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Agradecimentos Especiais
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À Maria Eduarda
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SUMÁRIO
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Apresentação
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verdadeiro abismo entre certos 'gêneros' literários que, a nosso ver, serve
apenas para afastar as pessoas da leitura e do ato de escrever. Desta
maneira, retomamos alguns conceitos para fundamentarmos questões sobre
prosa e poesia. Mostramos, dentro do possível, que prosa e poesia misturam-
se a todo momento. Que prosa e poesia podem estar lado a lado, inclusive,
em livros aparentemente conceituais.
A segunda parte deste livro sugere a leitura de alguns livros e,
naturalmente, faz uma análise a respeito de cada um. Algumas dessas
análises foram publicadas, parcialmente (todas revistas e revisadas), na
Revista Filosofia da Editora Escala.
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Parte I
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QUESTÕES PRELIMINARES
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Pretendemos neste texto verificar e refletir pontos importantes que
contemplem, em especial, os reais problemas que enfrentamos quando se
trata de leitura, literatura e educação.
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O senso comum, na maioria das vezes, entende que existe somente a
língua enquanto uma linguagem importante. Ora, a linguagem das imagens,
dos sons, do corpo contam muito, também, para que se complete nosso
repertório.
Jorge Luis Borges, famoso escritor argentino, ficou cego nos últimos
dez anos de sua vida. Numa entrevista, entre as muitas que deu em sua vida,
foi indagado porque ele viajava tanto, apesar de estar cego. E ao que ele
respondeu:
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Não pretendemos, de forma nenhuma, contar a história da escrita e da
linguagem, mas não custa lembrar que o processo tem um percurso muito
recente, se comparado com a idade de nosso planeta e se pensarmos que
nossos ancestrais primeiros demoraram muito, inclusive, para falar da
maneira que hoje nos comunicamos. 1
Lembremos: as primeiras sociedades da quais temos registros, dos
mais variados, foram orais. Não havia escrita. Havia um universo totalmente
distinto do atual. É bom recordar: a escrita foi um motivo bastante forte para
as desconfianças de Platão. A memória confiável era somente a individual. A
escrita organiza e remete, de forma gradativa, para outras formas de
memória, de tempos e espaços, muito distintos. A memória individual é
deslocada para fora do homem. Passa a ser, a partir da escrita, armazenada
em suportes de materialidade. Passa a ser socializada, independente, da
vontade de quem produziu um conhecimento ou um texto escrito.
Aparentemente um fato banal. Contudo, um fato de extrema importância, não
porque a escrita acumula conhecimentos, tal tipo de discussão não cabe
aqui. Mas sim porque será determinante na constituição de um mundo
completamente diferente do que se conhecia anterior à invenção da escrita.
Nem melhor nem pior. Uma outra forma de organização. Isso precisa ficar
muito claro para que saibamos entender a imposição, muitas vezes de
caráter ideológico, da importância e exclusividade da escrita. Diria que,
muitas vezes, se dá a impressão de que as pessoas, obrigatoriamente,
deveriam nascer falando, lendo e escrevendo. Posições ingênuas.
Infundadas. Houve muita vida antes da escrita. Houve sociedades. Houve
1 O que teria acontecido antes do surgimento da linguagem? De acordo com
Chomsky “ Isso é adivinhação. Parece ser um absurdo ver a linguagem como uma
ramificação dos gritos de primatas não-humanos, pois ela não compartilha nenhuma
propriedade interessante com eles, ou com os sistemas gestuais ou com qualquer
coisa que conheçamos. Portanto chegamos a um beco sem saída. (...)durante um
milhão de anos o cérebro se expandiu; foi ficando maior que o de outros primatas
remanescentes, e, em certa fase (de acordo com o que sabemos, por volta de cem
mil anos atrás), alguma mudança pode ter ocorrido e o cérebro foi reorganizado para
incorporar a faculdade de linguagem. (...) No caso da linguagem, sabemos que algo
aflorou em um processo evolutivo, e não há nenhuma indicação de alguma mudança
evolutiva desde que ela aflorou. Ela surgiu certo dia, até onde sabemos, muito
recentemente. Não há evidência real referente ao uso da linguagem antes talvez de
cinquenta mil anos atrás, ou algo assim “ (2006, p.186).
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música. Literatura. Poesia. Teatro. Adão e Eva não nasceram falando, lendo
e escrevendo.
Cremos, veementemente, que o conceito de leitura, de uma vez por
todas, precisa ser retomado, em especial pelos educadores, de todos os
níveis e graus. Precisa ser ampliado e aplicado à prática docente.
Muitos educadores, de forma inequívoca, ligam como uma condição
de causa e efeito, a língua ao pensamento. Para se pensar, parece-nos que
tudo indica que seja verdade, há necessidade de uma linguagem. Entretanto,
que fique muito claro: de uma linguagem. Mas não, somente, da língua.
Existem outras linguagens, juntamente com a verbal, que, certamente,
também levam a elaborações de pensamento. Uma coisa nos parece muito
clara e objetiva: quando pensamos várias linguagens estão atuando.
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ser elaborada pelo cérebro de Stravinski, e a
capela Sistina pelo de Miguel Ângelo. Mas, falta-
nos ainda, compreender as regras de organização
que estas criações aplicaram. 2
2
O que nos faz pensar? Jean-Pierre Changeux, p. 83-84. Esta obra traz uma
discussão bastante importante entre Jean-Pierre e Paul Ricoeur a respeito do
pensamento.
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“Estudos sobre a produção das imagens deveriam ser particularmente valiosos
para o esboço da arquitetura geral dos sistemas e de como eles interagem e,
consequentemente, para a exploração dos meios pelos quais a faculdade de
linguagem (ou as várias faculdades de linguagem, se é assim que o quadro de
desenvolve) interage com outros sistemas da mente-cérebro. Alguma luz foi lançada
sobre estas questões pelos ‘experimentos naturais’ (lesões cerebrais etc.), mas
experimentos invasivos diretos estão, obviamente, excluídos. As tecnologias
recentes deveriam oferecer um modo de superar algumas das barreiras impostas
por considerações éticas e os efeitos difusos dos fenômenos naturais. Mesmo nas
fases exploratórias iniciais, há resultados que são bastante sugestivos. Pode ser
possível projetar programas experimentais que poderiam produzir novos e
importantes tipos de informação sobre a natureza da faculdade de linguagem e o
modo como ela é acessada e usada”. (Chomsky, 2006, p. 200).
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paralelismo e a hierarquia. Em primeiro lugar o
paralelismo: o nosso cérebro é capaz de analisar
sinais do ambiente físico ou social por diversas
vias paralelas. Assim, no caso da visão, as vias
visuais analisam em paralelo a forma, a cor e o
movimento. Começam por separar estes traços
que caracterizam um objecto para, em seguida,
refazer a síntese. A arquitectura do sistema visual
está organizada numa multiplicidade de vias
paralelas que, com as vias auditivas, olfactivas,
etc., permitem que o cérebro analise o mundo e
dele faça uma síntese global (Jean-Pierre
Changeux, 1998, p.85).
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mesmo que eu dispensaria para uma música. Ao olhar uma pintura tenho
relações distintas e posso avaliar o impacto das cores, por exemplo, assim
como a profundidade, os planos, a simetria. Enfim, aspectos específicos a tal
forma de linguagem. Não vejo uma música. Ouço. E existe, a partir dessas
considerações, muitas outras.
Vale a pena a reflexão de Merleau-Ponty a respeito da pintura:
Merleau-Ponty prossegue:
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espessos, abertos, dilacerados, impróprios a ser tratados
exaustivamente, como a ‘informação estética’ dos
cibernéticos ou os ‘grupos de operações’ físico-
matemáticos, e, enfim, que não estamos em parte
alguma em condições de fazer um balanço objetivo nem
de pensar um progresso em si, que toda a história
humana num certo sentido é estacionária. (...) Será o
mais alto ponto da razão constatar que o chão desliza
sob nossos passos, chamar pomposamente de
interrogação um estado de estupor continuado, de
pesquisa um caminho em círculo, de ser o que nunca é
inteiramente? (2004, p. 55-56).
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palavras são vazias de significado. Claro que o escritor está se referindo ao
texto literário, no entanto, o dicionário com suas definições de palavras está
inexato. Prossegue o autor: “O mais importante é o ambiente das palavras,
sua conotação e depois a cadência das palavras, a entonação com que são
ditas...Ou seja, estão sendo manejados elementos fugidios, elementos muito
misteriosos” (2009, p. 78-79). Em se tratando de linguagem verbal, na
verdade, nada é exato. Evidentemente, em especial, para os escritores, isso
não constitui nenhuma novidade. O deslocamento das palavras é que importa
para os grandes escritores. A extensão dos significados. A exploração dos
espaços criados pelas palavras dicionarizadas. Tal fato é que realmente
importa para os grandes poetas. Diga-se de passagem: eis um das maiores
trabalhos do escritor. A tal da consciência das palavras de que tantos já
falaram. “A linguagem é uma série de símbolos rígidos, e supor que esses
símbolos são esgotados pelos dicionários é absurdo” (Borges, 2009, p.79).
Prossegue Borges: “(...) supor que há um símbolo para cada coisa é supor
que existe o dicionário perfeito. E evidentemente os dicionários são
meramente aproximativos, não é?” (2009, p.79).
Como vimos a língua é menos perfeita do que se imagina. Achar que a
língua, se comparada com outras formas de linguagem, é superior, ou, a
mais completa, é, no mínimo, um grande equívoco. E isso fica um pouco
mais grave se pensarmos que as línguas fonéticas, ou seja, a maioria das
línguas “vivas” da atualidade representam os sons que, por sua vez,
representam os objetos. Logo, as línguas de cunho fonético não representam
os objetos. Somente aqui já se deveria pensar o quanto a língua é imperfeita.
O uso da língua para efeitos de comunicação atinge, realmente, os
seus objetivos? Esta foi uma das muitas indagações feitas ao grande
pesquisador da área Noam Chomsky (2006, p. 132) e ao que ele responde:
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verificar que ele não é ótimo para algum dos
modos como queremos usá-lo. Se você quer se
certificar de que nunca entenderemos mal uns aos
outros, então para esse fim a linguagem não é
bem projetada, porque você tem propriedades
como a ambiguidade. Se queremos a propriedade
de que as coisas que normalmente gostaríamos
de dizer sejam ditas de forma curta e simples,
bem, a linguagem provavelmente não tem essa
capacidade. (...) Muitas interações pessoais
desmoronam por causa de coisas como essas na
vida comum. Portanto, em muitos aspectos
funcionais, o sistema não é bem projetado. Há,
contudo, uma pergunta totalmente independente:
ele é bem projetado com respeito aos sistemas
internos com os quais deve interagir? Essa é uma
perspectiva diferente e uma nova pergunta (2006,
p.132).
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Na linha de pensamento de Chomsky deveremos, ainda considerar,
algumas afirmações de extrema importância, ou seja, o pesquisador
evidencia, baseado em diversas fontes que a “estrutura básica da linguagem
[enquanto língua] deve ser essencialmente uniforme e vir de dentro, não de
fora” (2006, p. 114).
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Vimos até agora que as linguagens, todas elas, devem ser
consideradas. Contudo, fato inegável: a língua, escrita e falada, trouxe uma
forma de desenvolvimento possível e foi determinante para a concepção de
mundo atual. Em todas as esferas. Nessa medida, convém analisarmos, um
pouco mais de perto, quais são as reais possibilidades da linguagem
enquanto língua.
As línguas evoluem? Se tomarmos como hipótese que as línguas
evoluem, seremos obrigados a concluir, como muitos pesquisadores, em
outros tempos, que existem línguas mais perfeitas e outras menos perfeitas.
Seríamos obrigados, inclusive, a admitir que certas línguas nasceram
rudimentares e depois chegaram a uma forma ideal. Tal posição nos soa
cheia de preconceitos e inadequadas.
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escrita, o processo foi o mesmo. Quase impossível acreditar que do dia para
a noite uma sociedade passa da oralidade para a escrita.
Um outro aspecto importante colocado por Martins diz o seguinte:
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quais temos resultados de pesquisa, indicam que os grandes sistemas de
escrita foram inventados de maneira independente. O que nos autoriza a
afirmar que cada sistema linguístico possui a sua história. E que uma história
não é melhor do que a outra. Cada história possui as suas singularidades.
