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Patrimônio Cultural:
nossa herança africana
as possibilidades de efetivação da Lei nº 10.639/03 com
turmas de 7º ano na Rede Municipal de Ensino de São Paulo
O
texto consiste no relato de uma experiência pedagógica re-
alizada junto a estudantes do 7º ano do Ensino Fundamen-
tal II, em uma escola municipal da cidade de São Paulo.
Com o objetivo de possibilitar o reconhecimento e a valori-
zação da contribuição dos povos africanos à formação da sociedade brasileira,
desenvolvemos a sequência didática Patrimônio cultural: nossa herança africa-
na, fundamentada teoricamente no escopo da Educação para as Relações Ét-
nico-raciais (GOMES, 2012; MUNANGA, 2013; QUIJANO, 2005). O traba-
lho pedagógico se alicerçou nas tipologias do conteúdo propostas por Zabala
(1998), que foram metodologicamente transpostas, cujos conteúdos foram or-
ganizados em: factuais, através da relação entre o Brasil e a África; conceitual:
o Brasil como país afrodiaspórico; atitudinal: valorar a influência africana na
formação do Brasil e; procedimental: responder aos desafios, jogar, pesquisar,
desenhar, dividir tarefas em grupo. As ações expostas se vinculam à efetivação
da Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003) e articularam elementos da cultura ma-
terial e cultura imaterial, buscando promover o reconhecimento e valorização
dos saberes produzidos no continente africano e suas manifestações na história
e cultura brasileira, formando nosso patrimônio cultural.
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Educação para as relações
étnico-raciais: um breve
olhar para os desafios
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Em relação às normativas curriculares, referências culturais na vida brasileira”
a ação desenvolvida se vincula aos Obje- (SÃO PAULO, 2019, p. 90). Considerando
tivos de Aprendizagem e Desenvolvimento as possibilidades de alargamento cultural,
presentes no Currículo da Cidade (SÃO o protagonismo e diálogo com o contexto
PAULO, 2019) para o 7º ano na disciplina social, as ações privilegiaram a abordagem
de História, que sugere que sejam constru-
interdisciplinar – por meio de estudos da
ídas abordagens do ensino que possibilitem
língua e das artes visuais - e os métodos de
ao estudante “Conhecer e refletir sobre a
diversidade das populações africanas tra- ensino ativos, tais como e a resolução de
zidas ao Brasil e a disseminação de suas desafios e a pesquisa em grupo.
1 Essas normativas são: a Lei nº 10.639/03, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Re-
lações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e os pareceres do Conselho
Nacional de Educação vinculados à essa legislação.
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Essa demanda, destinada aos sistemas Quanto mais se amplia o direito à educa-
de ensino, escolas e professores, respon- ção, quanto mais se universaliza a edu-
de às reivindicações de políticas de ações cação básica e se democratiza o acesso
afirmativas, reparações, reconhecimento e ao ensino superior, mais entram para o
valorização de histórias, culturas e iden- espaço escolar sujeitos antes invisibili-
tidades dos movimentos sociais negros. zados ou desconsiderados como sujeitos
Busca combater o racismo a partir do de conhecimento. Eles chegam com os
reconhecimento estatal e propõe a divul- seus conhecimentos, demandas políticas,
gação e a produção de conhecimentos que valores, corporeidade, condições de vida,
eduquem cidadãos orgulhosos de seu per- sofrimentos e vitórias. Questionam nossos
tencimento étnico com direitos garantidos currículos colonizados e colonizadores e
e identidades valorizadas (CANDAU; exigem propostas emancipatórias. Quais
OLIVEIRA, 2010, p. 32). são as respostas epistemológicas do cam-
po da educação a esse movimento? (GO-
A demanda não se restringe apenas a MES, 2012, p. 99)
uma revisão curricular, mas traz elemen-
tos que podem contribuir para uma cons- A valorização dos saberes que a auto-
trução subjetiva positivada. De acordo ra menciona está intrinsecamente relacio-
com Candau e Oliveira (2010) o reconhe- nada a percepção de que são esses sujeitos
cimento está vinculado a “desconstruir o racializados que tensionam a cultura esco-
mito da democracia racial; adotar estraté- lar, exigindo respostas que contemplem a
gias pedagógicas de valorização da dife- diversidade desse espaço. Ao questionar se
rença; reforçar a luta antirracista e ques- “é possível educar para a diversidade em
tionar as relações étnico-raciais baseadas uma sociedade marcada pelo colonialismo,
em preconceitos e comportamentos dis- pelo capitalismo, pelo machismo e pelo ra-
criminatórios” (CANDAU; OLIVEIRA, cismo?”, Gomes (2017, p. 43) interpela qual
2010, p. 32). espaço educativo é ocupado pelos movi-
mentos sociais na escola. A reflexão sobre o
Outro elemento imprescindível a esta
currículo e as políticas educacionais que os
discussão é a compreensão de que o cur-
geram não pode tergiversar dessa presença.
