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DOI:http://dx.doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.2020.v5.n13.p314-322
314 Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 05, n. 13, p. 314-322, jan./abr. 2020
Rosvita Kolb Bernardes
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Pirilampo, lamparina: lumezinho de mim, céu pintado de história
tudante de teologia, futuro pastor da igreja ra vista. Só sei que em pouco tempo a Oma
Luterana no Brasil. Rapaz alto, grande, forte, Rosa casou-se e foi embora para o Brasil com
corajoso e decidido na sua missão de querer o meu Opa Josef que tinha a assumido a ta-
ajudar os outros. Não sei o que aconteceu refa na sua missão pastoral de fazer um es-
entre eles, mas acho que foi amor à primei- tágio no Brasil.
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Colchão para dormir não existia e lugar Assim, venho há tempos ensaiando olhar,
para comprar muito menos ainda. Assim, en- rememorar, iluminar minha própria história
quanto esperavam a bagagem chegar, dormi- para fazer dela meu objeto de pesquisa e in-
ram no chão da escola. Seu novo lar em terras vestigação. Iniciei esse processo durante o
brasileiras. meu doutorado, quando percebi a importância
Sou neta da Oma Rosa e do Opa Josef. A ter- do estudo das histórias de vida como possibi-
ceira geração da família Kolb no Brasil. Foi no lidades de se compreender os caminhos per-
convívio com eles que descobri a força e ener- corridos durante o desenvolvimento dos sabe-
gia que pode ter a meditação e a oração. res escolares. (SOUZA, 2006) O sujeito aprende
Meu avô foi um homem religioso. Tudo era a partir da sua própria história e, ao narrá-la,
um fator de agradecimento. Desde a comida, permite-se um espaço para pensar e sentir so-
os filhos, as noras, netos, amigos e parentes bre si e sobre os outros.
na Alemanha. Era uma reza espontânea, intui- Foi o tempo do doutorado que me deu te-
tiva. Era por meio das orações que o Opa Josef cido, fio e linha para mergulhar no campo da
estabelecia vínculos com o exterior, citando autobiografia como espaço de reflexão e diá-
nome por nome de todos os familiares. Cria- logo sobre as minhas aulas na graduação, pós-
mos, assim, uma consciência das nossas raízes graduação e cursos de formação continuada
familiares. de professores. Espaço que me possibilitou,
de acordo com a pesquisa autobiográfica, re-
ver também o meu próprio percurso artístico
No encontro com as histórias de
docente, onde a dimensão temporal e a nar-
vida do outro rativa de vida são constitutivas da experiência
Há alguns anos o encontro com as histórias de humana.
vida vem alimentando minha trajetória como Recentemente, ao assistir ao filme Wala-
professora-artista em meu cotidiano. Hoje já chai (ZILLES, 2013), sobre uma pequena comu-
não sei mais dizer quando é um ou outro. Como nidade rural no sul do Brasil, onde se fala um
prática em minhas disciplinas para os alunos da antigo dialeto alemão, voltei com toda a força
licenciatura em Artes da Escola de Belas Artes à minha memória de infância. Rejane Zilles não
da UFMG, começo sensibilizando para a escuta só conta a história dessa pequena comunida-
e o exercício de rememorar. Falar de si. Contar de, mas a história de Walachai lhe pertence.
sua história. Ouvir a história do outro. Ela viveu nesse lugar até os 9 anos de idade. A
Nesse balanço entre fala e escuta me ali- história do filme de alguma forma também me
mento profundamente das histórias de meus pertencia.
alunos. Me alimento dos seus trabalhos au- Carrego comigo da infância o não saber fa-
tobiográficos, da sua intimidade, criatividade, lar português até os 8 anos de idade e de ser
sua produção estética e plástica sob a luz da alfabetizada em alemão. De chegar na escola
arte. Configura-se a partir desse momento um do Ensino Fundamental e não entender nem
potente arsenal, quando um se torna objeto o que a professora falava e muito menos os
da sua própria pesquisa, onde a experiência meus colegas de classe. Falar com sotaque,
de rever, rememorar, lembrar e narrar vai se trocar as vogais. Caminhei um tempo aqui e
construindo em um caminho ziguezagueante, acolá. Entre lugares, entre pausas e silêncios
que pisca-pisca no escuro, lumiando ora aqui, para ouvir, escutar e olhar para saber quem
ora acolá. eram os meus pares.
