, 1984). Para sustentar esta hipótese, toma-se
como referência para a análise um caso determinado: a colonização da
criminalidade urbana pelo crime organizado, em particular por uma das moda-
lidades mais emblemáticas de produção da violência no mundo contemporâ-
neo – o narcotráfico.
M
eu ponto de partida é o livro do sociólogo alemão Ralph
Dahrendorf, publicado em língua inglesa sob o título Law and Order
(1985). O livro compõe-se de quatro ensaios cujo objeto é uma
reflexão sobre os dilemas, impasses e o futuro da ordem social e da
liberdade em nossas sociedades contemporâneas. Apesar de publicado há dez
anos (no Brasil, foi editado pelo Instituto Tancredo Neves, Brasília, em 1987),
ele mantém sua atualidade. Chamou-me particularmente a atenção um dos
temas predominantemente abordados no livro, qual seja, a erosão da lei e da
autoridade. Mais do que isso, o fato de que Dahrendorf toma como pano de
fundo para discutir esse “clássico tema” a generalização de um sentimento de
insegurança e medo diante da escalada do crime na sociedade contemporânea. Professor do Departa-
mento de Sociologia da
Vou destacar algumas das idéias contidas nos ensaios com o risco de FFLCH-USP
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S. Paulo, 10(1): 19-47, maio de 1998.
mudanças que operam na composição dos grupos sociais que participam dos
conflitos, bem como nos problemas que os engendram e nos modelos de reso-
lução que se desenvolvem.
Dahrendorf identifica cinco substantivas transformações que afe-
tam a natureza dos conflitos e tensões na sociedade contemporânea. A primei-
ra diz respeito às diferenciações no interior da classe trabalhadora, a qual
perde no curso dos acontecimentos a homogeneidade que Marx identificara
como tendência inexorável do desenvolvimento social e político dessa classe.
Ao contrário, Dahrendorf anota progressivo crescimento de trabalhadores al-
tamente qualificados, assemelhados a engenheiros e a trabalhadores de escri-
tórios; crescimento de trabalhadores semi-especializados, porém com elevado
grau de experiência industrial acumulada; e decrescente participação dos tra-
balhadores não totalmente especializados, a maioria deles nesta condição por-
que recém-chegados à indústria. Associada a este processo, Dahrendorf tam-
bém observa a emergência de uma nova classe média – impensável no modelo
marxista de classes sociais –, materializada no crescimento vigoroso dos tra-
balhadores de escritório. Trata-se de um agrupamento social que rigorosa-
mente não pode ser conceituado como classe social, sequer como estrato soci-
al, cujo comportamento social e político é caracterizado pela ambigüidade
justamente porque parte desses trabalhadores, os burocratas, se identifica com
a burguesia, enquanto outra parte se identifica com a classe operária. Tudo
isso tem, por conseguinte, efeitos decisivos sobre a natureza dos conflitos
contemporâneos. Em terceiro lugar, as transformações sociais incidem sobre
a intensificação da mobilidade social, entre e intra estratos sociais. Um novo
modelo de alocação de papéis institucionaliza-se nas sociedades industriais
contemporâneas, fruto da abertura de oportunidades oferecida pelo mercado.
Em quarto lugar, pela primeira vez na história social moderna criam-se as
condições para que a igualdade se efetive na prática. Nesse terreno, Dahrendorf
apóia-se em Marshall (1967) para sustentar a existência de equalização de
status na sociedade industrial contemporânea. Sob esta perspectiva, a notável
expansão da igualdade social teria tornado as mudanças revolucionárias poli-
ticamente impossíveis. Em contrapartida, teria contribuído para alterar a subs-
tância dos conflitos de classe, reduzindo sua intensidade. Disto resulta uma
quinta transformação, em verdade, uma das principais teses contidas na obra
de Dahrendorf: a institucionalização dos conflitos sociais.
Ele argumenta que as lutas entre classes operárias e empresariado
capitalista, típicas da Inglaterra entre fins do século XVIII e primeira metade
do século XIX e típicas da Europa continental ao longo do século XIX, perde-
ram sua intensidade e mesmo razão de ser, no século XX, em virtude da
institucionalização dos conflitos. Por isto, Dahrendorf entende: por um lado,
o reconhecimento da legitimidade do conflito de interesses e, por essa via, da
legitimidade dos grupos em litígio; por outro lado, o estabelecimento de pro-
cedimentos e de mecanismos voltados para amortecer a violência dos choques
tête-à-tête entre os grupos oponentes. No âmbito das relações industriais, ele
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ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
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desta prisão, com todos os investimentos políticos do corpo que ela reúne em
sua arquitetura fechada, que eu gostaria de fazer a história. Por puro anacro-
nismo? Não, se entendemos com isso fazer a história do passado nos termos
do presente. Sim, se entendermos com isso fazer a história do presente”
(Foucault, 1977, p. 32). Essa passagem oferece uma idéia do modo pouco
convencional como Foucault aborda a história, os fatos pretéritos e o presen-
te. Nessa passagem, Foucault parece fazer menção ao anacronismo de nossos
procedimentos usuais e habituais de reconstrução histórica, nos quais o pas-
sado é lido, reconstruído, perquirido, vasculhado com vistas a explicitar o
presente e iluminar os caminhos do próprio curso histórico. Sob essa perspec-
tiva, passado, presente e futuro encontram-se inexoravelmente atados, caben-
do ao historiador explicitar seu sentido e direção. Trata-se em última instância
de uma história circular. Não no sentido que se lhe atribuíam na antigüidade
clássica (de uma circularidade determinada pelo movimento natural da vida e
da morte, na busca incessantemente renovada da eternidade); porém no senti-
do de um eterno retorno às origens. Assim, tudo está previamente dado e, por
essa via, a explicação é uma espécie de profecia que se auto-realiza. O anacro-
nismo resulta, portanto, da eterna repetição do mesmo. Não há lugar para o
acontecimento. A história não é a atualidade do presente, do novo, do inespe-
rado, do inaudito, do que muda e do que é mudado. Penso que nesta passagem
Foucault aponta para uma das mais espinhosas questões da epistemologia das
ciências sociais: não existem fatos objetivos, porém construções históricas,
as quais, acrescentará ao longo desse livro, estão imersas em um regime de
verdade e de poder.
Ora, se assim é, o que está justamente em causa no texto de
Dahrendorf é a atualidade e contemporaneidade dos fatos narrados como ob-
jetivos. Ao contrário, os fatos apontados consistem em construções históricas
e culturais, dependentes portanto dos regimes de poder e verdade em jogo, os
quais, por isso mesmo, constroem nossa contemporaneidade. Por isso, é pos-
sível opor às interpretações de Dahrendorf outras interpretações, fatos contra
fatos, para ao final perguntar o principal: qual é, enfim, o regime de poder e
verdade subjacente e que sustém a atualidade das “demandas” contemporâne-
as por ordem social. Isso é o que se procurará explorar e responder mais à
frente. Por ora, contentemo-nos em questionar-lhes os fatos.
mesmo se identifica, com o Estado leviatã de Hobbes. Com isso, creio, o so-
ciólogo liberal está fazendo menção ao fato de que o controle social (inclusive
o controle da criminalidade) se espreme entre duas forças antagônicas: por
um lado, a anarquia social que seria decorrente de propostas irrealistas de
justiça social; por outro lado, o autoritarismo, inspirador de propostas que
supõem desprezo, suspensão ou violação de direitos individuais. Ora, impõe-
se neste capítulo justamente colocar a questão fora desses termos dicotômicos.
É preciso problematizar a própria natureza, perfil e funções do Estado na
contemporaneidade, as quais extravasaram os limites ditados pelo modelo
contratual de organização societária. Como vêm demonstrando vários analis-
tas, em particular Boaventura de Sousa Santos (1995), cabe considerar que,
na atualidade, o Estado é cada vez mais caracterizado pelo pluralismo jurídico
e pela coexistência de mais de uma ordem jurídica no mesmo espaço
geopolítico, o que contrasta com as clássicas funções e características do Es-
tado moderno. Nesse terreno, é preciso lembrar que vivemos sob a égide de
uma “civilização do risco” que arrasta atrás de si importantes conseqüências
políticas, em especial para as formas de controle social penal, tudo enfeixado
em torno de um Estado de Prevenção. Trata-se de uma modalidade de organi-
zação estatal, voltada prioritariamente para a prevenção e para a segurança,
tendente a orientar-se segundo normas e mecanismos decisórios que reorgani-
18
Sob essa ótica, um zam sem cessar reações a situações de urgência estrutural ou conjuntural
programa de investi-
gação que se propo- (Wagner & Baratta, 1994). Trata-se, por conseguinte, de um Estado armado
nha repensar o contro- contra o perigo e que tende a ver inimigos por toda a trama do tecido social18.
le social na contem- Para terminar, talvez se esteja agora em condições de lançar uma
poraneidade vai ter de
enfrentar algumas es- hipótese explicativa para uma questão anteriormente formulada: pode ser que
pinhosas questões, a obsessão punitiva de nossa sociedade contemporânea, materializada nas
mais propriamente
afetas à filosofia do chamadas “demandas por ordem social”, explique-se justamente pelo modo
direito, como as mu- de funcionamento da sociedade de risco que edifica toda uma imensa e resis-
tações substativas que tente superestrutura de prevenção e segurança (através da proliferação das
vem ocorrendo em,
pelo menos, alguns sociedades de seguro e dos mecanismos de vigilância privada) para fazer face
“paradigmas” (per- aos medos, perigos e ameaças que tornam a vida humana, social e intersubjetiva,
doem-me o emprego
nem um pouco ade- absolutamente incerta. Daí porque, no bojo de fenômenos aparentemente tão
quado do conceito) diferentes e distanciados no tempo e no espaço, como sejam as catástrofes, as
que estruturam o cam- epidemias, os acidentes, o desemprego crônico, extremismos políticos, os cri-
po e o saber jurídico,
em particular as no- mes esteja um mesmo e único problema: uma profunda crise de racionalidade
ções de responsabili- que atravessa a sociedade contemporânea de alto a baixo e que coloca sob
dade, culpabilidade,
contrato, reciprocida- suspeição todas as apostas nas virtudes do progresso técnico, da moderniza-
de, eqüidade. ção e do bem-estar proporcionado pela sociedade industrial.
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ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 19-47, maio de 1998.
ADORNO, Sérgio. Conflict and violence: reflections on anomy in the contemporary world. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 19-47, may 1998.
ABSTRACT: Based on a critical analysis of the essay Law and Order (1985) by UNITERMS:
Ralf Dahrendorf about the erosion of law and order in contemporary society, anomy,
authority,
this article reviews the arguments of the essay pointing out the changes involved law and order,
in the modes of subjection of the individuals. What is in question in the present violence,
turn-of-the-century context of radical transformations is rather the way individuals organized crime,
govern themselves and each other (Foucault, 1984) than the liberation of each drug-trafficking.
individual from social ties and controls – the problem of “ligatures”. In order to
justify this hypothesis, the analytical reference is a specific case: the colonization
of urban criminality by organized crime, specially by one of the most emblematic
examples of violence production in contemporary world: drug-trafficking.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 19-47, maio de 1998.
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ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 19-47, maio de 1998.
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BOSI, Alfredo.Social;
Tempo Camus naRev.
festa do Bom Jesus.
Sociol. USP,Tempo Social;10(1):
S. Paulo, Rev. Sociol.
49-63, USP, S. Paulo,
maio A deR1998.
10(1): 49-63, maio
de 1998. T I G O
RESUMO: Este ensaio analisa o conto de Albert Camus La pierre qui pousse, UNITERMOS:
“a pedra que brota”, incluído em seu livro L’exil et le royaume. O episódio tem Albert Camus,
literatura de resis-
lugar em Iguape, durante a festa dedicada ao Bom Jesus, o santo padroeiro da
tência,
cidade. Um engenheiro francês, d’Arrast, ao chegar em Iguape, encontra um literatura francesa -
pobre, negro, que havia prometido carregar uma enorme pedra para agradecer conto.
um milagre recebido do Bom Jesus. O conto é um tocante exemplo de literatu-
ra de resistência: foi escrito logo após a viagem que Camus fez ao Brasil.
O
último conto de L’exil et le royaume de Albert Camus chama-se
La pierre qui pousse, a pedra que brota. Um engenheiro francês,
d’Arrast, chega a Iguape para dirigir as obras de um dique que
deverá represar as águas do rio e impedir as periódicas inundações
das zonas mais pobres. O seu encontro com a pequena cidade colonial aperta-
da entre a floresta e o mar é o fio condutor da narrativa. E o encanto da sua
escrita vem do sentimento de estranheza que o europeu sente diante de uma
paisagem tão diferente da sua misturado com a alegria de descobrir uma hu-
manidade forte na sua pobreza, viril e fraterna.
Estranheza primeiro, pois as diferenças se impõem. Depois vem a inte-
ligência sofrida do outro: o que foi um caminho recorrente na obra inteira de Camus.
A viagem
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BOSI, Alfredo. Camus na festa do Bom Jesus. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 49-63, maio de 1998.
barba e a toalete matinal. O detalhe sabe a quadro de costumes com seu leve
mordente de sátira, que dá o tom a este segundo momento da narrativa. É a
hora em que entram as autoridades locais. A descrição dos importantes da
cidade é quase caricatural, valendo-se do recorte dos tipos, procedimento
indefectível de toda crônica em terceira pessoa que ama o jogo das superfí-
cies, mas nem por isso deixa de tocar um dos estratos da experiência social.
O prefeito de Iguape tinha a estatura e a fisionomia de uma amável
doninha com seus óculos emoldurados a ouro. Parecia absorvido numa con-
templação tristonha da chuva, mas um sorriso encantador o transfigurou logo
que deu pela presença do ilustre forasteiro. O narrador lhe atribui sestros de
boneco de mola que primeiro se enrijece diante do visitante e depois tenta
aliciar a sua intimidade abraçando-o, gesto por certo inesperado para um fran-
cês, e chamando-o de Monsieur l’Ingénieur. Em seguida chega o juiz, uma
visita que o estrangeiro considera descabida (“o que um juiz teria a ver com a
construção de um dique?”). Tal como o prefeito, esta segunda autoridade
enverga um terno azul marinho, mas é mais jovem e elegante; tal como o
prefeito, estende-lhe os braços e deseja-lhe boas vindas. Mas, na qualidade de
bacharel em Direito, o nosso magistrado não se contém e recita um discurso
encomiástico de recepção. “Ele se orgulhava de acolher Monsieur l’Ingénieur,
era uma honra que este fazia à sua pobre cidade, e se regozijava pelo inestimá-
vel serviço que Monsieur l’Ingénieur ia prestar a Iguape com a construção
desse dique que evitaria a inundação dos bairros ribeirinhos. Comandar as
águas, domar os rios, ó que grandioso mister, e certamente a pobre gente de
Iguape guardaria o nome de Monsieur l’Ingénieur e por muitos anos ainda o
pronunciaria nas suas orações”. Finda a breve peça de eloqüência forense-
municipal, d’Arrast é convidado a dirigir-se ao clube onde os notáveis da
cidade desejavam recebê-lo condignamente.
Nessa altura, o narrador abre parênteses para colher uma vista de
conjunto de Iguape. São flashes, tomadas impressionistas, o que o olhar de
fora pode ver. Uma centena de casas cobertas de telhas descoradas, as ruas
lavadas de chuva, a pracinha retangular de barro vermelho onde pneus e ta-
mancos deixaram marcas, os rebocos multicores das casotas, a igreja colonial
branca e azul. Cenário nu. Odor de sal. Silhuetas molhadas. Multidão sarapin-
tada de gaúchos, japoneses, caiçaras e alguns notáveis bem trajados. Reitera-
se o contraste dos ternos escuros das autoridades com a roupa arlequinal do
povão: o que é, afinal, mais exótico?
