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E N T R EVIS TA

PROFESSORA
GENY GUIMARÃES
Professora do Ensino Básico Técnico e Tecnológico (EBTT) de Geografia no CTUR/UFFRJ,
mestra em Ciências Sociais pela UFRRJ e doutora em Geografia pela UFBA, Geny Ferreira
Guimarães é referência para as Geografias Negras no Brasil. A partir da sua experiência
no magistério, no chão de escola desde 1998, vem construindo um vasto repertório de
enegrecimento da Geografia, pensando a partir do que tem cunhado como Geo-grafias Negras.
A linguagem de toda entrevista é aquela que nos coloca em um ambiente de conversa cotidiana
e alcança tanto o público acadêmico quanto para além dos muros da universidade, assim,
falamos sobre seu processo de tornar-se professora negra, as geo-grafias como expressão
de várias linguagens e existências que grafam o mundo, como o currículo de Geografia é
eurocentrado e desfaz de outras possibilidades de pensar, o papel fundamental da Lei n°
10.639 para além da Educação, entre outras questões pertinentes ao espaço escolar. Em todo
o momento, Geny nos traz provocações sempre ancoradas em sua experiência, exercendo
essa perspectiva “desde dentro” como estratégia de enegrecer a Geografia e a sala de aula.
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GIRAMUNDO: Geny, você poderia nos contar um quer que, profissionalmente, as suas aulas e suas
pouco sobre os encontros entre sua trajetória pessoal pesquisas sejam enegrecidas, numa questão
e acadêmica na Geografia? Pensando nos termos de cronológica, é muito mais recente. Porque eu sou,
Neusa Santos Souza, em sua obra “Tornar-se Negro”, hoje, uma mulher de cinquenta e um anos, então,
como foi tornar-se professora negra? há uns vinte anos atrás, eu tomei essa decisão: ou
abandono a Geografia, ou a Geografia vai precisar
PROF.A GENY GUIMARÃES: Quando eu penso, em ser enegrecida para eu poder me reconhecer
termos da minha trajetória, seja ela pessoal, nela. Mas não bastava enegrecer a Geografia.
acadêmica, profissional, no momento que eu vivo, Eu precisei enegrecer a Geografia de maneira
não consigo diferenciar esses lugares. Obviamente afirmativa, para que eu me sentisse confortável.
que, no passado, eu tive todo um alcançar de Então esse tornar-se negra, esse encontro, é o
projetos e de objetivos enquanto a pessoa Geny, momento em que descubro que esse corpo de uma
porque eu ainda não era acadêmica. Mas a partir pessoa, de uma mulher negra na sociedade é, ao
do momento que existe esse encontro da Geny que mesmo tempo, uma referência em sala de aula e
é uma mulher negra, que é uma mulher negra e que a minha aula não está dissociada do que eu
suburbana na cidade do Rio de Janeiro; que é uma sou. Eu tenho múltiplas identidades e eu não posso
mulher negra, suburbana no Rio de Janeiro e que abafar nenhuma delas para ser quem eu sou na sala
faz parte da família que ela faz: eu sou o que eu sou, de aula. Na sala de aula, eu continuo sendo uma
hoje, por conta do que foi o meu pai na minha vida, mulher negra, uma professora mulher negra; uma
a minha mãe na minha vida, meus avós, os meus professora, mulher negra e suburbana na cidade do
irmãos, onde eu cresci. Todos esses elementos Rio de Janeiro. Esse encontro, depois que ele se
constituem quem é a Geny, hoje, somados à minha faz, é indissociável. Vocês citam “Tornar-se Negro”,
trajetória profissional e acadêmica. Quando eu da Neusa Santos. Mas eu também tenho muito
menciono essas duas abordagens e junto esses apego com a Nilma Lino Gomes, principalmente
dois caminhos da Geny mulher negra e acadêmica, com o livro “A Mulher Negra Que Vi de Perto”,
daí é que surge o clique de conscientização, do em que ela conta sua trajetória de como é ser
tipo: “É, sou uma pessoa negra nessa sociedade”. uma professora universitária, sendo uma mulher
Isso se dá com muita força na infância e na escola. negra. Penso que existem muitas coincidências
É na escola que você tem o primeiro clique de com coisas que aconteceram com ela e comigo,
que: “Será que tem alguma coisa errada comigo?”, uma referência na minha trajetória de tornar-
“Ou é com o mundo?”, “Ou é com a escola?”, “Ou me uma mulher negra e uma professora negra
é com o quê?”. E você não tem noção do que é, em sala de aula, na sociedade na qual vivemos.
porque você é criança. Depois, quando você se Por fim, perceber na minha própria fala o quanto
torna adulta e olha para trás, aí você vê o quanto, algumas palavras são apresentadas de forma
de fato, o tempo todo botaram o dedo na sua cara repetida, talvez seja uma forma de manter o eco
e disseram: “Você é uma pessoa negra.”, “Você é tão importante para algumas sociedades africanas
negra.”. Eu lembro até daquele poema da Victoria e suas tradições, principalmente de contação de
Santa Cruz: “Negra, negra, negra, negra, negra, histórias, assim sigo, ecoando o que aprendo e o
negra, negra”. São vários tons com que falam que sou neste mundo.
“Você é negra” ao longo da sua trajetória, e você
também consegue perceber o quanto, de fato, GIRAMUNDO: Considerando, então, esse percurso
a sociedade te vê enquanto uma pessoa negra. como professora, como pesquisadora, geógrafa
As muitas portas fechadas, os muitos “nãos”, as e mulher negra, como essa ideia de geo-grafias,
muitas exclusões… Isso ocorreu de fato na minha com hífen, e geografias negras surgiu? Você falou
vida, porém o momento em que eu resolvo que de enegrecer as suas aulas, poderia falar mais
essa mulher negra e essa Geny negra também sobre isso?

