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Alice #2 Julho/Agosto 2010

o fazedor 1/5

Afonso Cruz
o fazedor
entrevista maria joão freitas / retratos Luís Mileu

A ficção é a melhor maneira de dizer aquilo que julgamos ser verdade.

No sítio onde moras, que nem sequer tem lugar no mapa, o que pensam as
pessoas que fazes? Correm muitos boatos. É, aliás, a única coisa que corre com
este calor. Já me apontaram várias profissões: desde professor de jazz, a
funcionário da RTP. Qual o autocolante com que te sentes mais confortável?
Ilustrador, escritor, músico, fabricante de cerveja? Autor, talvez... mas
depende da situação. Escolho a profissão conforme o momento. Ilustras,
escreves e tocas todos os dias? Há horas específicas para cada uma das
tarefas? Por vezes, faço tudo no mesmo dia, mas não ao mesmo tempo. Não
tenho horas específicas para cada uma das tarefas. Muitas vezes, trabalho de
acordo com os prazos, quando há, ou com a vontade, quando há. Se vivesses
em Lisboa terias o mesmo ritmo de trabalho? Trabalhas à noite? Trabalho a
qualquer hora, mas tenho alguma preferência pela noite: é quando os meus
filhos estão a dormir. No campo trabalho mais porque tenho árvores para regar,
por exemplo, mas todo o trabalho, tanto de ilustração, quanto de composição
ou escrita é muito difícil de quantificar. Há muito tempo em que estamos a
trabalhar e não parece. Ler, no meu caso, também pode ser trabalhar. A tua
formação é Belas Artes? Vens de uma área de cultura visual? Sim, o meu
percurso foi a António Arroio e essas coisas. Sempre estive ligado às artes.
Querias ser pintor? Quando era miúdo sonhava em vir a fazer banda
desenhada, mas depois, muito mais tarde, achei que aquilo não era a minha
vocação. Sempre gostei muito de duas coisas: ler e desenhar. A verdade é que o
desenho é uma inclinação que as pessoas percebem, de certa forma é uma coisa
natural: vê-se. Outras vocações são mais difíceis de perceber e, durante muito
tempo, achei que ter talento para desenhar tinha obliterado uma série de coisas.
Hoje, muito erradamente, estabeleço hierarquias: a escrita vem em primeiro
lugar. Quando é que percebeste que afinal gostavas de escrever? No 10º ano
achei que o desenho não ia ser a minha carreira, que não queria seguir aquilo e
decidi estudar filosofia. Na verdade eu queria ser leitor, mas isso não é a
profissão de ninguém... Excepto do José Mário Silva... A tua obra está repleta
de referências filosóficas. Tiraste o curso de filosofia ou és um auto-didacta?
Acabei sempre por ser muito auto-didacta nas coisas que fiz. Sempre li muito e
isso ajuda a escrever. Mas também sempre desenhei muito e isso ajuda a
ilustrar. A música foi uma coisa diferente. Enquanto no desenho eu tinha jeito e
as pessoas repararam nisso, na música as pessoas reparavam que eu não tinha
jeito. Faziam comentários? Diziam que não sabia tocar, nem dançar, que era
duro de ouvido. Como disse Theóphile Morel: Beethoven só ficou surdo lá para
os vinte e tal anos, ao passo que eu, à nascença, já era completamente duro de
ouvido. A minha história é semelhante, só que eu insisti tanto que o meu
ouvido desistiu de ser duro. Hoje, toco vários instrumentos. Pela tua
insistência? Claro.
Alice #2 Julho/Agosto 2010

