Você está na página 1de 84

Enquanto não

cicatriza
Histórias de mulheres que sobreviveram
Célia Regina Ramos Méris
Maria Vitória Siviero
Silvani Maria da Silva

Enquanto não
cicatriza
Histórias de mulheres que sobreviveram

São Paulo — 2022


Copyright © 2022 por Célia Regina Ramos Méris; Maria Vitória Siviero; Silvani
Maria da Silva
Enquanto não Cicatriza — histórias de mulheres que sobreviveram
Célia Regina Ramos Méris; Maria Vitória Siviero; Silvani Maria da Silva
a
1 Edição
a
1 tiragem – outubro de 2022
Edição
Editora Lux
Revisão:
Bia Bernardi
Diagramação:
Editora Lux
Capa:
Victor Bittow
Ilustrações:
Cia. Teatral Casa de Marias

ISBN 978-65-5913-399-4

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação — CIP


Bibliotecária responsável — Simone da Rocha Bittencourt — 10/1171
_________________________________________________________________
M562e
Méris, Célia Regina Ramos.
Enquanto não cicatriza : histórias de mulheres que sobreviveram / Célia
Regina Ramos Méris, Maria Vitória Siviero, Silvani Maria da Silva. – São Paulo,
SP: Ed. Lux, 2022.
80 p. : il. ; 14 x 21 cm.

ISBN 978-65-5913-399-4
CDU: 316.647.3
CDD: 301.633042
___________________________________________________________________
Índice para catálogo sistemático
1. Sociologia. 2. Violência contra a mulher. 3. Violência doméstica. 4. Violência familiar. 5. Relato de
experiências. I. Siviero, Maria Vitória. II. Silva, Silvani Maria da. III. Título.

Editora Lux
R. Boa Esperança, 229 — Sala 17
São Paulo — SP
CEP: 03408-000
Tel.: 11 4213-0401 | WhatsApp.: 11 95916-6965
E-mail: contato@editoralux.com.br
Agradecimentos

N
enhum projeto nasce sozinho. É necessário que muitas
mãos sejam dadas para que ele possa existir. Para que
esse voo fosse alçado, muitas pessoas, em especial mu-
lheres, emprestaram um pouquinho de suas asas, para que nós,
da Cia. Teatral Casa de Marias, pudéssemos completar esse ciclo.
Nesse pequeno rito de agradecimento, saudamos todas as
mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, que partici-
param das oficinas e das entrevistas individuais que compõem o
projeto “O Caminho da Fênix”. Suas histórias deram origem ao livro
Enquanto não cicatriza – Histórias de mulheres que sobreviveram.
Agradecemos à todos os parceiros que, percebendo a im-
portância do projeto, abriram as portas para que ele acontecesse:
Ricardo Estevam, da Supervisão de Assistência Social (SAS) Ermelino
Matarazzo; à Maria Izabel R. de Souza Oliveira, supervisora técnica
do Centro Especializado de Assistência Social (CREAS) Ermelino
Matarazzo; ao Centro de Referência da Assistência Social (CRAS)
de Ermelino Matarazzo.
À Ester, Cristiane, Renata, Susi, Declaide, Cristina, Sônia,
Lucelia, Marilia, Nelma, Tatiane, que acompanharam nossos encontros
com as mulheres-protagonistas desse projeto e que possibilitaram
que ele florisse com tamanha liberdade nos espaços de acolhimento.
E, por fim, aos familiares e amigos que sempre acompanham
nossas travessias em busca de um mundo mais justo para as mulheres.
Nossa imensa gratidão ao querido amigo Edgar Castro, pelas lindas
palavras escritas para esse livro, e por sempre nos acompanhar em
nossos projetos de vida-arte.
Que essa fênix possa voar cada dia mais alto!

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva |5


Sumário

Agradecimentos..................................................................................5

Caminho da Fênix..............................................................................9

A Menina que Encontrou a Morte e Descobriu a Vida...............12

Herança de Avó.................................................................................20

Casa Assombrada.............................................................................30

Ela Só Queria Ser Embalada no Doce Balanço do Amor............40

Recanto Feliz ou o Tempo Esquecido Embaixo da Figueira.......47

As Vielas de uma Vida.....................................................................54

As Regras dos Outros.......................................................................61

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva |7


Caminho da Fênix

Q
uando demos os primeiros voos em direção a este céu
aberto que é o mundo feminino, sabíamos que encontra-
ríamos “mulheres-fênix” em processo de renascimento.
No entanto, as histórias narradas em cada encontro foi revelando, de
forma brutal, o quanto essa experiência de “vida-morte-vida” estava
tomada de dor, lágrimas, sofrimento, angústias e perdas.
Percebemos que o caminho percorrido por cada uma das mu-
lheres que participaram do projeto tem suas particularidades, mas
todas as narrativas traziam um ponto de intersecção: o desejo de uma
vida diferente. Sem gritos, agressões, violências, choros, xingamentos.
Uma vida com perspectivas de futuro, regada ao sopro da liberdade
e banhada com a doçura da alegria e do amor.
Para essas mulheres conseguirem avistar esse futuro e saírem
destas gaiolas que as aprisionam, será preciso muita coragem, pois
para uma sociedade patriarcal e machista, a violência contra a mulher
é sempre normatizada.
Aos homens, que deveriam ser seus companheiros, é permi-
tido agirem como águias ferozes, que seguem soltas caçando outras
vítimas, enquanto as “fênix” lutam para terem suas asas curadas. As
mulheres-pássaros, que deveriam voar livres, sentindo o vento da
liberdade vibrar sob suas asas, são obrigadas a pousar por um tempo
em outros ninhos-abrigos, para protegerem suas vidas.
E por muitas vezes, para fugirem do homem-águia – que cala,
mutila e mata – são obrigadas a deixar seu ninho, sua família e seus
filhotes para trás!

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva |9


Mas mesmo com a alma ferida e o coração sangrando, es-
sas mulheres nos ensinaram muito sobre força e renascimento.
Nos mostraram que ainda há muito caminho a ser percorrido, mas
a busca por uma vida melhor vale cada centímetro da jornada a ser
trilhada.
E nós seguiremos com elas nesse caminho, revelando suas
histórias que, de alguma forma, se misturam às nossas.
Convidamos as leitoras e leitores desse livro a nos acompa-
nharem nesse desejo de mudança: de alcançarmos uma sociedade
em que as mulheres possam alçar, com plenitude, os seus voos.

10 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


A Menina que Encontrou
a Morte e Descobriu a Vida

Célia Ramos

C
ara leitora, é inacreditável ver as pessoas que nos atravessam
por este caminho chamado vida. Hoje quero falar de uma
menina-mulher, cheia de vida, que horas estava de cabelos
avermelhados, outros azuis; mas uma coisa era fato: ela buscava sen-
tido no excesso de passado, que já carregava em sua tão tenra idade.
Quando a avistei pela primeira vez, estava sentada em um sofá
de cabeça baixa, parecia um bichinho assustado, apertando as mãos
até quase sangrarem; mesmo no meio de muitas outras, a forma como
se mostrava acuada chamou minha atenção.
Ela era a única filha mulher entre 5 homens, e morou sua pri-
meira infância em um sítio com a mãe e os irmãos – um momento
marcado com a simplicidade de uma menina criada no interior,
que lavava louça no riacho aos sons dos passarinhos cantando, e
pegando fruta no pé. Seu pai deixara a família após o falecimento
de sua avó, quando a responsabilidade da criação dos filhos lhe pe-
sou. Vivera, assim, as dificuldades de uma casa que era sustentada
por uma mãe solo: a vida não era perfeita, mas o amor construía os
alicerces daquele lar.
A primeira tragédia chegou bem cedo em sua vida: aos 13 anos,
sua mãe falecera em seus braços, diante de seus olhos – a mulher que,
por amor, recusara tratamento médico, agora pedia a uma criança
que não a deixasse morrer. Era final de ano. A menina que dava
seus primeiros passos no trilhar da própria caminhada, começava a
entender que, talvez, essa “tal vida” não lhe daria trégua.

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 13


A mãe criara seus cinco filhos sem depender de ninguém,
trabalhara fazendo faxina para poder sustentar a sua própria casa,
sonhando com o futuro de seus filhos e com o desejo de vê-los for-
mados; fazia o possível e impossível para garantir as festinhas de
aniversário de cada um – mesmo que fosse simples; ela era o orgulho
da menina, que adorava vê-la no riacho, entre o brilho das panelas.
Quando criança, namorava um garotinho lindo, de cabelos
pretos, olhos castanhos e uma pele macia feito pêssego; era o filho de
seu padrasto, dois anos mais velho. Eram aqueles namoros inocentes,
de andar de mão dadas pela praça, ir ao cinema, tomar sorvete, assistir
tevê sentado na sala, mandar cartas com declarações de amor e ver
o pôr do sol em dias acolhedores.
Porém, após a morte de sua mãe, só conheceu dor e sofri-
mento – acreditava estar perdida, sem um lugar no mundo, sendo a
grande culpada pela partida daquela que mais amou: sentia-se inútil
por não ter conseguido impedir que sua mãe fechasse os olhos pela
última vez. Ela cresceu carregando o peso da morte, vivenciando a
uma depressão logo cedo. Sem que pudesse imaginar, um abismo se
abria e a assombraria até seus 21 anos.
Dali em diante, vivia sendo jogada de casa em casa: primeiro
com seus irmãos mais velhos, depois em abrigos; um dia, resolveu
fugir com o tal “pele de pêssego” e buscar uma nova vida na cidade
grande, São Paulo, na casa da mãe do garoto. Os primeiros anos de
convivência foram marcados pela empolgação da construção de uma
vida em comum: saiam, passeavam e tinham as questões de um casal,
mas nada que chamasse a atenção ou preocupasse.
Os problemas chegaram junto ao nascimento do filho que, por
problemas de saúde, passou dois meses internado; neste período, a
menina, agora com 15 anos, teve que aprender rápido o ofício de ser
mãe em uma rotina entre hospital, enfermeiras e médicos, vivenciando
dias indescritíveis que, até aquele dado momento, com exceção do
dia da partida de sua mãe, foram os piores.

14 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


E estava passando por este pesadelo sozinha.
Dedicava todo o seu tempo e a sua vida para aquele ser tão
pequeno e indefeso que, já com os primeiros choros, ensinou-lhe
grandes lições de vida; a menina, ao fitar aquele bebezinho pela
primeira vez, descobriu o verdadeiro sentido da palavra amor – e, ao
mesmo tempo, um medo aterrorizante de perdê-lo: pois a cada noite
sentia o temor de se, no dia seguinte, o veria novamente vivo. Eram
longas noites, onde o tempo fazia questão de se dilatar, deixando-as
ainda mais frias pela dor e sofrimento. Para lutar pela vida do filho,
ela colocou a si mesma em risco, quebrando o resguardo, gerando a
si muitas complicações; a depressão, aquela ocasionada pelo luto de
sua mãe, tomava proporções ainda maiores. E o marido não passou
sequer uma única noite ao seu lado, dando-lhe apoio, acalentado ou
mesmo querendo notícias sobre o filho – ela sequer sabia por onde
o companheiro andava, se estava em casa, bêbado ou em alguma
esquina caído ou drogado.
Quando ainda era só uma criança, e morava junto à mãe, não
era, como se dizem por aí, uma garota pra frente, mas gostava de
se olhar no espelho e se achar bonita: usava maquiagem, lápis nos
olhos, batom e unhas vermelhas. Depois do nascimento do filho, o tal
“menino-pele-de-pêssego”, que lhe mandava cartas com declaração de
amor, começou a mudar o seu comportamento; pedia que ela tirasse
o batom que a fazia se sentir tão bonita, que trocasse o vestido porque
a deixava feia. Em seguida vieram brigas, gritos e depois… não a
deixava sair de casa, mesmo em um simples dia de domingo para ir
à igreja. Ela acreditava que o marido agia assim por estar bêbado e,
para evitar mais brigas, apenas aceitava. Tempos depois aconteceu
o primeiro tapa – simplesmente porque havia sido convidada para
uma festinha de criança, à qual insistiu em ir.
Aquele primeiro tapa doeu.
E doeu no coração daquela menina de 12 anos, que ficou decep-
cionada, magoada. O dia seguinte chegou com falas mansas e doces

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 15


de arrependimento, de amor e de nunca mais agredi-la. O coração que
a habitava, e que ainda acreditava nas cartas apaixonadas, perdoou.
Não demorou muito para que a violência voltasse; foi um dia
em que ele havia usado muita droga (estava descontrolado!), e quando
chegou já foi indagando porque ela estava arrumando a casa com um
short e uma regata. Não houve tempo sequer de responder: foram
gritos e puxões de cabelo. Naquele dia, ela ficou com muita raiva e
resolveu ir para casa da sogra; pela primeira vez escutou o conselho
mortal de “calma, amanhã é outro dia, dorme que passa”. Ao acordar,
como a sogra havia orientado, ela voltou. E lá encontrou os mesmos
discursos de arrependimento.
Com lágrimas vertendo sobre seu rosto, mais uma vez, ela
acabou acreditando.
Dos oito anos em que se mantiveram em uma relação con-
jugal, somente os três primeiros foram regados a afeto; nos demais,
aprendeu a chorar, e aprendeu que, através do discurso do amor,
pode haver dores e decepções.
Todas as vezes em que ele lhe batia, ela buscava abrigo na casa
da sogra – e, como sempre, escutava a mesma coisa: “calma, amanhã é
outro dia, dorme que passa”. Ela nunca repreendera o filho, e quando
a menina dizia que ia embora, fazia-lhe chantagem emocional falando
que, se ele fizesse alguma loucura, a culpa seria dela.
Não é difícil de adivinhar que, pelas dores da culpa carregada
desde a infância, ela sempre ficava. E as agressões foram, assim, au-
mentando de intensidade: saíram dos gritos e puxões de cabelo para
pancadas e sessões de socos, que a deixavam desmaiada por noites
inteiras. E sempre por coisas bobas, como ciúmes dos artistas da tevê,
das roupas, ou porque ele acreditava que ela desfilava dentro de casa
para vizinhos do outro prédio – que a olhavam por binóculos; eram
situações completamente descabidas, fantasias que o rapaz criava e,
por isso, descontava sua ira.