Nenhuma deveria ser considerada superior a outra.
4 “Um passo de consequências incalculáveis foi dado quando o homem, na tarefa de
fixar e transmitir o pensamento, percebeu que lhe era possível substituir a imagem
visual pela sonora, colocar o som onde até então tinha obstinadamente colocado a
figura. Dessa forma, o sinal se libertaria completamente do objeto e a linguagem
readquiria a sua verdadeira natureza, que é oral. ‘Decompondo’ o som das palavras,
o homem percebeu que ele se reduziu a unidades justapostas, mais ou menos
independentes uma das outras (enquanto som) e nitidamente diferenciáveis. (...) A
ideografia começou por representar os objetos por um sinal que os interpretasse
graficamente e as ideias por outros sinais adequados. Os tipos clássicos de escrita
ideográfica são o chinês, os característicos cuneiformes e os hieróglifos.” (Martins,
2001, p. 40-41.)
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do bem escrever. A Literatura é vista, nessa perspectiva, como modelar.
Como exemplo de uma língua bem construída e digna, inclusive, exemplar
para as próprias gramáticas.
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desestabilizar, prolongar e adensar nossa capacidade de percepção. Se ela
se repete isso não vai mais ocorrer.
Para que o exposto se torne mais concreto analisaremos, num
primeiro momento, um texto famoso de Guimarães Rosa (1996,p.555-556-
557).
Desenredo:
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estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se
de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e
preta amplitude.
Ela – longe - sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele
exercitava-se a aguentar-se, nas defeituosas emoções.
Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado
fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O
tempo é engenhoso.
Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado.
Vai, pois, com a amada se encontrou - ela sutil como uma colher de chá,
grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de
ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo
popular, por que forma fosse.
Mas.
Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e
parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios.
Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora.
De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a
apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou a mulher, a
desconhecido destino.
Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se
histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas
lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da
barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro.
Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-
se.
Mais.
No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a
progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade.
Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco.
Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade -idéia inata. Entregou-se a remir,
redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De
sofrer e amar, a gente não se desafaz. Ele queria os arquétipos, platonizava.
Ela era um aroma.
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Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó
Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-
lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de
caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o,
amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que
Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil como refritar almôndegas. Sem
malícia, com paciência, sem insistência, principalmente.
O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia
miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim,
genial, operava o passado - plástico e contraditório rascunho. Criava nova,
transformada realidade, mais alta. Mais certa?
Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção
manifesta. Haja o absoluto amar - e qualquer causa se irrefuta.
Pois produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o
tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior
evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para
cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.
Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em
ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa.
Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.
Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria
retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil
vida.
E pôs-se a fábula em ata.
1. Transgressão
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‘traições’ de Vilíria. Guimarães quis tocar num dos pontos mais frágeis de um
homem. Sentir-se traído. Podemos ler a reconciliação como o próprio
narrador coloca: os personagens passaram longe dos comentários da aldeia,
do povo. Trataram de agarrar a felicidade, como diz o conto “três vezes
passa perto da gente a felicidade” . E um ponto importante: em nenhum
momento, durante a narrativa, o autor julga ou analisa as atitudes! Ele joga
para o leitor tal responsabilidade! A literatura que incomoda não julga! O leitor
é obrigado a convocar seus próprios valores para analisar os fatos! Os
personagens do texto Desenredo não dividem o mundo em bom ou mau.
Agem pela espontaneidade. Guiam-se, desta forma, pelos valores nos quais
acreditam. Criados pela atmosfera social em que vivem. Nada mais.
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a.O nome da personagem feminina é um anagrama: Livíria, Rivília, Irlívia,
Vilíria.
4. Poeticidade Estrutural:
Chamando-se
Livíria,
Rivília
ou
Aliás, casada.
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Sorriram-se,
viram-se.
Enfim,
entenderam-se.
Todo abismo é
navegável a
a barquinhos de papel.
existindo só retraído,
minuciosamente.
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Nessa medida, se colocássemos todo o conto em forma de versos,
veríamos que temos um poema. Poema-conto. Conto-poema 5.
5.Interdito
5
Esta análise foi “inspirada” pela leitura de diversos ensaios do nosso saudoso e
fascinante Haroldo de Campos.
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Cremos que a transgressão, em todos os níveis, deveriam nortear os
trabalhos de todos os escritores que possuem a consciência da importância
da Literatura. Assim sendo, sabemos que os grandes da Literatura jamais se
preocuparam em seguir receitas. Por isso, via de regra, sempre inauguraram
novas tendências, novos gêneros.
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empenhada. Em outras palavras: libertar! E não seguir os padrões já
estabelecidos pela gramática. A Literatura, de fato, renova a gramática,
renova a língua, renova as construções sintáticas já existentes.
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O escritor mineiro coloca para nós o grande compromisso do escritor.
Como o senso comum, na maioria das vezes, acha que uma obra literária
vem de acasos e meras inspirações, uma vez mais, Guimarães mostra que
literatura é trabalho, luta com as palavras. Agir como um cientista moderna
significa experimentar, detalhar, procurar ver os fatos como eles realmente
são. Lembremos: toda ficção se baseia no real. Possui o real como cenário.
Um escritor não pode ir ao absurdo! Ele não pode colocar que uma pessoa
chorava neve, ou que um cabrito voa. A não ser em um contexto bem
específico. A forma como um escritor coloca as coisas como elas realmente
são é que determina, em grande parte, a obra em si.
Vejamos:
O prato azul-pombinho
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Minha bisavó - que Deus a tenha em glória -
sempre contava e recontava
em sentidas recordações
de outros tempos
a estória de saudade
daquele prato azul-pombinho.
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de grandes pudins,
recendendo a cravo,
nadando em calda.
Minha bisavó
traduzia com sentimento sem igual,
a lenda oriental
estampada no fundo daquele prato.
Eu era toda ouvidos.
Ouvia com os olhos, com o nariz, com a boca,
com todos os sentidos,
aquela estória da Princesinha Lui,
lá da China - muito longe de Goiás -
que tinha fugido do palácio, um dia,
com um plebeu do seu agrado
e se refugiado num quiosque muito lindo
com aquele a quem queria,
enquanto o velho mandarim - seu pai -
concertava, com outro mandarim de nobre casta,
detalhes complicados e cerimoniosos
do seu casamento com um príncipe todo-poderoso,
chamado Li.
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decretou que os criados do palácio
incendiassem o quiosque
onde se encontravam os fugitivos namorados.
Os namorados então,
na calada da noite,
passaram sorrateiros para o barco,
driblando o velho, como se diz hoje.
E era aquele barco que balouçava
no mar alto da velha China,
no fundo do prato.
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não contava minha bisavó.
Dali para a frente a estória era omissa.
Dizia ela - que o resto não estava no prato
nem constava do relato.
Do resto, ela não sabia.
E dava o ponto final recomendado.
“- Cuidado com esse prato!
É o último de 92.”
Às vezes, ia de empréstimo
à casa da boa tia Nhorita.
E era certo no centro da mesa
de aniversário, com sua montanha
de empadas, bem tostadas.
No dia seguinte, voltava,
conduzido por um portador
que era sempre o Abdênago, preto de valor,
de alta e mútua confiança.
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de doces e salgados.
Tornava a relíquia para o relicário
que no caso era um grande e velho armário,
alto e bem fechado.
- “Cuidado com o prato azul-pombinho” -
dizia minha bisavó,
cada vez que o punha de lado.
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De nada valeu minha fraca negativa.
Fez-se o levantamento de minha vida pregressa
de menina
e a revisão de uns tantos processos arquivados.
Tinha já quebrado - em tempos alternados,
três pratos, uma compoteira de estimação,
uma tigela, vários pires e a tampa de uma terrina.
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Dizia-se aquele, um castigo atinente,
de ótima procedência. Boa coerência.
Exemplar e de alta moral.
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Cora Coralina consegue, em seu poema-conto narrar uma história,
sem, contudo, perder o grau de poeticidade que cerca sua literatura
pitoresca, agradável e de um estilo quase incomparável. O que perpassa por
tal estilo? Uma forma completamente singular de deslocamento de
linguagem. Uma forma diferente de escrever. De expressar, no caso, uma
lembrança de sua infância. Um estilo se define por sua particularidade em
relação a outras formas de uso comum, no caso, da linguagem verbal. Por
esta razão, em especial, alguns textos são tão saborosos, diferentes,
sedutores. Fogem do lugar comum.
Estilo é uma das maiores façanhas que um escritor pode criar na
linguagem literária. Façamos uma breve comparação com a matemática:
Para a resolução de uma equação do segundo grau completa ou incompleta,
podemos recorrer, conforme se sabe, à fórmula geral de resolução:
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demonstrar a uma pessoa que 3 mais 3 são 6... não precisaremos começar
com laranjas e depois com cadeiras e assim por diante. Depois que
entendemos que 3 mais 3 são 6... isso torna-se aplicável a qualquer coisa.
Ou seja, aplicável a tudo. Mas isso ocorre no pensamento matemático. Muito
diferente do que ocorre na Literatura que busca incansavelmente um estilo.
Cora Coralina consegue por meio de um poema narrativo contar uma história
e colocar outra dentro da mesma história. Vale-se de rimas e outros recursos
imagéticos incomuns para marcar a poesia no texto. Tal procedimento é uma
verdadeira marca em sua literatura, não somente no poema exposto, como
em outros poemas. Temos, desta maneira, uma marca de estilo na escritora
goiana.
E existem outros elementos, muito importantes, que devemos
considerar em se tratando de literatura. Ou seja, necessariamente elementos
literários que caracterizam um texto podem estar presentes e estão...em
textos de Filosofia, tratados científicos e outros que, aparentemente, não são
considerados literários!
Um grande exemplo é o caso de Sartre. Ele não apenas sempre
escreveu textos filosóficos marcantes, assim como romances. No entanto,
jamais deixou de lado a busca incansável de um estilo singular. Escreveu
diversos romances. No entanto, seus ensaios “aparentemente conceituais”
são plenos de imagens, como no fragmento a seguir:
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verdadeiros retratos de sua própria poesia. Plenos de poeticidade. Um outro
grande exemplo é o de Gilles Deleuze:
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Deleuze jamais deixou de se alimentar de Literatura, o que se comprova por
tantas e tantas outras obras do pensador francês, como por exemplo, Proust
e os Signos, e muitas outras.
Lembremos que Bergson ganhou um prêmio Nobel (e merecidamente)
de Literatura. Outro filósofo que sempre buscou uma forma própria de
expressar não somente sua filosofia, como outras formas de pensamento,
sem jamais deixar de lado criatividade e inventividade em seus escritos.
Paulo Freire, educador brasileiro, em todas as suas obras faz notar
seu estilo densamente literário. Cheio de imagens singulares. Michel Foucault
jamais deixou de expressar em seus escritos imagens e metáforas
maravilhosas. Enfim, não temos como esgotar centenas e centenas dos mais
variados exemplos de experiência literária em seu sentido mais pleno.
Com isso queremos reforçar um conceito que não possui nenhuma
novidade: a literatura não se dá apenas em romances, contos e poemas. A
literatura, o texto literário, pode e está presente nos mais variados tipos de
texto. Abaixo as formas subservientes de enquadramentos de pretensos
“gêneros”. Físicos, químicos, matemáticos, filósofos, podem, perfeitamente,
fazer literatura, como acabamos de expor.
E, nessa medida, o inverso é verdadeiro:
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O famoso autor de inúmeros romances famosos, Goethe, foi um
grande cientista. Observou, selecionou, experimentou, repetiu diversos
experimentos com grande rigor e metodologia. Poucos sabem que A Teoria
das Cores do escritor alemão é uma teoria totalmente plena de originalidade.
Ele, em sua época, em muitos pontos, contradisse Newton no que se refere
às cores. No entanto, Goethe estava certo. Foi um grande botânico. Quem
diria? Um escritor ligado a feitos científicos? Naturalmente, não é o único
caso. Mas um caso relevante e digno de ser mencionado. O escritor alemão
tinha um carinho verdadeiro pela natureza e, inclusive, por isso se dedicou
muito ao estudo da mesma. Tal estudo, com muita segurança, se reflete em
suas obras literárias.