o fazedor 2/5

Queres fazer-nos acreditar que qualquer pessoa, se insistir, pode ter talento
numa área? Quando visito as escolas para falar de ilustração, dou sempre o
meu exemplo da música. Acho que é importante. Por vezes, as crianças sentem
que não têm "jeito" para desenhar. É preciso que saibam que a ilustração
mudou muito e, hoje, não é preciso ser um grande desenhador para ser um
grande ilustrador. São coisas diferentes. Mas, mesmo assim, é perfeitamente
possível aprender a desenhar e vir a ser um grande desenhador. É para isso que
servem as escolas. E quando se tem talento, por vezes, esforçamo-nos menos.
No outro dia, quando nos conhecemos, perguntei-te como conseguias
trabalhar tanto e tu respondeste: durante muitos anos trabalhei muito pouco,
como se houvesse uma justiça cósmica nisso. Durante praticamente 10 anos
da minha vida só trabalhava em animação, fazia filmes de desenhos animados.
Trabalhava o indispensável para poder viajar. Ganhava dinheiro com os filmes
e com esse dinheiro vadiava durante 3 a 6 meses por ano. De resto, acho não
trabalho mais do que qualquer outra pessoa. E por onde andaste? Por mais de
sessenta países: acima de tudo na América do Sul, Leste Europeu, África e
Médio Oriente. A minha primeira viagem, sem contar com grandes capitais
europeias, foi para a América do Sul. Aterrei em la Paz, na Bolívia e voltei de
Pernambuco, do Brasil. Achava, nessa altura, que se não levasse uma mochila,
ninguém repararia que era turista. Então andava com um saco desportivo a
tiracolo e só usava transportes públicos. Dormia nas maiores espeluncas, às
vezes na rua. Mas quando aterrei lá, mal cheguei lá, começaram logo a
chamar-me gringo, apesar de usar um saco de desporto e tudo. Temos a ilusão
de que podemos passar despercebidos, mas somos sempre turistas. Nunca
somos viajantes. Isso é a quimera deste tipo de turismo. As histórias fazem
parte do DNA da humanidade? A cultura forma-nos, mostra quem somos. As
histórias, as ideias, de certa maneira, são a nossa maneira de sobrevivermos.
São uma espécie de reencarnação antes de morrermos. Quando as contamos,
passamos as nossas histórias, as nossas ideias, para dentro de outra pessoa. No
fundo, é aquilo que pensamos, aquilo que nós somos, que passa para dentro do
outro. São a nossa arca de Noé particular. Metemos as nossas ideias dentro de
histórias, metáforas e alegorias e fazemo-las navegar. Porque precisamos de
inventar histórias, como se a realidade não chegasse? A realidade é feita de
histórias. Não é feita de realidade. Há inúmeras perspectivas, inúmeros ângulos
que, se os pudéssemos ver todos, veríamos a tal realidade. Mas o que vemos
são perspectivas, fatias de um bolo. É por isso que as melhores histórias são
ambíguas: têm várias perspectivas. Os mitos e, de certo modo, as metáforas e
as alegorias, servem de fórmulas que podem ser aplicadas em diversas
situações como chaves-mestras. Essa é a riqueza das histórias, a sua
ambiguidade e a sua plasticidade. Se, por exemplo, os textos sagrados não se
prestassem a tantas interpretações e a tantas disputas, nunca seriam sagrados.
Eles dependem da capacidade de ser uma obra aberta. Isso também faz as
coisas durar. Se determinado livro for facilmente compreendido, esgota-se, mas
perdura se suscitar dúvidas. As melhores histórias deixam, dentro de nós,
perguntas. Se deixarem respostas, não são tão bem conseguidas. Quando é que
percebeste que querias contar histórias? Como é que elas surgem dentro de
ti? O processo é sempre um mistério. Mas acima de tudo, acho que surge da
necessidade de contar aquilo que pensamos e fomos vivendo. A história é o
meio, o embrulho que encerra as ideias que queremos transmitir.
Alice #2 Julho/Agosto 2010