16 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


E foi quando o menino-pele-de-pêssego-e-olhos-castanhos
mostrou que já não era mais aquele das declarações de amor: mas
um homem, um desses que achava ter o direito de posse sobre a vida
da menina, usucapião sobre seu corpo. E assim, no final do ano de
2021, ele resolveu dar cabo da sua vida, batendo-lhe tanto, mas tanto,
que ela foi parar no hospital.
Ele não conseguiu matá-la fisicamente, mas, com toda certeza,
ele a matou por dentro.
Pela primeira vez, ela não voltou para casa; foi para a cidade
de sua infância, onde conseguia sentir o cheiro da chuva e o calor
do sol a abraçá-la. Buscou o pai, que estava de volta, imaginando
que receberia dele ajuda e apoio. A menina, que passara vida com o
imaginário de um pai-herói, agora tinha a possibilidade de, enfim,
conhecê-lo melhor. Mas a realidade que iria se desnudar diante de
si era infinitamente diferente do que ela poderia imaginar em seus
piores pesadelos.
Com ele, morou durante 2 meses e, nos primeiros dias, foi
muito bem recebida; porém, tudo logo mudou: o pai a impedia de sair
e, quando ela fazia algo que não era de seu agrado, dedicava-lhe os
xingamento e as palavras mais baixas que já tinha ouvido até então.
De repente, viu o marido refletido em seu pai.
E não demorou a chegaram os abusos, praticados na frente do
neto, todas as noites. Ele ia para o quarto da filha, colocava o neto
no cantinho do quarto, no chão, e na frente da criança fazia o que
bem queria com a filha.
Minha cara leitora, perdoe-me, mas não foi possível encontrar
palavras para descrever o que aquela menina, com apenas 20 anos,
estava vivenciando naquele momento. Como se não bastasse, ele
ainda a ameaçava de morte, dizendo que entregaria o neto para um
abrigo caso ela contasse para alguém o que acontecia naquela casa.

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 17


Neste instante, já não havia nenhuma perspectiva de vida ou
de futuro. Ela só queria proteger seu pequeno filho. Mas sem ter com
quem conversar, para quem contar sobre o inverno ao qual estava
passando, mantinha-se calada. Acuada e sem caminhos, retomou o
contato com seu marido, que lhe pedia perdão, dizendo-se arrepen-
dido, que a amava e desejava que retornasse.
Ela nunca teve coragem de denunciar o pai para os irmãos,
tios ou sequer a um vizinho. Mais uma vez, vivia o inferno sozinha,
por medo do que eles pudessem fazer, do preconceito e ainda do que
poderiam falar da menina-de-batons-vermelhos, e até mesmo de sua
família. Jamais se perdoaria se um irmão ou um tio fosse parar na
cadeia por causa dela.
Um certo dia, já não aguentado mais aquela situação, disse ao
pai que o seu limite havia chegado; acreditando que ela contara para
alguém, ele sumiu da cidade. E preferindo ser machucada por um
estranho do que por uma pessoa que deveria protegê-la, voltou pra
São Paulo – e novamente para o marido. Os dois primeiros meses
foram regados de paz; mas ele logo voltou a agredi-la.
Era 2 de fevereiro e a vida já não fazia mais sentido.
Depois de tanto sofrimento, sentindo-se num completo abis-
mo, tentou suicídio pela primeira vez: tomou vários medicamentos,
sofreu overdose e tentou pular de uma ponte. Encaminhada para um
hospital, o marido e a sogra a tiraram de lá sem que ela terminasse
o seu tratamento. Não haviam passado sequer vinte dias do fatídico
momento que a conduziu à tentativa de suicídio, e fora agredida mais
uma vez, agora pelo simples motivo dos irmãos e primos terem curtido
uma foto de Facebook, com um coraçãozinho: sentiu-se no direito
de xingar, bater e jogar um copo de café quente no seu rosto, ferindo
suas retinas e prejudicando sua visão. Sofria todas essas agressões na
frente do filho que, um dia, vendo o próprio pai agredir a mãe, disse:
– Bate papai, bate porque a mamãe está muito desobediente.

18 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


A frase, ecoando da boca daquele que era o único que dava
sentido à sua vida, foi o suficiente para desejar novamente pôr fim
em sua existência. Ela saiu de casa sem rumo, transtornada, e sem
pensar jogou-se na frente do primeiro carro que avistou. Com a cos-
tela quebrada e um ombro fraturado, foi encaminhada ao hospital e
depois à delegacia, quando, pela primeira vez, contou sua história.
Dali foi conduzida direto a um abrigo sigiloso.
Sentiu naquele lugar o aconchego de vó e o acalanto de mãe;
mas ao mesmo tempo sentia-se perdida, pois em toda sua vida sem-
pre tivera alguém pra lhe ditar o que fazer e pra onde ir; e agora ela
estava experienciando poder tomar as próprias decisões – que, num
primeiro instante, foi desesperador, ela sequer sabia como agir: ela,
de fato, podia contar com o apoio e o carinho de todos daquela casa.
Mas estava chafurdada em um abismo, coberta por seus traumas e
sofrimentos, que a embriagavam ainda mais em sua própria depres-
são e não conseguindo avistar perspectiva alguma; todas as noites,
ao deitar-se, pedia a Deus que tirasse-lhe a vida e lhe atravessasse
pelo roseiro.
A sua maior paixão era, porém, exatamente o seu maior
sofrimento: a decisão de dar um basta nas agressões que sofria foi
pensando no filho, mas percebeu que não poderia continuar mais
daquela forma e que, por ele, precisaria buscar um outro caminho.
Queria ensiná-lo, desde pequeno que não se deve tratar ninguém
daquele jeito; e mais: entendeu que, naquele momento, a única forma
de lhe dar essa lição seria pela ausência, mesmo que este ensinamento
custasse caro, tanto a ela, quanto ao filho. Deixá-lo para traz foi a
decisão mais dura e dolorosa de sua vida: sentia-se culpada e isso lhe
rasgava a alma e lhe sangrava o coração.
Nos braços pequeninos de outras crianças, ela abrandava a
dor e a saudade.
Ainda hoje sonha com o dia em que terá seu filho de volta em
seu colo; a menina que cresceu com a companhia da dor e do sofri-

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 19


mento vai pincelando as primeiras páginas de uma nova vida, com
contornos mais delicados, coloridos e vibrantes. Descobrindo a si
neste vasto mundo, sem o peso de uma morte, que ela nunca matou,
fazendo os tratamentos de traumas que durante muitos tempo, ainda
carregará em sua alma, mas com a esperança de uma vida melhor,
descobrindo formas de abrandar a saudade e se fortalecendo para
cada novo dia.
Mas agora com a alegria de quem tem sonhos de uma vida a
ser vivida.

20 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


Herança de Avó

Silvani Maria da Silva

E
la diz que quase não chora. Mesmo sendo uma pessoa que
desde o momento em que nasceu se vê lutando pela própria
existência, só se permite chorar quando a vida lhe impõe
algum limite.
– Fui criada pela minha avó… Eu nasci na cama dela. Com o
cordão amarrado no pescoço, roxa, como ela!
Assim ela começa e logo nos conta que nasceu cheia de com-
plicações de saúde, pois já trazia no corpo miúdo os males das drogas
que a mãe consumira durante a gravidez. Durante três meses, ficou
internada numa UTI e essa foi a primeira vez, de muitas, em que
precisou lutar pela própria vida.
Aprendeu a ser quieta, mas isso não a impede de narrar sua
trajetória de vida como se esse fosse o último degrau a subir para
alcançar sua liberdade. Lá do alto, olha para baixo como se pudesse
assistir a própria história passando diante de si, e corajosamente,
busca palavras que possam traduzi-la. É assim que ela nos convida a
percorrer seus caminhos de dor, amor, medo, coragem e recomeços.
Carrega poucas lembranças da infância. Diz que é como se
tivesse acontecido um apagão e lembrasse apenas o que viveu a partir
dos oito anos. Num acender e apagar da memória, ela se recorda de
que, aos nove, foi morar com a mãe – depois que a avó conseguiu
livrá-la, temporariamente, das drogas. Nesse período viveu sua
segunda quase morte, pois voltou a dividir o mesmo teto com seu
pai – que já havia abusado sexualmente dela, deixando-lhe traumas
difíceis de serem superados – assim que ele saiu do presídio.

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 23


Sofreu quieta durante dois anos e, não aguentando mais,
contou para a avó que até relatou à filha o que o pai fazia, mas esta
não acreditou; pelo contrário, agiu como sempre agia: trocando as
filhas pelos homens. Até hoje ela guarda muita mágoa da mãe por
isso, e prefere viver afastada dela.
A avó, por sua vez, não denunciou nem pai nem mãe à polícia,
mas decidiu levar a menina para sua casa novamente. Tentaria, a todo
custo, protegê-la do cotidiano violento em que vivia; e com o passar
dos anos, a avó foi se tornando a mãe e o pai que ela nunca teve. Era
como um espelho em quem se via refletida e, dentre tantas coisas
que ela lhe ensinou, saber quando ficar quieta foi a melhor delas.
O tempo passou ligeiro, e com o mundo, querendo ou não,
ela cresceu.
Apesar de ter vivido muito tempo na casa espaçosa da avó,
nunca tivera um quarto para si, seu lugar sempre foi um colchão no
chão, não tinha sequer uma gaveta no guarda-roupa. Não entendia
por que era tratada assim, como se a qualquer momento fossem
expulsá-la dali; mas isso não a fez ter mágoa da avó que, sendo boa
ou ruim, sempre lhe protegia. Por conviver com uma pessoa sempre
muito reservada e rígida, ela teve uma adolescência bem privada de
lugares e amigos. A avó não a deixava sair para curtir festas e bailes,
era da escola para a casa. Shopping, só com a família. Isso lhe deu
uma certa rebeldia discreta. Sua vó falava se não voltar tal hora, você
vai ter que ir embora daqui. E ela saía, só para provocá-la: ia para a
casa da irmã e, de lá, para outros lugares.
E assim teve seu primeiro relacionamento. E foi vivendo esse
namoro secreto, que acabou engravidando, aos 19 anos. Rebelava-se,
dizendo que a avó queria impedir o amor da sua vida, exagerava. Hoje
eu não faria essa besteira não, diz enquanto se lembra da insistência
da avó para que ela namorasse um homem trabalhador.
Ele foi a primeira pessoa de que ela gostou de verdade. Nunca
tinha experimentado namorar, porque não lhe deixavam espaço para

24 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


que gostasse de ninguém. E a avó, sempre muito bruta para conversar,
quando soube da gravidez, foi logo dizendo:
– Engravidou, então vai ter que ficar com ele.
E de fato ficaram juntos, mas não por muito tempo. Separa-
ram-se muito antes do seu primeiro bebê nascer, em apenas dois
meses morando na mesma casa.
Nesse momento, ela faz uma pausa na narrativa. E quando
volta a falar, retorna ao período da adolescência. Lembra-se do quanto
gostava de brincar na rua, livre, solta, toda moleca. Desse jeito os
meninos não vão gostar de você, a mãe dizia, mas ela realmente não
se importava com isso. Foi nessa época em que conheceu aquele que
seria o pai do seu segundo filho. Estudaram juntos da oitava série até
o primeiro colegial. Ele queria namorá-la, convidava-a para passear
na garupa da sua moto, pagava refrigerante e até conseguiu arran-
car-lhe dois beijos… mas ela sempre dizia que não podia namorar
por medo de apanhar da avó.
Alguns anos se passaram até que se reencontrassem novamente.
Ela cuidando do primeiro filho e ele todo simpático, galante, conver-
sador. O primeiro encontro não passou disso, mas alguma coisa nele
a fazia lembrar de seu pai que, àquela altura da vida, era como uma
ferida cicatrizada – que, se tocada, doía. Ela demorou muito tempo
para não ter medo dele. Sua imagem, ou a simples menção de seu nome,
causava-lhe pavor. Sua avó, que era mãe de santo, trabalhou muito,
espiritualmente falando, para que tudo fosse apagado de dentro dela.
O pai morreu sozinho, sem ninguém para velar e enterrar
seu corpo.
Mas o que a entristeceu mesmo foi a morte da avó. Depois que
ela partiu, foi expulsa pelos tios da casa onde morava; juntou o pouco
que tinha, botou o filho no colo e foi para a casa da irmã, no interior
de São Paulo. Nesse tempo aconteceu seu reencontro com o traste,
como mais tarde ela passou a chamá-lo. Ele a encontrou no Facebook
e, nostálgica, logo começaram a conversar; não demorou muito para
que ele a convidasse para um encontro e ela, que já desejava voltar

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 25


para a cidade grande, aceitou. E, além de tudo, os desentendimentos
que teve com o cunhado apressaram sua partida.
E no começo estava tudo tão bem que, em pouco tempo, veio o
pedido para morarem juntos, numa casa alugada. Ela até pensou que
era cedo demais, mas como ele tratava seu filho muito bem e parecia
ser uma pessoa legal, dois meses depois resolveu aceitar.
Ele era tão atencioso e simpático que ela acreditava ter encon-
trado o príncipe da sua vida. Não se importava que a sogra não tivesse
gostado dela, já que ela sempre dizia que o problema do seu filho
eram as mulheres com quem ele se envolvia. Muito tempo depois,
descobriu que ele tinha se envolvido com oito mulheres – e, claro,
oito mulheres tinham sido o problema, não o filho dela.
Nunca vai esquecer a bronca que levou quando foi ao terreiro
que frequentava. Esse homem não é para você, ele é mau, tem traumas
do passado, diziam. E mesmo diante desse conselho ela pagou para
ver. Conforme o tempo passou, não precisou muito para que ela
descobrisse qual era seu trabalho: ele era um dos responsáveis por
“decretar o pessoal”, como costumam dizer no Comando Vermelho.
Todo dia ele chegava em casa com um sapato diferente, o que logo
despertou a curiosidade dela.
– De onde vem esses sapatos?
– Meu patrão me dá.
– Mentira! Me conta a verdade. De onde vem esses sapatos?
Foi nesse dia que ela conheceu o fetiche mórbido dele e ficou
sem palavras quando o ouviu dizer, tranquilamente, que tinha a mania
de usar os sapatos das pessoas que matava. Na hora ela pensou: Meu
Deus! Se ele mata as pessoas e usa seus sapatos, se resolver me matar,
vai usar minha sandália também?
Como não estava recebendo mais auxílio emergencial, não
tinha como pensar em ir embora, estava presa a um homem que não
conhecia direito e que lhe causava medo. Percebendo sua reação de

26 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


espanto, pediu-lhe um mês para ele sair daquela vida. Argumentou
que não podia sair antes, porque senão o Comando o mataria.
Ela, sentindo-se sem saída, resolveu acreditar.
Mas, em um mês, muita coisa pode acontecer e, mesmo sem
querer, ela engravidou. O que deveria ser um momento de alegria
tornou-se sua prisão: ao saber da gravidez, ele teve plena certeza de
que ela não iria embora, pois sabia que ela tinha uma família deses-
truturada e que jamais daria abrigo a uma mãe desempregada, com
dois filhos à tiracolo.
Foi então que começou o pesadelo. Primeiro vieram as agres-
sões psicológicas, e não demorou muito para que as agressões físicas
também começassem. Por qualquer discussão pequena, ele ameaçava
matá-la; buscava pretextos para machucá-la, para que ela mesma se
sentisse culpada por estar sendo agredida; maltratava seu filho mais
velho para que ela alterasse a voz e assim tivesse motivo para agredi-la,
como se justificasse com um ela veio para cima primeiro, então eu vou.
E ela ficou.
Não porque acreditasse que aquilo iria mudar, mas justamente
porque não acreditava que pudesse se cuidar sozinha estando grávida.
Quando pedia conselho para alguém, ouvia sempre que o melhor era
aguentar mais um pouco, que esperasse a criança nascer. Os nove
meses de gestação daquela criança inocente pareceram eternos. E
enquanto seu segundo filho crescia na sua barriga, seu corpo ganhava
marcas de violência e dor: a cada dia, aquele homem se superava na
perversidade e, sem que ela percebesse, seu filho via aquilo, sofria e
adoecia com ela.
No começo, até ameaçava ir embora com os filhos, mas logo
percebeu que estava encarcerada. Ele trancava as portas, as janelas
e tinha sempre uma arma pronta para ameaçá-la. Meu Deus, até
quando?, ela perguntava, mas Deus não respondia.