Outro caso digno de ser mencionado é o de Étienne Klein, em sua
obra O tempo: de Galileu a Einstein. O autor é um grande físico. Contudo, na
obra em questão consegue elaborar grandes ensaios a respeito do tempo
que ultrapassam, tranquilamente, os limites da linguagem da física, como no
seguinte fragmento textual:
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É o tempo que flui, convencemo-nos, não o mundo, nem
nós próprios.
(...) dizer que o tempo flui como um rio implica que tenha,
em relação às suas hipotéticas margens, uma certa
velocidade. Na linguagem corrente, esta propriedade, a
velocidade, é-lhe de resto constantemente atribuída. Não
se diz que o tempo passa 'cada vez mais depressa'? Mas
uma velocidade, em geral, é a derivada de uma certa
quantidade em relação...ao tempo. A velocidade do
tempo obtém-se, portanto, determinando o ritmo da
variação do tempo que diz respeito...a ele próprio. ainda
agora começamos e já nos deparamos com um
obstáculo. Temos que nos habituar: o tempo tem um
prazer diabólico em transformar em armadilhas terríveis
os enunciados mais simples. (2007, p.28-29)
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de verdade, o seu papel. A palavra retomando seu lugar, ou seja, de nomear.
Arejar. Colocar a verdade a nu.
E tal tipo de literatura, vamos insistir, pode estar presente num livro de
Filosofia, num livro de Geografia, num livro de Arqueologia. Enfim, em
qualquer tipo de obra que não estritamente a literária. Tudo vai depender do
grau de recursos literários que o autor da obra poderá ter a sensibilidade e
genialidade de empregar. Nessa medida, os critérios que tornam uma obra
mais literária ou não permanecem os mesmos. Sendo que o critério mais
essencial seria: originalidade, de fato.
Foucault nos alerta que as obras literárias não deixam de designar-se
no interior delas mesmas. Em que medida? Não apenas por ideias, beleza e
apenas sentimentos. A linguagem e, consequentemente, a literatura é
integrante de um sistema de signos. Tal sistema não se encontra isolado.
Integra, logicamente, uma rede de signos distintos, “signos que não são
linguísticos, são signos que podem ser econômicos, monetários, religiosos,
sociais, etc "(Foucault, 2006, p. 94). A literatura se sustenta, na realidade, por
meio de vários estratos de signos. Ela é profundamente polissêmica, o que
não se confunde com ambiguidade ou vários significados e interpretações
para determinada mensagem.
A literatura está obrigada a recorrer a um determinado universo de
sedimentos semiológicos e deve significar-se a ela mesma; “a literatura não é
outra coisa que a reconfiguração, em uma forma vertical, de signos que estão
dados na sociedade, na cultura, em sedimentos separados” (Foucault, 2006,
p. 94).
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Objetivamente as pessoas não liam mais do que nos dias atuais. Em
todos os lugares e nas diversas dimensões onde existem linguagens.
Lembremos com rigor: somente a partir do início do século XX é que houve
expansão das linguagens a que hoje temos acesso. Portanto, como as
gerações poderiam ler mais? Grande parte da população, em todos os países
do mundo, era analfabeta. Então como as pessoas antes liam mais? As
publicações, se comparadas ao dias de hoje, eram em número infinitamente
menor...Os diversos atalhos, atualmente, para acesso de livros digitalizados
é enorme. Novamente: como antigamente as pessoas liam mais? O acesso
ao ensino em todas as suas instâncias era muito mais restrito...como as
pessoas liam mais em outros tempos? Como inferir se as pessoas liam mais?
A única coisa que podemos afirmar com bastante segurança: antes,
principalmente, antes da Internet, havia mais tempo disponível para a leitura
impressa. A velocidade e o ritmo das transformações eram bem mais lentos e
com isso, talvez, sobrasse mais tempo para a leitura impressa.
Mas já vimos, anteriormente, que é preciso tomar cuidado com os
conceitos atuais de leitura, visto que foram ampliados. Outro ponto muito
importante: em que proporção podemos medir a leitura de um livro? Quais
seriam os critérios para tal? Sabemos que é quase impossível. Quem declara
que leu, realmente, terá lido o livro? Em que grau de entendimento? Em que
grau de velocidade? Um livro que exige repertório, com certeza, exigirá do
leitor uma velocidade muito menor de leitura se compararmos com um livro
de leitura mais simples. Como ficariam então os critérios adotados? Como
avaliar a qualidade de uma leitura? De um livro declarado que lido? Missão
quase impossível.
E vamos mais adiante: o que as pessoas estão lendo? Apenas os
famosos campeões de venda no mundo? Se sim...via de regra tais obras
possuem apenas conteúdos vazios e cheios de aventuras. Se sim...não é o
brasileiro que está lendo tal tipo de literatura que não leva a caminho
nenhum. Note-se que para averiguar qualidade e quantidade de leitura fica
cada vez mais complexo. Em todo o caso ouçamos Sêneca (4 a.C-65 d.C.):
49
moderação. Para que inúmeros livros e bibliotecas dos
quais o dono, durante uma vida inteira, lê apenas os
índices? Uma infinidade de livros sobrecarrega, mas não
instrui. Melhor ater-se a poucos autores do que errar por
muitos.
Quarenta mil livros arderam em Alexandria. Belíssimo
monumento de régia opulência elogiou outro, assim
como Lívio, que disse ter sido uma obra máxima de
elegância e do cuidado dos reis.
Não foi, porém, do meu ponto de vista, nem elegância
nem cuidado, mas estudada luxúria, ou melhor, não foi
estudada, pois não para os estudos, apenas para os
espetáculos essas obras foram reunidas. Tal como
acontece com muitos que, embora desconheçam as
primeiras letras, fazem dos livros não instrumentos de
estudos, mas apenas ornamentos de sala de jantar.
Assim, juntem-se apenas os livros que sejam suficientes,
nenhum por ostentação. (...) Qual o motivo de tua
complacência com quem coleciona armários de cipreste
e de marfim e busca livros de autores desconhecidos ou
não recomendados para bocejar entre tantos milhares de
livros, uma vez que se compraz apenas com as capas e
os títulos?
Verás, pois, na casa dos homens mais ilustres, qualquer
livro que tenha sido escrito sobre oratória e história,
tendo as estantes abarrotadas até o teto. Hoje, como as
piscinas nas termas, a biblioteca também é um
ornamento obrigatório em qualquer casa de prestígio.
Eu perdoaria tal mania se o erro fosse por um exagerado
desejo de estudos. Agora, estas conquistadas obras de
gênios consagrados, instaladas em torno de estátuas de
seus autores, são compradas apenas para adorno das
paredes. (2013, p.63-64).
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Pelo texto de Sêneca, há milhares de anos, possuir uma bela
biblioteca já significava poder e prestígio. Ter estantes e estantes lotadas de
livros bonitos, grossos, encadernados, ao longo da história do homem, de
alguma forma, sempre significou prestígio. Uma certa cultura livresca acima
de qualquer suspeita. Família letrada. E assim por diante.
Atualmente, por mais que se diga que as pessoas dividem livros
impressos com outras formas de leitura, temos que admitir que ainda reina o
prestígio cultural de se ter muitos livros em casa. Ainda... possuir uma
biblioteca significa muito para a maioria da população. Em todos os lugares
do mundo. Mas a nossa indagação permanece: em que medida as pessoas
estão lendo aquilo que compraram? Em que medida não enfeitam suas
paredes com livros?
Cremos que tais questões devem ser pensadas, refletidas e
analisadas, em especial, por todos aqueles que de alguma forma estão
envolvidas com a Educação, com leitura e livros. A maioria das estatísticas
apresentadas em relação a índices da leitura impressa devem ser
questionadas. Via de regra, possuem metodologias duvidosas e
tendenciosas.
51
PARTE II
Porque devemos ler...
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Hinos Homéricos
Todas as evidências de estudiosos e pesquisadores levam a crer que
Homero, o grande poeta da Antiguidade Grega, existiu por volta de 800 anos
anos antes de Cristo e teria sido, inclusive, o autor das maravavilhas
literárias: Ilíada e Odisseia, se fizermos uma leitura coerente do passado, ou
seja, entre outras coisas, que o conceito de autoria de hoje não se aplica ao
que se entende por autoria na Antiguidade; na verdade, muitas outras obras,
dos mais variados gêneros ,sofreram o mesmo processo.
Hinos Homéricos traz para o público, uma raridade em termos de
literatura. Poucos, na atualidade, se arriscam a aprender o grego clássico e
muito menos a traduzi-lo, portanto, temos em mãos uma obra muito cara em
termos editoriais. A obra foi traduzida para a língua portuguesa por diversos
estudiosos ao longo dos anos. Algumas são bilíngues.
Hinos Homéricos traz para o leitor diversos hinos poéticos dedicados
por Homero aos mais variados deuses da mitologia grega. Entre eles:
poemas a Apolo, Hermes, Afrodite, Atena e muitos outros. Considerada a
deusa protetora das cidades. Dentre tantas coisas que ela teria feito a favor
dos homens destacam-se as oliveiras, assim como ter inventado a fabricação
do azeite, o que lhe autoriza a soberania, naturalmente, sobre a cidade de
Atenas.
Impetuosidades, paixões e outros sentimentos humanos permeiam e,
muitas vezes, colocam em xeque vários conflitos dos deuses comuns
também aos humanos. Os deuse gregos não são divindades isoladas e
intocáveis. São seres que possuem inveja, ira, raiva, amor, tanto quanto os
humanos. A imortalidade os diferencia do humano. Eles sabem que a finitude
é o grande drama.
Deve-se ressaltar que a mitologia deve ser encarada como uma
perspectiva possível do real e do universo. Destaque-se, inclusive, que o
pensamento lógico e racional iniciado pela Filosofia dialogou, naturalmente,
com o pensamento mítico. Poucos lembram que a Filosofia durante muitos
53
séculos admitia a perspectiva mítica, como as obras de Platão nos lembram:
a invocação das Musas e de muitas outras entidades.
A leitura de Hinos Homéricos possibilita, entre muitas outras coisas,
lembrar, uma vez mais, que a principal fonte das grandes construções de
língua estão na literatura; a literatura homérica foi o grande marco de fontes
literárias, de língua, além de contribuir para com outras áreas do
conhecimento.
Possibilita, também , (nunca é demais lembrar), pensarmos sobre a
miserável condição humana : finitude, contradições, limitações. Por um outro
lado, ainda a capacidade de formular sonhos, fantasias, utopias, e, buscar a
completude por meio de caminhos indeterminados, cheios de alternâncias
para a novidade e o jamais experimentado.
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Cada ensaio de Marilena Chauí é um convite, bastante sedutor, para
se ler ou retomar Espinosa. O filósofo das paixões humanas. Da liberdade.
Da justiça. A leitura dos ensaios como um todo nos dá algumas certezas, e
não esperança, visto que “Espinosa demonstra que, em si mesma, a
esperança não é boa, pois é uma alegria inconstante que nos torna
dependents de bens futuros incertos e de promessas cujo cumprimento
nunca está assegurado”. Quais seriam as certezas? De que as paixões
tristes, sempre tirânicas, com as quais a humanidade, historicamente, foi e
está submetida, podem ser extirpadas, despotencializadas.
A obra aponta para as teias invisíveis do poder estabelecido ou não.
Cada página dos ensaios de Marilena sintetizam provocações, verdadeiras
convocações existenciais que abalam e desestabilizam, sem concessões,
posições políticas, ideológicas.
De repente, ler Espinosa, diante da exposição impecável da autora, é
uma necessidade imperiosa porque somos levados, obrigatoriamente, a
repensar e redefinir nossos próprios conceitos e critérios a respeito de
alegria, desejo, felicidade e liberdade. Kundera, talvez, pensaria: a leveza da
insustentabilidade da liberdade…quase inanalisável…um fio de brilho
intocável.