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PROF.A GENY GUIMARÃES: Na verdade, em todas Evaristo, professora da disciplina Literatura Afro-
as respostas que eu der aqui, voltarei a primeira brasileira. Também descubro a Geni Guimarães,
pergunta, porque minha trajetória ainda está em eu que tenho o mesmo nome que essa diva, a
curso. Então, quando vocês perguntam sobre a ideia primeira escritora negra a receber um Prêmio
de Geo-grafias, eu lembro de quando e como escolhi Jabuti em nosso país pelo livro “A Cor da Ternura”.
a Geografia como um curso a fazer na faculdade. Eu li esse livro, me apaixonei, e foi quando resolvi
Eu gosto de contar essa história porque nós, que que levaria para a sala de aula as literaturas
somos de famílias negras, não temos muitas vezes a negras: negro-brasileira, negro-diaspórica, negro-
tradição acadêmica familiar, muitos de nós fomos os africana. Se essa literatura mudou a minha vida,
primeiros, as primeiras, a entrarmos numa faculdade, aos 36 anos, imagina nas mãos de adolescentes,
uma realidade desconhecida para muitos de nós. que estão ali descobrindo tudo? Porque eles vão
Nessa época, eu fazia estágio em um banco e estava ter uma possibilidade, muito mais jovens de trilhar
terminando um curso de técnicas de secretariado no caminhos e fazer escolhas.
Colégio Central do Brasil, no Méier. Eu e uma amiga, A primeira vez que eu trabalhei a Geografia
folheando o jornal, vimos assim: “Amanhã é o último & Literatura Negra, foi realmente com a Geni
dia de inscrição no vestibular!”, e nos perguntamos: Guimarães e com o livro “A Cor da Ternura”,
“Vestibular, o que é isso?››. (Estou falando de mais um livro autobiográfico que fala sobre como foi
de trinta anos atrás.) Quando chegou na hora de crescer numa fazenda, desse olhar não só para
preencher a ficha, eu me deparei com a pergunta: o espaço geográfico rural, como também para as
“Qual área escolher? E agora?”. A gente não tinha descobertas da autora quando chega na escola e
essa conversa dentro de casa, “O que você vai fazer que posteriormente, também se forma professora.
quando você terminar o seu ensino médio?”. E aí, eu Para a disciplina de Literatura Afro-brasileira, eu
virei para ela e falei: “Não sei o que eu vou escolher. resolvi escrever uma resenha desse livro, que
E agora?”, e ela “O que você gosta?”. Então, eu apresentei para a Conceição e onde ela escreveu
disse: “Eu gosto de Geografia.”. E foi assim que eu num cantinho do texto: “Guarde, que ainda lhe será
escolhi minha carreira, e realmente é algo que até muito útil.”. Eu peguei a resenha e a transformei em
hoje sou muito apaixonada. um artigo apresentado no Encontro de Professores
Eu fiz o curso de Geografia trabalhando, de Literaturas Africanas, em 2007, na UFRJ. De lá
então eu não podia estar plena na universidade e para cá, eu não parei mais. Comecei a trabalhar
muitas vezes chegava atrasada e saía antes das mergulhando nas literaturas negras, trazendo
aulas. Em nenhum momento passou pela minha para as aulas de Geografia, trabalhando de
cabeça desistir, mas quando completei dez anos de maneira interdisciplinar, buscando localizar essas
formada, veio a “DR”, o conflito com a Geografia. palavras no nosso espaço, também espacializar
Eu não estava inserida em grupos de pesquisas, as palavras e encontrar o que existia de conexão,
em nada, e pensei: “Gente, o que é a Geografia de geograficidade nas letras, nas palavras, nos
para mim?”. Eu estava dando aula e gostava, mas contos e, principalmente, nos poemas. Nesse
a Geografia não fazia muito sentido na minha vida momento, eu ainda não tinha consciência de que
porque, geralmente, as estatísticas e os textos que meu projeto principal era o de Geo-grafias Negras,
nós lemos colocam o negro, a negra, de maneira o “geo” hifenizado com “grafias”. Até então eu
inferiorizada, pejorativa. chamava de Geografia & Literatura Negra (com o
Então, eu me aproximo de outras áreas do & de conectividade mesmo), no singular ou plural,
conhecimento - História, Sociologia, Antropologia - ou chamava de GeoNegras, Geografia & Literatura
até que ganhei uma bolsa de estudos para fazer um Negra Antirracista. Até que chegou o momento em
curso em “História, Cultura e Literaturas Africanas e que me deparei com essa informação, assim, muito
Afro-brasileiras”, por volta de 2006, onde descubro nítida na minha frente: eu não trabalho só a literatura.
as literaturas negras pelas mãos de Conceição Trabalho várias outras expressões que não só são