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 27


Procurava meios de fugir daquela situação, pensava e repen-
sava formas de tirar seu filho daquele lugar violento; se ao menos o
pequeno estivesse indo para a escola, ela poderia mandar um pedido
de ajuda para a professora, mas a pandemia prendia todos em casa – e
se ela ousasse sair, sempre teria alguém para denunciar seu paradei-
ro. Isso quando não se recusavam a ajudar; certa vez, ela até tentou
pedir ajuda e correu, sangrando, para a rua mas, mesmo grávida,
ninguém quis se envolver: foi obrigada a entrar em casa novamente,
tendo uma arma apontada para sua cabeça.
E o filho? Vendo tudo.
No dia seguinte era sempre a mesma coisa: ouvia promessas de
mudança, de busca por tratamento psicológico. Era como se vivessem
num eterno ciclo de violência e dor.
Finalmente chegou o dia do seu segundo filho nascer. Esta-
vam vivendo na sua cidade de origem. Foram obrigados a ir para lá
porque ele estava fugindo dos caras do Comando, e até que foi bom,
porque assim ela teria sua irmã por perto e quem sabe até poderia
ficar alguns dias na casa dela, mesmo com seu cunhado não gostan-
do. Depois de onze horas de parto, o neném nasceu. Veio ao mundo
numa madrugada, e trouxe com o seu primeiro choro um pedido
paz. Seu bebê também lhe trouxe coragem, e ela, pela primeira vez
depois de muito tempo, decidiu desobedecê-lo: ela passava o dia na
casa da irmã e voltava somente a noite para a sua, para dormir, mas
dessa vez recusou-se a voltar.
Numa das noites em que voltou, percebeu que ele havia con-
sumido muita droga, pois falava coisas descompassadas e prometia
mundos e fundos; ela apenas ouvia, evitando confusão. E antes tivesse
continuado quieta: num ato de amor ao filho, resolveu pedir para que
ele dormisse no chão, pois queria colocar o filho para dormir ao seu
lado por estar com ciúme do bebê. Aquele simples gesto foi o ápice
para ele, que começou a gritar enlouquecidamente. No entanto, ela
não revidou e apenas disse já deu, vou para minha irmã.

28 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


Não, ela não iria.
A não ser que ele deixasse e ele nunca a deixaria partir… não
sem antes submetê-la aos seus horrores. Então, ele simplesmente
levantou e lhe deu uma rasteira; ela, desequilibrando-se, segurou
no peito dele e não conseguiu impedir o murro que lhe atingiu
a cabeça. Ela gritou tão alto que a vizinha resolveu bater à porta;
pensando que era um homem, ele abriu, mas vendo que era apenas
outra mulher, tentou fechar a porta e prender a vizinha dentro da
casa também. Com muita sorte, as duas conseguiram escapar e correr
para o mercado que tinha embaixo do lugar onde moravam. Ele foi
atrás, claro, mas sendo ameaçado pelo açougueiro do mercado com
uma faca, resolveu fugir. Rapidamente ela voltou em casa e pegou
algumas coisas, trancou a porta à chave e foi para a delegacia, onde
contou toda sua história de terror.
Lá fizeram a medida protetiva e ela voltou para a casa da irmã.
Dias depois, retornou para buscar seus móveis, mas a casa estava
completamente vazia. Foi o povo do terreiro, que ela nem conhecia
direito, quem a ajudou, fizeram uma rifa para ajudá-la com as coisas
do bebê. Além do dinheiro, ela também recebeu muitos pacotes de
fraldas, cestas básicas e alguns móveis; com o dinheiro que recebeu,
aproveitou para construir dois cômodos no quintal da irmã. Parecia
o cenário perfeito para recomeçar a vida com os filhos!
Mas a estadia ali durou pouco. Seu filho mais velho começou
a ter crises, a agir agressivamente, a gritar o tempo todo, às vezes por
horas seguidas. Essa atitude começou a irritar a irmã e o cunhado,
que já não estavam tão bem no casamento e começaram a brigar com
frequência por causa dela e dos filhos. Diante disso, a irmã pediu que
partisse e novamente ela se viu desabrigada.
Mas ela não tinha para onde ir, e descobriu-se sem nenhuma
amiga a quem pedir ajuda. E ele, que continuava rondando feito
uma ave de rapina, aproveitou seu desamparo e começou a insistir

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 29


para que ela voltasse. Não encontrando outra opção, voltou com ele
para São Paulo.
Dizem que o tempo cura alguns males; no entanto, para aquela
relação doentia nunca haveria remédio. Todos os sintomas daquela
doença eram expurgados pelo filho que, dia após dia, piorava visi-
velmente. Toda noite sofria com crises de choro e gritos, que às vezes
duravam a madrugada inteira. E ele piorou de tal forma que o dono
da casa resolveu despejá-los.
Que sina é essa de nunca poder ter um pouso? De não poder
ter outra coisa, senão um colchão no chão alheio?
Estava vivendo esse dilema quando resolveu visitar e passar
o dia com sua mãe. Sem saber, aquele dia, depois de tanto tempo
distante, traria uma grande mudança na sua vida. Um dia tenso,
estranho. Logo que voltou para casa sentiu que ele estava diferente.
Não bêbado, mas diferente. Suspeitou que ele estivesse drogado, mas,
como numa última tentativa de viver uma vida normal, o convidou
para almoçar na casa de sua mãe. A negativa foi imediata e ela,
ressentida, insistiu, dizendo que ele agia como se não quisesse fazer
parte de sua família.
Isso bastou para que ele começasse a dar murros na parede.
Assustada, olhou para o filho que já ia começar a gritar quando ela fez
um sinal para que ele ficasse quietinho. Ela sabia que os vizinhos de
parede estavam ouvindo tudo aquilo, mas ninguém se movimentava
para ajudá-la. Calmamente, ele abriu uma gaveta, pegou uma faca,
colocou-a em cima da pia e disse:
– Se você falar alguma coisa, eu vou matar você, seu filho e até
meu filho.
Ela então engoliu o choro, a raiva e o medo. Lembrou do en-
sinamento de sua avó e ficou quieta. Ele esperava o grito de revolta
como quem ganharia, assim, a autorização para agredi-la. Mas ela
não gritou; apenas respirou fundo e reuniu toda a coragem que ain-
da possuía. Notando que a porta estava entreaberta, olhou para o

30 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


filho e falou bem baixinho, no ouvidinho dele, como se contasse um
segredo, que quando terminasse de contar até três, deveria correr,
que ela iria logo atrás.
Tudo aconteceu em menos de um minuto, mas pareceu durar
uma eternidade. Desceram o lance de escada e atravessaram o por-
tão o mais rápido que puderam, mas a perseguição foi imediata. De
repente, ele parou e voltou para dentro da casa.
A vida pode ganhar tons cômicos até nos momentos mais
trágicos.
Ao sair correndo atrás dela, ele nem tinha percebido que
o zíper da sua calça estava aberto e que ele estava correndo na
rua praticamente nu. Envergonhado, voltou. Talvez ela tivesse
parado para rir se isso não valesse o tempo precioso que salvaria
suas vidas. Então, com um filho no colo e outro em seu encalço,
correu o mais rápido que pode. Pediu ajuda para uns homens que,
vendo seu desespero, resolveram ajudá-los. Nesse momento, ele
reapareceu, mas ao perceber que outros a resguardavam, recuou
e fugiu pulando o muro da casa.
Mesmo morrendo de medo, respirou fundo e voltou para pegar
agasalhos e os documentos das crianças, pois sua intenção era ir di-
reto para a delegacia. Enquanto os homens vigiavam o portão, com o
coração querendo sair pela boca, ele surgiu do nada, mas seus gritos
de socorro chamaram a atenção dos homens e ele foge novamente.
A espera por um motorista da Uber durou muito tempo e quando
finalmente ela conseguiu entrar no carro com os filhos, outro susto:
seu agressor apareceu e segurou no vidro de uma das janelas, mas ao
perceber a situação, o motorista acelerou o carro, e partiu.
E essa foi a última vez que ela o viu.
Chegaram à delegacia por volta das oito horas da noite, e somente
nesse momento ela se lembrou de que não tinham lugar para ficar.
Lembrou-se do que tinha lido sobre os abrigos sigilosos e se alegrou
com a possibilidade de não ter que ir morar com seus filhos na rua.

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 31


Chegaram no abrigo no início da madrugada e no momento em que
pisou lá teve a certeza de que sua história estava mudando. Mesmo
sabendo que ele continua procurando por ela, vigiando sua irmã e
vasculhando suas redes sociais, tem fé de que nunca mais o verá.
Estando abrigada, conseguiu ter paz para entender que seu
filho precisa de ajuda, que o choro dele não é birra, nem manha e,
sim, uma forma de mostrar o quanto ainda está sofrendo. Ela não
se sente mais sozinha em sua dor e percebe o quanto é vítima de um
sistema que massacra as mulheres.
Hoje ela olha para trás e não vê apenas dor. Lembra-se de que
teve sonhos e deseja realizá-los um dia; lembra-se da avó, a quem
dedicou tantos anos de sua vida, sente saudade dela e tem a certeza
de que um dia voltará a encontrá-la. A avó ainda aparece nos seus
sonhos quando alguma coisa está para acontecer, assim como apa-
receu quando ela foi morar com o traste.
Ela, hoje, recebe de braços abertos a benção de ser protegida
por Ogum Xoroquê, orixá que herdou de sua avó-mãe, e a cada dia
Ele a ensina a guerrear não uma guerra que mata, mas que a ensina
a lidar com as agruras da vida. A cada dia, Ele a ensina a ser um
pouco melhor.

32 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


Casa A ssombrada

Maria Vitória

S
ete filhos e três casamentos que não deram certo – sentada
diante da câmera ela logo declara. Também conta que, nas-
cida e criada no interior, numa cidade pequenina onde todos
se conhecem, nunca imaginou estar em São Paulo – nem a passeio.
Tratava-se de uma oportunidade e ela quer contar o porquê: escapou
de um relacionamento turbulento em que sofria violência em casa, na
frente dos filhos, e passou por isso por mais de um ano e meio – até
que acabou num abrigo pra mulheres em São Paulo.
Ela está diante dos ouvidos e gravadores e se prepara para
narrar sua história, sem invenções, nem personagens e quer mostrar
apenas sua sinceridade crua – e se pergunta, por um minuto, o que
vão pensar aquelas outras diante dela, quando a ouvirem contando
quem é, de onde vem e porque vem? Respira fundo e começa, bra-
vamente, a puxar o fio da memória.
Sentada naquela cadeira, aos seus quarenta e dois anos, ela
caminha, pouco a pouco, pelas lembranças de um passado mais dis-
tante, onde foi criança em uma vida que descreve como turbulenta,
com um pai rígido, mas amoroso, que apenas não sabia expressar o
afeto pelos filhos (e ela entendia ser esse o modo como ele foi criado).
Lembra-se também de uma mãe dura, para quem educar era o mesmo
que castigar. Ainda que também fosse rígida, porém, era com a mãe
que passava a maior parte do tempo, do qual não consegue resgatar
boas memórias.
Ela se lembra que cresceu no meio dos tios, mas pensava
que fossem seus irmãos, e não entendia o motivo pelo qual os pais

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 35


a tratavam diferente dos outros. Se eram todos filhos, porque só
ela recebia tamanha violência? Chorava muito, apanhando com a
mangueirinha de chuveiro dobrada em duas, três, quatro partes…
porque assim era que se disciplinava. A vida era penosa e solitária,
arcava sozinha com o trabalho doméstico e a angústia da solidão.
Até que, aos seus oito anos, a mãe revelou-lhe o porquê: ela não era
sua filha; na verdade, era sua neta; seus irmãos eram, portanto, seus
tios e, seu pai, era seu avô. Os avós a adotaram, de papel passado, por
vergonha de que a própria filha houvesse, tão jovem, se tornado mãe
solteira. Nesse dia, ela compreendeu que fora um problema para o
qual os avós buscaram uma solução.
A mãe biológica, que pensava ser sua tia, vinha de vez em
quando e, ainda que tentasse lhe dar carinho, a avó desaprovava,
dizendo: não quero saber de você grudada nela; mas ela achava seu
jeito: esgueirava-se pelo amor da mãe até quando julgava ser o mo-
mento estratégico de se desgrudar, tentando evitar a surra. Mesmo
que apanhasse, aquele carinho valia a pena; o afeto da mãe valia a
surra da avó.
Seus pais-avós eram religiosos e por isso ela passava muito
tempo sob uma guarda rígida, indo da escola para casa, da casa para
a igreja, sempre vigiada. Ela, como sempre, esgueirava-se para viver a
vida; e foi matando aula que conheceu seu primeiro namorado. Não
tinha tanto conhecimento sobre amor ou sobre sexo, então apenas
se entregou. Dessa primeira paixão veio a gravidez – e chegou cedo
demais, tal como havia acontecido a sua mãe. Seus avós, diante da
história que se repetia, mandaram-na embora de casa.
Ela juntou suas coisas bem rápido e passou tudo por cima do
muro, foi viver na vizinha. Para o pai da criança? Aquele filho não
era seu; logo, estava sozinha, assustada, sem família e em uma casa
estranha. Tão rápido quanto fugiu, voltou, depois que ela confiden-
ciou à irmã ter descoberto o pai da amiga invadindo sua cama na
madrugada. Seu avô, então, decidiu que ela ficaria na casa da família