Entretanto, a obra possui, além do conteúdo, uma outra dimensão,
importante, para que a filósofa seja compreendida mais justa e plenamente
(como poucos merecem): a dimensão estilística. Se a maioria dos
acadêmicos prima pelo famoso discurso vazio para seus pares, por jargões
incompreensíveis para a maioria do planeta, Marilena Chauí, como sempre,
opta e possui, objetivamente, um estilo de ensaio digno. Clareza na
exposição dos conceitos. Terminologia rigorosa e compreensível mesmo
para os não filósofos, como certamente desejaria Espinosa. Não faz da
filosfofia um reduto para minorias. Seus ensaios existem para serem lidos,
compreendidos e, sobretudo, praticados, eis o admirável, o eterno fascínio
de um texto, seja literário no sentido estrito da expressão ou não.
Enfim, nas palavras da autora: “Uma paixão, demonstra Espinosa,
nunca é vencida por uma razão, mas apenas por outra paixão mais forte e
contrária; e uma paixão forte só é vencida por uma ação mais forte e
contrária; e uma paixão forte só é vencida por uma ação mais forte e
55
contrária.” Eis a lição e recados mais evidentes que a filósofa nos deixa para
despertar o que a maioria de hoje deixou de lado: a capacidade da
indignação que tanto envolve a humanidade, num verdeiro torpor. Inércia.
Comodismo. Incapacidade de olhar para o outro.
56
Contudo, há estratos que vivem na mais completa miséria, como é o caso da
maioria dos países africanos.
Mia Couto, entre outras coisas, conceitua a temporalidade africana,
como um recurso argumentativo de leitura política, de forma fascinante.
Segundo o autor, o povo africano, de um modo geral, faz uma leitura do
tempo presente enquanto um processo vertical, isto é, sem pensar no futuro.
Há um presente profundo que despreza uma projeção para a posteridade. O
tempo passado para os africanos age de forma paralisante sobre os
habitantes que ficam presos aos movimentos de opressão, em todos os
níveis, pelos quais passaram. O passado age como uma sombra maléfica.
Este mesmo passado se desdobra numa temporalidade circular. O que seria,
neste caso, uma temporalidade circular? Um tempo em constante diálogo
com os mortos. O futuro, para Mia Couto, mostra-se esvaziado. “Estamos tão
entretidos em sobreviver que nos consumimos no presente imediato. Para
uma grande maioria, o porvir tornou-se um luxo. Fazer planos a longo prazo é
uma ousadia a que a grande maioria foi perdendo o direito. Fomos exilados
não de um lugar. Fomos exilados da actualidade. E por inerência, fomos
expulsos do futuro.”
A literatura e, consequentemente, a leitura de Mia Couto, acima de
qualquer outro predicado, mostra-se em plena convergência e sintonia com
as necessidades mais atuais do que se denomina pós-modernidade ou algo
que o valha. Dito de outra maneira: uma literatura que de forma simultânea
reflete ternurosamente as necessidades materiais da humanidade, assim
como suas necessidades mais interiores. Poucos escritores, nos dias atuais,
possuem a sensibilidade de Mia Couto.
Cadernos de Lanzarote II
57
limites da justiça? Materializa-se o Crime e Castigo? Sabe-se que não. Os
mitos gregos e romanos, em grande parte, carregavam tais ponderações. O
mal nem sempre é castigado. Poucas vezes, infelizmente, o bem triunfa
sobre o mal…e, desta forma, vive-se um universo, em diferentes esferas,
cheio de injustiças sociais e culturais. Há muito para se fazer pela
humanidade. Um trabalho quase insano.
Cadernos de Lanzarote II do nosso saudoso e muito e muito querido
José Saramago é uma leitura fascinante. Reserva de vida. Pontencializadora
para quem busca um certo consolo diante das inúmeras situações, cotidianas
ou não, que enfrentamos a cada segundo.
O livro de Saramago é, na verdade, um diário bastante sintético de
vários anos do autor. Neste diário conhecemos mais de perto e num registro
bastante singular, próprio dos diários, os pensamentos do autor, assim como
suas atitudes perante as mais diversas situações.
Destacam-se nos Cadernos a grande importância que Saramago
dava ao ser humano. O quanto ele lutou, sem conceder, em prol da justiça .
Ou seja, o escritor não nos deixou somente um legado, em termos mais
objetivos, de literatura. Aliás que legado! Em todos os níveis. O escritor
português deixa, inclusive, uma grande obra política no melhor sentido e
significado do conceito. Posições claras e, acima de qualquer coisa, justas.
Persegue, a todo custo, sem desanimar um minuto sequer, conceitos de
justiça e mais: intervenções. Suas atitudes perante tudo sempre projetam
ações efetivas, concretas, materiais. Saramago desmente os famosos
ditados que cercam escritores e artistas de que vivem num planeta fora das
esferas atuantes concretas.
Em diversos momentos (e foi acusado de pessimista), Saramago,
coloca que a literatura por si somente não consegue ser uma grande agente
de transformações sociais. Ele não acredita nisso. Sob sua perspectiva a
literatura pode até mudar algumas vidas, contudo, segundo ele, são casos
bastante particulares. Casos isolados. De pouco alcance. “Como poderemos
nós, insisto, embora provocando a troça das futilidades humanas e o escárnio
dos senhores do mundo, restabelecer o debate sobre literatura e
compromisso sem parecer que estamos a falar de restos fósseis? Espero que
num futuro próximo não venham a faltar respostas a esta pergunta e que
58
todas juntas possam fazer-nos sair da resignada e dolorosa paralisia de
pensamento e acção em que nos encontramos. Por minha parte, limitar-me-ia
a propor, sem mais considerações, que regressemos rapidamente ao Autor, à
concreta figura de homem e mulher que está por trás dos livros, não para
que ela ou ele nos digam como foi que escreveram as suas grandes ou
pequenas obras (o mais certo é não o saberem eles próprios), não para que
nos eduquem e instruam com as suas lições (que muitas vezes são os
primeiros a não seguir),mas, simplesmente, que nos digam quem são, na
sociedade que somos, eles e nós, para que se mostrem como cidadãos deste
presente, ainda que, com os escritores, creiam estar trabalhando para o
futuro.”
E assim, muito mais pelos Cadernos do que propriamente pelo legado
literário do autor, sabemos que ele executava aquilo que apregoava. Sempre
presente (mesmo) em situações que envolviam decisões culturais, e,
sobretudo, políticas (no sentido estrito).
Cadernos de Lanzarote II, em tempos de barbárie como os atuais,
renova fios interiores de nossa subjetividade. Devolve-nos uma certa
capacidade de indignação tão necessária para suportarmos a inesgotável
perversidade que a todo segundo estamos sujeitos. Enquanto isso, o escritor
português, neste momento, livre, sorri por se achar liberto de gaiolas
epistemológicas (termo cunhado pelo meu querido professor e pensador
Ubiratan) que tanto cegam a humanidade do óbvio.
Odisseia
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Os poetas, durante as centenas de anos que antecederam a nossa
era, foram considerados os mestres da verdade. De acordo com a maioria
dos especialistas (incluindo os poetas antigos) as Musas os conduziam para
um passado coletivo; não para um passado egoisticamente individual do
próprio poeta, mas a um passado mais geral: o passado de seu povo, de sua
gente. Nessa medida, a nobre, muito nobre, função do poeta era a de trazer
de volta as memórias, muitas vezes, gloriosas de um povo.
Homero não ficou calado. Eis uma das razões pelas quais a obra do
poeta grego, ainda hoje, faz tanto sucesso e foi fonte inspiradora de tantas
outras.
Odisseia, Homero, jamais deixou seu merecido lugar de honra dentro
do universo literário, especialmente, no Ocidente. Eis uma obra, realmente,
inesgotável. Quanto mais se lê, mais instigante. Quanto mais se relê,
lacunas como “os caminhos dos jardins que se bifurcam” atormentam a
imaginação e os diversos níveis de estratos que consolidam a subjetividade
humana. Deuses, deusas e outras divindades mitológicas agem sem
descanso nesta obra prima grega:
“Ártemis casta, filha de Cronida, flechas /lançando contra o peito, a
vida me levaras/neste presente, ou furacão me sequestrando/ lançara-me em
sendeiros nebulosos, me/ cuspindo à foz oceânica autorrefluente,/como os
tufões levaram antes as Pandáridas,/ orfãs em casa, após os deuses
dizimarem/ os genitores. Afrodite as preservou/com queijo, mel-dulçor e vinho
deleitoso./ Mais do que às outras, Hera concedeu-lhes graça/ e sensatez;
sublimidade deu-lhes Ártemis,/ Palas lhes ensinou lavores resplendentes.”
A Odisseia é um texto sem território. Pertence-nos como o ar que respiramos.
Poesia e poeticidade para todas as idades. Se lida e ouvida por crianças
aprofundará, com muita certeza, sonhos e devaneios próprios do universo
infantil. Se lida por jovens e adolescentes criará, certamente, mais sonhos e
perspectivas. Se lida por pessoas mais maduras e experientes, em todos os
graus, deverá provocar questões como: até que ponto o destino pode ser
conduzido por nós? Em que medida estamos predeterminados? Haveria
intercessões nos caminhos humanos? Os deuses moram no Olimpo? E se
moram: descansam ou trabalham por um mundo mais justo? Ou seja, o
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poema de Homero deixa no ar questionamentos que até hoje permanecem
mais atuais do que nunca.
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de reflexões existenciais _ merece uma leitura cuidadosa por diversas
razões.
Uma delas: os grandes questionamentos que Sartre faz a respeito da
guerra em si. O papel da Segunda Guerra Mundial. Nessa perspectiva, o
autor, como muitos historiadores observaram, diz que a Segunda Guerra
seria uma espécie de continuidade da primeira, que, na verdade, deixou
muitos pontos irresolvidos no planeta.
Evidentemente, Sartre não para por aí. Os grandes questionamentos
brotam como gotas intensas de uma grande chuva de verão: o que,
individualmente, um homem faz numa situação de guerra? Quais são as
disposições? Quais as disponibilidades individuais e coletivas para uma
guerra? Em que medida se colabora ou não para as grandes misérias que a
guerra envolve?
Nessa perspectiva, predomina na escritura de Sartre o abalo de
nossas possíveis certezas acerca de nós mesmos. Um outro motivo
essencial para a leitura da obra em questão seria a revisão provocada na
identidade da humanidade: “Questionar a natureza humana, usando métodos
próprios da natureza humana. Saber que a natureza humana já se define
pelo questionamento que formula sobre si mesma. De um só golpe,
colocamos o espírito, não o corpo, a psique, não a história, nem o social ou o
cultural, mas a condição humana enquanto unidade indivisível, como objeto
de nosso questionamento.”
Nestes tempos de guerra, mesmo que isoladas, como no Oriente
Médio, a leitura deste livro traz, certamente, um grande grau de visibilidade
se pensarmos o quanto de imbecilidade e miséria humana a guerra carrega.
Em que medida assistimos, sem envolvimento, como estátuas de pedra, a
mortes e sofrimentos que, talvez, fossem atenuados ou, mesmo, evitados,
caso houvesse intervenções efetivas? Socorro! Onde estão os humanos?
62
James Joyce (1882-1941), considerado um dos maiores escritores da
literatura ocidental pela maioria dos críticos, autor do famoso, entre outros,
Ulisses, ainda é tido como quase inacessível, visto suas obras possuírem um
alto grau de complexidade. As obras de Joyce são enigmáticas,
fragmentadas. Estruturalmente originais. Fogem, em todos os sentidos, da
maioria dos padrões estabelecidos pelos cânones literários. Na verdade fica
difícil ler Joyce sem um certo repertório literário.
De santos e sábios: escritos estéticos e políticos, do escritor em
questão, parece-nos um presente fascinante tanto para quem já conhece a
obra do autor, como para quem pretende conhecê-la.
Em que consiste esta obra? Conferências, ensaios, cartas, poemas
que foram traduzidos por um grupo de estudiosos brasileiros. Cada tópico
contém um breve comentário do tradutor.
Em geral os tópicos ensaísticos do autor irlandês refletem o humor, a
ironia aguda, a crítica que ele irá concretizar em suas obras ficcionais.
Destaco o tópico em que Joyce, 1903, buscou construir sua própria estética:
“São belas as coisas cuja apreensão agrada. Assim, a beleza é aquela
qualidade de um objeto sensível em virtude da qual sua apreensão agrada ou
satisfaz o apetite estético que deseja apreender as relações mais
satisfatórias do sensível. Ora, o ato da apreensão estética envolve pelo
menos duas atividades, a atividade de cognição, ou percepção simples, e a
atividade de recognição, ou reconhecimento.”