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artísticas, mas são de linguagens, expressões da Quando eu começo a identificar uma racialidade
nossa existência no mundo e pelas quais a gente afirmativa negra, por meio das literaturas negras,
se comunica. São as várias grafias, são as nossas eu penso: existe uma dimensão racial do espaço
marcas nesse mundo não só a partir de uma escrita, em tudo que eu faço. Para discutir isso na
mas também da oralidade, da ludicidade, das Geografia, eu preciso transformar, de maneira
brincadeiras, das conversas, dos encontros. Então didática, pedagógica, tudo o que eu leio e que é
comecei a perceber, principalmente ao me deparar teórico e só posso fazer isso quando monto uma
com o trabalho magnífico da Azoilda Trindade, aula, quando pego um trecho de música, de um
“Os Valores Afro-brasileiros Civilizatórios”, que poema. Então, essa ideia de geo-grafia ainda está
a gente tem, ali, uma gama de elementos em em construção, porque não acredito que eu tenha
circularidade, que podemos usar e abusar porque um projeto finalizado hoje. Tenho um projeto que
nós somos aquilo tudo. Nós somos ludicidade, está em curso, que foi recebendo vários nomes até
corporeidade, ritmo, dentre outros elementos. Há eu chegar nesse que agora é minha grande paixão:
também o trabalho da já citada Victoria Santa Cruz, “geo”, hifenizado, “grafias” negras. Gosto muito de
uma literata peruana, que tem um livro belíssimo, trabalhar pensando que a hifenização liga, junta.
que eu gosto de usar, chamado “Ritmo: O Eterno Somos sujeitas e sujeitos hifenizados, porque não
Organizador”. Ela traz a perspectiva das divindades, temos uma única identidade nesse mundo, temos
da religiosidade, da religião, porque nós somos múltiplas identidades e fui elaborando isso por meio
tudo isso, não somos só um corpo-matéria, mas o das leituras de Stuart Hall, por exemplo. Quando
visível e o invisível, nós somos as nossas intuições. juntamos Geografia e Literatura, o ideal é que seja
Todo esse trabalho de “geo”, que hoje eu chamo de uma interdisciplinaridade horizontalizada, que eu
Geo-grafias Negras, foi muito intuitivo no início. Eu trago a partir dessa hifenização, de juntar essas
não sabia muito o que fazer ou por onde começar duas áreas. Por isso minha dedicação e estudo
porque eu não tive referências a respeito desse tipo precisam ser tão densos tanto na Geografia quanto
de trabalho, então, eu levava para a sala de aula o na Literatura.
que pensava poder dar certo mas, principalmente, Sobre o enegrecimento, acho que já fui dan-
o que aquecia o meu coração, tipo: “Ah, eu adorei do algumas pistas. No início, quando eu comecei a
isso aqui! Eu acho que os alunos vão gostar!”. Eu trabalhar a literatura em sala de aula, eu não sabia
preparava uma aula baseada no que me movia como fazer. Simplesmente pegava um trecho de
enquanto pessoa, o indissociável na minha vida: um poema de um literata negro, de qualquer parte
mulher negra e professora negra, ou seja, mulher do mundo, que eu achava ser um assunto que con-
negra professora. A ideia de Geo-grafias não surgiu versava com o tema da aula e escrevia em um can-
num momento específico, do nada, mas a partir de tinho do quadro, que eu chamava de cantinho da
um acúmulo de momentos, somatório de muitas poesia. Depois fui avançando e vendo outras possi-
experiências em trabalhar com várias grafias bilidades, ampliando, sistematizando e planejando
espaciais somadas às literaturas negras. É uma atividades mais elaboradas. Inicialmente era meio
trajetória que não nasce como um projeto para sala que uma intuição, depois, eu fui pegando essas
de aula, mas ao contrário: as minhas práticas na informações todas e sistematizando, mas sempre
sala de aula se transformam em projetos, através pensando no espaço geográfico formado e transfor-
de experimentações, tentativas e erros. Vamos mado por corpos negros enquanto protagonistas.
observando os nossos passos, os passos das turmas Hoje, para eu falar da literatura negra, eu vou trazer
e percebemos o que funciona ou não. Por isso que autores africanos negros, autoras negras, mesmo
hoje, eu venho desenvolvendo metodologias para que digam: “Mas Mia Couto escreve quase como
que outros possam ter referências. um negro!”. Quase como um negro não é negro.
Aí, eu transformei aquela “DR” em “DRE”, Para esse enegrecimento eu tomo todo um cuidado
que eu chamo de dimensão racial do espaço. de trazer, não exclusivamente, mas principalmente