36 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


sob certas condições, como parar de estudar, já que seu diploma já
estava na barriga. Concordou, deixando a escola para trabalhar.
De lá para cá, ela foi experimentando a vida, envolvendo-se
com outros homens, teve outros filhos e, por outras vezes, foi colocada
para fora de casa. Entre um canto e outro, ela se virava, sobrevivia.
A mãe-avó, Deus logo levou, deixando apenas ela, seus meninos e
o pai-avô. Cada vez mais cansado, ele a colocava para fora, depois a
trazia de volta, sob condições ainda mais duras: pode ficar só até a
criança nascer, mas sempre terminava por acolhê-los, cobrindo os
netos de carinho. Até que outro relacionamento veio, e, como veio,
foi, deixando outro filho. Entre as idas e vindas, o pai-avô lhe deu
um cantinho, uma casinha junto da dele. Chamou os filhos e avisou:
cada um já tem um teto e aquele é o dela.
Um teto só para si, onde viveria em paz, com os filhos.
Outro filho veio e de um caso tão rápido quanto o namorado que
se foi, num acidente de moto. A esta altura, era só ela e as crias, todos
pequenos e passando por privações. Era uma situação complicada, o
que a levou a um relacionamento sem amor: ele apareceu na sua vida
e ofereceu ajuda, casa, comida e afeto, e aceitação; estava disposto a
cuidar dela e dos filhos. Se havia um sentimento? Gratidão. Era grata
à generosidade do resgate. Ele se tornou seu relacionamento mais
longo, dando-lhe ajuda em um momento de necessidade e urgência.
Tornou-se o pai de seus outros três filhos – e permaneceu em sua
vida pelos seis anos seguintes. Ao seu lado, ela também conheceu a
violência dos homens dentro de casa e, pela primeira vez, a agressão
de um companheiro. Além das surras e punições da infância, ele foi
o primeiro homem a agredi-la, mas não seria ainda o último.
Ele estendeu a mão e ela a agarrou com desespero e devoção,
mas sabia que ele não podia correspondê-la com os mesmos senti-
mentos. Junto dele, tinha a garantia de um teto, mas não de amor
e nunca de paixão. Talvez isso viesse depois… mas não veio. Ela
experimentava o amor nos filhos, mas não nele. Armou uma cama

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 37


na sala e lá dormia com as crianças, deixando o marido sozinho na
cama de casal.
Se transavam, era porque sentia que lhe devia a obrigação que
uma esposa deve ao marido, conforme contam às mulheres desde
meninas. Tentou e tentou, mas, no fim, tudo o que pôde sentir por
ele foi nojo: do toque, da presença, do cheiro e da proximidade. Ela
evitava contato, tanto quanto o confronto, mas ele era insistente,
desconfiado e criador de amantes hipotéticos. Aos poucos, tornou-se
agressivo e violento. Parecia um prenúncio para o que viria a seguir.
Ela, talvez no fundo, já soubesse que este homem era passageiro em
sua vida e, cada vez mais sentia que seus destinos precisavam se
separar – ela apenas não sabia ainda como.
Uma noite, vislumbrou um presságio sombrio.
Naquela madrugada, ele chegou bêbado depois de uma festa na
empresa. Estava agressivo e avançou violentamente. Quando a luta
acordou os filhos, o mais velho, agarrando uma ferramenta pesada,
acertou o padrasto na cabeça, não uma, mas muitas vezes seguidas.
Para ela, era natural o que aconteceria a partir dali: nenhum filho
aceitaria – parado – assistir a mãe apanhar; sabia que, uma hora ou
outra, matariam o padrasto. Ela, então, decidiu que não seria esse o
destino da família, porque antes tomaria distância daquele homem.
A partir deste dia, voltou a viver em seu antigo cantinho: a casa que
seu pai-avô havia lhe dado, mesmo que fosse pequena para acolher
a todos.
O ex-marido vinha aos finais de semana para ver os filhos,
chegava na sexta à noite e ia embora no domingo. Numa quinta-fei-
ra, véspera de Natal, não apareceu. Se ela investigou seu paradeiro?
Foi atrás, como detetive, mas sempre que era descoberto, trocava
de endereço, desaparecendo no mapa, como a fumaça some no ar.
Cansada de procurar, de abrir processos, chamar advogados, inves-
tigações, decidiu se virar sozinha. De uma forma ou de outra, ela
estava melhor sem ele.

38 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


Quanta dor, quantos maus amantes e quantos homens fracos
cabem no caminho de uma mulher?
Diz uma conversa popular que, na vida, cada um tem pelo
menos cinco chances de cruzar, irremediavelmente, o seu desti-
no com o de pessoas perigosas. Mas não se trata de um agressor
comum, um violento, um simples maldito, um perdido ou um
incompreendido mediano, mas alguém cuja estrutura mental é
capaz de criar para si e para os outros os mais sórdidos destinos
de terror. Por mais difícil que fosse a vida, ela sabia que era boa,
pois levava todas as dificuldades no seu tempo; porém, a essa altura
não desconfiava que este tipo sombrio de sorte estaria prestes a se
agarrar tão fatalmente à sua sina.
Ela assistia seus filhos crescerem, saírem para o mundo, fazerem
amizades com vizinhos e trazerem amigos para perto. A vizinhança
era amigável e tranquila e foi entre os conhecidos deste espaço familiar
que ela encontrou o rapaz que mudaria drasticamente seu destino.
Eles se conheceram porque seus filhos eram amigos – jogavam fu-
tebol juntos, no campinho do bairro. Os dois se gostaram e foi em
um destes encontros que se beijaram pela primeira vez. Quinze dias
depois, ele estava instalado na casa dela. Não porque fora convidado
ou porque pedira, mas porque foi ficando e inventando pequenos
motivos para não sair.
Ela ainda se pergunta o que aconteceu, por quê se apegou a ele
e porque foi permitindo que ficasse. Se foi carência ou o quê? Como
se ligou tanto a alguém que só a fez sofrer? Juntos, sob o mesmo
teto, combinaram de fazer tudo dar certo entre eles e abrir mão de
coisas que lhes faziam mal: as drogas e bebida que passaram a fazer
parte da vida do casal. O combinado durou os primeiros dias; com
a primeira recaída veio também a primeira agressão. Ele logo pediu
perdão e disse que jamais aconteceria outra vez. Apenas dois dias
depois, fez tudo de novo.
Foi aí que começaram as assombrações.

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 39


Os vultos apareciam dentro de casa, fugiam de um cômodo
a outro, em plena luz do dia; esgueiravam-se por baixo da cama e
fugiam pela janela em qualquer tentativa de aproximação. Ele era o
único que os percebia e achava que ela e todos os outros fingiam e o
enganavam. Não importava se estava sóbrio, bêbado ou drogado, os
fantasmas o perseguiam e, porque não lhe davam paz, ele próprio
também não dava paz aos demais.
Uma noite, ele virou a cama com ela em cima, jogou tudo no
chão e começou a pisoteá-la pois estava convencido de que havia um
amante escondido – e nos espaços mais improváveis: embaixo da
cama, no banheiro, dentro da privada, na rua, embaixo da calçada, ou
fugindo pelo túnel secreto sob da casa. Ele a assistia no banho, lavando
e enxugando seu corpo, e procurava marcas destes homens, assim
como procurava as pegadas deles pela casa. Até decidiu que deveria
cimentar a janela do quarto, já que era por ali que os homens corriam.
Para ela, era impossível acreditar nessas histórias, porque a série
de eventos e cenários que ele descrevia não faziam sentido dentre as
possibilidades. Foi assim que percebeu que aquele homem vivia um
estado de perturbação que ela jamais poderia remediar. Ela chorou,
sentiu pena e tristeza pela fragilidade com que aquele ser humano
existia no mundo, perpetuamente em uma tortura incurável, que
estendia a si, a ela e aos filhos; mas não, não era justo que pagassem
por um desarranjo que pertencia somente a ele.
Ela não dormia mais, ficava acordada na cama esperando pelo
pior e às vezes, quando fechava o olho, acordava apanhando por es-
trangulamento, socos e chutes. Em muitas destas noites pensou que
morreria. Quando achava que havia sido a pior e a última das surras,
sempre vinha uma pior. Um dia conheceu as antigas companheiras
dele, pois duas delas também vieram para São Paulo, fugindo da
violência – e todas com medida protetiva.
Ao vê-la sempre machucada, a sogra tentou interferir; cheia de
medo, ela cochichou: põe ele na cadeia… e se você der parte dele, eu te

40 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


apoio. Ele, por outro lado dizia: a cadeia é minha segunda casa, então
eu mato, eu faço e aconteço. Quando tentou socorro na família dele,
percebeu que todos também tinham medo, porque ele era alguém
que não dava chance: prendia pessoas, fazia delas seu objeto – e assim
percebeu que estava só.
Até que os vizinhos o denunciaram e a casa passou a ser
acompanhada pela assistência social; quando os assistentes vinham,
ela precisava dizer que estava tudo bem; mas enquanto sua boca
falava uma coisa, seus olhos diziam outra. Ela queria que as pessoas
entendessem sua dor e o que estava acontecendo ali sem nada poder
dizer pois, do contrário, ele a mataria.
Por muito menos ele já havia tentado.
Viveram juntos sob o mesmo teto, trancados, enquanto do lado
de fora o mundo parecia desmoronar com um vírus e sua pandemia
global. A casa há muito havia virado um cativeiro, onde ela não tinha
escolha de vida, quanto mais de uma separação. Se precisava sair, era
sempre sob sua vigília. Ela estava no extremo de uma vida que não
desejava a ninguém e tinha medo por si e pelos filhos, que passaram a
interferir nas brigas. Os mais velhos já estavam lá fora, no mundo; então
ela mandou mais dois para casa dos parentes e ficou com ele e apenas
seus três pequenos, dentro de casa, com o portão sempre trancado.
Até o fatídico dia em que estava na cozinha, fazendo a janta,
já com duas costelas quebradas, entre outros ferimentos. Ela o viu
no portão, exaltado e correndo para dentro da casa, gritando porque
jurava ter visto um homem correndo do banheiro para o quarto e
então fugindo pela janela. Assim que entrou, desferiu-lhe um tapa
no rosto, e declarou: é hoje que eu te mato. Enquanto ele procurava
pelo facão, ela percebeu que lá fora o portão havia ficado destran-
cado, mandou que os filhos pequenos fugissem. Atravessaram o
portão aberto, correram pela rua, sumindo da vista do homem. Ela
desapareceu dali o mais rápido que pôde, deixando a casa para ele,
escondendo-se entre seus tios-irmãos, onde sabia que teria proteção.

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 41


Ele, porém, estava decidido a matá-la, e foi com essa gana que
a procurou, e dessa vez estava armado. Enquanto o filho mais velho
o distraía, ela fugiu e entrou em um carro de um motorista da Uber
que, diante da cena, sacou uma arma debaixo do banco e perguntou
se ela queria que ele matasse o marido dela. Primeiro veio o susto,
depois a dúvida quando o motorista insistiu, dizendo: eu não sei a sua
história, moça, mas se quiser eu mato ele. Tantas vezes essa pergunta
lhe veio por meio dos irmãos, parentes e até deste estranho, mas ela
se agarrava à sacralidade da vida: por pior que o ser humano fosse,
Deus lhe deu a vida, então apenas Deus poderia tirá-la – e isto, para
ela, estava claro. Ademais, não queria que mais ninguém se envolvesse
em um pecado que ela achava ser só seu.
Da casa da mãe, onde agora havia se refugiado, ligou para a
assistência social porque tinha medo de ligar para a polícia; seu medo
de denunciá-lo era porque sabia que, se ele descobrisse, com certeza
a mataria. Amparada e tranquilizada, tomou a coragem de fazer a
denúncia e pedir medida protetiva: tinha sangue em suas roupas,
o nariz machucado por um murro e uma série de hematomas que
serviriam como prova.
Depois de quatro dias escondida entre um canto e outro, estava
na casa de sua mãe quando os assistentes sociais chegaram com um
carro grande, avisando que precisariam levar seus filhos embora.
Ficou em pânico. E eles continuaram dizendo: “mas você tem outra
opção… se estiver disposta, pode acompanhar a gente”. Imediatamente
ela entrou no carro e foi, sem nem mesmo saber para onde. Assim,
foi tirada de suas raízes e trazida para São Paulo, para um abrigo,
um tipo de lugar que ela nunca imaginou que pudesse existir: um
lugar bom – como ela descreve – onde não falta nada.
O que falta para ela agora é a esperança e é contra essa falta
que ela luta todos os dias ao acordar. Às vezes, duvida se sozinha vai
conseguir se levantar; mas então se lembra de que sempre conseguiu.

