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cicatriza
Histórias de mulheres que sobreviveram
Célia Regina Ramos Méris
Maria Vitória Siviero
Silvani Maria da Silva
Enquanto não
cicatriza
Histórias de mulheres que sobreviveram
ISBN 978-65-5913-399-4
ISBN 978-65-5913-399-4
CDU: 316.647.3
CDD: 301.633042
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Índice para catálogo sistemático
1. Sociologia. 2. Violência contra a mulher. 3. Violência doméstica. 4. Violência familiar. 5. Relato de
experiências. I. Siviero, Maria Vitória. II. Silva, Silvani Maria da. III. Título.
Editora Lux
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Agradecimentos
N
enhum projeto nasce sozinho. É necessário que muitas
mãos sejam dadas para que ele possa existir. Para que
esse voo fosse alçado, muitas pessoas, em especial mu-
lheres, emprestaram um pouquinho de suas asas, para que nós,
da Cia. Teatral Casa de Marias, pudéssemos completar esse ciclo.
Nesse pequeno rito de agradecimento, saudamos todas as
mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, que partici-
param das oficinas e das entrevistas individuais que compõem o
projeto “O Caminho da Fênix”. Suas histórias deram origem ao livro
Enquanto não cicatriza – Histórias de mulheres que sobreviveram.
Agradecemos à todos os parceiros que, percebendo a im-
portância do projeto, abriram as portas para que ele acontecesse:
Ricardo Estevam, da Supervisão de Assistência Social (SAS) Ermelino
Matarazzo; à Maria Izabel R. de Souza Oliveira, supervisora técnica
do Centro Especializado de Assistência Social (CREAS) Ermelino
Matarazzo; ao Centro de Referência da Assistência Social (CRAS)
de Ermelino Matarazzo.
À Ester, Cristiane, Renata, Susi, Declaide, Cristina, Sônia,
Lucelia, Marilia, Nelma, Tatiane, que acompanharam nossos encontros
com as mulheres-protagonistas desse projeto e que possibilitaram
que ele florisse com tamanha liberdade nos espaços de acolhimento.
E, por fim, aos familiares e amigos que sempre acompanham
nossas travessias em busca de um mundo mais justo para as mulheres.
Nossa imensa gratidão ao querido amigo Edgar Castro, pelas lindas
palavras escritas para esse livro, e por sempre nos acompanhar em
nossos projetos de vida-arte.
Que essa fênix possa voar cada dia mais alto!
Agradecimentos..................................................................................5
Caminho da Fênix..............................................................................9
Herança de Avó.................................................................................20
Casa Assombrada.............................................................................30
Q
uando demos os primeiros voos em direção a este céu
aberto que é o mundo feminino, sabíamos que encontra-
ríamos “mulheres-fênix” em processo de renascimento.
No entanto, as histórias narradas em cada encontro foi revelando, de
forma brutal, o quanto essa experiência de “vida-morte-vida” estava
tomada de dor, lágrimas, sofrimento, angústias e perdas.
Percebemos que o caminho percorrido por cada uma das mu-
lheres que participaram do projeto tem suas particularidades, mas
todas as narrativas traziam um ponto de intersecção: o desejo de uma
vida diferente. Sem gritos, agressões, violências, choros, xingamentos.
Uma vida com perspectivas de futuro, regada ao sopro da liberdade
e banhada com a doçura da alegria e do amor.
Para essas mulheres conseguirem avistar esse futuro e saírem
destas gaiolas que as aprisionam, será preciso muita coragem, pois
para uma sociedade patriarcal e machista, a violência contra a mulher
é sempre normatizada.
Aos homens, que deveriam ser seus companheiros, é permi-
tido agirem como águias ferozes, que seguem soltas caçando outras
vítimas, enquanto as “fênix” lutam para terem suas asas curadas. As
mulheres-pássaros, que deveriam voar livres, sentindo o vento da
liberdade vibrar sob suas asas, são obrigadas a pousar por um tempo
em outros ninhos-abrigos, para protegerem suas vidas.
E por muitas vezes, para fugirem do homem-águia – que cala,
mutila e mata – são obrigadas a deixar seu ninho, sua família e seus
filhotes para trás!
Célia Ramos
C
ara leitora, é inacreditável ver as pessoas que nos atravessam
por este caminho chamado vida. Hoje quero falar de uma
menina-mulher, cheia de vida, que horas estava de cabelos
avermelhados, outros azuis; mas uma coisa era fato: ela buscava sen-
tido no excesso de passado, que já carregava em sua tão tenra idade.
Quando a avistei pela primeira vez, estava sentada em um sofá
de cabeça baixa, parecia um bichinho assustado, apertando as mãos
até quase sangrarem; mesmo no meio de muitas outras, a forma como
se mostrava acuada chamou minha atenção.
Ela era a única filha mulher entre 5 homens, e morou sua pri-
meira infância em um sítio com a mãe e os irmãos – um momento
marcado com a simplicidade de uma menina criada no interior,
que lavava louça no riacho aos sons dos passarinhos cantando, e
pegando fruta no pé. Seu pai deixara a família após o falecimento
de sua avó, quando a responsabilidade da criação dos filhos lhe pe-
sou. Vivera, assim, as dificuldades de uma casa que era sustentada
por uma mãe solo: a vida não era perfeita, mas o amor construía os
alicerces daquele lar.