rículo escolar não é neutro: é território em
disputa. Nessa disputa, os saberes africanos Para Munanga (2013), o reconheci-
e afrodiaspóricos têm sido deixados de lado mento oficial e público das diversidades é
quando o conhecimento historicamen- uma das estratégias de combate ao racis-
te acumulado é ensinado aos estudantes. mo, no entanto
Considerando que “o trabalho educativo
é o ato de produzir, direta e intencional- “[...] a questão fundamental que se colo-
mente, em cada indivíduo singular, a hu- ca hoje é o reconhecimento oficial e públi-
manidade que é produzida histórica e co- co dessas diversidades, que ainda estão
letivamente pelo conjunto dos homens” sendo tratadas desigualmente no sistema
(SAVIANI, 2008, p. 13), cabe questionar educacional brasileiro, além de os por-
as lacunas produzidas nesse percurso, espe- tadores dessas identidades de resistência
serem também vítimas dos preconceitos
cialmente aquelas relacionadas aos saberes
e da discriminação racial, até da segre-
produzidos no continente africano.
gação racial de fato.” (MUNANGA,
Para Gomes (2012), a necessidade de 2013, p. 22)
articular esses saberes de forma sistema-
tizada no percurso formativo dos estu- Ao eleger o patrimônio ofertado pela
dantes emerge, principalmente, a partir matriz afro-brasileira para tratar das ques-
da universalização do acesso à educação. tões referentes à Educação para as Rela-
Para a pesquisadora ções Étnico-raciais, temos como propósito
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incidir sobre a formação cidadã dos estu- no âmbito da formação cidadã e do direito
dantes, de modo que esses reconheçam e à memória, se convertendo em um dos ob-
valorizem a contribuição dos povos africa- jetos de ensino. Considerando os objetivos
nos para a construção da sociedade brasi- almejados ao tratar da produção histórica
leira. A esse respeito, Oriá (2008) pondera e cultural de sujeitos racializados, acredita-
mos que a realização do trabalho pedagó-
Considerar a preservação do patrimônio gico que apresentaremos a seguir cumpre
histórico como uma questão de cidadania essa função ao possibilitar a reflexão so-
implica reconhecer que, como cidadãos, bre o reconhecimento da contribuição dos
temos o direito à memória, mas também povos africanos à formação da sociedade
o dever de contribuir para a manuten- brasileira. Para as Diretrizes Curriculares
ção desse rico e valioso acervo cultural Nacionais para a Educação das Relações
de nosso país. Ademais, por admitirmos Étnico-Raciais e para o Ensino de Histó-
o papel fundamental da instituição esco- ria e Cultura Afro-Brasileira e Africana,
lar no exercício e formação da cidadania
o reconhecimento “requer a adoção de
de nossas crianças, jovens e adolescen-
políticas educacionais e de estratégias pe-
tes, é que defendemos a necessidade de
que a temática do patrimônio histórico dagógicas de valorização da diversidade, a
seja apropriada como objeto de estudo no fim de superar a desigualdade étnicoracial
processo ensino-aprendizagem (ORIÁ, presente na educação escolar brasileira,
2008, p. 140). nos diferentes níveis de ensino” (BRASIL,
2004, p. 12) e as ações que apresentaremos
Nessa perspectiva, a discussão do patri- a seguir tiveram por propósito atender a
mônio e sua inclusão ao currículo se situa determinação legal.
2 - Caminhos metodológicos
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factual (entender a relação Brasil x África), à Rede Municipal de Ensino de São Paulo
conceitual (outorgar de significado à ideia (RMESP), na região da Vila Brasilândia e
do Brasil como afrodiaspórico), atitudinal os participantes foram três turmas de estu-
(valorar a influência africana na forma- dantes do 7º ano do Ensino Fundamental.
ção do Brasil) e procedimental (apropria- Um elemento que facilitou a realização des-
ção dos procedimentos em cada etapa, tais sa ação foi o fato de eu ter acompanhado as
como responder ao desafio, jogar, pesqui- três turmas no 6º ano, quando alguns dos
sar, desenhar, dividir tarefas em grupo). pré-requisitos já haviam sido desenvolvidos
As atividades foram desenvolvidas na em situações de aprendizagens anteriores,
EMEF Professora Lilian Maso, vinculada como a sociodiversidade africana.
2 A reportagem utilizada foi “Herdeiro do Império Mali, cantor albino Salif Keita luta contra o preconcei-
to”, disponível no link https://www1.folha.uol.com.br/serafina/2013/07/1302415-herdeiro-do-imperio-mali-can-
tor-albino-salif-keita-luta-contra-o-preconceito.shtml (Acesso em: 27 dez. 2020).