42 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


Hoje, sem emprego, com quatro crianças, e um coração cheio de
passado, acha difícil falar do futuro. Faz muito tempo que não sonha
à noite. Oito meses se passaram e aquelas imagens ainda estão dentro
dela. Ainda assim, todos os dias agradece a Deus quando acorda e
põe fé no dia que clareia, porque cada manhã é uma oportunidade
que ela quase já perdeu.
Sobretudo, acredita que São Paulo é uma cidade de oportunidade,
seja para trabalhar ou para encontrar paz no meio dos desconhecidos.
Aqui ela cuida das pernas da filha, que precisa operar o tendão; cuida
para que a menina, um dia, possa andar sozinha; cuida para que os
filhos estudem, cresçam e tenham um futuro melhor.
Ainda há muito estigma em seus pensamentos sobre a vida
em um abrigo; carrega até hoje muito preconceito e isso lhe dói,
machuca. Ela quer ser tratada com respeito e nem melhor ou pior
do que qualquer um. Ela entende o abrigo como uma oportunidade,
mas sente dificuldade em ver esse espaço como um lar. Comentários
como drogada ou sempre vai ter outra recaída não a machucam mais.
Ela agora consegue ter clareza, reconhecer e se afastar das coisas
que lhe fazem mal. Ainda que esteja tão dolorida ao ponto de não
perceber sua transformação, sabe que está no exato ponto em que
precisa estar para alçar voo – e tem certeza de que vai voar longe.
Cochila na igreja porque quando dobra os joelhos quer tanta
coisa que não sabe o que pedir. Quer ter notícias dos filhos, quer ter
esperança, quer ver uma luz no fim do túnel, quer ser a melhor mãe
que pode, quer não ter tanta coisa na cabeça e quer ser forte mesmo
nos dias em que está triste.
Ela, então, entrega seu destino a um deus que cuida, e se deixa
adormecer nos braços dele.
Entende que os dias piores já foram. Não esquece nada e con-
versa muito com os filhos, mas torce para que eles todos agora vivam
o presente. Ela sabe que a vida é um sopro frágil e quer viver para

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 43


valer a pena – e não só por sobreviver: a cada segundo do relógio
quer se sentir viva, lembrando a si própria de que é uma sobrevivente.
Depois de oito meses sem notícias, amanhã os filhos virão
visitá-la e ela verá os netos esperando muito choro, mas de alegria
e de saudade. Do amor dos filhos, resgata força quando precisa e se
faz cada vez maior e mais forte do que a soma de todos os homens
minúsculos que cruzaram seu caminho.

44 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


Ela Só Queria Ser Embalada no
Doce Balanço do A mor

Célia Ramos

U
ma coisa é fato: os filmes infantis da Disney podem ser de-
vastadores na vida de uma menina que cresce esperando a
chegada do tal príncipe encantado dos contos de fada, para
salvá-la de sua vida terrível e conduzi-la para os felizes para sempre.
E quando este felizes para sempre não existir?
A realidade de uma mulher pode ser bem diferente dos dese-
nhos e o tal príncipe encantado por vezes usa desse imaginário para
colocar em prática sua psicopatia e ludibriar suas vítimas, conduzin-
do-as para a sua gaiola nefasta. É sobre isso que vou lhe contar agora.
Ela passou a vida fugindo de sua própria história, fugindo do
berço que havia lhe dado a vida; não se enquadrava naquela família.
O álcool havia devastado a sua casa, já que tanto seu pai, quanto sua
mãe faziam uso contínuo e a violência doméstica reinava naquela
família; as drogas? Essas faziam morada ali com muita naturalidade.
Sua infância foi marcada por este ambiente hostil e conturbado e ela
não se sentia integrada nem pertencente àquele lugar e sua alma a
repulsava para o mais distante de tudo aquilo e, ao mesmo tempo,
cresceu acreditando que era normal: que a violência era normal, que
o consumo de álcool excessivo e de drogas também eram normal.
A escola tornou-se o seu espaço de refúgio, onde encontrava
proteção. Vivenciou suas melhores memórias de infância e juventude,
e de momentos bem inusitados. Nunca teve aqueles diálogos de mãe
e filha sobre a menstruação, sexo ou gravidez – e essas conversas lhe

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 47


fizeram muita falta. Na primeira vez em que menstruou estava na
escola com suas colegas de turma; percebeu algo estranho, sentiu-se
molhada e viu que estava sangrando. O desespero foi tanto que pediu
às amigas para chamarem um médico porque pensava estar tendo
uma hemorragia. Suas colegas acharam graça e lhe explicaram que,
na verdade, ela estava ficando mocinha. Mesmo depois de tantos
anos, ela ainda lembra deste dia com o sorriso de quem olha pra si
e consegue rir de sua própria história.
Ela tentava, então, desde adolescente buscar refúgio nos rela-
cionamentos em que esbarrava, vendo neles a porta de saída daquela
família. Para ela, encontraria o tal príncipe em seus namorados.
Foi acreditando nisso que, já aos 14 anos, foi morar com um rapaz.
Desde o início sofria agressões psicológicas, passava por necessidades
a ponto de lhe faltar o arroz no prato e o café no copo. Com tantas
dificuldades acabou regressando ao ninho que tanto a repelia, mas
o rapaz foi junto. Ali morou por pouco tempo, mas a permanência
do casal tornou-se insustentável: o rapaz roubou sua família, obri-
gando-os a morar em um outro lugar.
Foi quando começou a fazer uso de álcool e drogas.
Aos 17 anos descobriu a gravidez; fazia umas duas semanas
que terminara o seu relacionamento, curando a dor de cotovelo na
balada. O pai de seu filho era seu primeiro namorado e ele não quis
segurar a barra de criar um filho. Vendo-se sozinha, retornou para
casa dos pais, mas desta vez fora muito mais humilhada: se ela já se
sentia desajustada com relação à família, agora tudo ficava ainda pior.
Mesmo grávida, nunca deixou a cocaína de lado; sentindo-se
carente, procurava seu ex-namorado, que não só a ignorava como
fazia questão de desfilar com outras meninas na sua frente.
O pai dela, nos poucos momentos de sobriedade, percebendo
o buraco no qual a filha estava entrando, porque conhecia bem aquele
caminho, ao seu modo tentava acolhê-la lhe dizendo que a criança
seria muito bem-vinda; e não vendo outra saída para a filha, aos

48 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


seis meses de gravidez, internou-a para que pudesse ter seu neto de
forma tranquila.
Por volta dos 7 meses, ainda internada, ela sentiu um desejo
incontrolável de comer pamonha; por não ter sentido desejo algum
até então, durante uma das visitas sua mãe sai para comprar e, quan-
do retorna, encontra a filha passando muito mal. Ela havia tentado
chamar uma enfermeira, seu coração batia mais rápido que bateria
de escola de samba e sua visão estava completamente escura; seu
braço formigava muito, tinha a certeza de que iria morrer naquele
instante. Foi o tempo de sua mãe chegar, ela desmaiou e teve uma
parada cardíaca.
Acredito que Deus tinha outros planos pra ela – que não a
morte – e tanto ela quanto o bebê saíram ilesos dessa. Assim que
o seu filho completou quatro meses, ela vai em busca de sua inde-
pendência e arruma seu primeiro emprego; porém, sofre um grave
acidente que a deixa completamente imobilizada, complicando ainda
mais sua situação: quebra a costela, perfura um pulmão e entra em
coma, deixando-a, por um longo tempo, acamada à base de morfina.
Para sua família? Tornou-se um fardo pesado a ser carregado, pois
além de cuidar dela, ainda tinham que cuidar de seu bebê. Ela era
humilhada, xingada por palavras que lhe doíam mais na alma do
que nos ouvidos.
E ali na cama ela pedia chorando baixinho a Deus que lhe
trouxesse a cura para que pudesse cuidar de seu filho. Não aguentava
ouvi-lo chorando e não poder acalantá-lo. Tampouco aguentava ouvir
a família esbravejando que ela era uma desgraça, uma praga. Aquelas
palavras ecoaram por anos dentro da imensidão de sua solidão.
Acho que até mesmo Deus não suportava mais tudo aquilo
– ou ela devia ser realmente muito brother dele – ou sua fé era algo
de que nem mesmo ela acreditava que poderia existir. Mas o fato é:
mais uma vez saiu praticamente ilesa, ela estava sendo protegida. Aos
poucos, o movimento de seus braços voltou e ela ficou com pequenas

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 49


sequelas no pescoço, mas nada que a impedisse de realizar suas ações
e assim conseguiu se recuperar e retornar ao trabalho.
Assim começa a sua história regada a álcool, drogas e violência:
uma tríade nefasta que vai acompanhá-la por muito tempo…
Em um novo relacionamento, desta vez tinha a certeza de
ter arrumado o cara certo; ele era, como se diz por aí, de família
e trabalhador. Com esse companheiro, teve seu segundo filho e a
traição mais dolorida de sua alma, pois ele simplesmente vai embora
e carregando sua irmã caçula na garupa.
Sentiu-se abandonada e duplamente traída.
A cada tentativa de um novo respiro, defrontava-se com
algo ainda pior e a desgraça era rotina neste enredo perverso; os
relacionamentos abusivos se desenhavam com tintas marcantes até
que o vermelho sangue quis demarcar a sua história: mas a mulher
que sonhava com a chegada do amor de seus sonhos não era uma
princesa indefesa, ela sabia lutar, se defender… e defender a própria
vida. O homem que chegou transvestido de príncipe não estava em
um cavalo branco, mas vestia branco – um enfermeiro; para ela, era
um sinal… E um bom sinal! Ele seria o cara que iria tirá-la do buraco
no qual se encontrava.
Era lobo em pele de cordeiro.
Mas desta vez o preço a ser pago foi caro. Ele se aproximou
muito rapidamente; usava todas suas fragilidades postadas em rede
social para lhe conquistar, dizia tudo o que ela queria ouvir e logo
as palavras eu te amo já eram proferidas pela sua boca como uma
armadilha mortal. Em menos de dois meses a conquistou, conhecia
seus filhos e sua família, mas o contrário não era verdadeiro, já que
só sabia que ele era enfermeiro, que estava desempregado e que tinha
uma irmã advogada, (porque a conheceu em um almoço).
Em uma sexta-feira foram a uma festa e, no final da noite, con-
vidou-a a passar o fim de semana em sua casa e depois não permitiu

50 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


mais que ela fosse embora. Tomar banho? Só se fosse com a porta
aberta, não a deixava falar com sua família e em uma discussão jogou
seu celular no chão, quebrando-o completamente.
Não gostando do que estava vivenciando, esperou ele dormir,
pegou o celular dele e mandou uma mensagem para sua mãe contando
tudo o que estava acontecendo – e ela de imediato se prontificou a ir
buscá-la. Quando ele acordou, ela o informou que iria embora no dia
seguinte. Astuto que era, ele diz que não precisava de nada daquilo,
que ele mesmo fazia questão de levá-la. Amanheceu e ela se levantou
cedo, mas não o encontrou em casa.
A porta estava trancada.
Como a casa ficava no segundo andar de um sobrado, ela não
teve como sair; ao retornar, ele estava completamente enfurecido e
começaram a discutir. Para se proteger, ela entra em luta corporal com
ele; no começo, objetos eram lançados com fúria, mas ele pegou uma
faca e a vida passou diante dos olhos dela em milésimos de segundos.
Sentiu cada molécula fria daquela lâmina desenhando o seu pescoço;
mas por um toque divino ele errou o corte e fez somente um furo em
seu pescoço – o lobo não saciou o seu desejo pelo vermelho-sangue
e partiu para cima, agora com uma tesoura… E ela jamais esquecerá
aquela tesoura roxa.
Mas a porta tinha ficado entreaberta, e essa era sua única
chance de sair viva daquela casa. Ela fugiu… e fugiu como nunca
pensou ser capaz, atravessou a fresta da porta, do portão, olhou a
rua. Naquele instante, agradeceu a Deus por ser pequena e conse-
guir esgueirar-se pelos cantinhos, era sua única saída. O sol quente
tocando a sua pele parecia dizer vaiiiiii, eu estou contigo. O tempo
parecia estar em câmera lenta e o seu coração, que por tantas vezes já
havia dados sinal de defeito, naquele momento batia numa sincronia
única. Tudo confluía como numa sinfonia de Beethoven e ela parecia
bailar: corria. Até que chegou em uma padaria e pediu socorro.

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 51


Aquele verme – pois outra palavra para descrevê-lo não há, já
que homem não foi e príncipe muito menos – nunca imaginou que
poderia ser penalizado. Durante o depoimento, ela descobriu que
ele já havia assassinado uma outra companheira e que respondia
por mais duas outras tentativas de feminicídio. Ou seja, ele já vivia
sob o manto da impunidade há muito tempo; mas desta vez foi preso
em flagrante e colocado no lugar onde lhe cabe, a gaiola, sob a tutela
da justiça. Realmente, ela não sabia nada sobre ele, além de que não
passava de um embuste.
Hoje ela se olha no espelho e é diante da mulher que se for-
mou que busca a sua força. Não tem como esquecer as cicatrizes
que marcaram seu corpo, tatuaram sua alma e dilaceraram os seus
sonhos. Ainda chora, mas não por se sentir pequena, indefesa ou
humilhada; chora porque olha pelo retrovisor da vida chamado
passado e porque a cada passo que dá a caminho do futuro percebe
que as mazelas que a trouxeram até aqui não a fizeram mais frágeis,
pelo contrário: hoje tem a real dimensão do seu tamanho diante do
gigantesco universo que a acolhe.
Hoje ela é do tamanho do mundo, demarcada pela grandeza
dos seus sonhos e desejos. Chegar até aqui não foi fácil, pois teve que
percorrer os vales sombrios da sua própria travessia e aprender com
as suas feridas que os braços que lhe prometiam proteção eram os
mesmos que lhe agrediram, feriram e traíram.
Ela fez as pazes com o seu passado e não precisa mais fugir
para encontrar o seu lugar; descobriu que existe amor para além dos
homens e que ama o ninho que lhe deu a vida. Mas entendeu também
que para manter o seu equilíbrio emocional precisa distanciar-se
daqueles que o bagunçaram. A mulher que sempre doou mais de si
para agradar ao outro, hoje não sente a necessidade de encantar a
não ser a si mesma: o amor próprio está a encontrando.
Ainda continua sonhando com um príncipe encantado, mas
agora um que sonhe os mesmos sonhos, que lute a mesma batalha,

52 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


que acredite nela e que tenha orgulho de quem ela é – tanto quanto
ela mesma, quando se vê refletida no espelho. Antes o mundo era
enorme, hoje ela que é gigantesca e exatamente pela história pela qual
foi forjada. O caminho que poderia tê-la levado ao fim foi o mesmo
que a conduziu ao seu recomeço, que a fortaleceu e possibilitou que
encontrasse com tantas outras que, como ela, vivenciaram o gosto
amargo do vermelho-sangue. Como a vida não passa de uma grande
alquimia, ela está experienciando novos tons da paleta da vida.
Ela é aquela que a cada dia dá um passo na direção do futuro,
escolhendo ser o que quiser ser, com a certeza de que todo dia vi-
verá a sua melhor versão, deixando a alma cicatrizar seus traumas,
dançando ao som de Lanterna dos afogados e apreciando a beleza
das flores e o perfume da chuva.