As questões da estética sempre foram um verdadeiro poço de dúvidas
e questionamentos. Afinal, quais seriam os critérios que poderiam definir o
belo, maravilhoso, grotesco ou predicativos enquadrados em outras
classificações? Haveria um gosto universal? Joyce busca refletir tais
questões a título, principalmente, de provocação.
No tópico Drama e Vida observa-se que Joyce, mesmo ainda muito
jovem, traça o que o definirá como um representante exemplar da literatura:
“A sociedade humana é a encarnação de leis imutáveis que estão encobertas
e envolvidas pelos caprichos e pelas circunstâncias da vida dos homens e
das mulheres. O reino da literatura é o reino (muito vasto) desses
comportamentos e humores acidentais, e o verdadeiro artista literário se
ocupa principalmente deles.”
63
A obra em questão além de ser um excelente exemplo de escritura,
visto que Joyce é preciso, claro, provocador, possui um estilo de escritura
definido, mostra uma fase de nossa história (primeiros anos do século XX)
sob a perspectiva de um olhar agudo. Nessa medida, tomamos conhecimento
das preocupações de um escritor que critica severamente a sociedade
irlandesa ao mesmo tempo que exalta escritores e artistas dignos, a nosso
ver, de serem lembrados e comentados por James Joyce.
Poemas de Adonis
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Desde que o mundo é mundo …podemos nos relacionar com o que
quer que seja de diversas formas e maneiras. Podemos nos relacionar com o
rio para pescar. Para catar pedregulhos. Para andar de barquetas. Para
andar por suas doces águas declaradamente traiçoeiras. Para apenas
admirá-lo. Para adocicar nossos pés. Adonis mostra a sua relação com a
famosa Quinta Avenida de Nova York, que, diga-se de passagem, contradiz a
maioria do planeta. Desgraçadamente a Quinta Avenida é objeto e alvo
mundial de admiração. O poeta árabe alerta os leitores para uma outra
leitura da famosa avenida. A leitura de um escritor sagaz, agudo e que não
se deixa seduzir por uma visão meramente consumista de um país
declaradamente imperialista que se sustenta, como se sabe, com a
submissão e escravidão de seu próprio povo e fragilizados do planeta.
Outro destaque do livro de Adonis é o seu poema Guia para viajar
pelas florestas do sentido. O título, por si , corresponde a uma imagem
fascinante do que virá depois. Nas palavras do poeta: O que é a
melancolia?/anoitecer/no espaço do corpo./O que é a sorte?/dado/na mão do
tempo./O que é sonho?/faminto que não para/de bater à porta da realidade./
O que é a tristeza?/ palavra descartada por engano/ pelo dicionário da
alegria./O que é a surpresa?/pássaro/ que escapou da gaiola da realidade./
Pergunto: o que é Adonis? Poeta que consegue captar, com
sensibilidade, os pré individuais que pululam ao nosso redor, mas como
poucos consegue dar visibilidade e flechar leitores para outras perspectivas
de uma existência que continuamente requer redefinições, novos conceitos,
verticalizações subjetivas para caminhos de criatividade que nos darão armas
para corroer a tristeza, a injustiça, a desigualdade e deslealdade que nos
circundam. Poesia de boa qualidade é vitamina que contamina. Vivam as
palavras!
65
em sua plenitude. Acham, via de regra, que as obras passadas sempre
foram melhores em relação ao novo. Não é o caso de Haroldo de Campos.
Continuamente buscou experimentações. Buscou obras originais para
destacá-las e fazer notar pontos que, muitas vezes, passaram despercebidas
em outras épocas. Em outras palavras: eterno mestre. Sua obra, como um
todo, dificilmente será esquecida. As Musas, embora obscurecidas,
reaparecem, mesmo que de vez em quando.
A fascinante obra Escrito sobre Jade: poesia clássica chinesa é um
verdadeiro convite a uma forma de literatura muito especial: literatura
explorada em diversas dimensões, a saber: o primoroso projeto gráfico,
original, um apelo sem precedentes à contemplação do belo. O livro
enquanto materialidade. A capa dura com um pequeno recorte colorido na
lombada instiga, de saída, qualquer leitor. Todo o livro oferece imagens que
dialogam perfeitamente com os textos poéticos apresentados. Bem ao estilo
“haroldiano” que, entre coisas, primava a convergência entre o verbal e o
não-verbal. A edição é bilíngue destacando os ideogramas chineses como
espaços concebidos dentro de uma leveza conceitual e gráfica. Destaco,
inclusive, o trabalho incansável, sensível e sério de Trajano Vieira,
habitualmente, atento em reunir os trabalhos de Haroldo de Campos e
reorganizá-los.
Comecemos pelo título: escrito sobre Jade. O que evoca Jade? A
famosa pedra, em suas mais diferentes tonalidades de verde, usada como
ornamento (em diversos graus e sentidos). Jade, acima de qualquer outra
coisa, materialmente, ecoa e ressoa: resistência. Conforme se sabe, é um
dos maiores símbolos da China, visto significar, entre outras coisas, desde os
tempos mais antigos, um meio de se comunicar com os deuses. Jade
representa, inclusive, para os chineses, inteligência, justiça, honestidade,
felicidade, poder ,riqueza.
Mas Haroldo de Campos justifica o título enquanto uma convergência
memorial, ou seja, segundo ele, nomes de livros. Le Livre de Jade (1908) de
Judith Gautier e Escrito sobre un Cuerpo (1969) de Severo Sarduy.
O grande poeta e ensaísta faz uma verdadeira viagem em busca de poemas
clássicos chineses que marcaram épocas. Desta forma, poetas como Shi-
King, Wang Wei e outros, das mais variadas eras, materializam-se em
66
português com a leveza que a língua chinesa costuma marcar, como na
seguinte poesia de Li Po (701-762 d. C.): nuvens são cambraias/pétalas tuas
faces/brisa / que farfalha/ nas varandas/ altas/ cristaliza/ orvalho/ diamantes/
de água/ se não posso/ vê-la/ nos píncaros/ de jade/ sob a lua/ ei-la/ no
pavilhão/ de jaspe.
A contemporaneidade avança, inexoravelmente, esvaziando de
maneira profunda os antigos padrões de subjetividade que incluíam
momentos de silêncio. Momentos de pensar e refletir. Os textos poéticos
exemplares (que conseguiram sobreviver) estão ao nosso redor. As Musas
(prolongadoras da memória) ainda possuem vozes ativas. Certamente,
existirão outros possibilidades de interioridades. De sociedades. Mas a
palavra poética, em todos os casos, será eternamente necessária para
lembrar a humanidade de que precisamos de espaços que propiciem a
liberdade de pensar e contemplar. Espaços em que a racionalidade impura,
perversa e invasiva possui um limite. Eis um dos grandes avisos da
poeticidade. E mais: “a dama que fez baixar as persianas de cristal
comtempla na transparência a clara lua de outono.”
A literatura, como toda arte que se preze, deve trazer para o leitor,
entre tantas outras coisas, inquietações. O que se entende por inquietações?
Pontos, agulhadas, intensidades que provoquem muito mais do que um
indagar passageiro…A boa literatura deve mexer com a humanidade a
ponto de se reconhecer que após a leitura de determinados textos nunca
mais seremos os mesmos.
Vida e Proezas de Alexis Zorbás, do grande escritor grego moderno
Nikos Kazantzákis, é um exemplo de excelente literatura. O autor grego é
um dos mais conhecidos da literatura universal e um dos mais lidos
(merecidamente) da literatura grega moderna.
Nikos Kazantzákis nasceu em 1885 e morreu em 1957 na bela e
histórica ilha de Creta . Sempre foi um homem inquieto. Nasceu para
67
batalhar, em todos os níveis, por um mundo melhor. Por uma humanidade
mais digna . Pela amplitude dos direitos iguais. Pelas condições de dignidade
dos seres humanos. Cansado de atuar mais diretamente na política,
concluiu que o melhor caminho, para ele, seria uma espécie de revisão do
estabelecido por meio da literatura. Sua meta: a interioridade humana. Para
ele somente uma mudança interior e subjetiva poderia melhorar as condições
do mundo. Estudou Direito e Filosofia. Andou o mundo e visitou diversos
países e culturas para ver de perto e de maneira mais concreta misérias e
riquezas em todos os graus.
Na obra em questão narra a história de um intelectual e escritor (há
várias evidências autobiográficas) que está em busca de material para sua
literatura e possui grandes dramas existenciais. Conhece Zorbás: um
homeme do povo que adora dançar, cantar e viver plenamente os seus
amores. Um homem que vive quase exclusivamente o presente. “Encontrei-o
pela primeira vez no Pireu. Eu descera ao porto para pegar o barco para
Creta. Faltava pouco para amanhecer. Chovia. Soprava um forte siroco e
chegavam respingos do mar até a pequena cafeteria.” Zorba passa a
acompanhar por algum tempo o intelectual. Nesta relação de amizade surge
o grande enredo do livro.
Tem-se, desta forma, a perspectiva de um intelectual preocupado com
grandes dramas da humanidade e de outro lado um homem que
despreocupado com livros. Centra-se apenas na experiência e na vida mais
imediata e prática. Zorba é um personagem leve. O intelectual e escritor um
personagem pesado. A responsabilidade pesa-lhe a todo momento em sua
existência. “Todas as coisas neste mundo têm um sentido oculto, pensei.
Todas as coisas - homens, animais, árvores, estrelas – são hieróglifos, e feliz
daquele, ou coitado daquele, que começa a decifrá-los e a adivinhar o que
dizem…No momento em que as avistamos, não entendemos: pensamos que
são homens, animais, árvores, estrelas. Somente depois de anos, muito
tarde, captamos seu sentido.”
Zorba representa claramente a alegria, a satisfação imediata das
necessidades humanas, mas que também deixa escapar seus dramas mais
íntimos. “Pendurei novamente a lâmpada em seu lugar e fiquei observando
Zorbás a trabalhar. Ele se entregava por inteiro ao trabalho, não tinha nada
68
mais no pensamento, tornava-se um com a terra, com a picareta, com o
carvão.” Enfim, a leitura de Vida e Proezas de Alexis Zorbás, discute, entre
outras coisas, a condição humana em níveis aprofundados, mas uma coisa
fica muito evidente na obra: não temos saída. Viver é coexistir com a solidão.
Viver é satisfazer determinadas necessidades. Viver é o eterno embate entre
a crença e a descrença. Viver é, acima de qualquer coisa, habituar-se com a
miséria material e imaterial. Intelectual à busca de sentidos para o oculto.
Dançarino em busca de prazeres mais imediatos. Todos em busca de
respostas que somente o transcorrer da vida poderá ou não dar visibilidade.
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Conversas com escritores é livro excelente em vários sentidos. Num
mundo onde o tempo para leituras impressas se torna cada vez mais
roubado, um deles é a vantagem de a cada momento estar em companhia de
um escritor diferente. As entrevistas, relativamente curtas , facilitam as
necessárias interrupções de uma leitura.
A entrevista de Amoz Oz é imperdível: equilibrado e sensível. O
escritor israelense dá uma aula autêntica sobre linguística: “Digo o seguinte:
o hebraico é um instrumento musical extremamente algébrico, muito conciso,
quase simbólico. (…)Tem algo nessa concisão do hebraico, no espaço muito
apertado dessa língua, que não encontro no inglês .” E o escritor explica de
maneira bastante elucidadora o quanto uma língua estrutura a forma de
pensar de uma sociedade. As concepções gerais e particulares de uma povo.
Linguagem, em suma, é uma determinada forma de existir no mundo e para o
mundo.
O escritor Martin Amis fala do papel do poeta: “Porque o que o poeta
faz é desacelerar as coisas, examiner o momento com um cuidado e um
significado meticulosos, acossado por pequenos medos, e realmente
procurer situar um momento significativo. Os romancistas também tentam
fazer isso, mas a uma velocidade muito maior e sem deixar que as coisas se
desacelerem”.
Enfim: a leitura do livro em questão nos leva, em muitos momentos, a
pensar na literatura como ela realmente mereceria. Quando a entrevistadora
pergunta ao escritor Malcom Bradbury se os leitores amam os escritores, ele
nos responde: “Acho que é um amor correspondido. Os escritores amam
seus leitores, sentem isso por eles enquanto escrevem o livro, e essa relação
sedutora e intrincada que se constrói assim é muito agradável”.