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Quadro 1 – Sistematização das ações da sequência didática Patrimônio cultural: nossa
herança africana
Palavras do Valorizar a
Cultura imaterial: português linguagem como Resolução de
2ª 4 aulas Cultura imaterial
a língua brasileiro de construção desafio e bingo
origem africana histórica
Conhecer
Cultura material:
Máscaras em e distinguir
3ª as máscaras 4 aulas Cultura material Pesquisa em grupo
contexto étnico a produção
africanas
artística africana
Confeccionan-
do máscaras Exercitar a auto-
(interrompida por Produção de ria, criatividade Realizados: obser-
4ª Prevista: 6 aulas Cultura material
conta da suspen- máscaras e a produção vação e desenho.
são das aulas artística
presenciais)
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3.1 - Compreendendo o conceito de
cultura material e imaterial
Com duração de duas aulas, essa eta- lizamos a leitura de texto3 editado pela
pa foi dedicada a compreender os concei- professora com os conceitos e discutimos
tos de cultura material e imaterial. Rea- alguns exemplos.
A segunda etapa foi dedicada à discus- nificam socialmente alguns termos, tais
são da cultura imaterial, especialmente como cafuné, dengo, banguela e em quais
por meio da exposição da influência das contextos nós os utilizamos.
línguas africanas na língua portuguesa fa- O terceiro momento consistiu em uma
lada no Brasil. Com atividades de leitura e atividade lúdica, que nomeei “Bingo das
reflexão em grupo, foram propostos exer- palavras”. Considerando as palavras estu-
cícios de estudo sobre a língua. A partir de dadas na atividade anterior, os estudantes
um banco de palavras, os estudantes infe- selecionaram 9 dessas e escreveram em
riram o significado ao significante, sendo uma ficha de papel demarcada, que cum-
que todas as palavras selecionadas para a priu a função de cartela de bingo. A pro-
atividade tinham origem em idiomas afri- fessora fez o sorteio da palavra e, ao passo
canos. Na discussão com a turma, pergun- que os estudantes eram contemplados e
tei quais palavras eram conhecidas, quais gritavam “bingo”, tinham que dizer o que
eles nunca tinham ouvido falar, o que sig- aquela palavra significava.
3 Para tratar desses conceitos, foram utilizadas informações do Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-
tístico Nacional (IPHAN), órgão vinculado ao governo federal que tem por missão proteger e promover os bens
culturais. Através da pesquisa no site http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/218, selecionei e editei os textos
que foram utilizados na aula.
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3.3 - Cultura material: as máscaras africanas
A terceira etapa teve como propósito em geral, e aprofundamos para o tema das
exemplificar o conceito de cultura material máscaras das sociedades africanas.
por meio do estudo e confecção de másca- Em grupos, os estudantes realizaram
ras africanas. Iniciamos as atividades dis- pesquisa no livro Arte Africana (FEIST,
cutindo o significado social das máscaras 2010) a partir de um roteiro de análise,
com o suporte de um texto4. No período de modo que subtraíssem do material in-
em que a sequência didática foi realizada, formações como: os materiais comumente
o uso de máscaras como bloqueio para evi- empregados na elaboração das máscaras
tar a contaminação por COVID-19 ainda africanas, as cores que se sobressaem, os
não era uma orientação no Brasil, apesar significados sociais, os grupos étnicos e os
disso, os estudantes trouxeram essa discus- contextos de uso das máscaras apresenta-
são. Tratamos do uso social das máscaras, das no livro.
4 Um dos textos base para essa discussão foi “As Máscaras Africanas”, disponível em https://www.gele-
des.org.br/mascaras-africanas/ Acesso em: 27 dez. 2020.
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3.4 - Confeccionando máscaras: interrompida
em virtude da pandemia
Para iniciar o trabalho com as másca- africano e percebessem como essa se reflete
ras, realizei uma pesquisa sobre as más- na produção material.
caras elaboradas por alguns grupos étni-
Em grupos, os estudantes escolheram
cos do continente africano e reuni em um
um exemplar de máscara para confeccio-
conjunto de três amostras: Iorubá (Nigéria
nar. Para a produção da máscara a partir
e Benin), Baule (Costa do Marfim) e Dan
do exemplar disponibilizado pela professo-
(Costa do Marfim). Foram selecionadas
doze máscaras e as imagens impressas jun- ra, era imprescindível observar a imagem,
tamente com um pequeno texto informati- buscando discernir: o tipo de material uti-
vo sobre seu contexto de uso e apresenta- lizado, o formato, as cores, os detalhes em
das aos estudantes. Essa contextualização relevo e os adornos. Para agir com pre-
foi fundamental para que eles compreen- cisão, realizaram o decalque da máscara
dessem a diversidade étnica do continente escolhida em papel vegetal.
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tilizado e cola, para a técnica da papela- lizados experimentos com a técnica de pa-
gem) e vasilhames de material de limpeza pelagem, verificando as camadas de papel
(que seriam utilizados como suporte para a necessárias para garantir a firmeza da peça
papelagem). Também já haviam sido rea- e a quantidade de materiais.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2020.
CANDAU, Vera Maria Ferrão; OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. Pedagogia decolonial e educação
antirracista e intercultural no Brasil. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 15- 40,
abr. 2010.
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FEIST, Hildegard. Arte Africana. São Paulo: Moderna, 2010.
ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: Artmed, 1998.
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