Terminando o parágrafo, entra-se no clube. Novos discursos, mas
um incidente desagradável vem turvar o brilho da recepção: o chefe de polícia,
um marmanjo certamente alcoolizado, irrompe no recinto e tem o desplante de
sentenciar, com gestos e brados truculentos, que o passaporte do visitante
francês não estava em termos legais. Mas a situação de constrangimento dura
pouco, porque o juiz, engrossando a voz, fulmina o funcionário importuno e o
expulsa da sala. Pedem-se solenes escusas a d’Arrast, que é, por sua vez,
instado a “decidir sobre a punição que conviria infligir àquele calamitoso per-
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BOSI, Alfredo. Camus na festa do Bom Jesus. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 49-63, maio de 1998.
O homem da promessa
Breve interlúdio
A descida do Santo
estonteado pelo fedor dos charutos e do suor espesso que satura o casebre.
O transe das filhas-de-santo lhe parece terrível, escapam-lhe adjeti-
vos de clara rejeição como “animal” e “horrível” e, no entanto, a interpretação
final da cerimônia ascende a um patamar de alta compreensão humana:
Ao mesmo tempo, todos se puseram a ulular sem pa-
rar, um longo grito coletivo e incolor, sem respira-
ção aparente, sem modulações, como se os corpos se
travassem inteiros, músculos e nervos, numa só emis-
são exaustiva que dava enfim a palavra, em cada um
deles, a um ser absolutamente silencioso.
O transe assume, nesse pensamento generoso, o papel de liberta-
dor de opressões milenares. O transe devolve ao fiel a palavra seqüestrada,
é um momento raro de graça. E a poesia vibra nessa prosa aparentemente
objetiva quando o forasteiro reconhece no meio das coreutas a jovem negra
que lhe servira aguardente na casa do mestre. Naquele instante ele quisera
retê-la, pois tudo nela era vida silenciosa e fugidia. Agora, “vestida com um
traje verde, ela usava um chapéu de caçadora de gaze azul rebatido na fren-
te, guarnecido de plumas de mosqueteiro e trazia na mão um arco verde e
amarelo munido de flechas, em cuja ponta se enganchava um pássaro
multicor. Sobre o corpo grácil, a linda cabeça oscilava lentamente, caída um
pouco para trás, no rosto adormecido se refletia uma melancolia igual e
inocente. Nas pausas da música, ela cambaleava sonolenta. Só, o ritmo
potenciado dos tambores lhe emprestava uma espécie de esteio invisível em
torno do qual ela enovelava seus moles arabescos até que, de novo estacan-
do ao mesmo tempo que a música, ela soltava um estranho grito de pássaro
penetrante e, no entanto, melodioso”.
A Diana negra, cuja dança fascina o estrangeiro, é a última imagem
que ele guarda da festa do santo. O mestre, que o chamara a participar, convi-
da-o a retirar-se; mas ele mesmo continuará dançando até de madrugada, ape-
sar da provocação titânica que o aguarda no dia seguinte, dia da promessa.
O estrangeiro e o Brasil
BOSI, Alfredo. Camus in the Bom Jesus feast. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 49-63,
may 1998.
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BOSI, Alfredo. Camus na festa do Bom Jesus. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 49-63, maio de 1998.
ABSTRACT: This essay analyses Camus’ tale La pierre qui pousse, “The Stone UNITERMS:
that Sprouts”, included in his book L’exil et le royaume. The episode takes place Albert Camus,
literature of resistance,
in Iguape during the feast dedicated to Bom Jesus (Good Jesus), the town’s
french literature - novel.
patron saint. A French engineer, d’Arrast, having arrived in Iguape, meets a
poor Negro who has promised to bear an enormous stone with him in order to
thank for a miracle accomplished by Bom Jesus. The tale is a touching example
of literature of resistance: it was written soon after Camus’ travel to Brazil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
63
WAIZBORT,
TempoLeopoldo.
Social;Classe
Rev.social,
Sociol.Estado
USP,e ideologia.
S. Paulo, Tempo Social;
10(1): Rev.maio
65-81, Sociol.deUSP, A 65-81,
S. Paulo, 10(1):
1998. R TmaioI deG O
1998.
RESUMO: O texto reproduz uma aula para concurso junto ao Departamento UNITERMOS:
de Sociologia da FFLCH-USP, na qual tentei articular o tríptico classe social, Estado,
trabalho,
Estado e ideologia, tendo em mente a situação contemporânea empírica e teó-
ideologia,
rica dos três conceitos. classe,
crise.
C
lasse social, Estado e ideologia: se a idéia é pensar os três ele-
mentos conjuntamente, ou melhor, articulá-los teoricamente de um
modo mais ou menos conseqüente, sem grandes disparidades ou
fissuras, é preciso reconhecer que a tarefa parece se tornar cada
vez mais complexa. A semântica dos três conceitos se transforma no curso
dos dois últimos séculos: veja-se, apenas a título de exemplo, as transfor-
mações do conceito de Estado quando se pensa em “Estado totalitário”, ou
em “Estado do Bem-estar”. Ou quando se fala em “massa”, frente às classes
sociais.
O texto reproduz, sem
Aqui, por essas e outras razões, parece prudente escolher um alterações, prova di-
caminho, o Estado, e, a partir dele, se aproximar dos outros elementos, na dática no concurso
para professor substi-
tentativa de iluminar um pouco a todos, embora apenas fragmentariamente. tuto junto ao Departa-
mento de Sociologia
I. Para iniciar, poderíamos afirmar que uma parte considerável dos da FFLCH-USP em
18/02/1997.
Estados atualmente existentes, uma parte que inclusive compreende todos os
Estados mais desenvolvidos e parte grandemente significativa dos demais –
excluindo as ditaduras e similares que se mantêm nessa década de 1990 – se Professor do Departa-
mento de Sociologia
caracteriza por serem Estados constitucionais que possuem, em alguma medi- da FFLCH-USP
65
WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
1998.
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WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
1998.
trabalho, como diz Offe, é o fato de que a esfera da produção parece estar
perdendo sua importância enquanto determinante na estrutura da sociedade.
O setor secundário parece diminuir suas necessidades de trabalhadores,
enquanto o setor terciário é o setor que se amplia.
Veja-se o exemplo norte-americano, no que diz respeito ao setor
industrial: nos EUA, segundo previsões levantadas por Andre Gorz, a indústria
fornecerá no final do século emprego para 10% da população ativa, o que
significa que os salários distribuídos pelo setor secundário atingem apenas
10% da população ativa (cf. Gorz, 1990, p. 213). E os outros 90%?
O setor terciário surge como grande empregador, e, portanto, como
grande distribuidor de salários. Gorz se pergunta: mas onde se cria valor nesses
serviços do setor terciário? (cf. Gorz, 1990, p. 213).
A isto acresce o fato de que a criação de empregos no setor terciário
é sobretudo criação de empregos de baixa e baixíssima remuneração (cf. Gorz,
1990, p. 213).
A pesquisa mencionada Seade-Dieese atestou, para a Grande São
Paulo, que a maioria dos serviços criados no período são empregos que reque-
rem pouquíssima ou nenhuma qualificação e são muito mal remunerados, além
de se caracterizarem por alta rotatividade: são mais temporários que fixos.
E o “trabalho”, as categorias que ele implica e nas quais ele se dei-
xa circunscrever não se aplicam tão clara e adequadamente ao terciário como
ao secundário. A identidade que o trabalho classicamente fornecia dizia res-
peito sobretudo ao trabalho industrial, e frente à “prestação de serviços” ela
se torna rala e, ao mesmo tempo, opaca. O trabalho torna-se como que “difuso”.
Eu cito Claus Offe:
Os critérios de racionalidade desenvolvidos para a
utilização e controle da força de trabalho na
produção capitalista de mercadorias só podem ser
transferidos para a ‘produção’ de ordem e norma-
lidade realizada pelos serviços dentro de estreitos
limites (...) É esta diferenciação dentro do conceito
de trabalho que (...) parece constituir o ponto de
apoio mais importante do argumento segundo o qual
não se pode mais falar de um tipo de racionalidade
basicamente unificado que organize e governe toda
a esfera do trabalho (Offe, 1989, p. 180) .
Weberianamente, com o processo de diferenciação no interior da es-
fera do trabalho temos o surgimento de sub-esferas que engendram legalidades
próprias: em outros termos: uma racionalidade própria, que no caso significa
uma racionalidade outra do que a que regulava o conceito de trabalho anterior.
Temos, então, um conflito de racionalidades diferentes no interior do mundo do
4
Sobre a ambigüida- trabalho. Isto resulta na sua fragmentação. É ainda neste contexto que se pode
de do trabalho, cf.
Waldenfels (1990, afirmar que o trabalho torna-se crescentemente ambíguo4.
p. 151 ss.). Um outro ponto relativo ao envelhecimento do trabalho diz respei-
72
WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
1998.
73
WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
1998.
WAIZBORT, Leopoldo. Social class, State and ideology. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
9(2): 65-81, may 1998.
UNITERMS: ABSTRACT: This text reproduces a lecture given in the scope of an examination
State, at the Sociology Department of the FFLCH-USP. For the presentation I have
work,
tried to articulate the three concepts “social class”, “State” and “ideology” by
ideology,
class, taking into consideration their actual empirical and theoretical situation.
crisis.
80
WAIZBORT, Leopoldo. Classe social, Estado e ideologia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 65-81, maio de
1998.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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PAIVA,
TempoRita. ASocial;
constituição do Eu:
Rev. os imperativos
Sociol. USP, S.daPaulo,
interpretação
10(1):e 83-104,
a perda demaio
sentido.
deTempo A Sociol.
1998.Social; Rev. R TUSP,
I G O
S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.
A constituição do Eu
os imperativos da interpretação
e a perda de sentido
RITA PAIVA
RESUMO: Este artigo visa a abordar a constituição social do indivíduo. Neste UNITERMOS:
viés, pretende tematizar as exigências necessárias para que o Eu possa per- indivíduo,
sujeito,
manecer estruturado durante toda a vida do sujeito, bem como reportar-nos às
sociedade,
discussões sobre o perfil do homem prevalecente neste fim de século. ideal,
futuro.
F
amiliarizar-se com o discurso sociológico requer a satisfação de
um requisito preliminar: aderir à consensualidade segundo a qual o
indivíduo é um ser inequivocamente atrelado à sociedade, sem a
qual inexiste. Nessa perspectiva, o homem nasce mediatizado pelos
outros e o processo de socialização efetiva a interiorização das regras, das
representações pertinentes ao meio. Em outros termos, a sociedade inscreve-
se na subjetividade do indivíduo viabilizando que ele torne seus os propósi-
tos, o modus vivendis, as “significações imaginárias” do social.
Esta alusão aos pressupostos mesmos da sociologia não vem aqui a
serviço da pretensão subliminar de questioná-los ou refutá-los. Ao contrário,
radicalizar-se-á, no aspecto atinente à relação indivíduo versus sociedade, a
indagação sociológica. Assim, trata-se de forçar o pensamento no sentido de
elucidar que enigmáticos processos permitem que o “pequeno monstro re-
cém-nascido” completamente “a-social, (...) este centro absolutamente
egocêntrico, a-real, ou anti-real” (Castoriadis, 1987, p. 39) metamorfoseie-se
ao ponto de resultar no indivíduo socialmente constituído. Ao satisfazer-se
com a explicação da introjeção racional de regras e valores, acreditando que Mestre em sociologia
os mecanismos acionados no processo de socialização restringem-se ao âmbi- pela FFLCH-USP
83
PAIVA, Rita. A constituição do Eu: os imperativos da interpretação e a perda de sentido. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.
o mundo exterior e social não se efetivasse, uma vez que a psique não poderia
engendrar sua humanidade a partir de si mesma.
O intuito de situar nestas linhas os pontos fundamentais com os
quais Piera Aulagnier reflete sobre o surgimento do Eu é, fundamentalmente,
o de salientar que o que na sociologia sempre foi concebido sob a égide da
introjeção racional das regras, de interiorização consciente, envolve um pro-
cesso muito mais radical. Dito de outro modo, o encontro estruturante da mãe
com o infans opera em dimensões inconscientes que estruturam a psique e são
tão cruciais quanto os processos conscientes. Faz-se imprescindível acrescen-
tarmos, entretanto, que a constituição do Eu no registro de Aulagnier remete-
nos, irredutivelmente, a um projeto identificatório, à relação do Eu com seus
ideais que, inclusive, se dá em simultaneidade com o surgimento do Eu. Ade-
mais, é na relação com o outro, na apropriação dos enunciados maternos que
o sujeito se constitui e é na relação com os seus objetos que o constructo de
sua história ganha direito de cidadania. Se, numa primeira instância, os
referenciais identificatórios são fornecidos pelos pais, que envolvem a criança
na sua libido narcísica – envolvimento do qual devém o ego e seu correlato, o
ideal –, posteriormente caberá à sociedade apontar estes horizontes a serem
vislumbrados e almejados pelo Eu e nos quais ele pretenderá se espelhar. Isso
posto, enveredemos pelas considerações da autora concernentes ao contrato
narcisista que toda sociedade estabelece com os indivíduos.
Vimos que os enunciados maternos são fundamentais para o apare-
cimento da instância psíquica que corresponde ao Eu. No entanto, os corolários
da fala materna não seriam dotados de profunda significação caso ignorásse-
mos as leis e os princípios que os perpassam e pelos quais eles se orientam.
Nessa perspectivação, Piera Aulagnier vai problematizar a cena extrafamiliar
e a influência do registro sociocultural sobre a constituição do Eu. O primeiro
tópico para o qual a argumentação da autora se dirige é o discurso do meio
como discurso fundador, fonte emissora de algumas certezas partilhadas. A
existência de um discurso de certeza sobre a origem e sobre a fundação alicerça
a crença na possível verdade quanto às pretensões futuras. A rigor, o discurso
do meio enquanto elemento fundador da cultura institui o que Aulagnier de-
nomina contrato narcisista. Esse perfaz o momento primordial no qual o in-
divíduo socializado pode constituir-se e remete, também, a um discurso repre-
sentativo das leis que orientam o grupo. Essas leis constituem o alicerce da
representação que os sujeitos elaboram sobre o meio ideal.
Parafraseando Aulagnier, o todo da sociedade presentifica um con-
junto de vozes que fornecem referenciais identificatórios que permitem aos
sujeitos se projetarem para o futuro, logrando assim o afastamento do primei-
ro suporte identificatório. Ou seja, assim como o meio familiar é marcado por
um conjunto de enunciados identificatórios cujos suportes se encontram nos
pais, o meio social também é propiciador de fontes de identificação cujo ali-
cerce já não reside no casal parental, mas no próprio meio. O deslocamento
dos primeiros enunciados (pais) para os enunciados sociais viabiliza-se em
88
PAIVA, Rita. A constituição do Eu: os imperativos da interpretação e a perda de sentido. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.
PAIVA, Rita. The constitution of Self: the imperatives of interpretation and the loss of sense. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 83-104, may 1998.
ABSTRACT: This article aims to approach the social constituition of de indivi- UNITERMS:
dual. In this direction its intention is to bring into subject the necessary self,
individual,
requirementes for de Self to keep its structure all life long as well as to refer
society,
to the discussions on what the prevalling human being at this end-of-the- ideal,
century is like. future.
103
PAIVA, Rita. A constituição do Eu: os imperativos da interpretação e a perda de sentido. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 83-104, maio de 1998.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
104
GULLO,
Tempo Álvaro de Aquino
Social; e Silva.
Rev. Violência
Sociol. USP, urbana: um problema
S. Paulo, 10(1):social. Tempo
105-119, Social;
maio deRev. Sociol. USP,AS. Paulo,
1998. R T10(1):
I G O
105-119, maio de 1998.
