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FORMAÇÃO DOCENTE E CONSCIÊNCIA HISTÓRICA:

UM ESTUDO DE CASO – PIBID/HISTÓRIA/CERES


RESUMO
O artigo apresenta a experiência de plane- das atividades de intervenção com os bolsistas
jamento e intervenção temática das relações PIBID para sala de aula. Nesse trabalho,
étnico-raciais e a Lei 10.639/03 no âmbito do enfatiza-se o protagonismo do professor, a
subprojeto História PIBID, na Escola Estadual construção da consciência histórica no aluno e
Antônio Aladim, na cidade de Caicó-RN, no a formação docente.
ano de 2015. Para tanto, levou-se em conside-
ração na reflexão que se apresenta, o trabalho Palavras-chave: Lei 10.639/03.
da supervisão a cargo da professora Maria de Consciência Histórica. Formação Docente.
Lourdes Pereira de Medeiros no planejamento Relações Étnico-Raciais.

Juciene Batista Félix Andrade (jucieneandrade@yahoo.com.br - Coordenadora PIBID/História/ CERES/UFRN),


Maria de Lourdes Pereira de Medeiros (lourdocamorena@gmail.com - Supervisora do PIBID História EEPAA)

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PLANEJANDO AS INTERVENÇÕES
O ano de 2015 foi dedicado à construção (2012, p. 108) indaga: “como o campo da
de uma experiência de formação de professo- formação de professores e professoras lida com
res ligados à prática de sala de aula e às in- essas rupturas? Como a alteração da LDB pela
tervenções do PIBID, subprojeto de História/ Lei nº 10.639/03 se insere nesse contexto”?
Caicó, no Ensino Médio na Escola Estadual Em primeira demanda, é o protagonismo
Antônio Aladim. do professor na sua escola, em sua sala de aula
Essa experiência foi e tem sido sui generis “que garante singularidade e importância à
naquele espaço ao mostrar como o protago- legislação em referência, mas a natureza do
nismo do professor em sala de aula pode fazer desafio que coloca para o saber escolar alterar
a diferença na construção de uma consciência visões de mundo, redimensionar a memória,
histórica sobre as temáticas relacionadas à criticar mitos e enfrentar preconceitos”
História da África e da Cultura Afro-Brasileira, (COELHO; COELHO, 2013, p. 96). Ainda
em seus desafios históricos específicos. Isso evi- como afirma Coelho (2013, p.96), a escola e
dencia, por parte de alguns profissionais, uma seus instrumentos como “o discurso docente,
preocupação em se trabalhar a Lei 10.639/03 o currículo escolar, os seus procedimentos, a
no cotidiano da escola e do aluno, de forma literatura didática” reproduzem discursos e
que, ao abordá-la através de discussões de con- reforçam dada visão europeizante corrente nas
teúdos e da realidade social dos alunos, está-se temáticas relacionadas ao negro e ao indígena.
renovando uma discussão historicamente mar- Também aponta em sua análise que o professor
ginalizada, sendo carente de uma abordagem ao trazer o debate atual pautado pelas referi-
crítica e pontual. das leis acima para a cultura escolar permite
Partindo desse pressuposto, compreende-se “alterar visões de mundo, redimensionar me-
a importância das aulas de História como ponte mória, criticar mitos e enfrentar preconceitos”
para a construção do conceito de consciência (COELHO, 2013, p. 96).
histórica, entendido como aquele que “funcio- Partindo dessa perspectiva de análise, o obje-
na como um modo específico de orientação nas tivo deste relato de experiência é problematizar
situações reais da vida presente, tendo como como a atuação da professora supervisora do
função específica ajudar-nos a compreender a subprojeto História/Caicó, Maria de Lourdes
realidade passada para compreender a reali- Pereira de Medeiros, do Ensino Médio, lotada
dade presente” (GARCIA; SCHMIDT, 2005, na Escola Estadual Antônio Aladim, constrói
p. 300-301). Por outras palavras, os alunos da um espaço duplo na formação dos alunos,
escola quando estimulados adequadamente seja os discentes regulares daquela instituição
serão capazes de fazer conexões entre os ou os bolsistas PIBID ao trazer para discussão
acontecimentos do passado e o seu universo as temáticas relacionadas à História da África
contemporâneo e cotidiano. e à Cultura Afro-brasileira. O espaço duplo
A convocatória da Lei 10.639/03 e o con- de formação dá-se da seguinte forma: ao se
ceito de consciência histórica vem a se somar planejar e discutir os temas das intervenções,
ao relato problematizado das atividades pro- os alunos em formação para docência são sub-
gramadas e executadas no âmbito do PIBID, metidos a um processo de reflexão de ruptura
subprojeto História, na referida escola Antônio epistemológica.
Aladim no ano de 2015. Para o momento, es- É que a lei 10.639/03 direciona a per-
tamos abordando apenas o planejamento para cepção de que a cultura negra é “tratada de
as intervenções na escola. Diante disso, Gomes maneira desconectada com a vida social mais