Literatura, sem dúvida, apesar das incríveis adversidades pelas quais passa
e sempre passou, continua sendo um poço de mistérios em si mesmos.
Mistérios que talvez permaneçam impenetráveis. Nada como uma boa
literatura para desvendá-los!
O livro do travesseiro
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Há publicações que ainda, nos dias atuais, são surpreendentes.
Leveza, surpresa e relatos inesperados a partir de Sei Shônagon. Escritos
entre os anos de 994 e 1001 quando servia na Corte de Teishi em Heiankyô,
hoje, Quioto, Japão.
O livro do travesseiro é um texto muito diferente e, realmente, digno
de ser lido. A autora oferece ao leitor narrativas breves, como se fossem
pequenas crônicas, em especial, a respeito da natureza e de certas
observações em relação a comportamentos daquela época.
O extraordinário, nesta obra, é podermos ter acesso a um mundo tão distante
geográfica e temporalmente a nós. Mais de mil anos nos separam da autora.
O mundo era completamente diferente e ainda mais: um universo oriental.
Um outro ponto importante: temos uma voz feminina. Lembremos que
raramente temos perspectivas femininas a respeito do passado da
humanidade. Isso ocorre tanto no Ocidente como no Oriente. Nesta obra
temos a grande felicidade de ouvir vozes femininas. Isso muda todo o foco.
Eis o grande valor histórico desta obra, além do indiscutível valor literário,
como, por exemplo no seguinte trecho: “Quanto a pássaros, embora pertença
a terras estrangeiras, é muito enternecedora a cacatua. Dizem que ela imita
tudo o que falam as pessoas. O cuco-pequeno. A galinha –d’água. A narceja.
A gaivota, ‘pássaro-da-Capital’. O pintassilgo verde. A papa-moscas.”
Embora seja uma narrativa, supreende, uma vez mais, a melodia, o ritmo,
elementos primordiais de poeticidade.
Durante a leitura da obra absorvemos o comportamento das pessoas
que viveram tão distantes de nós. Imaginamos um tempo sem as tecnologias
de hoje e a descrição de encontros, em todos os sentidos, completamente
diferentes dos atuais. Um sistema político e hierárquico que promove outras
formas de relação entre as pessoas e formas de existir, talvez, nunca
imaginadas por nós, como no seguinte trecho: “Acima de tudo mesmo, nada
há de mais detestável do que uma pessoa mal vestida que vem assistir aos
eventos imperiais em uma carruagem miserável. Se fosse somente para ouvir
sermões budistas, não haveria problema, pois estaria vindo para redimir-se
das faltas cometidas. Mesmo assim, não deixa de ser indecoroso comparecer
com esses trajes, mas, quando se trata do Festival Kamo, aí sim, nem sequer
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deveria estar presente a assisti-lo. Sua carruagem não tem persiana interna e
deixa à mostra somente as mangas de um quimono branco sem forro.”
Ao final da leitura da obra em questão, com todos os seus encantos
de um universo bastante diferente do atual, algumas coisas, infelizmente,
notamos que há em comum, com a contemporaneidade, como por exemplo:
sentimentos de inveja, desamor, humilhação e outros bastante degradantes.
Mas o que mais chama a atenção se compararmos a época dos relatos
japoneses com o mundo de hoje é em relação à miséria: “o andar lento de
uma carruagem imunda”, ou, “uma mulher maltrapilha que carrega a criança
nas costas, em dias muito frios ou muito quentes”, ou, “um mendigo
velho”…Em síntese: a miséria nunca deu trégua para a humanidade, em
todos os tempos, em todas as etapas históricas. Triste e real constatação
que, por mais evidente que seja, mostra o quanto ainda teremos que lutar
para que tenhamos um mundo um pouco mais justo. O futuro é longo e
nunca será bonzinho. Nosso consolo, ou pelo menos, um pequeno: as
reservas de vida propostas pelas grandes literaturas. Nada mais resta!
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O que nos diz de importante a obra em questão? Nunca é demais
lembrar que Guimarães pesquisou e estudou muita Filosofia e que Benedito
Nunes jamais deixou em segundo plano a importância que dava à Literatura
para refletir a Filosofia. A obra como um todo possui várias abordagens a
respeito da escritura de Guimarães Rosa, sem nunca deixar o viés filosófico .
Contudo, merece ser destacada a brilhante leitura de Benedito Nunes no que
diz respeito, especificamente, à literatura e filosofia em Grande Sertão:
Veredas. Nunes enfatiza que a “filosofia afirmou-se como discurso
privilegiado (…) condensa-se o traçado, em que a perspectiva metafísica do
pensamento filosófico se fixou – perspectiva de que platonismo foi o
conformador e o difusor históricos – da teoria como visão do inteligível, como
apreensão do verdadeiramente real, objeto último de todo conhecimento.” No
entanto, ressalta Nunes: Sócrates afirma a diferença entre o discurso racional
(verdadeiro) e o da fábula (mentiroso). Prossegue afirmando que Hegel
fundamenta uma outra perspectiva, além de traçar, magistralmente, os
pontos essenciais de trajetória da literatura e filosofia até a
contemporaneidade. Nunes destaca, em especial, dois pontos da obra de
Guimarães Rosa. Primeiramente, a linguagem: “Independentemente da
articulação metafórica elaborada sobre o espaço social e humano de
imediata referencialidade regional – o Sertão - , a reflexividade dominante da
narração, isto é, do processo narrativo, do discurso como tal, entrança
metáforas que são tipos do pensamento. Despreendido de um enorme bloco
da linguagem filosófica, que liga o neoplatonismo à Patrística”.
Outro ponto importante destacado por Nunes é a questão do tempo
em Grande Sertão. O filósofo propõe: o tempo da narrativa, o tempo do relato
oral, o tempo que corresponde aos acontecimentos e o tempo da evocação,
da lembrança. Nada mais sábio do que as proposições de Nunes se
lembrarmos que as questões a respeito de tempo seriam ainda muito mais
complexas e obscuras, se as abordagens literária e filosófica não existissem.
Por quê? Como já disse Deleuze: a busca do tempo tem uma relação
essencial com a busca da verdade. Literatura e filosofia, ambas, mesmo que
por critérios diferentes, anseiam a busca ontológica do ser. Busca de
temporalidades, busca de verdades!
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A leitura da obra em referência possibilita uma estrada favorável e
prazerosa para os leitores que desejam um aprofundamento para se
entender os meandros das diversas escolas filosóficas, assim como para
aqueles que anseiam compreender com mais clareza os pressupostos da
literatura de Guimarães, ou seja, a linguagem enquanto palavra reinventada.
E nessa medida enquanto expressão máxima do ser. Do existir.
Parafraseando Sartre em um de seus belos ensaios…um livro, na
verdade, não passa de um amontoado de folhas secas. No entanto pode ser
uma grande forma em perfeito movimento, ou seja, a leitura.
Somente a leitura poderá movimentar as palavras! De que adianta um livro
numa bela estante?
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esclarecidos. Ou seja: nos atrevemos a desafiar o contubérnio tão temido das
ciências e das artes; a misturar numa mesma caldeira aqueles que ainda
confiamos na clarividência dos presságios e aqueles que só acreditam nas
verdades verificáveis: a muito antiga adversidade entre a inspiração e a
experiência, entre o instinto e a razão.” Nessa medida, o escritor latino
americano explora, maravilhosamente, as possibilidades e o permanente
diálogo entre a literatura e as ciências. Retoma o velho debate, contudo,
bastante importante, de que as ciências, as artes em geral e a literatura não
estão isoladas ou são inimigas, visto que, de acordo com o autor, as
interrogações da literatura e das ciências são praticamente as mesmas
“sobre um mesmo abismo”.
Vale lembrar que as ciências e a literatura possuem questionamentos
e buscam, em certa medida, problematizar, tematizar e questionar pontos
importantes para a humanidade, todavia, por caminhos de criação diferentes.
Enquanto as ciências buscam verificar e legitimar suas hipóteses por
intermédio de uma racionalidade, por meio de métodos, ou seja, seguindo,
via de regra, um determinado paradigma, a literatura, assim como as artes,
privilegiam a intuição, esta, entendida, não apenas como um mero presságio,
mas, sim, como um dos elementos que integram a imaginação e o raciocínio.
O autor colombiano em vários dos “discursos” apresentados traz para nós
questões e situações ligadas ao valor de uma amizade. A todo momento faz
alusões aos amigos e à cumplicidade que existiu ou existe entre eles. Traduz,
com muito humor, as situações de apuros ou vitórias com os amigos, a
maioria deles, escritores. A troca de leituras, desentendimentos e outros
aspectos das verdadeiras amizades.
García Márquez, na verdade, é um dos maiores representantes da
alma latino americana. Por quê? Porque jamais omitiu em suas obras em
geral e muito menos na obra em questão, que o latino americano possui uma
‘quentura’ jamais vista em outros povos e outras culturas. O latino ama a
vida, apesar das dificuldades de um denominado ‘terceiro mundo’. O latino
acredita em presságios. O latino possui a rara capacidade da admiração. O
latino é intuitivo. Amoroso. Apaixonado. Criativo. O latino sabe, como
ninguém, preencher, em todo os sentidos, Cien Años de Soledad.
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O amor de uma boa mulher
Alice Munro é uma das poucas mulheres deste mundo que conseguiu
ganhar um prêmio Nobel de Literatura. Desde que este foi instituído raras
escritoras conseguiram levar um para suas casas. Por quê? Será que as
mulheres possuem algo a menos que não conseguem escrever literatura
considerada de primeira linha? Será que as Musas odeiam as mulheres?
Justo as grandes prolongadoras das memórias? Evidentemente, conforme se
sabe, que as razões são outras. Historicamente as mulheres foram deixadas
de lado, sempre, para outras formas de ocupação. Mesmo com todos os
avanços em busca da liberação feminina, a mulher, durante o século XX,
pouco conseguiu. Prova disso é o Nobel de Literatura (diga-se de passagem
não somente o Nobel de Literatura...).
Nessa medida, mais do que nunca, devemos conhecer melhor a
grande Alice Munro, escritora canadense. O amor de uma boa mulher
comprova, com certeza, a materialização de uma obra literária que carrega
um alto teor de competência e habilidade na escritura de contos.
Os contos de Alice Munro provam que a contemporaneidade
consegue, ainda, olhares agudos, em especial, a situações do cotidiano, que
vão além de uma simples crônica. O amor de uma boa mulher traz oito
contos longos. Diferentemente da maioria do gênero, vê-se nesta literatura
um espaço raro de aprofundamento de análise do comportamento humano.
Da alma humana, como no seguinte trecho: “Vez por outra, contudo, vinha
um momento em que tudo parecia ter algo para lhe dizer. Os arbustos
agitados, a luz descolorante. Como um relâmpago, de roldão, sem dar tempo
para se concentrar. Logo quando seria desejável ter um panorama da
situação, você era confrontado com uma visão acelerada e ridícula, como se
estivesse num brinquedo de parque de diversões. E por causa disso admitia
a ideia errada, sem dúvida a ideia errada, de que alguém morto pudesse
estar vivo e morando em Jacarta”.
A literatura de Alice Munro não é, de forma alguma, feminista.
Contudo, consegue desvendar de maneira primorosa e detalhada a alma
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feminina. Seus desdobramentos mais íntimos. A alma feminina sem
julgamentos. Uma literatura sem análise das atitudes de personagens. A
escritora, na construção de seus contos, age como se estivesse a uma
distância que busca isenção, ao mesmo tempo que suas lentes agudas
conseguem dar os pormenores das situações descritas com alto grau de
sensibilidade.
Na verdade, a obra como um todo, o que nos diz? Entre tantas outras
coisas: que o mundo é complexo. Que a vida é a busca do preenchimento
das incompletudes, não somente as imateriais. Que estamos imersos,
individualmente, nos labirintos inescapáveis da solidão. Que quando
pensamos que estamos imersos em águas de calmaria... turbilhões de poeira
intentam cegar e subtrair momentos de segurança. Que literatura é uma
profunda camada de desconforto necessário para que possamos sobreviver
com dignidade!