Violência urbana
um problema social
ÁLVARO DE AQUINO E SILVA GULLO
RESUMO: O presente artigo reúne um conjunto de reflexões sobre diversos as- UNITERMOS:
pectos em que se manifesta a violência social. Essas reflexões, apresentadas em violência,
violência social,
momentos diferentes, como aulas, debates e num congresso, foram agrupadas
violência urbana,
sob o título de Violência Urbana porque concorrem para a compreensão da vio- marginalidade social,
lência cotidiana enquanto problema da sociedade urbana. Dos cursos regulares, símbolos sociais,
registro a concepção inicial, tomada da antropologia social, que leva à caracteri- meios de comunicação
de massa.
zação da violência na sociedade rural para fundamentar a gênese do problema
na sociedade contemporânea de classes sociais, focalizado na perspectiva da
marginalidade estrutural. Dos debates sucitados por acontecimentos traumáticos
envolvendo o aparato policial, resultou uma discussão sobre as causas da violên-
cia inerente ao desempenho da função institucional atribuída às polícias militar e
civil. Da participação em congresso sobre o novo Código de Trânsito Brasileiro,
resultou a parte final deste artigo que discute o papel e, particularmente, o signi-
ficado dos símbolos sociais divulgados pelos meios de comunicação de massa,
como fatores responsáveis pela crescente violência no trânsito.
A
violência, considerada como um fenômeno social, é analisada como
um filtro que permite esclarecer certos aspectos do mundo social
porque denota as características do grupo social e revela o seu signi-
ficado no contexto das relações sociais.
Nas sociedades primitivas, promove os mais aptos para se tornarem
os defensores do grupo. Nas sociedades contemporâneas, consolida estruturas Professor do Departa-
mento de Sociologia
de poder, particularmente as fora da lei sob o controle de grupos organizados da FFLCH-USP
105
GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. Violência urbana: um problema social. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
105-119, maio de 1998.
seu veículo, até que o abandona e parte para a violência. Já em Estranhos pra-
zeres (Crash, 1997), de David Cronenberg, o carro é a fonte da violência que
gera o prazer. O prazer erótico, sensual que a violência do desastre provoca. É
um filme sobre morte, sexualidade e tecnologia onde o carro é tratado como
mito devido à fascinação que exerce sobre o homem moderno. O carro represen-
ta potência sexual através do arranque do motor levando a uma excitação sexual
próxima da morte. Já nos anos 60, Jean-Luc Godard apresentou Week-end, onde
filmou acidentes numa auto-estrada para expressar o polo negativo de uma so-
ciedade em que o carro é elemento de massificação do comportamento quando
todos são compelidos a congestionar as estradas provocando terríveis acidentes.
Na verdade é uma violência pavimentar auto-estradas sem sinaliza-
ção ou fiscalização eficientes, entregar avenidas sem lombadas ou valetas, dei-
xar ruas e praças mal sinalizadas e sem qualquer tipo de controle do tráfego.
Reconhecemos que a fiscalização é insuficiente nos grandes centros urbanos, e
longas polêmicas jurídicas e legais sobre quem pode e deve aplicar multas de
trânsito, como vem ocorrendo em São Paulo, só servem para confundir os moto-
ristas e incitá-los ao desrespeito das leis do trânsito. Não será apenas a regula-
mentação do novo Código de Trânsito Brasileiro que possibilitará um controle
mais efetivo sobre o respeito às leis do trânsito. O sentido social antecede ao
princípio jurídico-legal da punição. A falta de uma política nacional para esta-
belecer os parâmetros sociais da ação dos motoristas quanto ao sentido social
dessa atividade, contribui mais para confundir sobre as normas de trânsito do
que para esclarecer sobre os direitos e deveres de quem sai dirigindo um veículo.
Na ausência de parâmetros gerais, cada um dá a sua interpretação do que é
permitido e assiste-se ao triste espetáculo de motoristas abusando das normas
mais elementares de respeito no trânsito. As campanhas de esclarecimento são
sempre circunstanciais, localizadas e transitórias, não chegam a desenvolver e
consolidar novas formas de comportamento, exceto como no caso do uso do
cinto de segurança em São Paulo, que, por força de multas elevadas, impôs seu
uso freqüente, que parece estar se consolidando como norma de comportamento
enquanto houver fiscalização. Todavia, o ex-prefeito Paulo Maluf, mentor da
medida, quando ocupava o cargo de prefeito, deu dois exemplos, registrados
pelas reportagens dos jornais Folha de S. Paulo, em 22/01/93 e de O Estado de
S. Paulo, em 30/05/94, de desrespeito às normas mais elementares do trânsito,
explicando suas infrações com as costumeiras evasivas de culpar terceiros por
atitudes de sua inteira responsabilidade. No primeiro caso, culpando o motorista
que estava às suas ordens, por ter “costurado” e andado a 130 km/h, e no segun-
do caso, a falta de fiscalização nas ruas e avenidas por onde “pilotou” seu Ja-
guar Lister modelo Les Mans a mais de 160 km/h. É o caso da autoridade des-
provida do sentido social de sua tarefa, apenas circunscrita a medidas legais
político-eleitoreiras.
Conclusões sobre o reforço da publicidade:
1. A socialização ou processo de aprendizado social incorpora a
ideologia da sociedade urbano-industrial através da publicidade divulgada pelos
116
GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. Violência urbana: um problema social. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
105-119, maio de 1998.
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GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. Violência urbana: um problema social. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
105-119, maio de 1998.
GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. Urban violence: a social problem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 105-119, may 1998.
ABSTRACT: This article contains some reflections on how social violence ex- UNITERMS:
presses itself. These reflections, presented in former moments as lectures, public violence,
social violence,
debates and at a congress, have been gathered under the title of Urban Violence
urban violence,
because they all try to comprehend everyday violence as a problem of urban social marginality,
society. Based on the lectures I have formulated the first part of this article, which social symbols,
deals with a conception taken from social anthropology: the characterization of mass media.
violence in rural society under the perspective of structural marginality, in order
to explain the genesis of this problem in the actual social class society. The
debates, that took place because of traumatic happenings related to the police
apparatus, have brought about a discussion of the causes of violence inherent to
the performance of the institutional functions’ of military and civil police. The last
part of this article is the result of my taking part in a congress organized in order
to debate the new Brazilian Traffic Code. It takes into account the role and,
particularly, the meaning of the social symbols divulged by the mass media as
aspects responsible for the increment of traffic violence.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
119
GIDDENS,
TempoAnthony. Entrevista
Social; a Maria Lúcia
Rev. Sociol. USP,Garcia Pallares-Burke.
S. Paulo, Tempo Social;
10(1): 121-128, maioRev.
de Sociol. ENTREVISTA
1998.USP, S. Paulo, 10(1): 121-128,
maio de 1998.
Anthony Giddens
Entrevista concedida
a Maria Lúcia Garcia
Pallares-Burke, publi-
cada parcialmente no
jornal Folha de S. Paulo,
caderno Mais, 02/03/97,
p. 5-10.
RESUMO: Nesta entrevista, Anthony Giddens discorre sobre temas contempo- UNITERMOS:
râneos que instigam as ciências sociais no estudo de fenômenos sócio-econô- sociologia,
Brasil,
mico-políticos mundiais e suas relações com a América Latina e o Brasil.
LSE,
Fernando Henrique
Cardoso.
A
famosa London School of Economics ria da LSE mostra que, diferentemente do que
and Political Science, a escola da suas origens poderiam fazer supor, ela procu-
University of London mais conhecida rou pautar seu trabalho pelo espírito de impar-
pela sigla LSE, acaba, ao que tudo in- cialidade e abertura. Exemplo disso é que tanto
dica, de iniciar uma nova fase na sua existência encontramos em seus quadros os idealizadores
de mais de um século. Seu novo diretor, o do estado de bem-estar social, como Beveridge
renomado sociólogo Anthony Giddens, preten- e Marshall, como também defensores da econo-
de fazer dois acréscimos substanciais à sua mia de mercado, como Hayek, um dos vários
inquestionável excelência acadêmica: trans- ganhadores de Prêmio Nobel que a escola orgu-
formá-la num importante centro cultural de Lon- lhosamente coleciona. A variedade de perspec-
dres e envolvê-la na elaboração de uma nova tivas que seus dezoito departamentos têm abri-
agenda política, tarefa que, segundo ele, se tor- gado ao longo do tempo – e que possibilitou o
nou inevitável após a derrocada das antigas di- trabalho de figuras influentes e diversas como,
visões entre esquerda e direita. por exemplo, H. Laski, K. Popper, K. Mannheim,
Fundada em 1895 pelo casal de soci- B. Malinowski, R. H. Tawney e E. Power – se
ólogos e historiadores socialistas Beatrice e reflete também na variada clientela que a LSE
Sidney Webb – e com o apoio de socialistas da atrai. A diversidade étnica dos seus alunos de
Fabian Society, como Bernard Shaw – a histó- graduação e pós-graduação (quase 400 brasi-
121
GIDDENS, Anthony. Entrevista a Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 121-128,
maio de 1998.
leiros nos últimos 10 anos) faz dela um centro medida que tem atraído, em antecipação, rea-
cosmopolita extremamente fértil para o diálogo ções divergentes e apaixonadas. Uma outra ta-
cultural e intelectual. Quanto ao sucesso dos que refa que o aguarda, essa bem mais agradável, é
passaram por seus bancos, basta lembrar que a entrega do grau honorário de DSc (Doctor of
dentre seus ex-alunos – oriundos de uma cente- Science) a Fernando Henrique Cardoso, home-
na de países – se encontram, pelo mundo afora, nagem de uma escola que se orgulha de todos os
23 primeiros-ministros, presidentes ou chefes de cientistas sociais que se destacam no cenário pú-
Estado, 41 presidentes de bancos, 120 minis- blico mundial.
tros, embaixadores ou consultores de governo e Dez dias após sua posse, ocorrida a 6
26 diretores de instituições de ensino superior. de janeiro de 97, Giddens nos recebeu em sua
Segundo os admiradores de Giddens, sala na LSE. Diplomata e cauteloso, de fala
suas credenciais acadêmicas, administrativas e mansa e quase monocórdica, e com modos de
empresariais o qualificam amplamente para fa- alguém ao mesmo tempo firme, confiante e des-
zer com que a LSE dê uma contribuição decisi- pretensioso, ele falou sobre suas novas ambi-
va aos rumos de um mundo envolvido em um ções, sobre os impasses das universidades e da
processo de globalização sem precedentes. Au- modernidade, sobre as fraquezas do neoli-
tor de 30 livros – que tratam desde a sociologia beralismo, sobre as realizações de Fernando
do suicídio e das emoções até a teoria da Henrique Cardoso etc.
estruturação social e as conseqüências da
modernidade – traduzidos em 22 línguas, uma
medida de sua reputação intelectual é o que se Um de seus mais eminentes predecesso-
chama de “indústria Giddens”, ou seja, os vári- res, R. Dahrendorf, ao assumir a direção des-
os livros dedicados por outros autores à discus- ta mesma instituição disse que “uma universi-
são da suas idéias. “Se houvesse prêmio Nobel dade não quer e não precisa ser dirigida... ba-
de Sociologia, Giddens estaria no topo da lis- sicamente ela se dirige por si só através de seus
ta”, disse recentemente um de seus entusiastas misteriosos ‘caminhos habituais’”. O que acha
colegas. Enquanto administrador, um de seus dessa visão?
grandes feitos foi estabelecer a Faculty of So- Concordo com ele que uma universidade
cial and Political Science na Universidade de não é uma empresa e que não pode ser dirigida
Cambridge, lugar hostil a inovações, e onde as como se fosse um negócio. Por outro lado, acho
ciências sociais ocupavam até o fim da década que hoje em dia a universidade também tem de
de 60 uma posição bastante marginal. Quanto a ser guiada, a liderança sendo crucial para o seu
seus dotes empresariais, a reputação e o suces- destino. Acredito que quando Dahrendorf fez
so da Polity Press, editora por ele fundada há aquela afirmação as universidades eram com-
dez anos, são por si só testemunhos de suas múl- pletamente financiadas pelo Estado e tinham um
tiplas habilidades. número de estudantes bastante estável. Agora,
Nem tudo será, no entanto, um mar ao contrário, elas enfrentam os mesmos proble-
de rosas nessa nova carreira de Giddens. Man- mas de muitas outras instituições modernas: de
ter a excelência da LSE e ampliar a sua esfera um lado, o Estado não mais vai sustentá-las to-
de atuação envolve a questão extremamente po- talmente e, de outro, elas não podem ser deixa-
lêmica e delicada do ensino público pago. Em das inteiramente nas mãos da iniciativa privada
princípio já aprovada a cobrança de anuidades porque não se encaixam na filosofia do merca-
por um comitê central, dependerá de Giddens, do. Instituições como hospitais e universidades,
no entanto, a implementação ou não de uma por exemplo, têm de encontrar um meio de se
122
GIDDENS, Anthony. Entrevista a Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 121-128,
maio de 1998.
reestruturar num tipo de associação entre o Es- essas mudanças. Nesse quadro, acredito que a
tado e os incentivos de mercado. Numa era em LSE possa novamente fornecer recursos intelec-
que fica mais e mais evidente que os serviços tuais para atender a essas novas necessidades e
públicos não vão ser mais financiados como também influenciar a reação do governo diante
antes, o desafio dessas instituições – e isso, acre- desse novo estado de coisas. Sim, pois, no meu
dito, em muitas partes do mundo – é descobrir entender, as velhas instituições governamentais
que espécie de parceria deve ser criada para en- não podem se sustentar do mesmo modo que
frentar de modo eficiente, e sem nostalgia, uma antes. Este é realmente um mundo muito dife-
nova era. rente, que não só assiste ao colapso do socialis-
mo e do keynesianismo, mas que deve enfrentar
O que o atraiu para essa posição na um futuro que se torna mais e mais imprevisível.
LSE? Seguramente precisamos de algo bem mais con-
Uma série de coisas. Em primeiro lugar, creto e prático do que a resposta pós-modernis-
estava em busca de uma nova ambição. Tendo ta, que simplesmente cruza os braços diante do
estabelecido em Cambridge a Faculty of Social colapso do comunismo e das frustrações da
and Political Science e a Polity Press achei que modernidade. Dizer que o mundo escapou do
já havia feito lá tudo o que podia fazer. Dirigir a nosso controle, que nada podemos fazer, que en-
LSE, a mais famosa instituição de ciências so- trou numa espécie de Idade Média e que só nos
ciais do mundo, me pareceu uma oportunidade resta sorrir e ser irônicos, como quer o pós-mo-
incrível de influir no diálogo intelectual e tam- dernismo, é, no mínimo, insensato. Há coisas
bém no programa político do governo. Quando, que não só se pode como se deve fazer tanto no
após 1945, o estado de bem-estar social estava plano intelectual quanto prático.
sendo construído, a LSE desempenhou um pa-
pel central. O Primeiro Ministro da época, Uma das mais importantes questões
Clement Attlee, era um professor da LSE; Harold politicas que o senhor terá que enfrentar é a
Laski, também professor, era chairman do Par- que diz respeito à introdução do ensino pago
tido Trabalhista. Outras importantes figuras da na LSE, sabendo que qualquer que seja a de-
LSE, como T. H. Marshall e Beveridge, foram cisão final dessa instituição de ponta ela ser-
os idealizadores do estado de bem-estar social. virá de modelo para outras instituições de en-
A LSE foi, pois, uma instituição que exerceu sino superior britânicas. Como no Brasil, onde
uma influência pública maciça, não só no plano essa questão polêmica tem sido também dis-
nacional como mundial, já que o estado de bem- cutida, alguns argumentam que a cobrança é
estar social se tornou um fenômeno global. Não antidemocrática, e outros, ao contrário, que
vejo porque agora, sob minha direção, não pos- não cobrar é que é antidemocrático. O que
sa se iniciar uma espécie de renascimento da in- pensa dessa polêmica?
fluência que teve no passado. Pois eis-nos aqui, Só posso responder a isso de um modo
no final do século 20, sabendo que as divisões muito geral porque ainda estou estudando a si-
entre esquerda e direita não significam a mesma tuação financeira da LSE. Mas, em princípio,
coisa que no passado, e sabendo também que, há dois aspectos nessa questão: é, em geral, uma
devido à expansão do mercado e da tecnologia, minoria da população que se beneficia da edu-
o mundo está mudando numa rapidez sem pre- cação universitária e não é razoável imaginar que
cedente. Diante disso, precisamos tanto interpre- todo o restante da sociedade deva simplesmente
tar os novos rumos que o mundo está tomando financiar essa minoria. Diante disso, as univer-
como pensar numa resposta política razoável a sidades por todo o mundo estão tendo que fazer
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GIDDENS, Anthony. Entrevista a Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 121-128,
maio de 1998.
