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“Sábios em vão
tentarão decifrar
o eco de antigas palavras
fragmentos de cartas, poemas
mentiras, retratos
vestígios de estranha
civilização.”
Chico Buarque de Holanda
Resumo
Este artigo se propõe a fazer uma reflexão sobre o lugar dos gestos e sentimentos (da
teatralidade) dos informantes na elaboração de fontes orais, discutindo os limites e
possibilidades de sua interpretação pelos historiadores. Para isso, discute a problemática
da transformação da narrativa oral em narrativa escrita, no processo de transcrição das
entrevistas feitas com o Sr. Raimundo Custódio da Silva, em 2006.
Palavras-chaves: história oral – narrativa – oralidade.
Abstract
This article reflects upon interviewees feelings and gestures (theatricality), interpreting
oral sources, discussing limits and possibilities of this interpretation by researchers. For
such, it discuss the oral narrative transformation into writen narrative, based on the
interview transcription of Mr. Raimundo Custódio da Silva in 2006.
Keywords: oral history - narrative - orality
1
Doutor em História Social pela UFF e Professor do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil
da UFPI.
2
ALBUQUERQUE, Durval Muniz. Violar memórias e gestar a história: abordagem a uma problemática
fecunda que torna a tarefa do historiador um parto difícil. Clio, v. 15, 1994.
3
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 22.
4
ZUNTHOR, Paul. A letra e a voz: “literatura” medieval. São Paulo: Cia. Das Letras, 1991.
5
VERENA, Alberti. O lugar da história oral: fascínio do vivido e as possibilidades de pesquisa. In: Ouvir
contar, textos em história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 16.
II
6
VERENA, Op. Cit., p. 18
7
ZUNTHOR, Op. Cit., p. 24
6 Revista História Agora, vol. 9, nº 9, Dossiê História Oral, jun.–ago. de 2010
História Agora – Revista de História do Tempo Presente (ISSN 1982-209X)
8
Fundado na Escócia por volta de 1560, pelo reformador escocês John Knox, o presbiterianismo era a
principal confissão religiosa dos povoadores das treze colônias inglesas na América, formando, após a
independência a maior comunidade religiosa dos Estados Unidos. A igreja presbiteriana norte-americana
foi a primeira a enviar missionários ao Brasil, já no ano de 1859, tornando-se o principal agente da
evangelização protestante do país até meados do século XX.
9
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
10
FURET, François e OZOUF, Jacques. Lire et écrire. Paris: Minuit, 1977, p. 356.
A oralidade inscreve-se em contextos cada vez mais amplos, nos quais se podem
vislumbrar as temáticas mais caras à abordagem da História Social. “Seu” Custódio
parece saber da importância desse domínio e se utiliza várias técnicas de
valorização/desvalorização social de si mesmo e de outros, adensando seu relato com
referências sutis a personagens e situações. As histórias não merecem apenas ser
contadas, mas contadas a partir de um determinado contexto teatral.
Seu próprio nascimento, por exemplo, surge narrativamente como uma cena
cuidadosamente composta.
Na cultura oral do sertão não existe muito espaço para explicações sobre a vida,
no lugar disso contam-se histórias. O Arranjo narrativo, portanto, segue um padrão de
teatralização em que o personagem central – o “Seu” Custódio – aparece no “palco” em
lugar sempre periférico, em referência a outro personagem, em cuja história ele se
insere. Através dessa técnica, o narrador pode apresentar-se mais livre para comentar os
casos que conta, deslocando-se do centro da trama. Ao mesmo tempo, pode inserir
ironias ou eufemismos no relato de situações em que a desigualdade de poder aparece
mais clara.