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referências negras para a sala de aula. Eu brinco estabelecido como necessário para ser reconhecido
com meus estudantes sobre a minha preferência um trabalho acadêmico, o texto é meu. A pesquisa e
pelas obras de Milton Santos!”. Todos os estudantes a escrita negra possuem razões de ser específicas
que passam pelas minhas mãos, acabam sabendo e estéticas próprias. Então, coloco o que eu quiser
quem é Milton Santos: “Ah, o geógrafo preferido da dentro do texto, escrevo da maneira que acho
professora Geny!” e acabam descobrindo a razão conveniente e apropriada, da mesma maneira que
da minha preferência quando trago os conhecimen- eu gosto de fazer lives e convidar a minha irmã, que
tos desse grande geógrafo. Eu não consigo mais não é acadêmica para assistir; meu irmão, minha
ver as minhas aulas sem enegrecimentos. Estive vizinha, amigos, pessoas diversas que podem
recentemente numa atividade que foi promovida acompanhar algo que é acadêmico, e saírem
por uma turma de graduação em Biologia, da Uni- felizes da vida dizendo: “Ah, eu gostei muito do que
versidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Eles es- você falou!”, gostaram e puderam acompanhar.
tavam apresentando o Jardim Botânico da Rural e Penso que é isso que precisa ser a universidade
também de outros lugares. Em um dado momento, e a academia, um diálogo que não é separado da
ao falarem do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, sociedade, até porque faz parte da mesma. Como
eles citaram Mestre Valentim e eu pedi a palavra: é que a gente consegue fazer essa diferenciação
“Eu gostaria de acrescentar que Mestre Valentim foi do que é sociedade e do que é universidade, do
um grande nome, uma grande personalidade negra que é sociedade e do que é acadêmico, e do que é
da nossa história.”. Contei para eles a história do escola e do que é acadêmico? Mas essa hierarquia
Mestre Valentim, de sua importância na escultura existe e, mesmo que estejamos dentro do âmbito
nacional, enquanto uma personalidade negra da do ensino básico, técnico e tecnológico, e em
nossa história, e das marcas-assinaturas em suas instituições consideradas referências, ainda somos
esculturas. Eu não consigo, independente do as- da educação básica. Isso ainda tem um peso
sunto que eu traga para uma aula, deixar de tra- muito grande e, no meu caso, ser da educação
zer emergentes nomes negros, da Geografia ou de básica e trabalhar as geografias negras, o peso
qualquer outra área. ainda ficava maior, até recebermos os retornos.
Quando a 10.639 é sancionada, passamos a ter
GIRAMUNDO: E falar de enegrecimento das aulas traz legitimidade no que fazíamos. E ela já completou
para o centro do debate outra escala da experiência agora a maioridade, dezoito aninhos. Desde que a
docente, a da formação dos profissionais no nível 10.639 foi sancionada nos agarramos a ela porque,
superior em diálogo com a Lei 10.639/03 e 12.711/12. primeiro, o texto do relatório, escrito à várias mãos
Destas leis resulta um legado de transformações na com relatoria de Petronilha Beatriz Gonçalves e
própria constituição do espaço universitário, uma Silva, depois a percepção de que por trás de suas
alteração de perfil de profissionais, pesquisadores e mãos existe todo um histórico do movimento negro
professores que, de várias maneiras, realimentam a em suas diferentes reivindicações. As pessoas
educação básica. Gostaríamos que você falasse um pensam que a 10.639 é só o que é apresentado
pouco sobre isso. de uma página, de alguns parágrafos, mas não.
A 10.639 é também o conjunto de resoluções, o
PROF.A GENY GUIMARÃES: Eu penso que, da mesma Plano Nacional de Educação e as diretrizes para
maneira que existe essa fissura, esse falhamento, a educação infantil, para o ensino fundamental,
entre uma Geografia Física e uma Geografia para o ensino médio, para uma educação em uma
Humana, há também uma fissura em conceber graduação, pós-graduação e pós-doc. Em todos
a Geografia Escolar e a Acadêmica. Eu adoro os níveis de ensino, em todas as disciplinas e em
dizer que eu não tenho rigores acadêmicos, não todas as instituições de ensino, sejam particulares
no sentido de recusar os formatos e normas da ou públicas. Eu considero a 10.639 um marco, um
ABNT, mas pensar que dentro do formato que é divisor de águas, uma lei que, a princípio, é tida