uma reestruturação financeira que, acredito, terá se pode mais depender das velhas soluções de
necessariamente que envolver muita contribui- esquerda. Acredito, pois, que o que Blair está
ção monetária das pessoas que usufruem desse tentando é fazer com que o Partido Trabalhista
ensino. De outro lado, qualquer que seja o siste- rompa com a velha esquerda, mantendo-se, ao
ma de financiamento escolhido, é crucial, no meu mesmo tempo, fiel a seus ideais de combate à
entender, que se defenda o acesso dos alunos desigualdade e de luta pela justiça social. Só que,
mais pobres ao ensino superior. Toda a questão hoje em dia, o desafio é tentar conciliar o ideal
da estratificação na sociedade moderna é real- de justiça social com um mercado global com-
mente muito difícil e é uma tolice imaginar que petitivo. Não penso que Blair tenha produzido
seja fácil de ser resolvida. As universidades, as- um programa final de governo a partir dessas
sim como as instituições de serviço médico, re- noções, mas, afinal de contas... quem já conse-
fletem a sociedade mais ampla e não podem re- guiu? Contrariamente ao que muitos pensam,
solver sozinhas os problemas da estratificação considero que Blair é o oposto do conservador.
social. Em sociedades como a nossa ou outras, Ele está pensando ousadamente e procurando se
como a brasileira, que são muito polarizadas, as afastar das tradições de seu partido. E, se vocês,
universidades devem desempenhar um papel no no Brasil, conseguiram ter um sociólogo como
processo de democratização, mas só podem fazê- presidente, não acho muito fantasioso querer que
lo em conjunto com outros programas de demo- a sociologia influencie o projeto de Blair.
cratização e igualização. A maioria dos esque-
mas em pauta propõe usar o pagamento dos alu- Quão importante é a América Latina em
nos de maior poder aquisitivo, feitos através de geral e o Brasil, em particular, para o senhor
empréstimos ou não, para manter os alunos me- e a escola que dirige?
nos afluentes. Imagino que algo como isso terá Não conheço ainda a escola suficientemen-
de ser feito. te para dar uma resposta muito detalhada sobre
isso. O que sei é que há muitas pessoas na LSE
Ouve-se falar muito, ultimamente, de sua bastante interessadas e conhecedoras da Améri-
grande afinidade com Tony Blair, o provável ca Central e do Sul. Quanto a mim, no entanto,
futuro primeiro-ministro. Como o senhor vê o posso dizer que o Brasil me interessa particu-
papel da LSE num governo trabalhista, após larmente não só por ser uma das maiores econo-
décadas de um governo conservador que, de mias globais, mas porque ali se vêem bons exem-
acordo com seus muitos críticos, solapou a plos das tendências e problemas mundiais que
educação britânica? desafiam o mundo moderno. Em alguns aspec-
Em primeiro lugar, devo dizer que falei tos, penso que o Brasil está na vanguarda de
com Blair em várias ocasiões, mas não sou e outros países, em outros bem atrás. Temos, de
não pretendo ser seu consultor direto. Acho que uma lado, uma sociedade bem sucedida econo-
isso nem seria apropriado para mim enquanto micamente mas, de outro, este sucesso está con-
diretor da LSE. O que eu sou é um simpatizante finado a uma minoria da população. É também
do projeto de Blair, que entendo que seja pauta- uma sociedade com uma história bastante inte-
do pelo reconhecimento de alguns pontos: de que ressante de relações étnicas, e apesar de se po-
o mundo está mudando em seus traços funda- der dizer que quanto mais alto na escala social
mentais, de que a globalização determina mu- se está mais branco se é, quando se compara o
danças de todos os níveis na vida das pessoas, e Brasil com os EUA a diferença é gritante. O grau
de que, diante do fato de que a realidade de hoje de segregação que lá se encontra não existe en-
é muito diferente da de 20 ou 30 anos atrás, não tre vocês. No Rio fiquei realmente impressiona-
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GIDDENS, Anthony. Entrevista a Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 121-128,
maio de 1998.
do com uma miscigenação tão visível e tão rara. exemplo, não podem ser resolvidas por ele. Em
Pessoas jogando bola na praia e todas se mistu- terceiro lugar, o mercado parece produzir con-
rando é o que não se vê na maioria dos demais seqüências polarizadoras, o problema da
países. A vivacidade essencial brasileira – que estratificação social sendo um dos mais cruciais.
deve ser o resultado da cultura e não da econo- O que é bem óbvio no Brasil está se tornando
mia – faz também do país um lugar especial- também mais e mais óbvio na Europa, onde é
mente interessante e atraente. Eu penso que o visível uma crescente desigualdade econômica
que acontece no Brasil provavelmente tem a cha- após um período em que a igualdade estava
ve para o que acontece, em certo sentido, em toda crescendo e se impondo. Tudo isso exige algum
a América Latina. É, pois, um país-chave no pal- tipo de solução que talvez seja achada por al-
co mundial. guns teóricos da economia, mas que serão, com
toda probabilidade, pensadores bem diferentes
No Brasil, os economistas adquiriram dos neoliberais: economistas que certamente
nas últimas décadas um status bastante alto pensarão mais historicamente, mais em conjun-
que, paradoxalmente, não diminuiu com o fim to com outros cientistas sociais, e que estarão
do chamado Milagre Brasileiro e os crescen- interessados em ver as questões não só sob um
tes problemas econômicos que o país passou a ângulo predominantemente técnico.
enfrentar. Para alguns, o poder e a autoridade
que os economistas usufruem são bastante Como se sabe, Fernando Henrique Car-
injustificados. Concorda com essa crítica? E doso, um eminente sociólogo de esquerda,
diria que os sociólogos ou cientistas sociais como o senhor, tem sido acusado de conduzir
são, em geral, mais qualificados para exercer uma política neoliberal desde que se tornou
poder e autoridade? chefe de estado. Como vê esta mudança?
É, na verdade, fácil entender que em uma Acho que qualquer um na sua posição se-
época em que o neoliberalismo é a teoria domi- ria alvo desta acusação. A mesma crítica é feita
nante, os economistas ocupem uma posição cen- aqui contra Blair, apesar de ele não ter começa-
tral. Querendo ou não, com a morte dos velhos do como um sociólogo, mas, sim, como mem-
sonhos marxistas estamos vivendo numa “civi- bro de um partido que tem uma tradição de es-
lização dos negócios”, e neste tipo de civiliza- querda; e, segundo os críticos, Blair está se dei-
ção a teoria da concorrência e a economia de xando seduzir por uma filosofia de direita. O
mercado (em que se resume, essencialmente, o que imagino que Cardoso esteja tentando fazer
neoliberalismo) desempenha um papel central. – e o que é muito difícil quando se está no po-
Por outro lado, estamos, acredito, aprendendo a der – é realmente encontrar um caminho para
reconhecer as limitações e as dificuldades do além do velho dilema direita-esquerda. Na ver-
neoliberalismo, que são de vários tipos. Em pri- dade, superar esse dilema é o que todos nós ou
meiro lugar, é uma espécie de filosofia contra- fomos liberados para fazer ou estamos conde-
ditória que mistura autoritarismo moral com fi- nados a fazer. Quero dizer que há muitas ques-
losofias libertárias de mercado. As mesmas pes- tões – como as ecológicas e as relativas à
soas que se curvam às leis do mercado querem globalização – que claramente escapam ao sim-
Estado e família fortes. Ora, essas duas exigên- ples dilema entre esquerda e direita. Dito isto,
cias são contraditórias, incompatíveis. Em se- é, no entanto, verdade que como o neolibe-
gundo lugar, é inegável que o mercado não pode ralismo é tanto a ideologia da globalização
tomar decisões de longo alcance e que questões quanto a teoria da globalização, parece inevi-
centrais da humanidade, como as ecológicas, por tável que se tenha de se adaptar um pouco a
125
GIDDENS, Anthony. Entrevista a Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 121-128,
maio de 1998.
ele, não importa o que se tente fazer no país. de bem-estar social. Há muitas pessoas que gos-
Apesar de tudo, estamos todos tentando imagi- tariam de assistir a um renascimento disto, o que
nar qual poderia ser uma outra teoria política. não é possível. Suponho que Cardoso seja con-
Quando se está no poder é bem mais difícil pen- tra o que eu chamo de nostalgia de direita ou de
sar teoricamente e haverá sempre os que dirão esquerda. Entendo por nostalgia de esquerda a
que não estamos agindo de acordo com nossos nostalgia dos sonhos do estado de bem-estar so-
ideais. Lembremos que Max Weber disse que se cial, enquanto que nostalgia de direita é a nos-
tem, na verdade, duas escolhas: ou se é um inte- talgia da chamada família tradicional e dos sím-
lectual, relativamente puro, ou se é um líder po- bolos tradicionais da nação. Para os nostálgicos
lítico que necessariamente está envolvido com de uma ou outra ordem, é muito fácil criticar as
o poder, a política e todos os compromissos que pessoas no poder. É possível que Cardoso tenha
isso implica. Considero que tentar unir essas cometido grandes erros, mas como um observa-
duas coisas é algo que denota bastante bravura. dor de fora eu diria que ele, dentro dos limites
É bem mais fácil permanecer na biblioteca e con- do possível, conseguiu muito.
denar os que ousam fazer isso. Não quero, en-
tretanto, dizer que os intelectuais se tornam ne- Para os países que estão na periferia ou
cessariamente bons líderes políticos, do mesmo na semiperiferia da vida intelectual do ociden-
modo que acho que bons líderes não são neces- te parece que os centros não prestam muita
sariamente bons intelectuais. Nisso Weber esta- atenção ao que é produzido fora deles. Pen-
va certo, pois parece que normalmente as vidas sando no Brasil, podemos, por exemplo, no-
contemplativa e ativa exigem personalidades di- mear sociólogos, como Florestan Fernandes,
ferentes, com algumas poucas exceções. Estou que fizeram contribuições bastante inovado-
muito longe de ser um especialista em Brasil, ras ao pensamento sociológico desde os anos
mas por tudo que sei parece que Cardoso fez 50, mas que são desconhecidos dos intelectu-
fundamentalmente um bom trabalho diminuin- ais ingleses, com exceção dos brasilianistas.
do a inflação. Haveria algo mais significativo Concorda que há, de fato, um tal descaso? Se
do que isso a ser feito nesse curto espaço de tem- sim, o senhor tentaria sanar isso procurando
po? Acredito que não. Quanto a saber se essa desenvolver um tráfico de idéias em duas di-
realização vai ser duradoura, só se pode espe- reções e criar condições para uma um verda-
cular. Um livro recente chamado The death of deiro diálogo intelectual?
inflation sugere que a queda da inflação é parte Essa é uma situação que existe, de fato,
de uma tendência global e que, portanto, se um em muitas partes do mundo, mas que, no meu
hábil líder político conseguir se unir a essa ten- entender, está melhorando bastante nos últimos
dência, a inflação pode cair e se manter assim. tempos. O que me impressiona quando viajo é
Mas, fora especulações como essas, as coisas verificar que o debate intelectual está se tornan-
não são previsíveis e, no meu entender, a queda do muito mais globalizado. Você encontra pes-
da inflação é umas das grandes realizações de soas discutindo os mesmos problemas em todo
Cardoso. Outra questão é que para ninguém ain- o mundo, o que significa que intelectuais de vá-
da está muito claro qual deveria ser a alternati- rias origens podem se comunicar porque há
va ao neoliberalismo. O que se sabe claramente muito menos dificuldades, menos tradições in-
é que não deve ser a restauração do keynesianis- telectuais diferentes do que no passado. É ine-
mo – que era a teoria de esquerda típica, defen- gável, no entanto, que o imperialismo da língua
sora da colaboração dos sindicatos e do Estado inglesa é uma realidade difícil de contra-atacar
e da redistribuição da riqueza através do estado e que gera problemas. Há, por exemplo, traba-
126
GIDDENS, Anthony. Entrevista a Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 121-128,
maio de 1998.
lhos inferiores escritos em inglês que dão fama nheiro que cada um carrega no bolso. Ora, isso
aos seus autores e trabalhos superiores escritos, não é diversidade, mas, sim, uma espécie de
por exemplo, em português que não são tradu- estandardização. Pode não haver leis universais
zidos e relegam seus autores à obscuridade. Isso sobre isso, mas certamente há a necessidade de
é o que tem acontecido e não tenho uma solução se generalizar, já que é uma situação que gera
muito clara para isso. Eu espero que a LSE seja conseqüências para todas as regiões do globo,
um centro de comunicação dialógica porque, no inclusive as menos desenvolvidas. Tem-se, en-
meu entender, o futuro do mundo depende do tão, que relacionar o geral e o particular e negar
diálogo para combater a violência. Quer sejam a idéia de que não se pode mais generalizar so-
duas nações, duas áreas culturais, ou dois indi- bre nada. Afirmar que só há diversidade e que
víduos, o mundo só poderá sobreviver se as pes- não existe qualquer afirmação válida que possa
soas puderam conversar umas com as outras, en- se aplicar a todas as diversidades é, essencial-
tender umas as outras. Na verdade, acredito que mente, uma falsa idéia pós-moderna.
esse diálogo intelectual já está sendo imple-
mentado pois a democracia é uma das idéias O senhor escreveu um livro de grande
triunfantes da atualidade. Não há, hoje em dia, sensibilidade sobre a intimidade e, ao mesmo
muitos estados no mundo que ousariam não se tempo, tem a reputação de ser alguém que nun-
chamar de democráticos, apesar de poderem, na ca se mostra em seu trabalho e de ser uma pes-
realidade, não o ser. De qualquer modo, demo- soa fria, que esbanja em eficiência, mas que
cracia pressupõe diálogo, soluções comunicati- carece de emoção; uma pessoa “tão seca como
vas para problemas que no passado eram resol- um biscoito”, conforme a descrição do The Ti-
vidos pela violência. Estamos, pois, assistindo mes. Como explica esse aparente paradoxo?
ao fomento de instituições democráticas não so- Por aí se vê como as notícias correm! O
mente dentro dos estados nacionais, mas em ter- jornalista que me descreveu como sendo seco
mos transnacionais. Sem negar todos os riscos como um biscoito estava se baseando nas infor-
que o futuro implica, as forças já estão, em cer- mações contidas no Who’s Who (que eu próprio
to sentido, aí a produzir diálogo, a produzir co- não forneci, pois não me importo com isso), onde
municação. não consta nenhum interesse ou hobby meu.
Quanto a ser uma pessoa fria, não me vejo como
O senhor acha que os teóricos sociais de- tal, preferindo, no entanto, deixar meu lado pes-
vem preferencialmente buscar leis gerais que soal fora do domínio público. Mas, talvez ajude
governam qualquer sociedade ou, ao contrá- saber que eu não teria escrito esse livro sobre a
rio, que eles devem, como os teóricos da de- sociologia das emoções não fossem os 5 anos
pendência, partir de diversidades – como, por de psicoterapia que me ensinaram a me perce-
exemplo, a tensão entre centros e periferias – ber melhor, a ver melhor os outros e me desper-
e teorizar a partir dessas perspectivas? taram intelectualmente para a importância das
Penso que não se pode começar com ne- emoções, assunto banido das ciências sociais e,
nhuma das duas; tem-se que partir, em certo sen- talvez de um modo geral, da cultura intelectual
tido, de ambos os pólos. Sou muito contrário à do ocidente. A vida sexual e emocional tem
idéia pós-moderna de que tudo é relativo ao con- muito mais impacto na cultura intelectual do que
texto, que só há diversidade, pois acredito na é usualmente reconhecido. Há dados sobre a in-
existência de forças muito gerais movendo o timidade de Marx e Max Weber e sobre suas vi-
mundo; por exemplo, os mercados monetários das emocionais torturadas que são bastante
mundiais têm uma influência fantástica no di- reveladores da importância crucial das emoções
127
GIDDENS, Anthony. Entrevista a Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 121-128,
maio de 1998.
na trajetória intelectual das pessoas. Weber, por determinante para a sua obra foi, por exemplo,
exemplo, sabe-se que foi a pessoa mais fria e o seu envolvimento com movimentos sexuais
sexualmente reprimida que se possa imaginar. libertários, e quão criativo foi o período em que
Pois bem, uma coleção de suas cartas – que a ele – que parece não ter jamais consumado seu
Polity Press pretende publicar – revela quão casamento – teve várias amantes!