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 53


Recanto Feliz ou o Tempo
Esquecido Embaixo da Figueira

Silvani Maria da Silva

E
la morava numa fazenda, no Paraná. Vinda de uma família
grande, dividia a casa com sete irmãos. Dois homens e o
resto tudo mulher! Nascida numa família empobrecida,
desde pequena precisou trabalhar na roça para ter o que comer e o
que vestir. Por causa disso, logo cedo também teve que aprender a
dividir o mingau de fubá que a mãe fazia.
Aos vinte anos já estava casada, mais por ter sido obrigada pelo
pai, do que por amor. Mulher que namora e não casa, fica falada!,
dizia o pai.
No começo ela até que gostava dele, mas não demorou muito
para que a relação se tornasse uma tortura. Ele a traia descaradamente
e, quando ela engravidou, não hesitou em deixá-la com uma filha de
quatro meses na barriga, para ficar com outra mulher. Apenas foi
embora e a deixou, sozinha, na fazenda.
Não foi fácil viver aquela gestação, e logo toda a dor e tristeza
que sentia foram transferidas para a filha. Nem bem a menina nasceu,
e ela começou a sentir os sintomas de depressão. Era uma dor tão
intensa que ela ficou um mês chorando, sem parar. Não conseguia
comer, não tomava banho, não fazia nada! Sua filha chorava, largada
no chão, e ela não se importava.
Mas a natureza é sábia e o tempo ajuda a curar até o pior de
todos os males. E em seu processo de cura, ela finalmente conseguiu
pegar a filha nos braços pela primeira vez. Olhando para aquela
criança tão quieta, agradeceu aos céus por sua bebê ser tão boazinha

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 55


e quase não chorar. Era como se a filha compreendesse que ela estava
a ponto de explodir, e por isso evitava o choro.
Foram necessários dois longos anos até que ela se sentisse curada.
Nesse meio tempo, resolveu sair da fazenda e ir morar numa
cidade um pouco maior. Só que, em vez de uma vida mais próspera,
vivenciou a fome, o desemprego e a sua incapacidade de cuidar da
filha. Viu-se no meio de uma encruzilhada que lhe apontava apenas
duas direções: ou ia embora para São Paulo, e talvez conquistasse algo
melhor para si e para filha, ou ficava lá, sem nenhuma perspectiva de
progresso. Depois de muito pensar, a escolha foi deixar a filha na casa da
madrinha e partir. Esse foi um dos momentos mais tristes da sua vida.
Sua escolha lhe custou o amor da filha.
Então, com seus vinte e poucos anos, rumou para São Paulo
acompanhada de uma colega. Não conhecia nada daquele canto, mas
recebeu pouso na casa de uma conhecida. Não demorou muito para
que ela conseguisse um emprego de doméstica, no qual trabalhou
por oito anos seguidos. Apesar do trabalho duro, sentia-se com sorte,
pois com o dinheiro que ganhava conseguia pagar seu aluguel e se
alimentar dignamente.
A única tristeza que guardava era estar distante da filha e não
poder vê-la crescer. Todas as vezes que a visitava, a menina se escondia
debaixo da cama, e só saia quando a mãe ia embora. Ah, mas as duas
choravam... E além de sofrer com o choro da filha, ainda carregava
a culpa de tê-la abandonado. A menina foi crescendo rebelde, mas
tão rebelde, que chegou ao ponto de falar que ela não era sua mãe.
Calada!, ela gritava, dizendo: eu posso ser a pior mãe do mundo, mas
ainda sou sua mãe! A menina fechava os ouvidos, evitando ouvir
aquelas mentiras. Aos doze anos, sua filha saiu da casa da madrinha
e foi morar com a avó, onde ficou até se casar.
Lembrar da mãe era bom, mas sentia saudades mesmo era
do pai. Gostava de lembrar dos momentos em que ele, num ato de
cuidado extremo, penteava seus cabelos e das irmãs. O pai morreu
triste. De câncer. Ela ainda chora toda vez que ouve uma música que
ele gostava: Recanto feliz. Tal qual o narrador da canção, ela também

56 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


sente saudade das terras onde cresceu, daquela mesa grande, com uma
garrafa exalando o café bem-feito e todos sentados ao redor. Pai, irmãs,
mãe, irmãos… Ainda se pergunta como tudo isso foi se acabando…
Em São Paulo, trabalhou de diversas formas e logo ganhou o
ritmo da cidade grande. Saía de casa às cinco horas da manhã e só
chegava em casa à noite. Morava numa pensão barata, na zona sul da
cidade, e foi nesse lugar que conheceu o homem que mudaria todo
o percurso da sua vida.
Ela morava na parte de cima da pensão e ele, na parte de bai-
xo. Todo final do dia era a mesma coisa: ela chegava do trabalho e
encontrava ele sentado do lado de fora da pensão. Foi uma moça, que
também morava ali, quem apresentou um ao outro e, foi necessário
apenas algumas conversas para os dois começarem a namorar e, em
seguida, morarem juntos.
No começo, ela morria de amor por ele, mas depois ele começou
a maltratá-la, a xingá-la, agredi-la, trazendo de volta o desencanto e a
depressão. Ela perdeu tudo o que entendia como lar para acompanhar
aquele homem. Com ele, experimentou todas as formas de abandono.
Moraram juntos numa invasão até serem despejados. Ocuparam por
três anos uma praça, até ela perder toda a dignidade que ainda tinha.
Sem ter onde tomar banho, os cabelos começaram a endurecer de
sujeira. Só sabia chorar. A única demonstração de afeto que recebia
era de pessoas que apareciam de vez em quando para oferecer-lhes
sopa. Ninguém da sua família sabia do seu paradeiro. Sua filha, a
essa altura, estava com dezessete anos.
Se a rua foi palco para as suas mazelas, também foi palco para
a notícia que mudou sua vida. Um homem, que também morava na
rua, olhou para ela e lhe disse que ela teria um “varão”. Sua reação
foi de espanto, medo, dúvida, tudo misturado.
– Tá doido da cabeça homem?! Eu grávida? Tá louco? Depois
de dezessete anos?

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 57


Como ter um filho vivendo na rua? Como pôr no mundo uma
criança cujo pai violentava seu corpo e alma? Como viver nesse mundo
sem a possibilidade de se anestesiar? No entanto, apesar de toda a
confusão mental que essa possibilidade lhe trouxe, a fala do homem
se confirmou. Ela estava grávida de sete meses, apesar de sua barriga
não ter crescido, de não ter sentido enjoos, de não ter sentido nada!
Seu filho nasceu por um milagre, pois ela consumiu tantas
drogas pesadas durante a gestação, que muitas vezes sentia que ele se
mexia sem parar dentro da sua barriga, como que pedindo socorro.
Ela estava sozinha no hospital quando ele começou a nascer, e
sentia tanta dor que achou que fosse morrer. Seu trabalho de parto foi
muito demorado, parecia que seu filho se agarrava dentro dela, como
se recusasse a vim para esse mundo. Ela também, em seu íntimo,
sentia medo de se separar dele. E no derradeiro momento, quando
toda a água do seu corpo já tinha secado e ela não tinha mais força,
ele resolveu se soltar. Saiu quieto, com a pele escurecida e desfalecido.
– Meu filho morreu! Meu Deus, não deixa meu filho morrer!
Meu filho nasceu morto!
Ela estava desfalecida também, não tinha mais nenhuma força
no corpo, na alma. Foi quando escutou o choro do filho. O choro
daquele que seria seu companheiro, como ninguém tinha sido até
ali. De alguém que lhe redimiria de ter abandonado a filha a tantos
anos atrás. Um filho que já nasceu lhe perdoando, pois tinha vindo
sem sequelas impostas por uma mãe adoecida. Ela ainda guarda de
lembrança a primeira roupa que o protegeu do frio, presente de uma
enfermeira bondosa.
Seu filho, tão pequeno, iniciou a vida sendo jogado junto a
ela de um abrigo para outro, até serem despejados na casa da avó
paterna. Foi ali, na casa daquela mulher, que ela entendeu o quanto
o seu sofrimento poderia ser maior. Sem dinheiro para alimentar
e vestir o filho, saía pelas ruas para pedir fralda e leite. O não era
constante, assim como o choro que o precedia. Desse tempo ainda
ficam a humilhação e as manchas na pele, causadas pelo sol quente.

58 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


Novamente, mãe e filho foram expulsos, e da casa da sogra ela
decidiu voltar para a sua cidade natal; mas também não os queriam
por lá. Ela fez o caminho de volta para São Paulo e para o homem que
a tinha levado para essa vida miserável. Passou por vários abrigos e
ruas, levando seu filho pequeno no cangote e as drogas de consumo
no bolso. Puxava carroça para sustentar o vício e o filho. A criança
estava sempre junto, sua infância misturada aos materiais recicláveis.
As pessoas, ao verem aquele menino ali, se compadeciam e ajudavam.
Foi o início da pandemia que a fez querer voltar, pela segunda
vez, para a sua cidade. As irmãs montaram uma casa para ela morar
com o filho e, por quatro meses ela se sentiu feliz. Mas o desemprego e
a miséria, que nunca pararam de rondar aquele lugar, a fez partir nova-
mente. Vendeu todos os móveis que tinha e voltou, pela terceira vez, para
São Paulo. Enquanto o ônibus partia, as lágrimas caiam pelo seu rosto.
Não demorou muito e seu filho completou cinco anos; e para
fazer jus à vida dele, ela decidiu parar com as drogas – que a estavam
consumindo. Parou por conta própria, e por ela própria. E pelo seu
filho, que tinha somente ela em quem se espelhar.
O traste, como ela passou a chamar o seu agressor, depois de
todo o estrago que fez com sua vida, finalmente sumiu. Está preso. Ela
pediu com tanta fé que Deus resolveu tirá-lo do seu caminho. Quiçá
seja para sempre! Que para sempre ela tenha se livrado da violência,
da humilhação, das ameaças que ele lhe impunha.
Hoje, ela se vê como mãe e pai do seu filho. Às vezes tem crises
de choro, e nesses momentos questiona Deus sobre o porquê de tanto
sofrimento. Pergunta-se como vai sair dessa vida de abrigo, ter seu
próprio canto, talvez uma casinha simples embaixo de uma figueira,
mas ao mesmo tempo sente medo de ser colocada na rua de novo, de
não terem nem mesmo aquele abrigo que os protege.
Sabe que Deus não vai responder, mesmo assim reza para
que Ele a livre da depressão; para que seu filho não adoeça também.

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 59


Sentada diante de nós, ela sonha o seu futuro, um ligado ao que
chama de sucesso do filho. Com um sorriso entre os lábios, o descreve
como um grande homem: sábio, inteligente e com uma vida boa. Diz
que seu filho vai cuidar dela de um jeito que nunca experimentou. O
sorriso dela cresce no rosto quando imagina o momento da formatura
dele e escuta o filho dizendo: Ah eu quero chamar uma pessoa aqui…
minha mãe, que sempre me apoiou!
Ela chora a certeza de que seu filho será um grande homem!
Um bombeiro! Alguém que vai salvar muitas vidas, assim como
salvou a sua.
Sim, ele salvou sua vida. Mesmo sem saber.

60 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


A s Vielas de uma Vida

Célia Ramos

O
Brasil é um país de poucos que têm muito, e de muitos
que têm pouco.
E essa discrepância constrói um abismo que separa a elite
do capital dos seus meros mortais. Nascer na periferia, portanto, é
aprender desde muito cedo a defender o próprio pão e entender que
todo dia é dia de batalhar e lutar todos por direito a teto e comida
no prato. Agora, nascer mulher, pobre e periférica é um combate
infinitamente mais duro e cruel: é necessário discutir com destino
todos os dias e dizer a que veio.
Ela, desde muito pequena, já queria entender o motivo de não
poder ficar com sua família; entre as vielas de uma comunidade, foi
criada entre muitas casas, pois sua mãe, não tendo condições de cuidar
dela e de seus sete irmãos, a entregou aos dois anos idade para que
um casal pudesse criá-la. No seio daquela família, descobriu o que
era ser cuidada com conforto, amor e carinho; mas, aos seis anos,
não encontrando uma estrutura de organização que dialogasse com
o trabalho e com a escola, a devolveram para a mãe.
Sua vida passou, então, a ser desenhada entre as vielas do bairro
onde sua mãe morava, o centro religioso que sua família frequentava
e as pessoas pertencentes àquele espaço. Sua vivência até o início da
adolescência foi marcada pelo abandono e experiências frustradas
de morar de casa em casa, de idas e vindas. Assim foi sua vida até o
início da adolescência.
Nunca conseguiu entender por que os seus irmãos podiam
passar fome e ela não? Por que ela não ficava com eles? E indagava

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 63


a mãe, com o mesmo enfrentamento com que fazia com a vida, e a
mãe só conseguia responder com silêncio e lágrimas, que teimavam
em verter sobre o rosto. Hoje ela entende que aquele silêncio era um
misto de culpa que a mãe sentia por não conseguir ficar com ela e com
o que era o melhor a ser feito naquele momento para sua proteção.
Por conta dessas idas e vindas, ela e a mãe não conseguiram
construir uma relação amigável, pelo contrário: rejeitava as referências
maternas porque, inconscientemente, rejeitava a própria mãe; e todas
as vezes que se encontravam, elas se engalfinhavam como cão e gato.
Aos quatorze anos, neste rito de passagem pela casa da mãe,
ouviu que ela não mais iria para a casa de ninguém e ali ficaria; mas
esse retorno não foi, assim, tão fácil já que a relação desgastada ficou
ainda pior com a convivência, com ainda mais conflitos, inclusive os
gerados pelo companheiro de sua mãe. Ela sempre soube quem era
seu pai, onde morava, mas nunca tiveram convivência, pois fora o
fruto de uma traição do pai, que à época era casado com outra mulher.
Na outra ponta desta linha, porém, o pai sempre soube por
onde ela andava, a situação em que vivia e ainda assim nunca fez nada
para modificar a sua realidade. Morando ao lado, nunca foi vê-la.
Porquê? Era a pergunta que se fazia e, ao mesmo tempo, já respondia:
por que ele não se importava com ela, seu amor tinha endereço certo
e eram os outros filhos. O que ela conseguia sentir por ele? Nada.
Mas exatamente neste período em que ela retorna para casa
de sua mãe, o Conselho Tutelar é chamado devido ao quadro vul-
nerável em que sua família se encontrava; convocaram o pai para
tentar encontrar uma saída mais adequada para a garota e, assim,
ela é direcionada para morar com ele; mas não fica por muito tempo,
sendo expulsa pela sua madrasta. O pai nunca foi atrás dela para
saber o que tinha acontecido e porque fora embora.
Assim, tornou-se uma criança arisca, sem nunca conseguir
construir uma amizade sólida, e na fase da adolescência nunca se
sentiu realmente segura para se abrir com outras pessoas. Além disso,