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Com relação especificamente a África, as
ampla” (GOMES, 2012, p. 104). Por outras intervenções objetivaram refletir acerca da
palavras, o docente em formação percebe que diversidade das produções culturais huma-
nas na história, a partir de um olhar sobre
há um descompasso entre o seu cotidiano e
as civilizações africanas, como também
o que é trabalhado nas escolas, por meio do conhecer aspectos de algumas culturas da
currículo escolar, um modelo monocultural, África através da arte, especificamente, a
escultura. Diferenciando as de Benin, Ilê
que não comporta a diversidade cultural e e Ifê de acordo com as visões de mundo.
étnico-racial em sala de aula. Também, ao (MEDEIROS, 2016. Caicó. Entrevista
construir esse tipo de abordagem para sala de concedida à Juciene Andrade).

aula possibilita aos alunos a compreensão de No planejamento de intervenção para a


como as diferenças culturais entre homens e turma do 2º Ano do Ensino Médio, o tema
mulheres são naturalizadas. trabalhado foi África: terra de muitas di-
O movimento de intervenção começou vindades e Orixás. A abordagem acerca do
com o processo de planejamento docente, paradigma religioso em sala de aula permitiu ao
com os bolsistas, em que se buscou elencar aluno entrar em contato com as matrizes afri-
quais eixos temáticos seriam discutidos com canas do crer. Necessariamente, esta temática
os alunos da escola. No ano de 2015, optou-se não é considerada nova, porém “se traduzem
trabalhar com a temática étnico-racial, sendo no novo para educadores entorpecidos pelo
a África o tema escolhido nos aspectos da olhar hegemônico de inspiração eurocêntrica
arte, religião, literatura, dança e culinária. As (...)” (SILVA, 2005, p. 121).
intervenções ocorreram nas turmas de 1º, 2º e Em conversas problematizadoras acerca
3º Ano do Ensino Médio. de seus planejamentos, a professora supervi-
A preocupação da supervisão e dos alunos sora apontou:
bolsistas se pautou pela construção de uma Abordando-se além da questão religiosa,
relação de proximidade ou pontes entre os o contexto em que o continente africano
estava inserido, no período da colonização,
conteúdos e o cotidiano do aluno na atualida- fazendo um paralelo com o passado desse
de. Como exemplo, temos que, na intervenção continente e o Brasil, a partir da cultura afro-
-brasileira. Foram apresentados os Orixás
realizada no 1º Ano do EM, da citada escola,
e sua influência e presença no cotidiano
o tema abordado foi o surgimento dos brasileiro, atentando para o conhecimento,
seres humanos. As questões norteadoras respeito e reconhecimento, relacionado as
tradições religiosas africanas com a católica.
construídas para mobilização dos alunos em (MEDEIROS, 2016. Caicó. Entrevista con-
primeira instância foi trabalhar: O que os cedida à Juciene Andrade).
homens de hoje podem fazer e o que os
da Pré-História não podiam realizar? Ao se planejar essa abordagem, a professora
Essa discussão comparativa, a partir da expe- Maria de Lourdes Pereira de Medeiros e os
riência do aluno hoje, permitiu que pudessem bolsistas buscaram construir pontes entre a ex-
perceber a categoria do tempo como uma periência histórica africana e brasileira. Inserir
evidência do processo de hominização. Além no campo do ensino aprendizagem a relação
disso, incorporar nestas discussões as narrativas direta entre o exercício do crer no continente
dos mitos de criação, seja ele iorubá ou o mito africano e sua herança religiosa em território
cristão, possibilitou aos alunos perceberem as brasileiro. Segundo Gomes e Munanga (2006,
diferenças entre as sociedades. p. 139), a religiosidade negra é diversa, “No
De acordo com a professora supervisora Brasil, os nossos ancestrais africanos enriquece-
Maria de Lourdes Medeiros: ram a nossa cultura com diferentes expressões e