GIDDENS, Anthony. Interview to Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 121-128, may 1998.
128
BARBOSA,
Tempo Maria Ligia Rev.
Social; de Oliveira.
Sociol.ParaUSP,
onde S.
vaiPaulo,
a classe10(1):
média: 129-142,
um novo profissionalismo
maio de 1998. no Brasil? Tempo
D O Social;
S Rev.
S I Ê
Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 129-142, maio de 1998. TRABALHO
RESUMO: Este texto pretende demonstrar que a profissionalização, tanto sob UNITERMOS
a forma de assalariamento quanto de trabalho autônomo, é ainda uma das profissionalismo,
profissionalização ,
possibilidades abertas à classe média brasileira. Os componentes mais impor-
classes médias
tantes do conceito de profissionalismo seriam o controle sobre o trabalho, a brasileiras.
capacidade de definição dos problemas e o papel central da educação. Pode-
mos encontrar no Brasil, ao longo do século XX, mas também, e especialmen-
te, nestas últimas décadas, vários indicadores da presença desse
profissionalismo.
P
or meio da leitura de jornais, ou da escuta de depoimentos pessoais,
poderíamos supor que esta categoria social encaminha-se para
extinção muito rápida. Aparentemente a classe média foi o grupo
mais atingido pelos processos de mudança pelos quais o país tem
passado e as suas formas tradicionais de existência tendem a desaparecer ou,
pelo menos, a tornar-se mais precárias.
Para ir além das aparências é necessário examinar com algum cui- Texto integrante da me-
sa redonda Para onde
dado as formas de inserção social que são criadas pelos grupos de classe mé- vai a classe média, or-
dia ou que se apresentam a eles como possibilidades. Trata-se de analisar os ganizada pelos GT's
Trabalho e Sociedade e
processos de criação de identidades e de formas de representação mediante os Educação e Sociedade,
quais esses grupos produzem e modelam o seu lugar na sociedade. Como no XX Encontro Anual
da ANPOCS, de 22 a
estamos diante de um conjunto muito diversificado de atividades e de relações 26/10/1996.
sociais, é importante deixar claro desde logo que pretendo tratar de um tipo
específico de trajetória. O meu argumento é que a profissionalização é um Professora do Departa-
mento de Sociologia e
caminho significativo de organização de estratégias de estratos da classe mé- Antropologia da UFMG
129
BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. Para onde vai a classe média: um novo profissionalismo no Brasil? Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 129-142, maio de 1998.
Profissionalismo e profissionalização
131
BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. Para onde vai a classe média: um novo profissionalismo no Brasil? Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 129-142, maio de 1998.
fica e as práticas populares – e não só populares, visto que boa parte dos
médicos, em especial os positivistas, tinham uma visão bastante crítica em
relação aos procedimentos do diretor de saúde pública. Mas a representação
médica das condições saudáveis de vida social interferiu também no trabalho
de engenheiros e arquitetos, tanto no planejamento das vias públicas, quanto
na definição do formato das casas, das formas de iluminação e arejamento que
deveriam ser incorporadas às novas construções3.
Nos anos 1950/1960 vamos ter o período áureo dos engenheiros.
Num trabalho de instituição que se inicia no final do século XIX, onde deve-
mos destacar a Escola de Minas de Ouro Preto, esses profissionais vão ser os
responsáveis pela redefinição das formas de atuação do Estado e pela criação
de critérios meritocráticos para alocação de trabalhos em certos setores do
Estado. A partir da ocupação de cargos-chave na administração João Pinheiro
no governo do estado de Minas Gerais, os engenheiros formados na Escola de
Minas gestaram o primeiro empreendimento estatal para intervenção na eco-
nomia. Foi a primeira experiência brasileira de planejamento estatal, já reali-
zada em moldes bastante próximos do que hoje conhecemos. Um primeiro
passo de diagnóstico, o mais completo possível, da situação econômica do
Estado, para em seguida construírem estratégias de atuação que incluíam des-
de a criação de instrumentos mais eficazes de gestão do Estado até a criação
de uma cidade industrial (Contagem), passando também pela criação de em-
presas em setores considerados deficitários, de infra-estrutura (a Cemig, a
Usiminas e, mais tarde, a Açominas são os exemplos mais conhecidos desse
processo criativo). Mediante uma espécie de acordo, pactuado entre as elites
modernizantes e os setores mais atrasados do Estado (cf. Dulci, 1983), os
engenheiros mineiros transferem sua criatividade para a capital federal e, es-
pecialmente no segundo governo Getúlio Vargas, estendem sua ação para ou-
tros setores da economia, destacando-se o seu trabalho no Conselho Nacional
de Petróleo, no embrião do que veio a ser a Siderbrás e, mais tarde, no Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico (cf. Martins, 1985). Nos setores
onde conseguiram ter uma ação eficaz, os engenheiros introduziram novos
princípios de classificação social, com ênfase especial para os critérios
meritocráticos para organização de carreiras nas empresas públicas. Para isso,
introduziram também novos formatos para as empresas sob sua direção, esta-
belecendo regras modernas para a utilização da força de trabalho. A estrutura
organizacional da Usiminas, na época da sua criação, é um exemplo perfeito
da perspectiva desses profissionais, e entre as inovações introduzidas por eles
podemos destacar o estabelecimento de uma nova proporcionalidade entre
trabalhadores manuais e engenheiros, bem como a criação de um setor de
3
pesquisa para o desenvolvimento de soluções técnicas que permitissem racio-
A esse respeito, ver o
trabalho de Madel nalizar e economizar na produção (Barbosa, 1993).
Terezinha Luz (1988), O grupo seguinte que pode nos fornecer bons indicadores do traba-
bem como os citados
por Vieira (1994) e lho profissional de instituição de padrões específicos de organização das rela-
Belisário (1993). ções sociais é o dos economistas. Filhos diletos dos engenheiros – alguns dos
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lheres com segundo grau e curso superior aumentou 105,80% entre 1981 e
1990. No mesmo período homens tiveram um aumento de 80,89% e na PEA
total o crescimento foi de 91,46%.
Num nível menor de agregação podemos verificar a feminização de
certas profissões tradicionalmente masculinas. É visível o aumento da pro-
porção de mulheres entre estudantes de medicina e odontologia em qualquer
universidade. Essas mulheres acabam se inserindo no mercado como profissi-
onais, gerando um aumento substantivo dos trabalhadores de classe média na
PEA. Trabalhadores que se inserem como profissionais no mercado. Por com-
plicado que seja atribuir a certos trabalhos o status de classe média – como é
o caso de muitas das ocupações que se abrem para mulheres, que são quase
sempre tarefas administrativas subordinadas –, ainda assim é importante lem-
brar que tais grupos buscam alguma forma de afirmação profissional. Isto se
reflete nas reivindicações quanto aos critérios de delimitação de tarefas e de-
finição de carreiras, na realização de cursos como forma de ascensão e aper-
feiçoamento e também na realização de seminários e simpósios, nos moldes
daqueles das nossas associações científicas. Atualmente há um movimento
entre secretárias – especialmente aquelas vinculadas às estatais, federais ou
estaduais – no sentido de criar cursos superiores de secretariado em universi-
dades federais.
Conclusões
BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. Where are going the middle classes: a new professionalism in
Brazil? Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 129-142, may 1998.
UNITERMS ABSTRACT: This text aims to show that a new kind of professionalization is still
professionalism, one possible path open to the middle classes in Brazil. The most important
professionalization ,
components in the concept of professionalism are the control over work, the
middle classes in
Brazil. power of defining problems and situations and the central role of education.
One can find in Brazil, during the twentieth century and especially on the last
decades, some indicators of this professionalization of the middle classes.
140
BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. Para onde vai a classe média: um novo profissionalismo no Brasil? Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 129-142, maio de 1998.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
142
GRÜN,
Tempo Roberto. A classe
Social; média
Rev. no mundo
Sociol. USP,do S.
neoliberalismo.
Paulo, 10(1):Tempo Social; Rev.
143-163, maioSociol. USP, S. Paulo,D10(1):
de 1998. O 143-163,
S S maio
I Ê
de 1998. TRABALHO
Resumo: O texto procura dar conta das recentes transformações na maneira UNITERMOS
como as classes médias brasileiras apreendem e dão sentido à sua vida na classes médias,
neoliberalismo,
esfera econômica. Para isso, utiliza dados e análises de pesquisas sobre trans-
sociologia econômica,
formações em ambientes de trabalho burocráticos, construção de espaços convenções cognitivas,
argumentativos dos gerentes, formas tradicionais e mais recentes do pequeno convenções econômicas.
comércio e sobre o também recente fenômeno do desemprego gerencial. Pro-
cura entender o problema mediante um estudo de transformações das conven-
ções cognitivas implícitas nas formas de se entender o mundo social e seus
reflexos nas vivências da esfera econômica. Da análise emerge um interes-
sante caso de cegueira institucional, onde todas as evidências que põem em
xeque a nova ordem são descartadas e onde a antiga divisão das classes
médias em estratos assalariados e autônomos tem de ser repensado.
Introdução
O
espaço das classes médias brasileiras tem sido revolvido por Texto integrante da me-
sa redonda Para onde
mudanças freqüentes nas suas formas legítimas de ocupação. Um vai a classe média, or-
emprego não-manual numa repartição pública assegurado por ganizada pelos GT's
Trabalho e Sociedade e
concurso ou pistolão; duas ou três casinhas de aluguel, uma “letra de Educação e Sociedade,
viúva” e mais um portfólio de ações da Light e outras concessionárias de serviços no XX Encontro Anual
da ANPOCS, de 22 a
públicos; um cargo de gerente numa empresa pública; o “encarreiramento” numa 26/10/1996.
empresa multinacional – desde o início do século e com o suceder das gerações, a
posse de cada um desses trunfos isoladamente ou em conjunto foram, em seu Professor do Departa-
mento de Engenharia de
tempo, boas garantias de um “lugar ao sol” para quem os obtinha ou herdava. Produção da UFSCar
143
GRÜN, Roberto. A classe média no mundo do neoliberalismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 143-163, maio
de 1998.
novidades que acabaram instituídas pelo efeito dos vagalhões sucessivos pro-
duzidos pela Revolução Francesa. W. Reddy (1986) fornece-nos pistas, traba-
lhando baseado em dois dicionários de comércio de tecidos de sucesso, que
expressavam o consenso entre os negociantes nos momentos respectivos de suas
aparições: o primeiro é anterior à Revolução (1723) e o segundo de 1839. O
Autor descreve-nos as diferenças que aparecem na forma de apreciação “evi-
dentes”, que o negociante avisado deveria empregar para avaliar os tecidos que
mercava. No primeiro caso, numa época que a produção daquela mercadoria
estava totalmente submetida ao sistema de guildas, toda a expertise residia em
avaliar a qualidade e a procedência do produto, não fazendo o menor sentido
uma discussão sobre os métodos de fabricação, já que esses eram apanágio da
respectiva guilda (tecidos não produzidos por guildas eram tão ilegítimos/sem
qualidade, que não apareciam no livro e não se concebia que um comerciante
bem estabelecido trabalharia com eles). O dicionário da época (Savary) refletia
essa convenção. Em 1839, o mundo tinha mudado drasticamente: o dicionário
surgido do estabelecimento da nova convenção cognitiva enfatizava os métodos
de produção e as matérias-primas necessárias para sua produção correta. Mais
do que esse resultado bem conhecido, Reddy relata os titubeios dos interessados
no interregno decorrido entre os indícios do fim da validade dos ensinamentos
do primeiro dicionário e a aparição do segundo. Diante dos movimentos gover-
namentais que indicavam o fim das guildas, os comerciantes temerosos do imenso
salto no escuro que o mundo estava prestes a realizar advertiam os governos
para o previsível estado de anarquia econômica e social que se sucederia: os
trabalhadores, livres da disciplina imposta pela relação mestre/aprendiz, esta-
riam disponíveis para seguir seus baixos instintos e cair em tentação. Pior ainda,
já que ninguém poderia garantir a qualidade dos produtos, seria instaurado o
reino da contrafação. O comércio tenderia a se desorganizar pela falta de garan-
tia de qualidade, e com ele a nação como um todo.
Para fazer face às inquietações dos patrícios urbanos, a argumenta-
ção padronizada escorava-se nos princípios da Declaração dos Direitos do
Homem: se os homens são iguais, não se pode atribuir privilégios a ninguém,
nem os estatutários, nem os econômicos. Por mais interessantes e justos que
os princípios pudessem parecer, eles eram muito abstratos para prevenir as
falsificações econômicas e aliviar o sentimento de insegurança dos indiví-
duos. Entretanto, eles estavam ali para ficar. Querendo ou não, o mundo cul-
tural em que a atividade econômica do Ancien Régime estava enraizada esta-
va superado e nada nem ninguém poderia trazê-la de volta. As virtudes
regulatórias do livre-mercado ainda não eram conhecidas, apenas tornou-se
inconcebível a vida social com a manutenção dos antigos privilégios.
Estaríamos agora diante de uma situação análoga? No caso histórico
examinado por Reddy, sabemos o desfecho. Falar para o nosso caso da
“inevitabilidade da prevalência do neoliberalismo e da globalização” seria
entregarmo-nos à forma mais tradicional do sociologismo barato: o fatalismo
do provável. Mas, se a análise de Reddy foi facilitada pela certeza do resultado
145
GRÜN, Roberto. A classe média no mundo do neoliberalismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 143-163, maio
de 1998.
O Brasil na modernidade
mazelas do país. A passagem de t0 para t1 pode ser ilustrada pelo ataque que os
meios de comunicação realizaram contra o setor público da economia a partir do
fim dos anos 1970. E, finalmente, nos anos 90 assistimos à consolidação de
uma outra polarização, agora entre o pólo dos “empreendedores”, englobando
os homens de iniciativa, em geral no setor privado e em pequenas unidades de
negócios (ou grandes, mas com pouco staff), que se contrapõe ao pólo negativo
dos “burocratas”, que poderiam ser encontrados indistintamente no setor pú-
blico ou privado da economia.Um ponto a ressaltar sobre as mudanças na pas-
sagem de t1 para t2 é que em t2 a polarização aparece entre indivíduos e não mais
entre organizações, como nos “tempos” anteriores, abrindo algum espaço sim-
bólico para tentativas de aggiornamento do setor público. De uma maneira
geral, como se pode ver, fechamos o círculo, com a inversão do sentido associa-
do à “pequena empresa” no início do período.
149
GRÜN, Roberto. A classe média no mundo do neoliberalismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 143-163, maio
de 1998.
expressivas de cada uma delas). Por exemplo, entre o pessoal de recursos huma-
nos, na discussão da imputabilidade individual dos custos das greves, enquanto
a “velha guarda” insistia na necessária manutenção do espírito paternalista da
C.L.T., entendendo os operários “de base” participantes dos movimentos como
inocentes úteis, os seus desafiantes mais novos frisavam a necessidade de “tor-
nar o operário consciente de suas faltas” através de punições rigorosas. Mesmo
no movimento sindical, na discussão das táticas a serem adotadas durante uma
greve, os líderes mais antigos insistiam na necessidade de se construir a coesão
do coletivo, enquanto seus êmulos mais novos pensavam num processo de
mobilização que insistia nos benefícios econômicos diretos dos operários, con-
siderados como indivíduos11. Ao que essas pesquisas indicam, estamos diante
de uma “guerra cultural”, onde nas diversas variantes, os jovens que procuram
antecipar a ocupação dos lugares que ainda estão nas mãos dos mais velhos
lançam mão de linhas de argumentação sincrônicas e que imputam ao indivíduo
a responsabilidade pela sua situação, que são típicas do quadrante “A”.