64 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


boa parte do seu tempo estava brigando, seja na escola, com a mãe
e com os irmãos, com os colegas de viela, porque foi assim que ela
descobriu a vida: brigando… brigando por um espaço, por atenção,
por proteção e pela vida.
E o seu primeiro namorado foi exatamente um daqueles colegas
com quem ela brincava e brigava desde a infância; foi sua primeira
paixão e descobriram os primeiros passos da vida e se tornaram pais
juntos, ela com quinze e ele com dezoito anos. Dizem que para o amor
não existe idade e para eles isso foi verdade, pois se amavam desde
criança. Ela lembra que, desde muito pequenos, já sentiam ciúmes
um do outro, já se protegiam e essa cumplicidade se manteve mesmo
depois que a relação acabou, após 4 anos. Mantiveram a amizade e o
respeito para poderem cuidar do filho. Ainda riem da forma birrenta
com que ela encarava a vida, do seu jeito de querer determinar com
quem ele iria conversar ou não; brincam que ela saiu da vida dele,
mais deixou um rabinho birrento, o filho.
Ela nunca foi de ficar parada, e até quando estava para ganhar
bebê estava aprontando. Costumava provocar um vizinho toda vez
que ela o avistava; neste dia, ela o provocou tanto que ele veio tirar
satisfações, mas ela saiu correndo... rindo, zombeteira, segurando
o barrigão, pelas vielas daquela comunidade. Chegando em casa,
sentou no sofá, sentindo a barriga dura, a irmã comentou que o bebê
ia nascer, mas ela nem prestou muito atenção. Foi quando, por volta
da meia noite, sentiu-se molhada e avista uma poça de sangue na
cama. Foram correndo para o hospital e seu filho, de fato, nasceu
naquela noite.
Quando a relação acabou, ela retornou para a casa da mãe.
Sentindo-se sozinha, deprimida e acreditando que a vida que leva-
vam não era a mais adequada, achou que fosse a hora de arrumar
uma forma de sair dali, com melhores condições de vida. Então
começou a sair com um colega de sua mãe, vinte anos mais velho,
que já nutria interesse por ela e com uma casa só dele, trabalhava. No

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 65


início, não gostava dele, mas depois realmente se apaixonou. Com
sua experiência e persistência, ele conseguiu fazer com que ela dei-
xasse de beber e fazer uso de drogas; mas, por um acaso do destino,
a situação se inverteu: ele, que havia ficado sete anos de abstinência
química recomeçou a fazer uso. Ela tentou ajudá-lo, retribuindo-lhe
o cuidado, mas infelizmente não conseguiu.
Também foi ele, com seus conselhos que a fez enxergar sua
mãe com outros olhos, mesmo com seus defeitos, e, aos poucos,
compartilharem segredos entre si. Existe um ditado que diz que, por
pior que seja a passagem de uma pessoa pela sua vida, ela sempre vai
lhe deixar uma lição, e a passagem deste homem não foi longa e nem
curta demais, o suficiente para ajudá-la na recuperação química, no
seu reencontro com mãe, deixar-lhe com dois filhos seus e um rastro
de agressões e violências físicas e psicológicas.
Porém, se por um lado ele a ajudou, neste mesmo caminho ele
se perdeu, e ela encontrou a violência como companhia. A paixão
que viu nascer foi se acabando com os xingamentos, com a violên-
cia, com a pressão que ele fazia e quando ela dizia que iria embora,
ameaçando-a de que ninguém iria querê-la e que ela não seria capaz
de cuidar de si ou dos filhos. E o pouco de amor que ainda nutria
morreu no dia em que ele soube que o segundo filho do casal seria
uma menina: ele esbravejou aos quatro cantos dizendo que quando a
criança nascesse, ela ficaria no hospital, pois naquela casa a menina
não entraria.
Justo ela, que sempre enfrentou a vida de cabeça erguida, jamais
poderia aceitar que ele fizesse isso com sua filha. Quanto voltou para
casa com o bebê nos braços, ele se apaixonou e a menina roubou seu
coração. Mas a convivência entre os dois foi ficando cada dia pior, até
que se tornou insustentável. Ele a ameaçava com facas, fazia chan-
tagens, manipulações, acusava-a diante dos filhos e dos vizinhos de
adultério e usava o filho mais velho como arma de barganha e ainda
pedia para que o menino confirmasse tudo, prometendo-lhe bicicle-

66 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


ta, carrinhos, presentes – e a criança, não tendo a real dimensão da
situação, confirmava as difamações. Ele passou a pedir que o menino
vigiasse a mãe, contando tudo que ela fazia durante o dia, fazendo
com que ela começasse a sentir raiva de seu próprio filho – e assim
ela passou a bater nele toda vez que ele contava algo para o pai. Sem
perceber, ela culpava o filho pelos erros do pai.
Foram muitas as tentativas de agressões com facas e paus e ela
correndo pelas vielas daquela comunidade com as crianças buscando
refúgio a conhecidos, colegas e até na casa do ex-namorado. Vendo
que aquela situação estava insustentável, resolveu voltar a morar com
a mãe, pois além das agressões ele não arcava mais com o sustento
da casa. Por algumas vezes, ele foi atrás pedindo que ela regressasse
ao lar e como não teve sucesso, passou a ameaçá-la dizendo que iria
queimar todas as suas roupas e que ela não pegaria nada de dentro
de casa. Convicta da separação, de fato ela não mais retornou.
Agora separada e com dois filhos pequenos, ela também não
conseguia se ver na casa da mãe e foi na busca de conseguir a sua
própria casa. Fez uma parceria com um vizinho idoso que tinha
problemas com a visão e precisava de uma cuidadora. Ele já a co-
nhecia desde criança, tinha algumas casas de aluguel e ela precisava
de um emprego e de uma casa. Assim fizeram: ela cuidava dele, que
emprestava uma casa para que ela pudesse viver com os filhos – e
ainda lhe pagava uma ajuda de custo para a alimentação.
Seu ex-marido, acreditando que ela estava tendo um caso com
aquele senhor, invadiu a residência e começou a esbravejar com ta-
manha fúria que ela se sentiu obrigada a retornar para casa da mãe
mais uma vez.
Devido ao quadro de violência em que vivia, era acompanhada
por uma psicóloga do posto de saúde perto da sua casa, e ela já havia
comentado sobre um abrigo que acolhia mulheres em situação de
violência. Mas era difícil de acreditar que poderia existir uma casa que

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 67


cuidasse de mulheres, onde seriam bem tratadas e ainda poderiam
levar seus filhos – detalhe: sem pagar nada. Arisca que era, desconfiou.
Mas a situação foi se complicando e, num certo dia, sua filhinha
queimou o dedinho na panela; na creche, a professora perguntou o
que tinha acontecido e no meio de seus pensamentos de criança, a
pequena comentou que seu pai tinha queimado todas as roupas de
sua mãe. Acreditando que a queimadura na criança poderia ser uma
violência doméstica provocada pelo pai, convocam a diretora que foi
averiguar a situação. Assim que a mulher apresentou a situação, ela
entrou em pânico com medo de que chamassem o conselho tutelar
e levassem as crianças.
Não querendo que seus filhos vivenciassem a mesma vida que
ela teve quando criança, e não vendo uma outra saída, procurou a
psicóloga para saber mais do abrigo sigiloso. Ela logo acionou os ór-
gãos competentes e as medidas cabíveis de proteção. Para sua sorte, a
vaga no abrigo saiu muito rapidamente e ela, com a coragem de quem
sempre enfrentou a vida, foi descobrir como era a tal casa. Deixou o
seu filho mais velho com o pai e seguiu somente com os outros dois.
Ela, que viveu toda a sua vida entre as vielas daquela comunidade,
descobriu que a São Paulo em que sempre morou é infinitamente
maior do que poderia imaginar.
Ela precisou se afastar da família e da vida que tinha para
descobrir que era, sim, capaz de cuidar de si e dos filhos, livrando-se
enfim dos abusos psicológicos paralisantes de seu ex-marido. Precisou
seguir para mais uma casa, das tantas que ela já havia percorrido,
uma para a qual escolheu ir, para descobrir que era preciso percorrer
novos caminhos até encontrar o seu próprio.
Hoje, aos 24 anos, ela se olha no espelho e reflete que, de fato,
sua vida precisava mudar, por ela mesma e pelos filhos; sente sauda-
des de sua família Buscapé, como os chama, mas entende que essa
família agora são seus filhos – e estes estão com ela, com exceção de
seu mais velho, que sabe estar sendo bem cuidado.

68 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


Os problemas que enfrentou – e ainda enfrenta – não fazem
com que ela perca a sede pela vida, pelo contrário: os vê como esca-
da para poder alçar novos voos. Seus sonhos são maiores do que as
vielas onde foi criada e a menina que passou a vida de casa em casa
hoje tem sonhos bem concretos: arrumar um emprego, conseguir um
cantinho que possa acolher tanto a ela, quanto aos filhos e sua mãe.
Ela encara esta fase como uma grande passagem, onde a pior
parte já passou. Acredita que, por mais problemas que possam vir a
existir, a vida é doce e é preciso olhá-la com alegria e carinho. Ela sabe
que está no início de sua travessia e que a estrada é longa. Mas com
a mesma coragem com que enfrentou a vida até agora, vai percorrer
as novas curvas desta vereda.

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 69


A s Regras dos Outros

Maria Vitória

F
az pouco mais de cem anos desde que Nossa Senhora se dig-
nou a aparecer, em Fátima, para três humildes pastorinhos.
Dizem que a santa, que parecia ter uns dezoito anos, estava
envolta em uma luz dourada tão intensa que ofuscava os olhos. Uma
mãe misericordiosa que tinha pena dos pecadores, amava a huma-
nidade e rogava socorro pelas almas que mais precisavam. Quando
apareceu, pediu à humanidade que tivesse esperança. Um século
depois, seus pedidos de fé e amor ainda são carregados em prece por
suas devotas. Foi no convento que Nossa Senhora de Fátima apare-
ceu para aquela menina. Não estava envolta em luz dourada, mas
sua imagem estava guardada nas rezas que ela repetia diariamente.
Tal como Nossa Senhora, em Fátima, a esperança, a fé e o amor lhe
mostrariam o caminho para viver.
O tempo no colégio interno parecia uma eternidade. Lá se
aprendia a religiosidade, a catequese, a reza, a disciplina. Rezava muito:
a primeira do dia era o terço de Maria, começando por Creio, seguida
pelo Mistérios, Pai Nosso, depois as dez Ave Marias e Glória. Às três
da tarde vinha o terço da Misericórdia: pela sua dolorosa paixão,
tende misericórdia de nós e do mundo inteiro, e então receber as con-
sequências, que lá eram chamadas penitências, e pedir perdão a Jesus
Cristo por pensamentos e atos. Acordava-se às cinco da manhã para
rezar, tomar café e começar as tarefas: lavar dez, vinte, trinta panos
brancos à mão, lavar os tabuões e os incensários. No convento não
há máquinas e, como nos tempos de Jesus, se faz tudo manualmente.

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 71


Nesse tempo lento, quase arrastado, foi que o amor, como uma
erva braba que irrompe a fresta do concreto, floresceu. Aos catorze
anos, sua primeira amada foi uma moça uruguaia, cuja imagem de
beleza ela traz selada na memória. Eram duas jovens que, escondidas
entre as santas, se descobriram inadequadas pela própria obra divina.
Os escândalos crescem depressa:
– Sabia, madrinha? Sua afilhada se envolveu com uma moça
no convento.
Reunidas as famílias e exposto o caso, o convento convidou
as duas a se retirarem. Seria esse o fim do mundo? Para a madrinha,
religiosa ascética, talvez fosse; cuidar daquela pequena parecia motivo
de vergonha em todos os lares anteriores. A mácula de uma doença e
a história da mãe suicida só apontavam uma única culpada: nasceu
com a doença da mãe – as tias diziam. Se ela não tivesse nascido, a mãe
não ficaria com o pai dela. Maculada pelo próprio estigma, além da
doença, diziam que a mãe não teria matado a si mesma por vergonha,
por transtorno e por desgosto. Os segredos deveriam permanecer
escondidos, pois muitas pessoas têm preconceito, outras não. Mas
ela preferia falar: eu tenho uma doença escondida no meu sangue.
Aos dez anos decidiu que seguiria os passos da mãe e tomou,
de uma vez, todos os remédios da casa. Sobreviveu, porém, mas
jogada de casa em casa, sem nunca ter tido um lar: pai, avó, tias,
parentes, abrigos… ela sempre estava inadequada, e vivia assim,
como se ninguém a quisesse.
Até que a madrinha veio ao seu encontro. Era sua protetora e
estava decidida a lhe dar aquilo que compreendia por amor. Trombou,
porém, numa criança um tanto diferente daquilo que compreendia
por menina. Diferente não só porque gostava de coisas de menino, mas
porque via-se como um. A imagem masculina da afilhada preocupou
aquela que deveria protegê-la: não te aceito porque o mundo não vai
ter aceitar assim. A madrinha tentou de tudo, benzimentos, padres
e freiras, orou por ela até que desistiu, dizendo:
– Tua alma já tá condenada.