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Os ritmos trabalhados foram: semba, kizum-
formas de se relacionar com o mundo mágico ba, lundu, ahouach, capoeira e kuduro. Outro
e sobrenatural”. Ao se construir essa estratégia tema trabalhado foi a culinária africana e
sua importância para a cultura brasileira,
de abordagem sobre os signos da religiosidade
(sic) foram vistos vários pratos culinários,
africana e, por conseguinte brasileira, se institui ingredientes e modos de fazer, como também
um espaço em que podem ser retrabalhados os sua influência-presença na mesa do brasileiro.
Como material didático foram confecciona-
equívocos reforçados por uma cultura escolar dos um álbum e um caderno de receitas. (...)
de matrizes teórico-metodológicas europeias. a partir dos trabalhos dos pibidianos, pode-se
Segundo Silva (2005, p. 125), o temor dos refe- entender como a cultura africana é rica e
está presente no cotidiano dos brasileiros.
rentes da população afrodescendente “alcançou (MEDEIROS, L. 2016. Caicó. Entrevista
os bancos escolares e acabou sendo responsável concedida à Juciene Andrade).
por uma série de erros que se mantiveram em
uma espécie de círculo vicioso entre educadores Dos estilos, ritmos e danças de experiên-
e educandos”. Sendo reforçadores de uma prá- cia africana a semba ou masemba é um dos
tica religiosa brasileira, a católica, e excludentes modos musicais mais populares de Angola
com outras formas de religiosidades entendidas e significa umbigada. Em tradições ango-
como seitas, a exemplo do candomblé e da lanas posteriores, um estilo de dança, em
umbanda. Esquece-se de abordar que as reli- que os movimentos incorriam ao encontro
giões de matrizes afro-brasileiras, formaram-se dos corpos masculinos e femininos. Assim
num sincretismo, como afirma (GOMES; como o semba, Kizomba, lundu, ahouach e
MUNANGA, 2006, p. 142), “na fusão de di- kuduro são danças e ou ritmos originários da
ferentes elementos culturais com o catolicismo, África, mas que vieram para o Brasil trazidos
e, em grau menor com as religiões indígenas”. pelos negros de tradição angolana, banto e
Dessa forma, o papel do professor é que sofreram releituras de adaptabilidade
desconstruir estes lugares, tomando para si o ao cotidiano negro no Brasil. Assim como
protagonismo dessa ação. os ritmos/danças, a culinária foi um tema
Um terceiro tema abordado no planeja- escolhido pela proximidade com que pode
mento das intervenções foi a compreensão de ser trabalhada o cotidiano do aluno e dessa
que a cultura brasileira está fortemente ligada forma, instrumentalizar e fomentar a cons-
às raízes africanas, e elegendo-se a música e a ciência histórica. Este conceito é necessário
culinária como espaço de reflexão e percepção para que se possa quebrar preconceitos e
dessa diversidade cultural. visões estereotipadas acerca da tradição
Segundo a professora supervisora: africana ou afro-brasileira.

Figura 1 - Alunos elaborando material didático


Fonte: Maria de Lourdes Pereira de Medeiros. Subprojeto História – Caicó. Escola Estadual Antônio Aladim

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Nas intervenções, tanto os bolsistas quanto narrativa da escravidão como única bagagem
os alunos da escola, metodologicamente foram do legado africano e afro-brasileiro, mas a ên-
incitados a pesquisarem comidas africanas e a fase em aspectos históricos, sociais e culturais
construírem um livro de receitas. Foram pes- que ficam à margem do trabalho curricular.
quisadas receitas culinárias da África do Sul, Dessa forma, como aponta (GOMES, 2012,
do Egito, Etiópia, Marrocos, Angola, comidas p. 106), a produção de um outro paradigma
como: arroz amarelo, pastel doce com banana, epistemológico implica:
bolinho-de-grão-de-bico, baba ganoush, questionar as concepções, representações
Wot, Ingera, bolo marroquino, doce de bana- e estereótipos sobre a África, os africanos
negros brasileiros e sua cultura construída
na respectivamente. histórica e socialmente nos processos de
O resultado da intervenção foi: a aplica- dominação, colonização e escravidão (...).
bilidade da lei 10.639/03 na condição de
convocar a temática africana e afro-brasileira Portanto, resulta num trabalho de descons-
para sala de aula, debater e instaurar outro trução dos lugares tradicionalmente voltados
ambiente de ressignificação e olhares sobre a para a história dos africanos e afro-brasileiros.
cultura negra, demonstrando que no cotidiano Isso começa pela construção de pontes entre o
o exercício do crer, das danças, ritmos, músicas, cotidiano do aluno e sua consciência histórica
culinária representam uma herança profunda em relação com uma visão problematizadora
da experiência negra no Brasil. Não apenas a dos eventos históricos.

TEACHING TRAINING AND HISTORICAL CONSCIOUSNESS: A CASE STUDY - PIBID/HISTORY/CERES

ABSTRACT
This article presents the experience of PIBID grantees for the classroom was taken into
planning and thematic intervention of ethnic- consideration in the reflection that is presented.
racial relations and Law 10.639/03 within the In this work, the emphasis is placed on the role
scope of the PIBID History subproject, at the of the teacher, the construction of historical
Antônio Aladim State School, in the city of consciousness in the student and teacher training.
Caicó, Rio Grande do Norte state, in the year
2015. To do so, the work of supervision by the Key-words: Law 10.639/03. Historical
teacher Maria de Lourdes Pereira de Medeiros in Consciousness. Teacher training. Racial
the planning of the intervention activities with the Ethnic Relations.

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