Correlativamente, eles tentam desvalorizar os méritos passados de seus concor-
rentes mais velhos, os quais, por sua vez, justificariam sua proeminência hierár-
quica numa lógica argumentativa típica do quadrante “C”. Entretanto, fica a
sugestão de Douglas registrada no parágrafo acima, que nos permite inferir que
o furor anti-burocrático atual só durará até os atuais fundamentalistas sentirem-
se seguros nas posições conquistadas e daí em diante passarão a tentar justificar
sua proeminência nos méritos passados e tenderão para o quadrante “C”.
2. O “mapa cultural” Isolamento cultural Hierarquia conservadora
Fonte: M. Douglas:
"Thought Styles", Sage B C
(1996), p. 43 (ligeira-
Isolamento por escolha ou compulsão, Grupos fortemente integrados com
mente adaptado).
literalmente sós ou isolados em estrutura complexa – hierárquica com
estruturas complexas. obrigação de reciprocidade.
Ataque e defesa
13
Sobre o cotidiano ge-
rencial nas grandes Mas, apesar do ataque coordenado do mercado financeiro e de seus
empresas assim con- “agentes” internos das organizações, da imprensa e da academia, a sociedade
cebidas, ver Jackall gerencial resiste de alguma forma, mostrando que a antiga idéia que representa-
(1988). Uma interes-
sante avaliação críti- va a grande empresa como uma espécie de comunidade onde os gerentes tinham
ca dos pressupostos droit de cité, desde que “vestissem a camisa”, não está morta. Podemos obser-
da idéia de que “orga-
nizações menores são var essa sobrevivência em diversas frentes. Na verdade, as virtudes da
diferentes e mais fá- reengenharia, sobretudo por meio do seu corolário, o downsizing, vêm sendo
ceis de serem contro- objeto de crescentes impugnações, mesmo na imprensa de negócios. Podemos
ladas” pode ser en-
contrada em Douglas mesmo apontar uma disputa entre dois projetos de modernidade organizacional:
(1986b, p. 21 ss.). aquele baseado no TQC (Controle Total da Qualidade) e o projeto baseado na
14
Mas o sentido do ma-
terial exposto pela im- Reengenharia, que refletem, dentro das organizações, as possibilidades polares
prensa não é unívoco: do destino da sociedade gerencial. A prevalecer o primeiro projeto, as organiza-
aparecem matérias crí- ções adotarão processos de aggiornamento incrementais, num processo de aper-
ticas em relação à re-
engenharia, embora feiçoamento contínuo onde a própria “tecnoestrutura” define os rumos de sua
em muito menor quan- modernização. Assim, a estrutura das organizações continuará sendo guiada
tidade. Se pensarmos
essa situação face ao pelo espírito gerencial. Já a prevalência da segunda possibilidade, onde predo-
processo de difusão de mina a utilização de mecanismos de controle “macro”, inspirados na Agency
outros “hits” organiza- Theory, que devem alinhar os interesses dos gerentes com os dos acionistas
cionais, verificaremos
uma importante dife- mediante incentivos e penalidades diretamente econômicos e de curto prazo,
rença: Administração indicará o controle da razão financeira (principalmente de seus portadores) e a
por objetivos, orça-
mentos base-zero, subordinação da sociedade gerencial àqueles desígnios. No esquema ideal, a
CCQs, TQC, todas es- grande empresa é dividida “teoricamente” em unidades contábeis pequenas, que
sas siglas tiveram um são monitoradas na sua lucratividade como se fossem empresas independentes,
enorme período de pro-
paganda apenas positi- devendo produzir lucros compatíveis com seu capital estimado, caso contrário
va, antes de começa- elas devem ser vendidas e o resultado apurado pela venda empregado em algu-
rem a aparecer suas
mazelas. Não acontece ma aplicação que garanta pelo menos o lucro mínimo esperado. O pressuposto
a mesma coisa em re- é de que as pequenas unidades são mais fáceis de serem controladas, tanto pelo
lação à reengenharia, preposto em relação a seus subordinados diretos, quanto na relação entre a admi-
talvez por causa da as-
sociação imediata que nistração central e o gerente que ela indica13.
se faz entre essa ferra- Podemos mesmo dizer que estamos diante de um conflito simbóli-
menta organizacional e
a dispensa maciça de co que corta toda a sociedade. Interessantemente, ele apareceu e teve seus
empregados, que, por significados e instrumentos desenvolvidos principalmente no espaço
152
GRÜN, Roberto. A classe média no mundo do neoliberalismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 143-163, maio
de 1998.
rada por seus ancestrais e, diante da sociedade, eram compelidos a adotar uma
situação ambivalente em relação aos valores do sistema escolar: se de um lado
eles tinham a obrigação social de prosseguir seus estudos até o terceiro grau,
obtendo um diploma de nível superior, tornado praticamente obrigatório para a
apresentação do indivíduo nas interações sociais mais amplas (mercado de ca-
samentos, relações com fornecedores, com bancos ou mesmo com empregados
graduados); por outro lado, a qualidade desse diploma importava pouco, já que
naquele ambiente considerava-se que o essencial da capacitação do empreende-
dor dar-se-ia através do engajamento precoce na atividade econômica tradicio-
nal da colônia. Como conseqüência, os jovens daquela amostra acabavam ma-
triculando-se em escolas noturnas privadas de Administração ou Economia,
pertencentes a grupos educacionais de reputação pouco expressiva. Mas, mes-
mo neste caso, a relação mais direta com o conhecimento formal é complexa: os
relatos aparecem recheados de situações de conflito geracional, que opõem a
sua “maneira moderna” de gerir os negócios da família – não só os econômicos,
mas também os emocionais – aos métodos “tradicionais, mas que sempre de-
ram certo” de gestão empregados pelos seus pais na condução dos diversos
negócios. Esses “armênios da nova geração” estão assim vinculados parcial-
mente ao mundo da economia moderna – e sujeitos as suas seduções ideológico-
existenciais – mediante uma variação da situação clássica de constrangimento
double bind: diante de seus colegas “estudiosos”, eles afirmam a irredutibilidade
dos conhecimentos práticos adquiridos na sociabilidade primária da sua etnia;
perante seus pais e transmissores do savoir-faire e da cultura étnica, eles apre-
sentam-se como portadores do know-how da administração científica e, portan-
to, como os mais aptos, no interior da família, a tomar conta e a direcionar as
suas atividades econômicas, com todos os benefícios que o recebimento precoce
das heranças lhes pode trazer16.
Uma primeira apreciação poderia fazer-nos pensar que os membros
das classes médias assalariadas, entrando para as camadas auto-empregadas da
sociedade, iriam adotar o padrão que acabamos de descrever. Entretanto, a so-
cialização anterior dos membros da amostra atual, onde o investimento escolar
é central, certamente ajuda a produzir uma identidade diferenciada em relação
aos pequenos empreendedores tradicionais, mesmo os das “novas gerações”.
De fato, o novo tipo de pequeno empresário liga-se à grande empresa por uma
série de laços, sem com isso perder a auto-imagem de “independente”. A pró-
16
O conceito de double pria percepção de que os “ativos intangíveis” – a pesquisa de mercado sistemá-
bind aparece constan- tica que estabelece os bons pontos de venda e tipos de clientelas, a necessidade
temente na obra de
Elias e de Bourdieu. de acompanhamento das atividades do franqueado para se conseguir uma ga-
Acredito que sua for- rantia de qualidade, o valor da marca como fundo de comércio – vendidos pelos
mulação mais rigoro- franqueadores são bens escassos que merecem seu preço já é uma prova da
sa, atentando tanto
para as conseqüênci- influência exercida pela maneira gerencial de ver o mundo. A aparente continui-
as sociológicas quan- dade “objetiva” entre o novo pequeno empreendimento personificado na fran-
to as psicanalíticas, é
aquela exposta em quia e os pequenos comércios e indústrias tradicionais mascara uma diferença
Gilman (1986). de percepção que deve ser considerada em vários eixos. O primeiro deles, e o
154
GRÜN, Roberto. A classe média no mundo do neoliberalismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 143-163, maio
de 1998.
Conclusão
GRÜN, Roberto. Middle classes in the world of neoliberalism. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, 10(1): 143-163, may 1998.
UNITERMS: ABSTRACT: The text tries to analyse recent transformations in the manner how
middle classes, the Brazilian middle classes perceive and signify their lives in the economic
neoliberalism,
sphere. For this I make use of dates and analyses produced in researches
economical sociology,
cognitive conventions, about the transformations of the bureaucratic-work milieu, about the construction
economic conventions. of managers’ argumentative spaces, about traditional and more recent forms of
160
GRÜN, Roberto. A classe média no mundo do neoliberalismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 143-163, maio
de 1998.
the small trade and about the also recent phenomenon of management
unemployment. I try to understand the problem based on a study on the
transformations of the cognitive conventions inherent to the way people
comprehend the social world and experience the consequences of its changes
in the economic sphere. The analysis shows that there exists an interesting
case of institutional blindness in which all the evidences that threaten the new
order are rejected and in which the old division of the middle classes between
employed and autonomous strata has to be rethought.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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163
DINIZ,
Tempo Marli.Social;
Repensando a teoria
Rev. da proletarização
Sociol. USP, S. Paulo,dos profissionais. Tempo Social;
10(1): 165-184, maio de Rev.1998.
Sociol. USP, S.DPaulo,
O 10(1):
S S I Ê
165-184, maio de 1998. TRABALHO
Repensando a teoria
da proletarização dos
profissionais
MARLI DINIZ
F
uncionalistas, neoweberianos e neomarxistas parecem concordar em Texto integrante da me-
sa redonda Para onde
que o conhecimento especializado dos profissionais – sua expertise – vai a classe média, or-
garante-lhes, ao contrário do que ocorre com outras categorias ganizada pelos GT's
Trabalho e Sociedade e
ocupacionais – e em particular com os trabalhadores manuais – uma Educação e Sociedade,
considerável autonomia no trabalho. Para usar uma terminologia mais em voga, no XX Encontro Anual
da ANPOCS, de 22 a
os profissionais teriam, individualmente, um extenso controle sobre o proces- 26/10/1996.
so de trabalho1. As divergências situam-se na interpretação do processo pelo
qual, nas sociedades modernas contemporâneas, esta autonomia estaria su- Professora do Departa-
mento de Sociologia e
postamente sendo solapada. Ritzer e Walczak (1988) argumentam que a auto- Metodologia em Ciên-
nomia do profissional, o controle que ele exercia sobre o processo de trabalho cias Sociais da UFF
165
DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
165-184, maio de 1998.
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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
165-184, maio de 1998.
assegurar sua diligência; a fixação de mínimos de produção etc. Mas foi com
o advento da administração científica que a centralidade do controle sobre o
processo do trabalho adquiriu dimensões sem precedentes. Para Taylor o con-
trole era uma necessidade absoluta da gerência adequada, o que significava
impor ao operário um plano rigoroso de execução do trabalho, destitui-lo de
qualquer margem para deliberação. O trabalho do cérebro foi separado do
trabalho das mãos, a concepção da execução, a oficina do escritório. Cabia à
gerência codificar em regras e fórmulas todo o conhecimento possuído pelos
trabalhadores, e com base neste conhecimento planejar detalhadamente a ta-
refa atribuída a cada um na intensificada divisão técnica do trabalho: cada
atividade na produção devia ser prevista, pré-calculada, experimentada,
comunicada, alocada, ordenada, conferida, inspecionada, registrada.
Simultaneamente, a mecanização da produção de larga escala iria
completar o processo de degradação do trabalho. Se o elemento fundamental
4
A seguinte citação co- na evolução da maquinaria industrial é a maneira pela qual suas operações
lhida num estudo de
empresa brasileira no são controladas, segue-se que no momento em que o controle da máquina
setor metalmecânico foge das mãos do trabalhador que a opera, ou melhor, no momento em que a
ilustra este ponto: “Os
operadores de MFU, velocidade da máquina e a seqüência mecanizada ou automizada de suas ope-
de modo geral, possu- rações predetermina os movimentos e o ritmo do operador, completa-se o
em muita destreza e processo de proletarização, de sujeição real do trabalho ao capital.
experiência em lidar
com máquinas para Contemporaneamente isto ocorreria, por exemplo, com a introdução de
fabricar produtos dife- tecnologia microeletrônica no processo produtivo (máquinas ferramentas de
renciados (pequenas
séries, lotes e peças controle numérico – MFCN, robôs etc.) em substituição à tecnologia de base
sob encomenda). In- eletromecânica (máquinas ferramentas universais – MFU). O saber altamente
terpretam os desenhos especializado de um torneiro-mecânico que controla uma MFU lhe é expro-
do projeto, fixam e
centralizam a peça, priado e transferido para uma fita perfurada (programa) que comandará uma
selecionam ferramen- MFCN em todos os detalhes de sua operação4. Conseqüentemente, “o mecâ-
tas, regulam a máqui-
na, controlam o corte nico especializado é, por esta inovação, considerado deliberadamente obsole-
e a refrigeração da to como a ventoinha ou o telégrafo de Morse, e via de regra substituído por
ferramenta e trocam a três espécies de operadores” (Braverman, 1977, p. 173)5.
ferramenta quando
necessário. Assim, Observe-se, finalmente, que o processo de degradação do trabalho
são profissionais com no sistema capitalista de produção não afetaria apenas os operários das fábri-
longa experiência de
trabalho valorizada e cas. Segundo Braverman, a mecanização e racionalização dos escritórios
reconhecida pela em- rotinizou os processos mentais exigidos dos funcionários, ou fez com que se
presa. tornassem uma parcela menor do que a das operações manuais no conjunto do
As funções dos opera-
dores de MFCN são trabalho; por outro lado, os salários pagos a estas categorias de empregados
bastante reduzidas e desceram ao nível daqueles pagos aos trabalhadores manuais menos qualifi-
menos exigentes em
relação à qualificação. cados. Desta forma, e por suas condições de trabalho, o segmento dos funcio-
As principais opera- nários de escritório tornou-se um “vasto proletariado sob nova forma”
ções realizadas por (Braverman, 1977, p. 300). O mesmo processo de degradação do trabalho e
eles são: colocar a fita
do programa, fazer a de proletarização estaria começando a afetar as “camadas médias” do empre-
montagem da peça go: engenheiros, técnicos, quadro científico, os níveis inferiores da supervi-
para usinagem e das
ferramentas necessá- são e da gerência, empregados especializados e “liberais” etc. Entre desenhis-
rias, colocar a máqui- tas e técnicos, entre engenheiros e contadores, entre enfermeiros e professo-
168
DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
165-184, maio de 1998.
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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
165-184, maio de 1998.
Engenheiro 11.8 1.4 86.8 9.1 2.8 88.1 8.6 1.5 89.9 Tabela 2 - Posição na
ocupação para
Arquiteto 23.2 4.7 72.1 42.8 5.6 51.6 44.7 4.5 50.8 algumas profissões:
Médico 32.0 0.3 67.7 24.8 7.3 67.9 26.1 6.2 67.6 1970, 1980, 1988.
Fonte: IBGE - Amostras
Dentista 69.6 0.3 30.1 64.7 4.0 31.3 66.6 11.7 21.7 dos Censos de 1970 e
Advogado 47.4 0.6 51.9 49.3 5.3 45.4 53.8 7.1 30.1 1980; PNAD - 1988.
res, melhor será registrar que mesmo entre os neomarxistas a extensão da tese
de Braverman para o âmbito das profissões é claramente questionada. Por
exemplo, para Derber “os profissionais, ao contrário dos operários, resguar-
daram do emprego dependente aquilo que emergiu como o fundamento da sua
auto-estima e status peculiar: uma considerável medida de preservação das
suas competências técnicas e do continuado controle de conhecimento alta-
mente especializado. Assim, os profissionais retêm uma autoridade anômala
invejada e inatingível por outros empregados, a autoridade da profissão e da
expertise, mesmo em face do emprego subordinado” (Derber, 1983a, p. 317).