72 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


Hoje, quando olha o passado e relembra o carinho da madri-
nha, não é capaz de dizer que não era amada, mas esse amor vinha
sob condições de uma régua estrita: enquanto lhe dava amor, dava
também a culpa e o pecado que a acompanhariam pela vida. O co-
légio interno pareceu uma solução, já que no seio da religião, onde
são escondidas as máculas, ela deveria aprender as regras do mundo:
o homem nasceu para a mulher, a mulher nasceu para o homem, a
mulher nasceu para multiplicar – repetiam os vídeos educativos. Não
pecar contra a castidade, não praticar homossexualismo – reforça-
vam sem parar. Desse tempo ela recorda com clareza as cenas que
construíram seu imaginário pueril: abortos assustadores, bebês ainda
no útero, lutando contra instrumentos perfurantes, esquartejados,
tendo parte por parte de seus corpos removidos. Tudo mostrado
com função educativa, para que se aprenda a distinguir o pecado e
a maldade dos humanos contra a vida e a inocência.
Do colégio interno ao convento, ela já era noviça quando seu
caso de amor se tornou um escândalo e vergonha para ambas as
famílias e o estopim que lhe causaria a expulsão. Ela não sabia ao
certo o que pensar, mas longe do convento achou-se, enfim, livre.
Rebelde, raspou a cabeça, vestiu-se de menino e, sem culpa nem pe-
cado ou vergonha foi crescendo com teimosia e um brilho particular.
Assim, ela começava a explorar o mundo do lado de fora e o mundo
se mostrava para ela. Andando pela própria vizinhança, fazia amigos
com quem bem entendia. Seus novos amigos seriam os primeiros a
lhe apresentar mundo oculto da criminalidade: a máfia do tráfico
de drogas. Junto destas pessoas ela experimentava a vida, sob a pers-
pectiva dos próprios desejos. Até aquele momento ela havia andando
só, confinada às paredes do colégio e à vida ditada pelas freiras, mas
agora estava livre e ansiosa para sua primeira festa. 
Pessoas novas, possíveis amigos e um mundo novo que lhe
mostravam.
Queria celebrar a liberdade do lado de fora, mas foi nessa festa
em que ela conheceu o homem que traçaria uma trilha nova em seu

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 73


destino, aquele que andava com a morte atrás de si, aproximou-se
dela com delicadeza e carinho. Ela enterneceu com sua afeição e se
sentiu confortável para provar do que ele mostrava. Ele era mais ve-
lho, bonito, com três filhos e ela sabia que era um homem poderoso. 
Ele logo quis levá-la para casa, fazer dela sua esposa. Ela der-
retia nos sonhos e no perfume das flores que recebia dele. Casaram
com ela ainda muito jovem – dezesseis anos – e ele foi o seu primeiro
homem e primeiro marido. Ele era apaixonado, atencioso e estar ao
seu lado era tão mágico que fez parecer, de fato, um pecado amar
mulheres. Aprendeu a gostar dele e estava apaixonada, encantada,
mas era não ingênua. Ela viu o homem e viu a morte atrás dele, sabia
quem ele era e o que fazia. Aquele homem chefiava a máfia de drogas
que seus amigos lhe apresentaram. É ele quem dá o cheque-mate,
sua voz decide quem morre e quem vive, quem passa e quem deve,
e qual a sentença.
Ela se encantou pelo que ofereceu: você pode ter isso, aquilo,
pode tudo o que nunca teve. Este homem dizia que a amava e que por
ser diferente casou-se com ela, mesmo sabendo do seu passado, do
sofrimento e da doença na família. E ela estava decidida a segui-lo
em devoção: amar, cuidar e fazer por ele tudo aquilo o que sentia
que ele fazia por ela. 
Viviam em uma casa bomba, um imóvel alugado, um tipo de
casa que jamais poderia ser fixa, porque abrigava armas, drogas e
balanças. Desde que se casou com um homem do crime, sabia que,
a partir de então, seria ela também parte do crime e que esse era um
caminho sem volta. Aprendeu os pesos e as medidas deste mundo e
a ele foi leal. Precisou entender como tudo funcionava, dos derivados
da pasta-base ao descarte de um cadáver. Todo o processo acontecia
numa pequena fábrica instalada no fundo da casa onde viviam – da
casa que ela cuidava com dedicação. Na biqueira, entendeu que o
que dá mais lucro é o crack e a cocaína.
Ela sabia que não seria fácil, mas, por ele – que parecia fazer
tudo por ela – estava disposta a aprender, com coragem e firmeza, e

74 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


a fazer o seu melhor. Ele tinha sua lealdade e ela recebia aceitação.
Foi junto dele que construiu seu primeiro ninho. Os filhos dele se
tornaram filhos dela e, então, a família que ela não queria perder.
Segurava-se nesse homem e em sua personalidade inconstante – ora
carinhoso e amável, ora autoritário, mas sempre imprevisível. Até que
notou, pouco a pouco que ele se transformou em um desconhecido,
com quem descobriu os primeiros gritos, as primeiras ofensas e o
horror que estava prestes a viver.
Ainda guardando as imagens do homem carinhoso, demorou
para perceber a violência e os xingamentos que se tornaram diários.
As discussões ficaram intensas e as surras começaram a vir dia sim,
dia não. No começo, ela pensou que o problema fosse ela, afinal,
estava acostumada a ser o problema. Devia ser, com certeza, algo de
errado que fazia, uma roupa ou um brinco que ele não gostava; passou
a andar com cuidado, vestida para não chamar atenção, andar por
certos lugares ou falar com um ou com outro alguém. Em seguida
veio a proibição de ir à igreja, acusada de ter um caso com o padre.
Trancada dentro da casa, saia apenas na companhia do marido, como
um segurança, um vigia e protetor – o único com a chave do portão
– e ela deveria andar obediente às leis de seu império.
Entre as surras, mente e corpo em exaustão, ela tentava con-
sertar o que podia haver de errado. Não mais se maquiava, não se
enfeitava, apagou o brilho e perdeu o gosto por si mesma. Tão logo
perdeu também o gosto por ele; a vontade do contato, da pele, do
carinho e, se transavam, era porque ele a forçava e o sexo vinha entre
as surras e os castigos.
Aos vinte anos, quando pensava sofrer com crises de estômago,
foi ele quem descobriu sua primeira gravidez: estômago nada, você
tá é grávida. Ela ficou surpresa ao se tornar mãe, e ele comemorou
como se fosse a melhor coisa do mundo, fez festa como quem ganha
na loteria. Viveram a alegria de esperar o primeiro filho, até que seu
bebê veio ao mundo. A morte, porém, sem tempo de fazer sala aos

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 75


enleios da jovem mãe, o tomou de volta: o pequeno nasceu acometi-
do por uma má formação nos órgãos e viveu por apenas três horas,
recebendo cuidado o tempo todo: suas horas mais preciosas.
Lembrança boa, que é dolorida se tocada.
Porque havia perdido o seu, se apegou aos dele e tal como
adotou os filhos, adotou também a mãe deles. Explicava aos meni-
nos: eu sou a mãe que cria, mas ela é a mãe que te botou no mundo.
Ela pode ser a mãe que for, mas ela é sempre a mãe de vocês. Isto era
incompressível para aquele homem, que odiava a ex-esposa a ponto
de jurá-la de morte; ele precisava do ódio de todos, mas não tinha
o ódio dela, pois ela não era obrigada a odiar a mãe dos filhos que
também eram seus. Ela a defendia e até pagou uma dívida para livrá-la
da morte – dois pinos de vinte que pegou fiado na biqueira – e ainda
enfrentou o marido: não, você não vai matar a mãe dos seus filhos.
Aquela era sua família e ela não queria perdê-la. Sentia medo e
esperava ser aceita, sentia amor, apego e a dor da clausura tudo com
o mesmo coração. Ela carregou tantos sentimentos por tanto tempo
que não conseguia compreender onde um começava e onde o outro
terminava. Ainda que fiel a um senso particular de justiça, esteve
ao lado dele até o fim – por medo ou por amor: cuidava dos filhos,
da casa e, por ele, viveu no risco e na paranoia, mas também com
dívida e culpa, aquela que carregava desde muito pequena, que vinha
do convento, das freiras, dos santos e do ninho materno. A culpa era
sua voz amiga, guardiã de seus caminhos, a culpa lhe ditava o certo
e o errado, o que fazer e como fazer.
Agora, porém, não importavam mais as preces e penitências,
porque as surras vinham a despeito da oração. E a seguinte era sempre
pior. Até que uma delas a deixou em coma. Entubada por vários dias,
foi operada de um coágulo no cérebro e acordou dias depois, com
os dois olhos roxos, cicatrizes, corpo dolorido e rosto desfigurado.
No espelho, não se reconhecia, era um bicho, uma coisa que não
era gente. Sentia raiva dele e sentia mais raiva de não compreender

76 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


por que apanhava – fiz tudo o que ele me pediu, por que então me
faz isso? Os médicos desconfiaram, o hospital chamou a polícia,
que perguntou, investigou, mas o marido se manteve resiliente na
defesa de que ela havia sido atropelada. Diante da polícia, ela estava
em pânico: não sabia se deveria denunciar ou proteger o marido, se
ele era seu algoz ou protetor, se essa era sua chance de liberdade ou a
guinada para morte, se pereceria no purgatório ou na prisão, se sairia
viva e, se não saísse, se iria para o céu ou para o inferno. Assustada
e sem saber o que fazer, concordou com a versão do atropelamento:
havia sim sido atropelada, apenas não se lembrava de como, onde
ou porque aconteceu.
Para cada surra, um buquê de rosas vermelhas, cartão com
pedido de desculpa, chocolate e a ilusão de uma vida nova. A certa
altura, pegou nojo de chocolate, mas como sempre via sinal de mu-
dança em suas atitudes, talvez, logo pararia. Até porque não parecia
haver violência pior… Mas não parou. Quando não aguentou mais,
fugiu; de abrigo em abrigo, sem ninguém para ajudar, rezando pela
vida e sabendo que ele estava atrás dela, abrindo fogo contra as portas
dos albergues, sentiu medo e esse medo a levou de volta para a casa
do carrasco.
Em resposta ao retorno da esposa fugitiva, ele lhe trouxe um
cadáver pronto para ser descartado. Ela já conhecia o processo de
descarte: serrar braços e pernas com a serra elétrica, colocar os res-
tos numa mala, despejando areia, cimento cola, cal e soda cáustica
porque assim não sobrava cheiro. No sol, o corpo petrificava como
uma estátua e era quando alguém, discretamente, saia carregando a
mala para descartar. Nefasto, segurando o morto, ele o esquartejou
na sua frente, dizendo que o próximo talvez fosse o corpo dela; po-
rém, não seria descartada… mas emoldurada como um adorno na
parede da casa. Porque assim, estaria lá, ao lado dele para sempre.
A segunda gravidez a livrou das surras de cabo de vassoura.
Novamente plena de celebração, mas agora tinha medo. Seu segundo

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 77


filho nasceu saudável, além de esperto. Com ele, aprendeu o amor,
já que nunca compreendera o que vivia com o homem com quem se
casou. Disseram-lhe ser amor, mas ela própria tinha suas dúvidas.
Não sabia se era amor ou ódio e ainda se pergunta se ele a ama, ou
se ela o ama, apesar de apanhar; se gosta dele porque ele é tudo o
que conheceu ou porque se acostumou a tal ponto de que se sente
segura assim; se essa segurança é real de fato, ou se porque nunca
lhe fora permitido trabalhar, sair ou viver, é fruto da dependência.
Ela era muito jovem, mas seus olhos já haviam visto seu fim
de todas as formas dentro de casa. Porém, segurando firme o seu
rebento junto ao peito e, nesse abraço, começou a descobrir o amor.
E no amor verdadeiro, compreendeu seu desejo por liberdade e a
vontade de ver aquela criança crescer livre e, sobretudo, amada em
sua liberdade como ela própria desejava ser.
Naquele dia, ela se aproximou do marido, mansamente, iludida
de que poderia conversar. Sentada, ela explicou que queria se separar.
Ele disse que sim, concordou com a cabeça e caminhou até uma mesa.
Da gaveta, tirou uma arma calibre 18, carregou a munição e apontou
para os olhos dela; tudo o que pode fazer era dizer que o amava, disse
que ele estava certo, ela concordava com cada um dos xingamentos e
pedia para não morrer. Quando ele baixou a arma, ela permitiu a surra,
entregou seu corpo e aceitou a violação como se admitisse amor. No
outro dia, acordou de manhã e disse que precisava comprar leite para
o bebê. Já tinha orquestrado tudo: pegara dinheiro da carteira dele,
já tinha uma cópia da chave (que fez escondida), mandou as crianças
para o colégio, pegou as malas do bebê e saiu.
Livre, na rua, entrou no ônibus, pegou o metrô e desceu pró-
xima a uma base da polícia. Lá pediu ajuda e sabia que a partir desse
momento, tornara-se coisa. Tornar-se coisa é uma escolha daqueles
que passam para outro lado do jogo, daqueles que não têm força
para o crime e, então, recorrem à polícia. Assim, sua cabeça estava
à prêmio e, para ela, isso significava que morreria a qualquer hora.
Não poderia mais pôr os pés na rua.

78 | Enquanto não Cicatriza – histórias de mulheres que sobreviveram


Escondida pelos abrigos, sente-se prisioneira. Lá fora, ainda
estão atrás dela, já foram atrás de seus padrinhos, atearam fogo na
casa da sua família, mas na semana que vem ela vai embora de novo,
outro abrigo e depois outro e nem ela mesma consegue saber quais
são os planos para seu futuro; faz planos para a morte, porque há
uma caçada por sua cabeça e qualquer um, no país inteiro, pode
reconhecê-la. Ela quer alguém para cuidar do filho. Sabe o que é
crescer sem mãe – é nunca ser amado por inteiro, é viver reprimido,
se adaptando às regras dos outros.
Ela sabe que ainda não experimentou a vida, pois teve sempre
alguém para cortar suas asas. Ela é como a fênix enjaulada e domes-
ticada, que escolhe arder até às cinzas, para renascer outra. É por isso
que hoje também planeja vida, pois no fundo sabe que verá o filho
dar os primeiros passos, que ouvirá a primeira palavra, dará amor
e ensinará a amar as mulheres. Ela quer ser a mãe que não teve e é
disso que tira força nos dias doloridos.
Guarda a fé em Nossa Senhora de Fátima, a coragem e a rebeldia
de menina para construir outra história: uma nova em um lugar onde
poderá andar livre; quer contar sua história para que outras mulheres
não deixem que suas vontades sejam roubadas, que ofusquem suas
essências, que as prendam, que as maltratem. Quanto a ela, está viva
e como se não bastasse, oferece a vida ao mundo. Ela não sabe para
onde vai, mas é preciso se agarrar à liberdade que virá, mantendo-se
forte e maior do que o sistema que a persegue.
Diz que é preciso se agarrar à vida e ao sentido de viver, que
pulsa por mais do que sobreviver escondida. Quer se sentir viva,
viver como quem se é, de fato, e lembrar a si própria de que é livre.
Precisa olhar nos olhos do filho e, assim como Nossa Senhora de
Fátima, ter esperança na humanidade. Quer ter fé no sobrenatural,
fé nos homens e fé em um mundo de mulheres livres, e quem sabe,
a liberdade redesenhe o amor, redesenhe a vida e o direito de amar
e de estar viva.

Célia R. Ramos Méris/Maria Vitória Siviero/Silvani Maria da Silva | 79

Você também pode gostar