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como da educação, mas que entendo como uma lei como, também, muitos estudantes negros. Então,
estrutural da sociedade. Ao modificar a educação, vejo essas duas leis como complementares e não
que é uma mina de ouro para muitos empresários, as considero como só da educação, elas estão
para muitas corporações nacionais e internacionais, mexendo com as estruturas da nossa sociedade, e
mexe-se também com as possibilidades de ganhos eu acho que esse é um encontro perfeito, contudo
financeiros. Vejamos, por exemplo, a maneira pela que seja breve, pois não gostaria de termos essas
qual as editoras funcionavam até então, excluindo leis eternamente, pois em um longo período
produções negras, deixando-as na gaveta. Com a significará que a sociedade não mudou o quanto
Lei 10.639, aumenta-se a procura por um material precisa se depender de leis para determinadas
que até então era, não vou dizer inexistente, porque questões, como no caso, a reparação.
existe um movimento negro educador produzindo
material desde sempre, mas que fossem materiais GIRAMUNDO: Você acha que existem, ainda,
formais, legitimados por grandes editoras. A partir do algumas lacunas em relação a essas duas leis?
momento que essas editoras começam a produzir O que ainda precisa avançar nessa ocupação de
referências e materiais negros, promover literatas, espaços, de currículos, o que ainda está por fazer,
pesquisadores/as negros/as, quantas pesquisas a partir da sua perspectiva, da sua experiência?
negras que não eram antes publicadas, passam a
ser? Isso mexe com as estruturas da sociedade, PROF.A GENY GUIMARÃES: A partir da minha
como se fosse um efeito dominó, de outras áreas perspectiva, não vejo lacunas nas leis em si,
corporativas começarem a pensar na população mas no uso delas. A lei 10.639 é obrigatória, mas
negra, talvez não necessariamente por estarem ainda percebemos que utiliza quem quer. Por isso,
conscientizadas da relevância e do respeito que entendo que a lacuna está na sociedade, que
precisa ter uma população negra, mas vendo escolhe a lei que vai seguir ou não, sobretudo em
enquanto cifra. Agora, com a 12.711, aí a gente tem uma sociedade racista, em que o antirracismo e
uma combinação fantástica porque, não só temos a as formas de reivindicação e reparação não são
possibilidade de produzir uma Geografia enegrecida, bem vistas. Reparar para um grupo significa a
como temos ali o público atento, sedento e faminto diminuição dos privilégios para outros. Não estou
por determinadas conversas que antes eles não nem dizendo que o privilégio deles vai acabar, mas
tinham. E cada vez mais com o acesso de negras e diminuir, porque agora a gente precisa dividir o bolo.
negros não só nos espaços universitários, mas nos E dividir o bolo é muito difícil para um determinado
espaços da educação básica cuja seleção é feita grupo que não sabe o significado do não, porque
por concursos que possuem cotas, começamos nunca antes viveu o não na sua trajetória. Nós,
a enegrecer não só o conteúdo, mas também que já nascemos com um não, estamos brigando
quem está sentadinho, ali, estudando. Quantas pelo sim, por uma outra forma de ver no mundo,
universidades, colégios técnicos, de aplicação e de ver a sociedade e estar nesse mundo. Eu não
IF’s estão enegrecendo no seu corpo discente? estou arriscando nada, porque eu já sabia que era
Hoje, quando eu falo de uma Geografia enegrecida, “não” para mim e o que eu estou arriscando, na
talvez eu não tenha mais tantos problemas como verdade, é o avanço, a gente paga para ver e se
tinha há tempos atrás, porque eu estou falando expõe. Então, eu penso que as leis são textos que
com um discente que é negro. O diálogo flui e flui podem melhorar. Todo texto pode melhorar. Mas o
muito. Aqueles que talvez sintam algum tipo de que precisa ser mexido, muito mais do que a lei,
estranhamento na minha aula e no conteúdo que inclusive porque elas ainda são desconhecidas
eu levo, atualmente, já posso considerar como por muita gente, é a sociedade. Enquanto a gente
minoria, porque a sala de aula no Colégio Técnico não conseguir resolver alguns problemas que são
da Rural é bem diversa. Em muitos estudantes é consequências do racismo, de fato essas leis serão
nítido, para mim, sua ascendência indígena direta insuficientes para resolvermos o problema como

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um todo. Por isso que a 12.711 vai ser prorrogada, coletivo. Então, mesmo que seja uma interpretação
porque findaria agora, em 2021. Mas o problema foi minha, a partir dos meus olhos e da minha leitura,
resolvido? Não. Ainda precisamos desse paliativo eu sei que outras pessoas estão na mesma
que é a 12.711; paliativo porque ela, sozinha, não direção, porque passam pelas mesmas situações,
resolve o problema. A gente só conseguiria resolver ou por situações muito parecidas e próximas. Esse
o problema da sociedade eliminando o racismo. diálogo é permanente e em sua direção levamos
Será que a gente consegue? Gosto muito do que as nossas referências, então, eu nunca estou
Carlos Moore nos traz, sobre o racismo enquanto sozinha. Estou com bell hooks, com Carolina Maria
um processo histórico. Já outras pessoas dirão que de Jesus, com Conceição Evaristo, com Lia Vieira
o racismo surgiu com a colonização. Tanto faz. A e muitas outras. Na construção do método, eu
questão é: hoje a gente convive com um racismo estive muito perto da escrita de Guerreiro Ramos,
que não foi criado ontem e ainda levaremos muito porque essa expressão é dele. Por volta dos anos
tempo para resolvê-lo. Enquanto isso, o que a quarenta, cinquenta (do século XX), ele promoveu
gente faz? A gente se fortalece. A 10.639 e a 12.711 uma reviravolta na Sociologia e trouxe a discussão
são leis de fortalecimento, são leis reparativas e de da redução sociológica como crítica a uma ciência
fortalecimento dessa população enegrecida, que que só falava da sociedade como um todo a partir
não chegaram em vários espaços e que, a partir de um grupo tratado como modelar. Ele traz o negro
dessas duas leis, conseguem chegar. Eu não desde dentro. Ou seja, outra perspectiva diante de
cheguei por essas leis porque o meu processo é algo que está cristalizado e que tem um peso muito
anterior a elas, mas eu teria muito orgulho, hoje, grande porque é consagrado: um cânone. Eu não
de dizer que entrei no concurso público do CTUR brigo com o cânone, mas dialogo com ele e preciso
(Colégio Técnico da UFRRJ) por cota, que entrei de um afastamento dele porque chego à conclusão
na universidade por cota. Porque os cotistas estão que, esse cânone já me colocou na fogueira e me
fazendo história, estão quebrando muitas algemas colocou nos porões de navios e fez o mesmo com as
de imposições sociais, estão rompendo com muitos minhas ancestrais; ainda, me chibatou até a morte,
laços, estão avançando. Quando uma pessoa assim como fez com os meus ancestrais, isso tudo
negra avança, é uma família inteira que avança são dores e traumas geracionais que, eu ainda
junto. O que eu tenho plena consciência, certeza tenho. Por isso, esse individual é permanentemente
porque já estou vendo acontecer que é uma coletivo, porque eu não sou a primeira e não vou ser
população negra, a cada dia que passa, muito mais a última nesses diálogos múltiplos e, principalmente,
fortalecida, porque vem ocupando espaços, antes, intergeracionais. O “desde dentro” representa um
inimagináveis de estarmos ocupando. É nisso que posicionamento político, de uma mulher negra que
eu confio. é professora negra, que é militante, que não abre
mão desse referenciamento em tudo que faz e que
GIRAMUNDO: Então a gente pode dizer que essa se apresenta de forma afirmativa, fora do cânone.
perspectiva “desde dentro”, que você propõe, não O “Desde dentro” representa também os meus
é apenas uma perspectiva individual, mas uma ancestrais, quem veio antes de mim, e as dores
perspectiva coletiva, é isso? deles que também são minhas e de todo um coletivo.
O “desde dentro” pertence a outras mulheres
PROF.A GENY GUIMARÃES: Sim, eu digo que ela é negras, com trajetórias e questões muito próximas,
individual a partir do momento que, por exemplo, uma que vivenciaram questões muito próximas. Na
pesquisa ou leitura que estou fazendo, um texto que construção das minhas pesquisas, essa expressão
eu estou escrevendo, são meus: textos e leituras. cunhada por Guerreiro Ramos toma a perspectiva
A percepção, interpretação e escrita, são minhas. e um formato metódico, que faço ao trazer esse
Mas nós sabemos, em termos de ancestralidade, “desde dentro” para uma pesquisa geográfica.
que existe um individual que é, ao mesmo tempo, Mesmo que digam que meu trabalho não tem rigor