A especialização associada ao trabalho dos profissionais não significa frag-
mentação nem implica em desqualificação, mas em aprofundamento do co-
nhecimento e das habilidades técnicas. Num trabalho posterior, Derber obser-
va que o termo “patrocínio” (sponsorhip) é mais adequado do que
assalariamento para descrever a diversidade das formas de inserção dos médi-
cos no mercado: os “patrocinadores” ou provedores de capital (hospitais,
empresas de seguro-saúde, clínicas particulares etc.) não são basicamente
empregadores capitalistas e a fragmentação de seus interesses de classe enfra-
queceu sua capacidade de exercer controle sobre o trabalho dos médicos os
quais contam com “formidáveis recursos próprios para exercer controle e para
resistir a ele” (Derber, 1983b, p. 563). Quanto ao profissional “liberal”que se
torna assalariado, o que ele perde ao entrar numa relação de emprego é o
controle sobre os fins do seu trabalho, já que ele não formula nem influencia
as políticas da organização que o emprega, resultando disso uma perda do
sentido ético do trabalho, dos valores aos quais ele deveria servir (cf. Derber,
1983a).
Que Derber chame a isto de “proletarização ideológica” parece ser
uma escolha puramente arbitrária e sem conexão com a tese clássica do mar-
xismo. Mais importante é observar que para várias categorias de profissio-
nais assalariados nem mesmo a “proletarização ideológica” ocorre, já que a
profissão nasceu subordinada a hierarquias gerencias heterônomas – eles ja-
mais tiveram efetivamente o controle das políticas organizacionais e é prová-
vel que muitos não a desejem. Para os “liberais” que de fato experimentaram
um processo de assalariamento, a questão é saber se obter o controle sobre os
fins do seu trabalho é mais importante do que conservar a autonomia técnica
para a manutenção de sua identidade profissional. Pois, como observou Larson,
o assalariamento só conflita com as expectativas profissionais quando o que o
profissional aspira é obter poder na organização, e não apenas preservar a
autonomia técnica no desempenho das tarefas; porque numa organização o
poder – isto é, a legitimidade e a capacidade para formular políticas – é uma
propriedade não da função profissional, mas da função gerencial (Larson, 1977,
p. 198). Ainda assim – e num esforço de fidelidade às categorias marxistas de
análise –, Larson (1980) concede que o assalariamento objetivamente conduz
à “alienação econômica” (sujeição formal do profissional à autoridade
heterônoma do capitalista ou do gerente estatal), e que esta contém a semente
176
DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
165-184, maio de 1998.
Conclusão
DINIZ, Marli. Rethinking the theory of professionals’ proletarianization. Tempo Social; Rev. Sociol.
USP, S. Paulo, 10(1): 165-184, may 1998.
ABSTRACT: The author analyzes the theory of the professionals’ proletarianization UNITERMS:
with the objective of verifying to what extent it captures the real processes of professionals,
proletarianization,
change that have been affecting the professions. The central questions that the
deprofessionalization,
author addresses are whether professionals employed by public and private technical autonomy.
bureaucracies preserve their technical qualifications, and whether they preserve
control over their highly specialized knowledge and over their work process. Using
an extensive bibliography on professional work in several industries (metal,
mechanic, electronic), the author concludes that the evidences of growing
employment of some of the liberal professions does not constitute support for the
thesis of the professionals’ proletarianization when this term is appropriately
understood. The research has shown that even when the professional employee
loses the control over his work conditions, he keeps the control over his own
work, that is, he conserves his technical autonomy.
181
DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
165-184, maio de 1998.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
165-184, maio de 1998.
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DINIZ, Marli. Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
165-184, maio de 1998.
184
BONELLI,
TempoMaria da Gloria.
Social; Rev. A competição profissional
Sociol. USP, no mundo
S. Paulo, do 185-214,
10(1): Direito. Tempo Social;
maio Rev. Sociol. USP,
de 1998. D S.OPaulo,
S 10(1):
S I Ê
185-214, maio de 1998. TRABALHO
A competição profissional
no mundo do Direito
MARIA DA GLORIA BONELLI
RESUMO: Este artigo focaliza o mundo profissional do Direito numa comarca UNITERMOS:
de médio porte do interior do Estado de São Paulo, analisando a dinâmica profissões,
direito,
deste campo centrada na competição profissional entre juízes, advogados,
comarca paulista.
funcionários de cartório, promotores de justiça e delegados de polícia. O mun-
do do Direito engloba, além dessas competições interprofissionais, as compe-
tições intraprofissionais que são estudadas detalhadamente aqui para o caso
dos juízes, dos delegados de polícia e dos funcionários de cartório. Esta con-
cepção procura relacionar os lugares ocupados por eles no sistema das profis-
sões como fatores condicionantes das suas interações, estabelecendo as pos-
sibilidades e fornecendo os recursos para as mudanças buscadas através das
disputas profissionais. A análise das tensões entre o Judiciário e o Legislativo
delimitam o pertencimento dos profissionais ao mundo do Direito, configuran-
do-o como um grupo com uma dimensão comum, em conflito com as posições
tomadas pelos legisladores.
E
ste trabalho focaliza o campo profissional que circunda a atividade
da justiça numa comarca do interior do Estado de São Paulo. Ele é
parte de uma pesquisa mais ampla sobre as relações profissionais
na área do Direito. Nela, focalizamos as formas como as inter-
dependências dessas diversas especializações no mundo do trabalho judicial
condicionam seus conflitos e disputas.
A concepção que norteia a pesquisa identifica as profissões que
atuam nesta área como constituindo um campo movido pela interação e pela
Professora do Depar-
competição entre os diversos profissionais que lidam com esta temática como tamento de Ciências
seu trabalho cotidiano. No caso da região investigada, eles são os juízes, os Sociais da UFSCar
185
BONELLI, Maria da Gloria. A competição profissional no mundo do Direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
185-214, maio de 1998.
177 mil habitantes em 1991. A comarca Branca possui quatro varas cíveis,
duas varas criminais e um juizado de pequenas causas. Como se trata de uma
cidade de médio porte, a comarca é de terceira entrância. O Poder Judiciário
possui também comarcas de primeira entrância, de segunda entrância e de
entrância especial, de acordo com o tamanho da cidade. Elas vinculam-se à
primeira instância do Poder Judiciário. São nas varas dessas entrâncias que
um processo começa a caminhar na roda que movimenta a justiça.
A segunda instância configura-se como uma possibilidade de re-
curso na estrutura do Poder Judiciário, onde atuam os desembargadores. No
Ministério Público, os profissionais vinculados ao segundo grau são procura- 2
O Ministério Público
dores de justiça e os de primeiro grau são promotores de justiça2. segue a mesma estru-
O ingresso em ambas as carreiras começa pela posição de juiz subs- tura, embora ele não
seja parte do Poder Ju-
tituto ou promotor substituto. Esta denominação é originária do fato do re- diciário. Esse órgão
cém-concursado ser designado para trabalhar em uma circunscrição judicial possui um posição ins-
(comarcas maiores que englobam administrativamente as menores) que já titucional sui generis,
não sendo diretamente
possui promotores ou juízes vitaliciados. A progressão na carreira para subordinado a nenhum
vitaliciado se dá num prazo de dois anos, mas como há falta de profissionais, dos três poderes da
União. A Constituição
o substituto acaba sendo promovido para a primeira entrância antes de se de 1988 fortaleceu al-
tornar vitalício. Conforme vão surgindo vagas eles vão galgando novas posi- gumas mudanças que o
ções nas comarcas maiores, desde que se inscrevam para tal. Ministério Público vi-
nha implementando,
Cada uma das varas que compõe a comarca Branca conta com um ampliando o papel
juiz e um cartório judicial. São, portanto, 6 juízes, sendo 4 cíveis e 2 crimi- mais claramente volta-
do para a defesa dos in-
nais. O Juizado Especial de Pequenas Causas é acumulado pelos juízes da teresses da sociedade,
vara cível, sendo que a direção é exercida por um deles de forma fixa e o com mais poder para
trabalho decisório sobre os processos é feito num sistema de rodízio, assu- levar adiante esta fun-
ção. O promotor de jus-
mindo a cada seis meses um dos juízes dessas varas. No Ministério Público, a tiça representa o lado
distribuição dos promotores pelas áreas se inverte. Há 6 promotores, sendo 2 ativo da justiça e o juiz
o seu lado passivo. O
ligados à esfera cível e quatro à esfera criminal. juiz não dá partida a
Já as delegacias de polícia da região possuem uma outra estrutura um processo. Este pa-
que apresenta pontos de conexão com a do Judiciário e do Ministério Público pel cabe ao promotor
de justiça. Entre eles,
locais. Elas são vinculadas ao Poder Executivo, que é responsável pela ativi- há auto-identificações
dade policial militar e civil. Os delegados de polícia vinculam-se à Polícia distintas no que tange
à sua função primor-
Civil, desempenhando funções de Polícia Judiciária, enquanto a Polícia Mili- dial. Uns falam de si
tar faz a parte preventiva do policiamento. mesmo como fiscais da
A Delegacia Seccional de Branca abrange os cinco distritos poli- lei e outros como os ti-
tulares da ação penal,
ciais do município, as delegacias de polícia de outros seis municípios da re- os defensores da soci-
gião (Verde, Vermelho, Amarelo, Azul, Marrom e Cinza), além do Primeiro edade. A nuance na di-
ferença é que um fis-
Distrito Policial de Verde, da Delegacia de Investigação de Entorpecentes cal da lei pode identi-
(DISE), da Circunscrição de Trânsito (Ciretran) da região, da Delegacia de ficar-se prioritaria-
Polícia de Defesa da Mulher e da Delegacia de Polícia de Investigações e mente com o sistema
legal, a ordem, o Esta-
Infrações Contra o Meio Ambiente (DIMA), que entrou em funcionamento do, enquanto que o se-
em setembro de 1994. A Delegacia Seccional de Branca está subordinada à gundo vê-se atuando
em nome da sociedade,
Delegacia Regional de Prata. Esta é uma das dez delegacias regionais existen- na proteção do interes-
tes no Estado de São Paulo, que aglutinam as delegacias de sua área. As dele- se público e social.
187
BONELLI, Maria da Gloria. A competição profissional no mundo do Direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
185-214, maio de 1998.
res cuja atividade estava concentrada no lar. Eram donas de casa. Já os dois
restantes eram filhos de professoras.
A Faculdade de Direito freqüentada pela maioria deles é privada.
Embora não tenhamos informação para um deles, encontramos um juiz for-
mado no Mackenzie, dois na Unaerp, em Ribeirão Preto, e um na Faculdade
Municipal de São Bernardo. Apenas um juiz cursou a USP, na capital.
Três dos entrevistados ingressaram na Magistratura bem cedo em
suas carreiras profissionais (até 25 anos), dois começaram em torno dos 30
anos (29 anos e 33 anos) e apenas um tornou-se magistrado aos 43 anos.
Hoje, a idade mínima para o ingresso é de 23 anos e exige-se uma experiência
anterior como advogado ou promotor de dois anos. Se o candidato já é funci-
onário de cartório, ele é dispensado desta última exigência e pode prestar
concurso assim que se graduar, caso tenha a idade necessária. A incidência de
juízes que tiveram uma longa experiência profissional em cartório é muito
elevada na comarca Branca. Dos seis juízes, quatro passaram toda a sua ju-
ventude trabalhando em cartórios judiciais de outras comarcas, onde ingres-
saram com idades entre 10 e 13 anos. A intensa socialização no ambiente e
nos valores do fórum, quando jovem, favorece a procura por este tipo de car-
reira, e parece auxiliar a aprovação no exame de seleção. Desses quatro, dois
exerceram a advocacia por mais de 10 anos antes de ingressar na carreira de
magistrado, mas acabaram se redirecionando para ela. Dos demais juízes da
comarca Branca, um exerceu a advocacia por pouco tempo e o outro foi pro-
motor por dois anos e meio.
No momento da entrevista, em 1994, a distribuição desses magis-
trados por faixa etária era: um com mais de 50 anos, dois entre 40 e 49 anos e
três entre 30 e 39 anos. O interior de São Paulo é a região de origem da maio-
ria desses juízes, embora nenhum seja de Branca. Apenas um veio da capital
de São Paulo e um do Rio de Janeiro.
Os promotores
Todos os seis promotores são homens, sendo que um deles poderia
não ser classificado como branco, se ele assim indicasse. Dois desses promo-
tores se recusaram a conceder entrevista, o que reduz a amostra a quatro. Mais
ainda do que os juízes, os quatro promotores entrevistados fizeram mobilida-
de ascendente, sendo filhos de pessoas de origem social mais baixa. Dois ti-
nham como ocupação paterna atividades do setor rural, um como trabalhador
e outro como sitiante. Os pais dos dois restantes trabalharam, um como escri-
turário e o outro como contínuo. Diferentemente dos juízes, todos os promo-
tores eram procedentes dos segmentos mais baixos da hierarquia social, não
encontrando nenhum de origem no estrato médio-alto ou outro segmento aci-
ma deste. A ocupação materna era dona de casa.
As faculdades que todos os entrevistados cursaram eram particula-
res e localizavam-se fora da capital do Estado. Dois freqüentaram a Faculda-
de de Direito de São José do Rio Preto, um cursou a de Osasco e um fez em
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Pirassununga.
A faixa etária dos promotores entrevistados oscilava entre 32 e 47
anos. Dois estavam na faixa dos 30 e dois na faixa dos 40 anos. Apenas um
deles nasceu na capital de São Paulo e um no Nordeste. Os dois restantes
nasceram em municípios do interior do Estado.
A experiência profissional anterior ao ingresso no Ministério Pú-
blico mostra uma aproximação e uma socialização no universo do Direito, da
norma e da ordem, mas não aponta para a experiência de trabalho no fórum,
como o constatado entre os juízes. Assim, um promotor começou a trabalhar
aos 16 anos, num escritório de advocacia e ficou neste emprego até ingressar
no MP dez anos depois. Outro, freqüentou a escola de sargentos, e foi militar
até ingressar na carreira de promotor. Um terceiro, embora aprovado também
para a Magistratura, optou pelo Ministério Público. Ele havia cursado a facul-
dade de História, mas a abandonou preferindo estudar Direito, embora o pai
preferisse que ele cursasse Agronomia. Uma trajetória semelhante, de ter con-
tato com outro curso superior antes de ingressar em Direito, também foi ob-
servada num promotor que fez uma opção mais tardia, pela carreira do MP
Antes, cursara Letras e seguira a trajetória de professor. Atuava como diretor de
escola ao mesmo tempo que exercia a advocacia, quando se tornou promotor.
Os delegados de polícia
Quando iniciamos o trabalho de campo a Delegacia Seccional de
Branca contava com 15 delegados, mas ela recebeu um reforço de 14 novos
delegados. Deste total de 29, entrevistamos 18, sendo seis recém-ingressos.
Essa amostra é composta de 17 homens e uma mulher. Tal como observado
entre os promotores, um deles poderia não ser classificado como branco se
fizesse tal opção.
Há oito delegados na faixa etária dos 25-30 anos, 5 na faixa dos
31-40 anos e 5 com mais de 40 anos, sendo que o mais velho tinha 51 anos. A
última faixa só é encontrada entre os profissionais antigos, mas as duas outras
são detectadas em ambos os grupos: os que acabaram de ingressar e os que já
trabalhavam antes.
A origem social desses delegados também aponta para o processo
de mobilidade intergeracional ascendente, mas com um percurso de distâncias
sociais menores. Nenhum dos informantes tinha seu pai trabalhando no meio
rural. O ponto de partida mais baixo para a ocupação paterna é o trabalho
manual urbano com alguma qualificação. Quatro delegados têm sua origem
social no estrato médio-inferior, onde a ocupação do pai era a de motorista,
marceneiro ou mecânico; sete no estrato médio-médio (comerciante, dono de
taxi, sargento); cinco no estrato médio-superior (professor secundário, oficial
de cartório, funcionário público com diploma de advogado) e dois no segmen-
to alto (advogado e contador).