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Talvez esse tenha sido um momento em min (1987) busco por outras historietas do meu
que meu coração piscou como pisca um vaga cotidiano. São histórias que, por meio da ação
-lume à procura dos seus. Dali iniciei um pro- de lembrar, são revisitadas e ressignificadas
cesso profundo de fazer nascer coragem para por mim. Comecei a fazer vários movimentos
ver, lembrar e narrar sobre mim e minha histó- de busca por indícios na minha casa pela mi-
ria de vida. nha história. Em um destes movimentos, obs-
tinadamente à procura de uma carta de minha
avó em que falava sobre a prisão de meu avô,
Fazer nascer coragem para ver,
em 1940, quando Getúlio Vargas proibiu falar
lembrar e narrar: as cartas e ler em alemã, encontrei em um saquinho de
Inspirada nas histórias de infância de Benja- plástico fotos, bilhetes e cartas.
Abro e leio duas cartas escritas pelo meu constitui o que Delory-Momberger (2012, p. 75)
avô para os meus aniversários de 9 e de 14 chama de mundo interior do espaço exterior.
anos de idade e uma outra carta escrita pela Para ela:
minha avó no dia 27 de novembro de 1981, nar- Essas construções biográficas do espaço levam-
rando sobre a lamparina da sua casa. nos a elaborar um mundo de significações e va-
Hoje, ao escrever esse texto, volta não só à lores que constitui, de alguma maneira, para
nós, o mundo interior do espaço exterior. É sob
minha memória de infância a lamparina, pela
o prisma desse mundo interior, que o espaço
qual tenho um fascínio especial, mas as car- exterior vai se achar dotado, para que cada um
tas escritas por meu avô no dia do aniversário. de nós, de uma biograficidade singular, isto é
São objetos revisitados pelos espaços percor- de uma capacidade de construir vestígio, de
ridos no tempo de infância onde personagens construir experiência, de fazer sentido em nos-
sa existência.
e pessoas marcaram um tempo vivido. Encon-
trar com as cartas, fotos, bilhetes, lamparina, Olho as fotos e releio as cartas, escritas em
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um tom amoroso, cheias de múltiplos senti- Ao reler essas cartas me invade um senti-
dos. São enviadas e recebidas para celebrar a mento de amor anunciado por mim, como o
vida. Abro e leio: pisca pisca do vaga-lume à procura dos seus.
Recolho um jeito simples de escrever, onde
Hoje ao celebrarmos os seus nove anos de ida-
de me lembro quando perdi o meu pai aos nove pensamentos são carregados de vida de um
anos. Tinha mais oito irmãos menores do que amor de avós presentes. Sempre!
eu. Tive que ajudar a sua bisavó, a minha mãe, São cartas que revelam uma concepção de
com tudo. Se não teríamos morrido de fome. educação que passa pelo conceito de cuidado,
Aprendi com isto que com nove anos já pode-
zelo com o outro, um olhar humanista presen-
mos ajudar os nossos pais nos afazeres da casa.
(KOLB, 1964)
te. Um olhar que olha para a infância, para a
juventude. Nas entrelinhas das cartas leio uma
Em outra carta, quando faço 14 anos, ele me postura que indica valores que passam pelo
conta que com essa idade os jovens na Alema- respeito aos mais velhos, aos pais como au-
nha finalizam um ciclo na escola e que alguns toridade, uma postura de escuta, de silêncio,
seguem seus estudos e outros vão para escolas de cuidado com o outro, obediência, respeito
mais técnicas. E que aos 14 anos de idade se e humildade. Uma memória.
iniciaria uma nova fase na minha vida, quando Antigamente também escrevia cartas. Es-
se é convidada a participar do ensino confir- crevia para contar a vida. Escrevia para via-
matório na igreja Luterana e onde vai celebrar jar para encontrar. Hoje já não escrevo mais
diante de uma comunidade a sua entrada para cartas.
o mundo adulto. Ele segue na sua escrita e diz: Ao reler as cartas escritas dos meus avós,
É em tudo isto que estamos pensando hoje no vêm à minha mente lugares objetos familiares
seu aniversário de 14 anos como a nossa neta que fazem parte do espaço doméstico, a minha
mais velha. Você com certeza vai perceber intimidade. Tenho com esses lugares e objetos
quando a fase da infância se encerra e inicia-se da minha infância uma relação de construção
a fase da juventude. Te desejamos de coração,
biográfica recíproca: eu os constituo e eles me
alma e corpo um novo tempo de vida. (KOLB,
1969) constituem. São formas de manifestações de
nós mesmos.