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científico, ele tem um método, porque tudo o que anulação daquilo que temos de mais precioso:
eu faço é sistematicamente pensado, elaborado e o conhecimento, a cultura, os afetos, então, de
construído por algumas etapas, e a primeira delas novo Frantz Fanon para refletirmos, pois ele traz a
é a do reconhecimento. Reconhecer quem fez questão psicológica. Nesse sentido, o racismo é uma
muito antes de mim. Então, a primeira etapa deste violência que se deu a partir de vários processos,
“desde dentro” é o reconhecimento e, por isso, eu como a escravização, por exemplo, mas não só.
levo muitas referências para a sala de aula, para Existe aquela falácia de que o europeu chegou
os estudantes. A subjetividade existe quando eu com armas de fogo, mas estamos falando de uma
trago o individual, uma subjetividade que também população africana e indígena que era formada por
é coletiva porque não existe neutralidade. Eu não guerreiros e guerreiras de alto nível. Só que eles
posso escrever algo a partir do outro, mas a partir foram atacados no que existe de mais frágil no
de mim e do grupo ao qual eu pertenço, trazendo ser humano: o seu psicológico. Uma pessoa com
todos os bônus e os ônus do pertencimento, assim o psicológico enfraquecido, baixa a autoestima,
como outros elementos, como uma escrita e fazer aumenta a autorrejeição, a autossabotagem,
geográfico enegrecidos, valorizando assuntos, todos aqueles elementos que fazem com que a
questões e afirmando uma existência negra nesse própria pessoa não consiga reagir. A gente tem,
espaço geográfico. Nesse ponto, dialogo com historicamente, o banzo, mas também, no nosso
a metodologia da Escrevivência de Conceição momento contemporâneo, as nossas imobilidades.
Evaristo, porque faço sempre questão de escrever Quantas vezes eu já me peguei com algo muito
de um jeito que não só acadêmicos possam ler, importante, que eu tenho que fazer, que eu sei que
mas que outras pessoas, como a minha família e aquilo vai mudar a minha vida, e eu não consigo
os estudantes, possam ler. A escrita precisa ser realizar! E não é por incompetência ou incapacidade.
acessível a muita gente. Às vezes, não é nem porque eu estou tão atribulada
de trabalho, mas é essa queda, nesses momentos,
GIRAMUNDO: Você poderia falar brevemente sobre as da nossa fragilidade, da autoestima e que ficamos
aproximações e afastamentos entre as Geografias imobilizados. Isso é muito comum entre nós. Agora,
Negras feita no Brasil e as Black Geographies, um o que nos afasta? O trauma.
campo de estudos presente em outros países? O Gosto de uma música do Juan Luis Guerra,
que as Geografias Negras brasileiras têm de único em que ele faz uma crítica à colonização francesa e
e quando começou a se construir um campo com inglesa, na República Dominicana. Em determinado
esse nome no Brasil? momento ele diz: “Será porque aquí no hablamos
inglês/francês?”. Historicamente, eles falam taíno,
PROF.A GENY GUIMARÃES: Com relação à questão porque é o povo Taíno. Como aqui no Brasil, nós
das aproximações, Frantz Fanon diz: um negro é não falamos guarani, língua que nos aparece
um negro em qualquer lugar do mundo. A gente apenas como palavras soltas. Língua perdida
vai sempre sofrer racismo, mesmo que ele seja nacionalmente. Então, o nosso afastamento,
metamórfico e que possua diferenciações de também comparando nossa relação com outros
um lugar para outro. No tempo, ele também é países da América Latina, é cultural porque, de
diferente, o racismo de tempos atrás é diferente qualquer forma, por mais que eles sofram uma
do que é agora. Mas um negro vai ser sempre violência do racismo que nós também sofremos
um negro. Uma mulher negra vai ser sempre uma porque somos negros e indígenas, nós estamos
mulher negra com aproximações e afastamentos, em um território que se constituiu espacialmente
em vários momentos. Mesmo que o racismo se de outra forma, com alguns elementos que formam
dê de maneira diferenciada, ele vai, sempre, um ser brasileiro, além do fato que no continente
ser uma violência, uma tentativa de destituição apenas nós falamos português. Eu vou contar,
da humanidade, da existência de um ser. É a aqui, um exemplo: estava numa viagem em Atlanta