Um solitário à espreita
77
assim como fragmentos de memórias do autor, como no seguinte trecho em
que Milton se refere à avó: “Quis o acaso que eu fosse um de seus netos
queridos. Com os filhos ela era implacável, como são as mães de uma penca
de marmanjos. Quando os seis homens da casa se atracavam como
gladiadores e berravam camelôs em pânico, bastava um olhar da matriarca
para que os vozeirões se rebaixassem a miados de angorá. Podiam brigar
por dinheiro, futebol ou política, mas nunca por amor a uma mulher, já que a
única mulher na vida deles era ela mesma.”
Um solitário à espreita, nestes tempos de loucura temporal, quando o
tempo se tornou uma espécie de mercadoria mais preciosa do que o próprio
dinheiro (gente bilionária possui bens, muito e muito dinheiro, mas não
consegue tempo, inclusive, para gastá-lo), é um livro que pode ser lido aos
poucos, visto que os textos são independentes.
Mas os textos, embora independentes entre si, visto que cada crônica
é um tema, possuem traços em comum. Quais seriam os mais essenciais?
Um deles é o grande humor aliado a um amargor suave do narrador/escritor,
como por exemplo: “Em novembro a sorveteria fechou. Ghodor socorreu o
irmão, mas este teve de vender sua casa, sua lambreta velha e os anéis que
iam brilhar nas mãos de sua recente namorada, uma beleza cabocla muito
mais vaidosa que idosa. Até os copinhos de papel foram a leilão.” Um outro
traço que irmana as crônicas é a ironia. E uma ironia fina, elegante, que, via
de regra, faz o leitor mergulhar agudamente em suas próprias situações, eis
um ponto fundamental desta obra. Se uma crônica, conceitualmente, é um
texto leve, as crônicas de Hatoum conseguem a proeza de nos lembrarmos
de nossas vivências, também, com certa leveza , de que apenas uma boa
literatura consegue. E, finalmente, o nosso escritor faz uma advertência
bastante importante a respeito da Literatura: segundo ele, para muitos
escritores a fonte de suas narrativas estaria nas memórias de infância e
juventude. “A memória incerta e nebulosa do passado acende o fogo de uma
ficção no tempo presente.” Comenta que as experiências vividas por um
escritor são muito importantes por aqueles que elegem as letras. Contudo,
assegura o autor, para aquele que aspira ser um escritor há um elemento
fundamental: a leitura. Com isso, inferimos, uma vez mais, quer o escritor, ou
qualquer um de nós, para que, realmente, possamos penetrar em outros
78
universos, em especial o filosófico, o domínio de linguagem é o grande
passo. Entretanto, o grande passo para o mundo da linguagem em geral
possui somente um caminho: LITERATURA.
O idiota da família
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interiorizada.” Ao lermos a obra em questão misturam-se, descontruindo
qualquer conceito de gênero que tenhamos definido, elementos de romance,
biografia, autobiografia, filosofia e, sobretudo, muita literariedade.
Questionamentos a respeito do que possa ser determinado pela educação
familiar em nosso futuro, frustações que são agudamente sublinhadas pelo
ato de escrever. O que pode um vida entre a determinação e
indeterminação? De que maneira aquilo que há de mais profundo no ser se
destaca na determinação? Eis uma das essências deste livro.
Nesta obra, entre centenas de outros pontos que poderíamos
salientar, uma que merece destaque: o que leva um homem a ser um grande
escritor? Neste momento do livro somos obrigados, praticamente, a fazer um
balanço a respeito dos escritores em geral. Um escritor busca
fundamentalmente por meio de uma obra mostrar a totalidade de uma vida.
Mas para isso deve partir de uma sensibilidade singular. Uma percepção
nunca antes experimentada. Daí o caráter de subjetividade que permeia toda
e qualquer literatura. Por um outro lado, não basta apenas sentir. Possuir
uma perspectiva subjetiva. É necessário objetivá-la. Eis um dos maiores
desafios da literatura. E isso se chama deslocamento de linguagem.
Remetemo-nos, uma vez mais, aos problemas que tanto inquietaram os
lúcidos: escrever não é contar uma bela historinha. Uma memória. Escrever é
o grande desafio de transpor um mundo interior, aliado a uma experiência e a
uma sensibilidade aquilo que poderia auxiliar a humanidade e,
possivelmente, resgatar diálogos interiores que convoquem nosso
compromisso com valores exclusivamente dignos e relevantes.
Sartre faz um alerta: em Flaubert, em 1835, existe “uma dupla
concepção da literatura: por um lado, na medida em que ele procede do
monólogo interior, ela lhe parece um saciamento totalitário, irreal mas
materializado, de seus rancores e de seus desejos; é um virulento frenesi que
só se acalmará quando ela tiver aprisionado o mundo para denunciar sua
irrealidade; por outro lado, é um apelo à calma, um convite para reunir-se, em
vida, à eterna ataraxia dos mortos”.
80
Borges e Sabato, grandes escritores argentinos, foram envolvidos por
intermédio de Orlando Barone para um possível diálogo. Somente por tal
proposta podemos entrever o que virá do livro Borges Sabato: diálogos.
Quais foram as estratégias de Orlando Barone? Em diferentes etapas
e momentos consegue reunir Borges e Sabato em Buenos Aires. Provocar
assuntos para que os dois, de maneira bastante informal, discutam e reflitam.
Nessa medida, o mundo ganha. A humanidade ganha.
Um dos assuntos que merecem ser destacados é a questão a respeito
da famosa distinção que se quer fazer entre prosa e poesia. O senso
comum, conforme se sabe, insiste na separação rígida entre romance e
poema. Há muitos e muitos anos, em especial, com o Modernismo, que tal
separação de gêneros torna-se cada vez mais impossível e sem justificativas.
Pergunta-se: o que seria um romance sem poeticidade? Conclui-se que um
texto em prosa, rigorosamente, seria uma receita de bolo, pudim ou um
manual técnico. Mas nas palavras de Sabato: “Os grandes romances,
embora não estejam escritos em verso, oferecem sempre grandes momentos
poéticos. Pode-se sentir isso tanto em Tolstói como em Proust, em Faulkner
como em Virgínia Woolf. Além disso, em um sentido mais profundo, eu
acredito que toda arte ou alcança a categoria ou não é nada mais do que
crônica jornalística ou naturalista.” E Borges completa: “Um poema longo que
só constasse de frases poéticas seria intolerável. Os poetas do século XVIII,
não é mesmo? Existe um limite. Mesmo nos contos, é melhor que não se
note demais o ofício.”
Em outras partes do livro percebe-se o respeito recíproco entre os dois
grandes argentinos. De qualquer maneira, Barone deixa o leitor entrever que
ambos possuem momentos de muita nostalgia quando se referem a épocas
passadas. Ora momentos de uma coletividade, ora momentos pessoais.
Contudo, foram simplesmente arrasados pelo tempo.
Outro ponto dos diálogos que merece ser destacado é um relativo às
diversas manifestações de representações humanas. Barone discute com os
escritores qual teria sido a primeira arte humana. Cremos que a resposta de
Sabato seja digna de transcrição: “Eu penso, em primeiro lugar, que o
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homem é um ser emocional, em segundo lugar, intelectual. O homem
primeiro sente o mundo e depois cavila sobre o mundo, ou seja, a arte
precede a filosofia, a poesia é anterior ao pensamento lógico. Por isso eu sou
da opinião de que, mas claro, são conjecturas, as primeiras manifestações do
homem são a dança e a linguagem poética. Com ambos os instrumentos ele
expressa os seus temores, as suas esperanças, faz suas invocações, trata
de se comunicar”.
E, nessa medida, assuntos como percepção, cognição e aspectos
relacionados com a intuição são suavemente discutidos por Borges e Sabato.
Diga-se de passagem mestres de primeira grandeza em relação ao assunto.
Os livros que tratam, mais diretamente, do que pensam os grandes escritores
são leituras que acrescentam verdadeiras luzes aos nossos repertórios,
sejam eles quais forem. Sabemos, mais de perto, como os ‘grandes’ sentem
certas coisas, como encaram a música, a juventude, a política e certos
aspectos de nosso cotidiano.
Borges e Sabato, provavelmente, hoje, devem estar no Olimpo por
pura intervenção das Musas junto a Zeus e Menmósine. Provavelmente
desaprovam o descompromisso daqueles que fazem da literatura apenas um
relato de aventuras pessoais. Contudo, aprovam, com sorrisos, literaturas
contemporâneas que dão continuidade às possibilidades ficcionais que
operam no plano da justiça humana em todos os graus e sentidos.
Semíramis
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consagrada por textos anteriores. Contudo, Semíramis arrasa. Vejamos as
razões.
Semíramis é um romance-poema. Cada capítulo do livro é
relativamente curto, quase independente um do outro. Num único parágrafo.
Cada parágrafo é intensamente trabalhado na linguagem. Imagens,
metáforas, enfim, todos os recursos de poeticidade dão materialidade a uma
história plena de sensibilidade, tendo como pano de fundo a vida do nosso
grande escritor brasileiro José de Alencar ou Cazuza como era conhecido
entre os mais íntimos.
Em nenhum momento do livro a autora hesitou no trabalho duro e
difícil da luta pelas imagens mais exatas naquilo que pretendia passar para,
nós, os leitores. As aliterações, em muitos momentos, são plenas, como no
seguinte trecho: “...e vovó percebeu o ciúme de vovô, imagino que foi quando
ela menos odiou dona Bárbara, porque dona Bárbara fazia o vovô sentir o
que o vovô fazia a vovó sentir por toda a vida a cada instante.” Ritmos que se
mesclam e potencializam subjetividades. Não há como ler o livro com pressa.
Não! A obra nos arrasta a todo o momento para encontros inusitados com
nossa “alma”. De forma inescapável. Absolutamente sem meras projeções
subjetivas. O mergulho é denso. Profundo.
Enquanto isso desenrola-se uma história, quase velada, de José de
Alencar. Obrigatoriamente somos levados a sondar a vida do autor de A
Viuvinha, Lucíola, Iracema. Inelutável: será que Alencar amou, de fato,
Chiquinha? Será que Alencar foi rejeitado por ela? Casou-se algum dia? Com
quem? E, nessa medida, o livro nos obriga a consultar as fontes documentais
daquele que foi a nossa maior expressão literária romântica...E, na verdade,
na escritura de Ana Miranda ressoam ecos poéticos de Alencar, sem, em
nenhum momento, retirar a autenticidade e singularidade da escritora-
poetisa. Ao mesmo tempo reflete questões fundamentais a respeito do papel
do poeta, como no seguinte fragmento: “Padre Simeão dizia que as cousas
acontecem apenas para serem cantadas, e se não forem cantadas, deixam
de existir, só aconteceu a Guerra de Troia, dizia o padre, entre dois
continentes, a morte de tantos heróis, para que Homero as escrevesse em
seus versos imorredouros, e lá estava eu e meu pequeno drama interiorano,
cantado, elevado aos altares das grandes leoas.”
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Ana Miranda nos lembra: Os mestres da Verdade são os poetas. As
Musas, filhas de Mnemósine, os levam para os acontecimentos que
definitivamente devem ser imemoriais. Somente a literatura poderá
imortalizar a finitude. Atenuar miserabilidades. Prolongar sensibilidades.
Semíramis é um jato de poesia que potencializa existências.
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companheiro ou companheira. Quem poderia ter escrito melhor ? “Rogou a
Deus que lhe concedesse ao menos um instante para que ele não partisse
sem saber quanto o amara por cima das dúvidas de ambos e sentiu a
premência irresistível de começar a vida com ele outra vez desde o começo
para que se dissessem tudo que tinham ficado sem dizer, e fizessem bem
qualquer coisa feito mal no passado. Mas teve que render-se à intransigência
da morte.” Ou: “Não se sentiam mais como noivos recentes (...) Era como se
tivessem saltado o árduo calvário da vida conjugal, e tivessem ido sem
rodeios ao grão do amor (...) Pois tinham vivido juntos o suficiente para
perceber que o amor era o amor em qualquer parte, mas tanto mais denso
ficava quanto mais perto da morte.” Esta obra, afirmou, em diversos
momentos, o próprio autor, era o grande legado que deixava para o
imemorial da literatura. Talvez a melhor e maior história de amor que alguém
conseguiu imortalizar.