A primeira tragédia chegou bem cedo em sua vida: aos 13 anos,
sua mãe falecera em seus braços, diante de seus olhos – a mulher que,
por amor, recusara tratamento médico, agora pedia a uma criança
que não a deixasse morrer. Era final de ano. A menina que dava
seus primeiros passos no trilhar da própria caminhada, começava a
entender que, talvez, essa “tal vida” não lhe daria trégua.
E
la diz que quase não chora. Mesmo sendo uma pessoa que
desde o momento em que nasceu se vê lutando pela própria
existência, só se permite chorar quando a vida lhe impõe
algum limite.
– Fui criada pela minha avó… Eu nasci na cama dela. Com o
cordão amarrado no pescoço, roxa, como ela!
Assim ela começa e logo nos conta que nasceu cheia de com-
plicações de saúde, pois já trazia no corpo miúdo os males das drogas
que a mãe consumira durante a gravidez. Durante três meses, ficou
internada numa UTI e essa foi a primeira vez, de muitas, em que
precisou lutar pela própria vida.
Aprendeu a ser quieta, mas isso não a impede de narrar sua
trajetória de vida como se esse fosse o último degrau a subir para
alcançar sua liberdade. Lá do alto, olha para baixo como se pudesse
assistir a própria história passando diante de si, e corajosamente,
busca palavras que possam traduzi-la. É assim que ela nos convida a
percorrer seus caminhos de dor, amor, medo, coragem e recomeços.
Carrega poucas lembranças da infância. Diz que é como se
tivesse acontecido um apagão e lembrasse apenas o que viveu a partir
dos oito anos. Num acender e apagar da memória, ela se recorda de
que, aos nove, foi morar com a mãe – depois que a avó conseguiu
livrá-la, temporariamente, das drogas. Nesse período viveu sua
segunda quase morte, pois voltou a dividir o mesmo teto com seu
pai – que já havia abusado sexualmente dela, deixando-lhe traumas
difíceis de serem superados – assim que ele saiu do presídio.
Maria Vitória
S
ete filhos e três casamentos que não deram certo – sentada
diante da câmera ela logo declara. Também conta que, nas-
cida e criada no interior, numa cidade pequenina onde todos
se conhecem, nunca imaginou estar em São Paulo – nem a passeio.
Tratava-se de uma oportunidade e ela quer contar o porquê: escapou
de um relacionamento turbulento em que sofria violência em casa, na
frente dos filhos, e passou por isso por mais de um ano e meio – até
que acabou num abrigo pra mulheres em São Paulo.
Ela está diante dos ouvidos e gravadores e se prepara para
narrar sua história, sem invenções, nem personagens e quer mostrar
apenas sua sinceridade crua – e se pergunta, por um minuto, o que
vão pensar aquelas outras diante dela, quando a ouvirem contando
quem é, de onde vem e porque vem? Respira fundo e começa, bra-
vamente, a puxar o fio da memória.
Sentada naquela cadeira, aos seus quarenta e dois anos, ela
caminha, pouco a pouco, pelas lembranças de um passado mais dis-
tante, onde foi criança em uma vida que descreve como turbulenta,
com um pai rígido, mas amoroso, que apenas não sabia expressar o
afeto pelos filhos (e ela entendia ser esse o modo como ele foi criado).
Lembra-se também de uma mãe dura, para quem educar era o mesmo
que castigar. Ainda que também fosse rígida, porém, era com a mãe
que passava a maior parte do tempo, do qual não consegue resgatar
boas memórias.
Ela se lembra que cresceu no meio dos tios, mas pensava
que fossem seus irmãos, e não entendia o motivo pelo qual os pais
Célia Ramos
U
ma coisa é fato: os filmes infantis da Disney podem ser de-
vastadores na vida de uma menina que cresce esperando a
chegada do tal príncipe encantado dos contos de fada, para
salvá-la de sua vida terrível e conduzi-la para os felizes para sempre.
E quando este felizes para sempre não existir?
A realidade de uma mulher pode ser bem diferente dos dese-
nhos e o tal príncipe encantado por vezes usa desse imaginário para
colocar em prática sua psicopatia e ludibriar suas vítimas, conduzin-
do-as para a sua gaiola nefasta. É sobre isso que vou lhe contar agora.
Ela passou a vida fugindo de sua própria história, fugindo do
berço que havia lhe dado a vida; não se enquadrava naquela família.
O álcool havia devastado a sua casa, já que tanto seu pai, quanto sua
mãe faziam uso contínuo e a violência doméstica reinava naquela
família; as drogas? Essas faziam morada ali com muita naturalidade.
Sua infância foi marcada por este ambiente hostil e conturbado e ela
não se sentia integrada nem pertencente àquele lugar e sua alma a
repulsava para o mais distante de tudo aquilo e, ao mesmo tempo,
cresceu acreditando que era normal: que a violência era normal, que
o consumo de álcool excessivo e de drogas também eram normal.