O processo de socialização nos valores do mundo da ordem, seja
pela lógica do Direito, seja pela da polícia, antecede o ingresso na carreira
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locais, embora haja migração para a região e haja também ascensão social
local via obtenção do diploma de advogado. Como a maioria dos entrevista-
dos neste grupo profissional é proveniente dos segmentos médios ou altos, as
possibilidades concretas de realizarem mobilidade ascendente foram meno-
res, já que partiram de um patamar mais elevado. Como um conjunto, os juízes
e os promotores de Branca percorreram distâncias sociais maiores, partindo
de famílias mais desfavorecidas e alcançando o topo da hierarquia social. Já
os delegados de polícia originam-se principalmente de famílias médias.
Para o exercício da advocacia, os laços sociais e as conexões locais
parecem ser mais relevantes, já que é necessário se obter clientela. As ativida-
des profissionais ligadas ao setor público podem dispensar esta característica,
já que a renda mensal não provém deste tipo de vínculo. Este fator pode ter
alguma relevância na explicação das diferenças nas origens sociais destes gru-
pos profissionais.
Todos os 16 entrevistados são provenientes do interior do Estado
de São Paulo, sendo oito deles da região de Branca. Quanto à Faculdade de
Direito que freqüentaram, também aqui predominam os cursos particulares
do interior do Estado, com destaque para a faculdade localizada no município
de Branca. Um dos informantes estudou na USP, na capital.
A experiência profissional destes informantes é predominantemen-
te no exercício da advocacia, com escritório próprio, embora o padrão do es-
critório e da atividade liberal seja bastante diferenciada, de acordo com o grau
de profissionalização de cada um deles. Assim, entre os que estão numa situa-
ção mais favorável, há um ex-juiz da comarca de Branca, que após a aposen-
tadoria retomou a atividade de escritório e um advogado que era presidente da
OAB local quando concedeu entrevista. As situações profissionais que estão
numa condição oposta podem ser ilustradas pelo caso de uma mulher formada
há quatro anos, que, além de dar aulas de Inglês em um curso, exerce a advo-
cacia em casa e atende no escritório de uma conhecida alguns clientes do pro-
grama oficial da Secretaria da Justiça em convênio com a OAB local, para dar
assistência advocatícia à população carente da região.
Um outro padrão de difícil profissionalização na região é o dos
homens que concluíram tardiamente o curso de Direito, ingressando na práti-
ca profissional depois dos 40 anos. Quando este procedimento está ligado ao
acúmulo de posições no mercado de trabalho, como funcionário público e
advogado, a transição entre as duas atividades parece mais segura, já que só
se completa com a aposentadoria na primeira ocupação. Assim, embora a si-
tuação do escritório possa ser menos profissional, as conseqüências para o
advogado são menos dramáticas. Quando esta transição é tardia, mas envolve
uma redefinição profissional por perda da posição anterior, o tipo de ingresso
possível neste mercado de trabalho torna-se tão adverso, que parece marcar o
desenvolvimento da profissionalização para sempre, estabelecendo limites no
tipo de clientela, nas causas obtidas e nos rendimentos auferidos. Esses advo-
gados se tornam inimigos mortais dos Juizados de Pequenas Causas, que atin-
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A competição interprofissional
povo precisaria, no meu modo de ver, seria um MP que fosse atuante dentro
de sua função específica, que era a proteção do interesse coletivo.
Depoimento de um magistrado sobre os advogados:
O advogado hoje, infelizmente, eu acho que, como em todas as car-
reiras, o nível caiu muito, o nível do ensino caiu muito. Então, não é uma
questão de péssimos advogados. Eu acho que existem péssimos médicos,
dentistas, enfim, acho que toda profissão, toda carreira hoje, não sei se as
pessoas chegam muito fácil ou se proliferaram as faculdades. Isso faz com
que aumente o número de profissionais em cada área, então há uma perda
da preparação. Eu acho, como em todas as carreiras, há um decréscimo da
formação profissional. Infelizmente nós temos visto trabalhos ruins porque
os novos não estão bem preparados. Os advogados antigos, a gente percebe
que eles se formavam com outro conteúdo, com outro preparo. Hoje não. O
advogado se forma, pensa que é advogado, vai advogar e o trabalho dele eu
acho que é um trabalho muito difícil de executar. Às vezes parece fácil na
prática, que ele se formando e tendo uma máquina de escrever ele pode
peticionar, mas o trabalho que o advogado faz fica escrito, e qualquer um
pode vir e examinar as falhas profissionais... Se o advogado move uma ação
ruim, fica escrito. Ninguém vai conseguir apurar que o médico errou na sala
de cirurgia, ao passo que outro profissional da mesma área vai verificar que
o advogado errou naquele processo, entrou com a ação errada... A advoca-
cia é uma profissão difícil de se exercer porque aquilo que a gente escreve
fica arquivado, e amanhã qualquer um pode chegar e ver o erro, a imbecili-
dade do advogado em questão. Então, é muito difícil no dia a dia.
Depoimentos de promotores públicos sobre os delegados de polícia:
A polícia, eu acho que ela é um pouco lenta, ela tem retardado um
pouco as investigações, mas decorrente do próprio excesso de trabalho. Se
lá existe lentidão, aqui já existe uma pressa bem maior.
Na polícia existe corrupção, principalmente nos grandes centros. É
preciso haver um controle muito grande para evitar a corrupção. Na Magis-
tratura a corrupção é coisa raríssima, então, na polícia é mais comum, infe-
lizmente. O grande problema da polícia é esse daí: corrupção. Mas, não ge-
neralizando, dizendo que todos são corruptos, mas é preciso um controle bem
grande, porque eles estão trabalhando numa atividade que é muito propícia.
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eles fazem isso. Então, a morosidade não é deles na verdade, é própria das
leis mesmo.
As pessoas aqui fazem o que podem. Tem pessoas que reclamam do
Judiciário, mas a lei emperra muita coisa... Se a lei é falha, eles têm como
escapar mesmo. Um maior rigor na lei consegue amenizar um pouco a mo-
rosidade... O sistema americano é diferente. O cara é preso e em nove dias
ele é julgado. Já é diferente do nosso, os nossos processos têm ritos dife-
rentes. O nosso é assim e funciona desse jeito. Nós temos que nos enqua-
drar nesse sistema de andamento de processo...
As disputas entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo se agu-
çaram com a Constituição de 1988, já que este foi um momento de modifica-
ção na legislação e na distribuição de forças entre as instituições que atuam
no campo da justiça no Brasil. No momento da realização da pesquisa, as
tensões entre os dois poderes estavam sobrepondo-se às tensões do Judiciário
com o Executivo porque se colocava a oportunidade de alteração na Consti-
tuição através de sua revisão. As possibilidades de mudanças reacenderam as
disputas e a defesa dos interesses específicos entre as diversas instituições
envolvidas com a questão da justiça – como a Magistratura, o Ministério Pú-
blico, as Delegacias de Polícia e a OAB – e os diferentes lobbies no Legislativo.
Embora esse momento específico seja muito propício às tensões
entre o Judiciário e o Legislativo, por ser uma ocasião de disputa jurisdicional,
a mudança na composição ocupacional dos membros do Congresso Nacional
pode ter alguma influência no aumento da tensão entre estes dois poderes.
Esta hipótese, que requer investigação à parte, focaliza a diminuição no nú-
mero de legisladores com formação em Direito como um fator capaz de inten-
sificar os conflitos entre os dois poderes, mesmo sabendo-se que tais tensões
se originam na esfera da política e da relação entre os poderes, questões que
extrapolam a dinâmica profissional. Entretanto, uma bancada no Congresso
com uma participação menor de advogados que viveram uma socialização
profissional e um treinamento ideológico nos valores do mundo do Direito,
partilhando sentimentos comuns típicos do processo de formação profissio-
nal, pode atuar como tensionador e como diversificador desse corpo de legis-
ladores, que experimentaram outras vias de socialização nas suas trajetórias
anteriores ao ingresso no parlamento.
A mudança na composição ocupacional dos membros da Câmara
Federal é uma evidência de como este fator pode ajudar a tensionar as rela-
ções entre o Judiciário e o Legislativo, em momentos mais críticos desses
4
embates institucionais. Na legislatura de 1967-1971, a Câmara Federal con- Dados extraídos de
Deputados Brasilei-
tava com uma participação de quase 50% de deputados com formação em ros, 6º Legislatura,
Direito4. Na legislatura de 1991-1995 esta participação caiu para 1/35. A di- 1967-1971, Biblio-
versificação profissional entre essas duas legislaturas materializa-se no total teca da Câmara dos
Deputados.
de profissões declaradas pelos deputados, tendo a primeira cerca de 30 ocupa- 5
Dados extraídos de
ções e a segunda 45. Além disto, observa-se um aumento neste último perío- Folha de S. Paulo,
18/09/94, Caderno
do de deputados economistas, engenheiros e daqueles com ocupações prove- Especial “Olho no
nientes dos estratos sociais menos privilegiados. Voto”.
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A competição intraprofissional
levando processo para casa nos fins de semana. Ninguém se identifica na po-
sição do funcionário que faz corpo mole no trabalho. Ela serve para reforçar a
dedicação, a vocação, a competência, a melhor qualificação e o merecimento
de tal posição profissional prestigiada.
Sou vocacionado para a Magistratura e enquanto advogado tinha o
maior prazer em advogar, mas senti que era o momento de eu conseguir ser
juiz... Todo juiz deveria, necessariamente, ser previamente advogado por um
período de no mínimo cinco anos, com muita dedicação... O juiz, ele tem uma
carga de serviço que vai muito além daquilo que seria o ideal. O juiz tem
que trabalhar diariamente de 12 a 14 horas. Eu estou falando de juiz que
trabalha. Não estou falando de alguns que tem realmente uma exceção que
não é muito ligada em trabalho, não é vocacionada e deveria estar em outro
ramo, menos na Magistratura. Mas a maioria ainda é dada a trabalhar...
Os juízes que vieram de uma carreira relativamente curta como ad-
vogado, eles sabem conduzir melhor os processos, sabem decidir melhor,
têm mais sensibilidade, mais vivência e, principalmente, ele sabe olhar os
dois lados. Ele sabe olhar o lado da Magistratura, do poder público, mas
também sabe olhar o lado do advogado, que, até por dispositivo legal, é um
auxiliar da justiça. Ele não é um estranho. Essa interação entre Poder Judi-
ciário e o advogado tem-se bem. É diferente de um juiz, por exemplo, que
saiu dos quadros de funcionário do fórum, porque ele era funcionário e via,
de um modo geral, o advogado como um adversário, porque para o funcio-
nário o advogado que faz pedido de balcão, ele vê o advogado como adver-
sário, alguém muito chato, que só enche o saco, aborrece, que só faz pedi-
dos esdrúxulos. Enfim, quando ele entra, passa em concurso, ele continua
mais ou menos com a mesma visão do advogado. Ele nunca foi advogado e
se ele nunca exerceu a profissão, ele não sabe como funciona e não sabe o
aperto do advogado em certas ocasiões... A minha experiência diz que, com
algumas exceções, aqueles juízes que vieram dos quadros da advocacia são
excelentes, são bons juízes. Aqueles outros que vieram da faculdade direto
para a carreira por concurso ou vieram de cartório deixam a desejar um
pouco, pelo menos no começo.
As Delegacias de Polícia
A competição intraprofissional detectada entre os delegados de po-
lícia manifestou-se principalmente de quatro formas:
a) hierarquicamente, captada nas críticas à política de promoção.
Neste caso, observamos críticas de delegados que ascenderam por tempo de
serviço feitas aos que obtiveram promoção por merecimento. Há uma demar-
cação claramente negativa deste padrão de comportamento, associando os
promovidos por mérito com a politicagem, o “puxa-saquismo”, enquanto a
promoção por antigüidade obtém o reconhecimento legítimo neste grupo. A
promoção por mérito aparece como um fator de ressentimento entre os que
não galgam tais posições. Talvez eles estejam mais concentrados no interior
do que na capital.
Existem dois modelos (de ascensão na carreira): primeiro, por anti-
güidade, e segundo, por merecimento. Por antigüidade, abrem-se as vagas.
Os mais velhos, a metade dos candidatos vão por antigüidade. Então, os mais
velhos vão subindo hierarquicamente. A outra metade é composta de puxa-
sacos, maçanetas e outros puxas mais. Estou falando a verdade, só progri-
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tural mais distante dos juízes, levando-se em conta seu lugar no sistema pro-
fissional. É da intensa socialização no fórum e desta posição claramente su-
bordinada ao juiz que partem as avaliações e as opiniões de maior reverência
ao prestígio e ao destaque do magistrado. A maneira como os magistrados são
tratados internamente, nos cartórios, contribui para realimentar sua importân-
cia social. A formalidade do tratamento de Vossa Excelência extrapola o am-
biente das audiências e se incorpora ao cotidiano do fórum com freqüência,
quando há uma platéia externa. Os funcionários judiciais são decisivos nesse
processo da construção da deferência ao juiz, porque procuram obter para a
sua posição profissional algo deste reconhecimento do público, deste temor,
deste respeito. A condição de funcionário de escalão subalterno é reelaborada,
para o público externo, pela criação de uma conduta de superioridade, de po-
der, que o funcionário incorpora à sua imagem, para caracterizar a forma como
quer ser identificado. O fato de trabalhar vinculado ao terceiro poder da repú-
blica brasileira acaba marcando o tratamento que destina à clientela, ao assu-
mir para o seu cargo a condição de autoridade, de terceiro poder, junto a quem
precisa da justiça. Realimentar a deferência à Magistratura tem resultados
práticos imediatos na própria percepção de sua valoração social6.
Não é por acaso que há competição intraprofissional entre os juízes
que vieram da advocacia e aqueles provenientes dos cartórios judiciais. A
simbologia em torno da carreira é mais acentuada no segundo grupo do que
no primeiro. Os funcionários passaram muitos anos de sua vida profissional
construindo tal distinção para a Magistratura e acreditam nela com mais em-
penho do que aqueles que viveram essa socialização em menor grau.
Outro aspecto que a abordagem da competição profissional ajuda a
desnudar é a de uma maior interdependência entre as profissões exercidas no
âmbito do Estado e a produção de decisões políticas nesta esfera, que alteram
as correlações de força no mundo profissional. Essas conexões entre os dois
mundos ficam evidentes na tensão entre o Legislativo e o Judiciário no con-
texto analisado acima, nas recentes tensões entre o Judiciário e o Executivo no
quadro político brasileiro e nas mudanças no prestígio da profissão de delega-
6
do de polícia. Assim, se há uma lógica própria ao sistema das profissões, ela
É possível que tal con-
duta seja mais acen- não está desconectada de outras esferas de poder. Quando enfocamos a com-
tuada em comarcas do petição profissional no mercado de trabalho privado, percebemos como as
interior e de regiões mudanças tecnológicas são relevantes para alterar a condição de uma profis-
de médio e pequeno
porte, do que na capi- são neste sistema. Assim, o fortalecimento da profissão de jornalista não pode
tal. Entretanto, obser- ser desvinculada dos avanços obtidos pela mídia, em termos de tecnologia e
vamos mesmo nos Tri-
bunais de Alçada, na de expansão do sistema de informação. Ao analisarmos o campo da justiça, as
segunda instância do mudanças profissionais que detectamos aparecem mais vinculadas à esfera do
Poder Judiciário, uma Estado e a da democratização da participação política. Este aspecto é o res-
padrão semelhante de
lidar com o público ponsável pela alteração no prestígio dos delegados de polícia, pelo menos na
externo, acentuando a forma como eles têm percebido a questão. Partindo de uma autopercepção
distância e a auto-
ridade da instituição onde se reconheciam num patamar superior de força profissional perante a
sobre o cidadão. sociedade, os delegados agora identificam sua posição como desprestigiada
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Conclusões
BONELLI, Maria da Gloria. Professional competition in the judicial world. Tempo Social; Rev. Sociol.
USP, S. Paulo, 10(1): 185-214, may 1998.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BONELLI, Maria da Gloria. A competição profissional no mundo do Direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):
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