Figura 5: Minha fotografia de infância São objetos que fazem parte de um espaço
memória-infância no qual me reconheço e no
qual também sou reconhecida pelo outro. Ao
pensar na força e potência que o objeto carta
pode ter, me vem à mente o trabalho contem-
porâneo da artista Elisa Macedo com as suas
cartas visuais. Ela destaca que:
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soube das cartas importantes que mudaram Figura 6: A lamparina de minha avó
a vida da minha mãe, as cartas para os ami-
gos que só encontravam este meio para contar
vida. Viajei para diferentes paisagens e as car-
tas eram deixadas antes da partida e escritas
nos percursos. Escrevi cartas sem nem ir, para
contar para alguém como ficou a vida aqui
enquanto a ausência existia, ainda que tem-
porária. Escrever sempre foi uma possibilida-
de terna. Filmar foi o encontro com a textura,
o encontro com o olhar do meu com o outro,
o respeito pelas histórias que começavam a
existir dentro. A cada nova passagem, o desejo
de remeter sobre as paisagens, primeiro en-
tendendo a geografia, o espaço, o som, a vida
para ser poesia. (MACEDO, 2016, p. 1).
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no meio da estrada no escuro. A sorte foi que Destaco que ao refletir sobre o meu pro-
eu tinha levado a lamparina e assim com ajuda cesso de formação, ao trazer as cartas que
de alguns moradores conseguimos tirar o car-
compartilho aqui, ilumino saberes que me
ro puxado por alguns bois. A minha tarefa na-
constituíram como pessoa e que me ajudam
quela noite foi além de segurar a minha barriga
no nono mês de gravidez, iluminar a estrada. A a dar visibilidade aos fios de histórias par-
lamparina foi sempre um objeto muito impor- ticulares e que se entrelaçam em trajetórias
tante para nós. (KOLB, 1988) reveladas no presente como professora artis-
ta. Então, no momento que trago uma visão
Segue narrando que se lembra que, já mo-
de mundo focado pela lente da memória da
rando no povoado de São Vendelino/RS, a luz
infância, penso que vou construindo e elabo-
era fornecida para as casas por um gerador
rando experiências vividas que me permitem
que funcionava até as 10 horas da noite. De-
ir além dos fatos vividos e registrados no pa-
pois só com a lamparina para ler ou fazer algo
pel. Nesse trajeto de volta para si e encon-
à noite.
trar-se com a sua própria história inspiro-me
Hoje, ao reler essa carta, procuro por ima-
no “ateliê biográfico de projeto”, que é com-
gens. Imagens da infância que revisitam a
preendido como
minha memória. São imagens de uma criança
de seis anos de idade que passava sozinha [...] um processo que inscreve a história de vida
em uma dinâmica prospectiva que lida o pas-
as férias na casa dos avós. Entre as sombras,
sado, o presente e o futuro do sujeito e visa
frestas e luzes que piscavam aqui e acolá,
emergir o seu projeto pessoal, considerando
os vaga-lumes, pirilampos, a lamparina me a dimensão do relato como construção da ex-
guiavam. periência do sujeito e da história de vida como
Seguia o seu rastro. Seu feixe de luz. Era espaço de mudança aberto ao projeto de si.
pela mão da minha avó que ela era levada para (DELORY-MOMBERGER, 2006, p. 359)
cá e para lá. Para frente e para trás. Parecia Dinâmica bastante propícia para lançar lu-
uma dança. Uma dança que alumiou meu tem- zes sobre aquelas texturas da vida que com-
po de criança. põem os percursos pessoais, revelando histó-
Venho já algum tempo trabalhando com as rias que só se deixam mostrar por meio das
histórias de vida dos meus alunos nos cursos narrativas que engendram o pensar sobre si e
de graduação. Hoje, ao repensar sobre o que a tomada de consciência de si. Assim, sigo em
tenho feito, escrito, dito sobre a minha his- busca de narrar o vivido em meio a um ema-
tória e também dos meus alunos em sala de ranhado de fios que vão compondo a minha
aula, não tenho dúvidas que acessar a memó- trama vida para reconhecer-me como sujeito
ria e biografar-se, carrega a essencialidade do da minha própria história, atribuindo sentido
poder de as pessoas se reconhecerem como aos diferentes itinerários percorridos até aqui.
sujeitos de suas próprias histórias. É encon- Acessar as cartas, as fotos, a minha me-
trar-se com uma maneira singular de produzir mória, é encontrar com a minha própria voz,
escrita e reflexão. É retomar a experiência do com o mundo que rodeou a minha infância.
espaço, dos objetos, dos sentidos do vivido. São histórias, vestígios que me permitem
É retomar as imagens e significância do que compreender um pouco o que sou hoje como
foi desenvolvido ao longo da nossa história professora e artista. Olho para o céu pintado
pessoal. de histórias.
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Referências
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Rosvita Kolb Bernardes é Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Mestre em Educação pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas
Gerais. Desenvolve pesquisa, extensão e ensino entre Arte e Educação, Infância, Formação Estética Docente, Narrativas
Autobiográficas. E-mail: rosvitakolb@gmail.com
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