A escola tornou-se o seu espaço de refúgio, onde encontrava
proteção. Vivenciou suas melhores memórias de infância e juventude,
e de momentos bem inusitados. Nunca teve aqueles diálogos de mãe
e filha sobre a menstruação, sexo ou gravidez – e essas conversas lhe
E
la morava numa fazenda, no Paraná. Vinda de uma família
grande, dividia a casa com sete irmãos. Dois homens e o
resto tudo mulher! Nascida numa família empobrecida,
desde pequena precisou trabalhar na roça para ter o que comer e o
que vestir. Por causa disso, logo cedo também teve que aprender a
dividir o mingau de fubá que a mãe fazia.
Aos vinte anos já estava casada, mais por ter sido obrigada pelo
pai, do que por amor. Mulher que namora e não casa, fica falada!,
dizia o pai.
No começo ela até que gostava dele, mas não demorou muito
para que a relação se tornasse uma tortura. Ele a traia descaradamente
e, quando ela engravidou, não hesitou em deixá-la com uma filha de
quatro meses na barriga, para ficar com outra mulher. Apenas foi
embora e a deixou, sozinha, na fazenda.
Não foi fácil viver aquela gestação, e logo toda a dor e tristeza
que sentia foram transferidas para a filha. Nem bem a menina nasceu,
e ela começou a sentir os sintomas de depressão. Era uma dor tão
intensa que ela ficou um mês chorando, sem parar. Não conseguia
comer, não tomava banho, não fazia nada! Sua filha chorava, largada
no chão, e ela não se importava.
Mas a natureza é sábia e o tempo ajuda a curar até o pior de
todos os males. E em seu processo de cura, ela finalmente conseguiu
pegar a filha nos braços pela primeira vez. Olhando para aquela
criança tão quieta, agradeceu aos céus por sua bebê ser tão boazinha
Célia Ramos
O
Brasil é um país de poucos que têm muito, e de muitos
que têm pouco.
E essa discrepância constrói um abismo que separa a elite
do capital dos seus meros mortais. Nascer na periferia, portanto, é
aprender desde muito cedo a defender o próprio pão e entender que
todo dia é dia de batalhar e lutar todos por direito a teto e comida
no prato. Agora, nascer mulher, pobre e periférica é um combate
infinitamente mais duro e cruel: é necessário discutir com destino
todos os dias e dizer a que veio.
Ela, desde muito pequena, já queria entender o motivo de não
poder ficar com sua família; entre as vielas de uma comunidade, foi
criada entre muitas casas, pois sua mãe, não tendo condições de cuidar
dela e de seus sete irmãos, a entregou aos dois anos idade para que
um casal pudesse criá-la. No seio daquela família, descobriu o que
era ser cuidada com conforto, amor e carinho; mas, aos seis anos,
não encontrando uma estrutura de organização que dialogasse com
o trabalho e com a escola, a devolveram para a mãe.
Sua vida passou, então, a ser desenhada entre as vielas do bairro
onde sua mãe morava, o centro religioso que sua família frequentava
e as pessoas pertencentes àquele espaço. Sua vivência até o início da
adolescência foi marcada pelo abandono e experiências frustradas
de morar de casa em casa, de idas e vindas. Assim foi sua vida até o
início da adolescência.
Nunca conseguiu entender por que os seus irmãos podiam
passar fome e ela não? Por que ela não ficava com eles? E indagava
Maria Vitória
F
az pouco mais de cem anos desde que Nossa Senhora se dig-
nou a aparecer, em Fátima, para três humildes pastorinhos.
Dizem que a santa, que parecia ter uns dezoito anos, estava
envolta em uma luz dourada tão intensa que ofuscava os olhos. Uma
mãe misericordiosa que tinha pena dos pecadores, amava a huma-
nidade e rogava socorro pelas almas que mais precisavam. Quando
apareceu, pediu à humanidade que tivesse esperança. Um século
depois, seus pedidos de fé e amor ainda são carregados em prece por
suas devotas. Foi no convento que Nossa Senhora de Fátima apare-
ceu para aquela menina. Não estava envolta em luz dourada, mas
sua imagem estava guardada nas rezas que ela repetia diariamente.
Tal como Nossa Senhora, em Fátima, a esperança, a fé e o amor lhe
mostrariam o caminho para viver.
O tempo no colégio interno parecia uma eternidade. Lá se
aprendia a religiosidade, a catequese, a reza, a disciplina. Rezava muito:
a primeira do dia era o terço de Maria, começando por Creio, seguida
pelo Mistérios, Pai Nosso, depois as dez Ave Marias e Glória. Às três
da tarde vinha o terço da Misericórdia: pela sua dolorosa paixão,
tende misericórdia de nós e do mundo inteiro, e então receber as con-
sequências, que lá eram chamadas penitências, e pedir perdão a Jesus
Cristo por pensamentos e atos. Acordava-se às cinco da manhã para
rezar, tomar café e começar as tarefas: lavar dez, vinte, trinta panos
brancos à mão, lavar os tabuões e os incensários. No convento não
há máquinas e, como nos tempos de Jesus, se faz tudo manualmente.