o fazedor 3/5

O que é isso da 4ª dimensão? É uma descoberta tua? Não, não... Era uma
coisa que andava pelo ar, especialmente no século XIX, e que serviu de base
teórica para o livro mais famoso de Edwin Abbott Abbott, Flatland. É uma
história que se passa num país plano constituído por uma sociedade de figuras
geométricas regulares que pensam, falam, e têm sentimentos humanos. As
mulheres são linhas, os homens são poligonos. É uma sátira social, mas acima
de tudo é uma alegoria muito bem conseguida sobre uma grande quantidade de
áreas do saber: a Religião, a Física, a filosofia, etc. A história conta a aventura
de um ser bidimensional que descobre a tridimensionalidade. Parece uma coisa
extremamente simples e, no entanto, é das obras mais complexas que já li.
Acima de tudo, pelas possibilidades que nos coloca. A própria vida do
protagonista, que é um quadrado, é comparável a Sócrates ou a Cristo. E
quando digo que uma figura geométrica pode ter a profundidade de um ou de
outro, isso diz muito sobre este livro. Acreditas nas tuas ficções? Sem dúvida.
A ficção é a melhor maneira de dizer aquilo que julgamos ser verdade. És
coleccionador de histórias? Acabamos sempre por gostar de algumas boas
histórias, mas não sou propriamente um coleccionador. Que livro não levarias
para uma ilha deserta? Há uma quantidade enorme deles... Era muito mais
fácil dizer os que levaria. Concordas com a frase de Stº Anselmo: um livro
nas mãos de um ignorante é tão perigoso como uma espada nas mãos de uma
criança? Não são só as espadas que podem ter dois gumes. Os livros também.
De resto, a ignorância tem o poder de transformar quase tudo numa arma.
Quem escreve as histórias? É um inconsciente individual ou colectivo? Há
uma alma do mundo? Acredito numa alma do mundo, num sentido abstracto.
E acho que todos os inconscientes escrevem histórias. Eu sou um deles.
Sentes-te verdadeiramente o autor dos teus livros? Todos os nossos gestos são
feitos de milénios. Quando se faz um traço é o resultado de um universo inteiro
a empurrá-lo, mas, e apesar disto tudo, sinto-me autor dos meus livros. Ao
ponto de ser eu a assinar os contratos. A quem pertencem as ideias? A
paternidade destas coisas é muito complexa. As histórias orientais, por
exemplo, que não têm pai nem mãe e vão sendo contadas de várias formas e
modos, vão-se revestindo conforme os tempos e as circunstâncias. A ideia, o
caroço da história, pertence a quem a quiser usar. O que me parece ter autoria é
a maneira como essas ideias são expostas e não a ideia propriamente dita. A
Enciclopédia da História Universal, editada pela Quetzal, ganhou há dias o
grande Prémio de Conto "Camilo Castelo Branco", galardão instituído pela
Associação Portuguesa de Escritores. Isso mudou alguma coisa na tua vida?
Para já, engordou-me o ego. Como nasceu a ideia da escrita apócrifa aplicada
a uma enciclopédia, supostamente um veículo da palavras e pensamentos
verdadeiros? Da necessidade de juntar uma quantidade de textos de cariz
diferente sob um mesmo conceito. O livro finge ser um apanhado de citações
de histórias escritas por autores inexistentes, com direito a editora e até ano
de edição. É uma espécie de literatura elevada ao quadrado, de influência
borgesiana? Acho que sim. Tentei misturar muito bem a realidade com a
ficção de modo a que se torne difícil separá-las. Um labirinto borgesiano. A tua
obra «Os Livros Que Devoraram o Meu Pai», editada pela Caminho, ganhou
o Prémio Maria Rosa Colaço de 2009. Conta a história de um escriturário
entediado que lê romances na repartição pública e um dia deaparece dentro
de um livro. Imaginas-te perdido numa biblioteca? Também me perco no
meio dos livros, como um escriturário entediado. Não há nada mais fácil do
que perder-me em bibliotecas, em frases, em parágrafos, em livrarias.
Alice #2 Julho/Agosto 2010