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e fui visitar o Museu do Negro. Tinha vinte e poucos Pesquisadores Negros/as, o COPENE, sem que até
anos e viajava muito sozinha, porque trabalhei na então houvesse uma seção temática de Geografia.
Varig. No museu, tinha um homem negro que me Nós montamos uma mesa para o COPENE 2018 e
chamou a atenção, ele também estava sozinho esse foi um encontro não só acadêmico, de negras
e eu queria conversar, tentar o meu inglês tosco. e negros, mas um encontro de almas. Foram quatro
Descobri que ele era britânico e falei assim: “Nossa, dias de muito trabalho e, a partir daquele evento,
que interessante, um negro britânico!” e me veio a nós resolvemos fazer um grupo de WhatsApp que
sensação de que poderíamos ter muitas histórias começou a agregar mais e mais gente. Eu ainda
em comum. Quando nós saímos do museu, onde não o considero um coletivo ou uma rede porque
existe uma homenagem à Martin Luther King, eu precisamos de outras etapas para isso. Mas é um
falei para ele: “Vamos tirar uma foto juntos!”. Vinha grupo muito importante, porque ali nos conhecemos,
passando um casal e eu falei: “Vou pedir pra eles reconhecemos e encontramos. Sabemos a quem
tirarem a nossa foto.”. E esse rapaz falou: “Não, não procurar e quem é que está fazendo o que em todo
vamos incomodar as pessoas. Eu sou um homem o território nacional, e ainda tem muita gente para
negro, mas eu sou britânico.”. Aí, eu pensei: “Gente, entrar naquele grupo. Em 2019, nós ratificamos
ele está me dando um ‘passa-fora’!”, dizendo esse encontro de almas geográficas negras com
assim, “Vocês, latinos, que acham que todo mundo o ENANPEGE, onde foi redigido o manifesto de
é amigo e querem falar com todo mundo!”. Eu Geografias Negras, um momento muito bonito.
fiquei pensando naquilo: ele é um homem negro e Eu acho que, cada vez mais, precisamos desses
britânico. Então, o que vem primeiro para ele, ser encontros e formalizações, dessas sistematizações
britânico ou um homem negro? Para mim, o que e marcos para nós, que fazemos parte da rede
vinha em primeiro lugar, era ele ser um homem de geógrafos negros no Brasil. Assim, em 2020,
negro. Já para ele, o que vinha ali, em primeiro lugar, eu, Diogo e Lorena, organizamos os Cadernos
era ser britânico. Existia um quê de “olha, existe Temáticos de Geografias Negras, publicado pela
uma latinidade em você que não existe em mim, eu ABPN, a visibilidade se tornou um pouco mais
sou britânico!”. Existe uma barreira cultural muito ampla. Ali, estávamos dizendo que existe um grupo
grande, que não é posta por conta das distâncias de geógrafos negros no Brasil que está produzindo,
geográficas, mas por conta das distâncias culturais. e muita coisa. Com os cadernos temáticos negros
Ao longo da Geografia Negra construída no Brasil, também marcamos um posicionamento, porque
o único país no continente que fala português, começamos a ser vistos também fora do país,
tivemos que aprender espanhol e inglês para nos enquanto um grupo, e uma abertura, porque
comunicarmos em outros países, essa foi a regra. os cadernos mostram que é possível fazer as
Isso vem se modificando aos poucos, por alguns Geografias Negras no Brasil. Até então, nós víamos
pesquisadores estrangeiros que querem pesquisar os geógrafos negros de outros países, mas a barreira
o Brasil e estão aprendendo português. Assim, cultural que citei dificultava que eles nos vissem.
a comunicação está acontecendo! Desde 2017 Com uma publicação on-line, que ultrapassa todas
faço parte do Black Geographies Group (Estados as fronteiras, encontraram as nossas publicações.
Unidos, organizado inicialmente por Latoya Eaves, Agora, por exemplo, eu já venho sendo citada aqui
se não me engano), enquanto no mesmo ano, aqui na América do Sul. Também fomos convidados
no Brasil, não tínhamos ainda um grupo formado. para participar do encontro anual da Associação
Estávamos espalhados pelo país. Cada um de forma Americana de Geógrafos (AAG). Se tudo der certo,
isolada fazendo o seu e sofrendo sozinho, sozinha. vamos apresentar em Nova Iorque não só nossa
Quando iniciamos os encontros das Geografias trajetória, mas dizendo para eles: não somos só nós,
Negras no Brasil? Em, 2018, em conversas com existe uma legião de geógrafos negros produzindo
o Diogo Marçal Cirqueira, professor da UFF, nos muito. Outras três pessoas que também fazem parte
deparamos com os dez anos do Congresso de dessa comitiva (rumo ao AAG) são, a Ana Beatriz,