Note-se ainda que a performance procura seduzir a audiência valorizando a
situação da entrevista – “que nunca pensei na minha vida” – ou incluindo os
entrevistadores na própria narrativa “sabe o que é uma quasta? O senhor sabe a palavra
matuta?” Esta segunda técnica, curiosamente, é empregada na definição de palavras de
uso comum do sertanejo no início do século XX, formulando, secundariamente, um
verdadeiro glossário do vocabulário popular, com que o “Seu” Custódio procura sempre
marcar suas diferenças com relação aos pesquisadores. Espanta-se, por isso, quando
9 Revista História Agora, vol. 9, nº 9, Dossiê História Oral, jun.–ago. de 2010
História Agora – Revista de História do Tempo Presente (ISSN 1982-209X)
quem lhe entrevista (um “professor importante da cidade grande”, segundo definição
sua) declara conhecer o que é uma quasta: duzentos e cinqüenta gramas, “uma quarta
parte”...
Para boa fortuna deste pesquisador, para além da surpresa de “Seu” Custódio,
conhecer o significado de uma palavra por ele considerada como restrita aos que
compartilham que compartilhavam da sua própria experiência teve o mérito de quebrar
as barreiras ainda existentes, fazendo com que a relação entrevistador – entrevistado se
revestisse mais cumplicidade e descontração, condição que, como observou Alessandro
Portelli, em muito contribui para a qualidade do depoimento que se consegue.11
A estratégia narrativa de “Seu” Custódio pode ser, talvez, melhor exemplificada
com o episódio de sua iniciação ao universo da sexualidade. As diferenças entre os
sexos passam a ser introduzidas em sua vida, segundo seu relato, através da interdição
moral da Igreja Católica. Mas, para chegar a este ponto, nosso narrador precisa
descrever as brincadeiras de criança.
11
PORTELLI, Alessandro. (1997) O que faz a história oral diferente. Projeto História. São Paulo: Educ,
nº 14.
10 Revista História Agora, vol. 9, nº 9, Dossiê História Oral, jun.–ago. de 2010
História Agora – Revista de História do Tempo Presente (ISSN 1982-209X)
Para que sua história tenha significado e, portanto, possa convencer sua
audiência, os meninos e meninas precisavam estar no cenário vivo de suas brincadeiras,
descritas com entusiasmo, humor e riqueza de detalhes.
A vida de criança, o contato dos corpos, os jogos, as “aventuras” aparecem como
típicas de uma fase da vida em que não se despertou para o interesse sexual, em que
todos são crianças e participam das mesmas brincadeiras. A diferença é introduzida pela
cobrança de uma regra moral até então desconhecida que lhe será imposta pelo
catolicismo quando de sua primeira confissão a um padre, aos 11 anos de idade.
estrita separação entre meninos e meninas, já que o pecado poderia se manifestar desde
a mais tenra idade. Mas “Seu” Custódio ainda não conhecia estes valores.
Os nomes de seus pais somente irão aparecer na narrativa após uma detalhada
descrição do sítio e da família dos proprietários, os poderosos chefes de família e suas
mulheres piedosas. Mesmo assim não há sobrenome.
Somente os donos das fazendas, a que os moradores ficam ligados material e
socialmente, possuem uma linhagem identificável, uma tradição familiar. Para “Seu”
Custódio, estar ligado a estes nomes importantes é uma forma de “herdar”, de
reivindicar para si, um pouco dessa valorização social, que normalmente os moradores
pobres não podem reivindicar para si.
Há, portanto, como identificar na narrativa de “Seu” Custódio uma certa estratégia
de convencimento que se relaciona com uma tradição de oralidade, própria de um
ambiente social tradicional, como o sertão do Ceará, e com um uso “popular” do espaço
da oralidade. Os temas que ele desenvolve ao longo de sua vida, aos quais se liga como
personagem sempre declaradamente secundário, podem agora ser compreendidos e, a
partir daí, desenvolvidos pelo historiador.
III
Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE, Durval Muniz. Violar memórias e gestar a história: abordagem a
uma problemática fecunda que torna a tarefa do historiador um parto difícil. Clio, v. 15,
1994.
FURET, François e OZOUF, Jacques. Lire et écrire. Paris: Minuit, 1977.
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: FGV,
2003.
GINZBURG, Carlo. Relações de Forças. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
PORTELLI, Alessandro. História oral como gênero. Projeto História. São Paulo: Educ,
nº 22, 2002.
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História. São
Paulo: Educ, nº 14, 1997.
12
VERENA, Op. Cit., pp. 21-23.