o fazedor 4/5

Por que escolheste A Ilha do Dr. Moreau como porta para o protagonista
escapar à realidade? Escolhi alguns clássicos cuja história se prestava ao
enredo que imaginei. Esse livro de Wells era um exemplo. Tratava da
humanidade e da distinção entre o homem e o animal. Se é que isso existe. Esse
é um dos temas - a par do arrependimento e do modo como lidamos com o
nosso passado -, mais importantes do livro. Gostavas de ser devorado por que
livro? Tem-me acontecido ser devorado por muitos. Mas o contrário também
tem sido verdade. Gosto muito de Nicolau de Cusa, mas não sei se gostava de
ir parar dentro de um livro de filosofia. Por isso, acho que escolheria uma coisa
mais do tipo Metamorfoses de Ovídio. Ou Alexis Zorba. Ou Flatland. Ou
Masnawi. Pode haver fantasia num livro de filosofia? Sim, e ao contrário
também: gosto especialmente de obras cuja fantasia tem filosofia. Em todo o
caso, acho que há fantasia em tudo o que implica criação. Há fantasia na
filosofia, tal como há fantasia na ciência mais exacta. Sem isso não haveria
inovação. Cada vida é uma enciclopédia particular? Sim, acho que sim.
Todos temos ficções para contar e tornar realidade. Ligas muito à crítica?
Tenho muito pouca experiência nesse sentido, por isso, ligo. Os teus livros têm
logo sítio determinado nas livrarias, ou os próprios livreiros terão dificuldade
em os colocar no seu lugar? Depende dos livros. Enciclopédia da Estória
Universal foi um caso problemático: esteve nas secções de história de quase
todas as livrarias. Um destino irónico para uma ficção que se faz passar por
História. A Estória deveria morar em que prateleira? Filosofia, ficção
universal, ficção nacional? Acho que qualquer uma dessas prateleiras estaria
mais próxima do seu conteúdo. Nos teus livros infantis, há menos margem
para erro na prateleira ou secção. Qual o encanto de ilustrar livros para
crianças? A brincar, a brincar, já ilustraste quantos? Gosto muito de ilustrar
para crianças, apesar de, muitas vezes, ter trabalho a mais. Em cerca de três
anos ilustrei mais de vinte livros para crianças. Coitadas. És leitor de livros
policiais? O teu primeiro livro editado foi um policial. De que trata "A Carne
de Deus"? Sou um leitor de policiais. Gosto especialmente do Chandler e do
Ross Macdonald. A Carne de Deus é um thriller passado à volta da maçonaria e
de uma personagem mais baixa do que a sua estatura. E de outra personagem
com umas pernas mitológicas. Também há cogumelos envolvidos. O humor, a
ironia e a escrita policial combinam bem? Combinam muito bem. A ironia - e
algum humor - fazem parte de muitos policiais. A Carne de Deus é um livro
com muitas mortes e que, apesar de todo o sangue espalhado, faz rir. Se
pudesses acordar amanhã com uma característica nova, como acontece a
Gregor Samsa na Metamorfose, o que escolherias? Acordar mais magro. É
muito difícil fazer dieta. O que te faz corar? Elogios. O filme que serias capaz
de ver 57 vezes? O Sétimo Selo. Se pudesses jantar com um personagem de
ficção, quem seria? E o que comeriam? Com o Borges. Ele devoraria a
Enciclopédia Britânica e eu uma sopa de beldroegas. O que gostarias de lhe
perguntar? Se ele, com estes jogadores argentinos, não faria melhor do que o
Maradona. Mesmo depois de cego. Acreditas na imortalidade? Sim, mas de
um modo muito abstracto. É difícil explicar em poucas linhas, mas tenho uma
ideia de tempo que pressupõe uma espécie de imortalidade, infelizmente. Com
que pedido gostarias de incomodar Deus? Se os noticiários não o incomodam,
então duvido que eu seja capaz de o fazer. Os deuses são os maiores burlões?
Os homens são os maiores burlões. Não há Hermes que se compare a um
dirigente desportivo.
Alice #2 Julho/Agosto 2010

o fazedor 5/5

Como te apresentarias a um marciano? Provavelmente como um homem que


não acredita em criaturas verdes e de antenas. Quais são as tuas palavras
preferidas? Dostoievski, Kazantzakis, Borges. Que personagem serias na
Alice no País das Maravilhas? Talvez a lagarta, o coelho, o chapeleiro e o
gato. Como organizas a tua biblioteca? Ela tem vontade própria e organiza-se
a si mesma. Já tentei domá-la, mas ela vence qualquer tirania. Vais aderir ao
livro digital? Já aderi. Leio muitos livros em formato digital. O que te apetece
responder quando dizem que pareces um homem do Renascimento, com
tantos talentos? Normalmente digo que, para homem do Renascimento, estou
muito bem conservado. ¬ A

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