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que é doutoranda na UFF, a Ana Beatriz Pereira, que nos colocam modelos, você tem que seguir assim,
é doutoranda na USP e a professora Érica Pereira, você tem que fazer assim, mas você pode criar
que é professora da educação básica em São algo que não seja baseado em nenhum modelo,
Paulo. São dois movimentos, dois grupos diferentes a educação é tentativa e erro. Eu digo tentativa e
que se juntaram formando uma comitiva. Então, erro não no sentido simplório, de um experimento
apesar das diferenças, nós estamos no momento irresponsável, não! Digo que nós nunca sabemos
de sanar incongruências e nos apresentarmos de se o que a planejamos para uma aula, dará certo,
maneira não hierarquizada. Nós citamos literatura contudo, cada aula faz parte de algo maior, um
internacional, mas até que ponto eles estão nos projeto, com objetivos montados estrategicamente
citando? Com essa abertura, tenho esperança de e com método. Então, é repensar a partir das suas
que também seremos citados e reconhecidos como próprias práticas, repensar modelos, ressignificar
pesquisadores e professores de uma educação palavras e apresentar outros referenciais. Eu
básica que está produzindo, assim como eles. As acho que isso é muito importante, a gente
nossas experiências e práticas pedagógicas podem ressignificar muito do que já foi dito, na verdade,
ser trocadas com as experiências de outros países, fazê-lo trazendo posicionamentos afirmativos.
mas não no sentido de que eles sejam o tempo todo Um outro elemento, é substituir terminologias
as nossas referências, mas que nós também sejamos engessadas pelo racismo, por exemplo, a palavra
referências para eles. Estamos num momento de denegrir, que está engessada no racismo como
grandes avanços para nossa Geografia, para as algo ruim. Substituir terminologias, eu acho
nossas Geografias Negras brasileiras. importante, ressignificar e substituir. Por exemplo,
trocar escravidão por escravização, escravo por
GIRAMUNDO: Você pode contar um pouco como é escravizado, é substituição. Reintroduzir marcos
possível visibilizar as espacialidades negras na de produção socioespacial quando a gente traz
escola, quais seriam os caminhos possíveis? as personagens negras, da nossa história, como
pessoas importantes na transformação, formação
PROF.A GENY GUIMARÃES: Entendo ser muito do espaço geográfico, isso é reintroduzir marcos.
importante que nós não tenhamos discursos Relembrando o exemplo do Jardim Botânico
vazios, e o que eu tenho como base para os quando citei o Mestre Valentim, eu o trago como
meus discursos, em primeiro lugar, são as minhas uma pessoa importantíssima e o apresento como
práticas. Então, primeiro são as práticas, e elas que um marco. Rediscutir as representações também é
se tornam meus projetos. E são as minhas práticas importante. Esses deslocamentos são necessários,
que eu transformo em discurso, não o contrário, nós sofremos o racismo porque existe o outro que
então eu não falo o que eu não faço, porque eu está proporcionando e construindo o racismo.
acho isso uma enganação, um engodo. Então, eu Assim, estarmos em constante alerta. Acaba
apresentei alguns exemplos de reflexões que são que não conseguimos desligar porque, o tempo
importantes para mim e as sigo. Primeiro, para todo estamos ouvindo coisas absurdas, vendo
pensar Geografia Escolar, Geografia Acadêmica, violências, sofrendo assédios.
pesquisa, extensão, ensino, envolvendo tudo que
acaba com o nosso sono porque dá trabalho.
Mas, desnaturalizar preconceitos e racismos
cristalizados sobre o continente africano, não
apenas, acrescento a diáspora africana no mundo.
Eu acho que, se o racismo naturalizou preconceitos,
a gente tem que desnaturalizar esses preconceitos,
dá muito trabalho, mas vale a pena. O segundo
item é repensar modelos, porque o tempo todo

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TRINDADE, Azoilda Loretto. Valores Civilizatórios Afro-Brasileiros na Educação Infantil. Revista Valores Afro-brasileiros na
Educação, Boletim 22, p. 30-36, nov. 2005.

ENTREVISTA REALIZADA POR:

D E MIAN G AR CI A CA STR O
D ou t or em Geografi a (UER J )
Prof ess or do Depto de Ge o g r a f ia , E d it o r d a R e vis t a G ir a m u n do e C o o r de na do r do C ur so de Espe ci a l i z a çã o e m Te o r i a s e P r á t i ca s d a Geografi a
E scolar no Col égi o Pedro II
d emiancas tro@y ahoo.co m . b r

LARISSA LIMA DE SOUZA


D ou t oranda em Geografi a (U F R J )
E speci al i s ta em Ens i no d e H is t ó r ia d a Á f r ic a (C o lé g io Pe d r o I I )
Prof ess ora do Depto. de G e o g r a f ia e in t e g r a n t e d o N e a b i d o C o l é gi o P e dr o I I
lar issa.s ouza.1@cp2.edu . b r

SUZANA DO S SANTOS B ARBOS A


Mest ra em Geografi a (UF R J )
Prof ess ora do Depto. de G e o g r a f ia , d a E s p e c ia liza ç ã o e m E duca çã o da s R e l a ç õ e s Ét ni co - R a c i a i s no Ensi no e B á si c o ( Er e r e bá ) e i ntegrante do
N eab i do Col égi o Pedro II
suzan a.barbos a.1@cp2.e d u . b r

TAT IA NA FER REIR A


G rad u ada e Mes tra em ge o g r a f ia (U E R J ).
Prof ess ora do Depto. de G e o g r a f ia d o C o lé g io Pe d r o II
Coord enadora do Labora t ó r io Se n t id o s U r b a n o s e J u ve n t u d e ( L a bS U j u)
t at iana.ferrei ra.1@cp2.e d u . b r

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