Gabo (como era chamado entre os amigos) deixa um grande legado.
Não deixa somente suas obras que deverão eternizá-lo. Deixa o exemplo de
envolvimentos com as causas que realmente importam. Envolveu-se em lutas
para desenvolver a literatura, o cinema e outras artes, além de outras que
sempre ultrapassaram o estritamente pessoal.
Imagine-se Gabo com grande gaborito e sorridente entrando, sem
pedir licença, no Olimpo em busca das nove Musas, prolongadoras da
memória. Sorridentes elas, finalmente, vão conhecê-lo mais de perto. Imunes
às tristezas dos mortais (tão efêmeros) deliciam-se com as possibilidades
narrativas que de agora em diante poderão desfrutar sem culpa. Afinal, seus
sussurros sempre foram muito bem ouvidos e eternizados por aquele que
nunca se rendeu à crônica da morte anunciada de uma literatura grandiosa.
Cangaços
85
transformações tornam passadas, de forma praticamente instantânea, tudo.
Em especial, as grandes literaturas. Logo, o melhor caminho, à medida do
possível, é acompanhar de forma criativa o que ocorre e agir.
Graciliano Ramos, grande representante de nossa literatura, inclusive,
para muitos outros países, ressurge com a obra Cangaços graças ao trabalho
meticuloso e rigoroso de organização de Ieda Lebensztayn e Thiago Mia Sall.
Os organizadores reuniram textos de Graciliano Ramos a respeito do
banditismo sertanejo, entre outros. Tais textos do autor alagoano expressam
suas perspectivas lúcidas focando as misérias do sertão, como tão bem o
autor já fizera, em especial, na obra Vidas Secas. Não custa lembrar: se
existiu um escritor inconformado com a injustiça, com a opressão e todos os
tipos de submissão, foi Graciliano Ramos. Toda a sua literatura, de forma
bastante criativa e original, buscou dar voz aqueles que não a tinham.
Famoso é o caso de Fabiano, personagem de Vidas Secas. Poucos
escritores tiveram a consciência de linguagem, e seu poder, como o autor
alagoano.
Esta obra traz, inclusive, de volta Lampião. O famoso cangaceiro e
alguns de seus feitos. “Há dias surgiu por aí um telegrama a anunciar que o
meu vizinho Virgulino Ferreira Lampião tinha encerrado a sua carreira, gasto
pela tuberculose, deitado numa cama, no interior de Sergipe. (...) Não é a
primeira vez que Lampião tem morrido. E sempre que isto se dá as notas
com que se estira o acontecimento deturpam a figura do bruto e manifestam
a ingênua certeza de que tudo vai melhorar no sertão. O zarolho de
romantiza, enfeita-se com algumas qualidades que se atribuíam aos
cangaceiros antigos, torna-se generoso, desmancha injustiças, castiga ou
recompensa, enfim aparece inteiramente modificado.” O que se pode inferir
por este fragmento? Um dos critérios maiores que legitimam as grandes
literaturas. O autor alagoano não julga o comportamento de Lampião. A
abordagem de Graciliano é muito lúcida: Lampião é uma figura lendária (e
continua sendo). Por um lado, os sertanejos criaram uma figura heroica que
nunca existiu. Por um outro ele foi considerado um grande bandido.
Com base nos outros textos deste livro, inclusive, Graciliano não julga
e analisa comportamentos. Expõe situações de injustiças sociais. Expõe a
situação existencial de seres que quando maltratados, em todos os graus e
86
sentidos, buscam uma saída para lutar por sua sobrevivência. O universo
graciliânico jamais possuiu heróis, mocinhas, bandidos. O universo do
escritor alagoano é extremamente humano. Situações que implicam na busca
de valores que consigam possibilitar um mundo respirável.
Com tal literatura o autor mostra o quanto lutou com as armas da
linguagem por um mundo com menos misérias. Nessa medida, como muitos
já disseram e com razão, Graciliano por intermédio do sertanejo e do
cangaço existente em sua época, ultrapassa os limites geográficos do sertão.
Os dramas humanos passam a ser dramas de caráter universal. A miséria e
a injustiça. A subserviência. A tirania, como sempre, de sistemas que buscam
excluir a dignidade de poder existir com liberdade. “Corisco não possui
barbas nem virtude. Se tivesse permanecido em cima, acataria um certo
número de coisas sérias, tomaria em consideração os domingos, as festas
de guarda, a honra das donzelas. Fora da sociedade, metido no mato como
um bicho, sem calendário, e sem mulher, desprezou noções rijas e antigas.
Submeteu-se à lei da necessidade. (...) Um branco degenerado. Há por lá [no
Nordeste] muitos brancos degenerados pela miséria.”
87
de forma lamentável. O que importa é o famoso eu, eu, eu e nada mais. A
maioria das autobiografias, em especial, da atualidade, buscam isso.
Irritantemente.
A obra em questão mostra um eu em diversas etapas. De forma
elegante. E o que é o melhor: tudo, absolutamente, tudo que o grande
escritor russo nos coloca, possui literariedade. Uma beleza de escritura. Que
bom poder afirmar, mais uma vez, que um livro de memórias pode ser
literário, como tantos, felizmente, que já existem. Porém, raros. Não sejamos
tão confiantes. Nabokov não fica somente descrevendo seus momentos e
suas sensações. Consegue dar voz a outras pessoas que integraram sua
vida, como, por exemplo, na fascinante imagem de Mademoiselle: “Ela
gastara toda a sua vida em se sentir desgraçada; essa desgraça era seu
elemento natural; suas flutuações, profundidades cambiantes, só isso dava a
ela a impressão de movimento e vida. O que me incomoda é que uma
sensação de desgraça, e mais nada, seja insuficiente para tornar uma alma
imortal. Minha enorme e morosa Mademoiselle está muito bem na terra, mas
é impossível na eternidade.”
O autor russo consegue estruturar uma autobiografia, sempre
recuperando momentos de sua vida, ao mesmo tempo que apresenta as
pessoas que tomaram parte dela. E, nessa medida, fragmentos de uma
memória que sabe que os fatos já se passaram e, portanto, no instante de
fixar a narrativa, deixaram de ser os mesmos. O que em nenhum momento
passa despercebido pelo autor. À medida em que escreve, também, faz
algumas reflexões importantes a respeito do tempo, como por exemplo:
“Inicialmente, eu não tinha consciência de que o tempo, tão ilimitado à
primeira vista, era uma prisão. Ao examinar minha infância (que é a coisa
mais próxima do prazer de examinar a própria eternidade) vi o despertar da
consciência como uma série de flashes espaçados, com os intervalos entre
eles diminuindo aos poucos até se formarem claros blocos de percepção,
fornecendo à memória um apoio escorregadio.”
Fica claro que o escritor não concebe a memória apenas como um arquivo
classificatório. A estrutura interna do livro demonstra isso. Ele busca,
fundamentalmente, uma teoria, uma concepção muito particular e instigante a
respeito do tempo, assim como da memória.
88
Vladimir Nabokov teve uma vida intensa. Nasceu na Rússia e por
ocasião dos bolcheviques no poder, ele e sua família moraram em diversos
lugares no mundo. Além de escritor, foi professor. De qualquer maneira
temos na obra em referência uma bela autobiografia despojada de todos os
vícios imperdoáveis de escritura voltada única e exclusivamente para um eu
ordinário e cheio de vaidades.
Fora do Lugar
89
escapar, ora por força de uma formação, ora por força de uma paixão quando
reflete as mais diversas questões a respeito de cultura, religião e política.
Nesta obra autobiográfica ele declara: “este livro foi escrito em grande
parte durante períodos de doença ou tratamento, às vezes em casa, em
Nova York, às vezes desfrutando da hospitalidade de amigos ou instituições
na França e no Egito. Comecei a trabalhar em Fora do lugar em maio de
1994, enquanto me restabelecia de três sessões iniciais de quimioterapia
para tratamento de leucemia.” Said lutou contra a doença por mais ou menos
dez anos. Até ser definitivamente vencido por ela. No entanto jamais parou
de escrever. A doença foi determinante na firme decisão de escrever um
livro de memórias, cuja perspectiva predominantemente subjetiva o autor não
nega.
A obra não segue uma cronologia linear (e sem graça) da infância até
o momento em que ele relata suas memórias, ou seja, os momentos de
reflexão em que o autor recupera fatos de sua vida. Há um longo exercício de
vai e vem que é um dos pontos altos deste livro porque causa uma tensão
textual vigorosa que prende o leitor. Quer se saber mais e mais do autor. E,
nessa medida, somos, agradavelmente, transportados para o Cairo do início
do século XX. Um Egito completamente distinto do que se apresenta hoje,
entre outros motivos, porque a Palestina ainda não tinha se dividido. Somos
transportados para Beirute e para as montanhas do Líbano. Os veraneios da
família do autor, via de regra, eram no Líbano (sua família era extremamente
abastada). As impressões de infância do autor são reportadas, em grande
grau, para a escola e para seus pais.
Said estudou em diversas instituições. Ora de composição inglesa, ora
de composição americana. E com isso traça, involuntariamente, uma
verdadeira história da educação. A atitude dos professores. O regime escolar.
E há coisas de causar espanto a educadores, estudantes e pesquisadores:
mesmo em se tratando de escolas pagas e consideradas de alto nível
cultural, os regimes escolares como um todo, são profundamente injustos,
desinteressantes e cheios de “castigos”. Por conta dos relatos do autor
podemos tecer comparações com a situação atual das escolas e vemos, em
grande medida, o quanto avançamos em relação às discriminações (por mais
que elas existam). Nas palavras de Said: “Ficávamos perfilados ali
90
supostamente [na escola] para ser contados e acolhidos ou dispensados.
(...)Isso parecia um educado ritual para camuflar o sacrifício de ficar em fila,
onde tinha lugar todo tipo de coisas desagradáveis. Como éramos proibidos
de abrir a boca na classe, exceto para responder as perguntas de
professores, a fila era a um só tempo um bazar, uma casa de leilão e um
tribunal, onde eram trocadas as mais extravagantes ofertas e promessas, e
onde as crianças menores eram intimidadas verbalmente pelos meninos mais
velhos, que as ameaçavam com os mais medonhos castigos.”
Após o ensino médio Said foi para a Universidade de Princeton e,
posteriormente, para a Harvard. Somente depois de ter sofrido todas as
formas possíveis de incompreensões por parte de sua família, de seus
professores e diretores. Por quê? Porque seu comportamento, em geral, não
trilhava pelo que se esperava de um bom menino. Dócil, obediente e que
concordasse com tudo. Said sempre se mostrou rebelde e mais centrado
naquilo que lhe interessava. Somente começou a se destacar no plano
intelectual durante o ensino médio.
Finalmente, a leitura das memórias de Said nos proporciona uma das
maiores lições para pais, professores, estudantes e professores, ou seja, o
quanto as escolas sempre foram cegas a alunos contrários aos cânones. E
vale ressaltar, uma vez mais: o quanto o sistema escolar costuma jogar fora
grandes talentos e insubmissos. Said é mais um exemplo daqueles que
sofridamente conseguiu escapar do sistema e mostrar que a autenticidade e
convicção devem ser perseguidas a qualquer preço. Não há grandes desafios
e quebra do estabelecido sem grandes penalidades para a alma.
Eternamente a solidão perseguirá convictos por um mundo mais humanizado.
Digno de ser comtemplado.
Filomena Firmeza
91
deixaria muita gente de cabeça virada! Afinal...o prêmio é por volta de um
milhão de dólares. E, certamente, Sartre não foi o único.
Patrick Modiano recebeu o Nobel em Literatura deste ano. Na
verdade, de acordo com o que foi divulgado em diversos setores da mídia,
ele ficou bastante surpreso. Foi o editor da Gallimard ( sua editora na França)
quem o avisou do cobiçado prêmio.
Em princípio, para aqueles que adoram classificações,
enquadramentos e formas precisas, poderia ser uma obra infanto-juvenil.
Mas não é. Filomena Firmeza é um texto escrito para todos. Não importa qual
a faixa etária. Como todos os bons livros. Naturalmente determinados livros
estritamente literários dependem de um certo repertório prévio, isso é eterno.
O livro em questão fala por uma mulher que recorda seus momentos
de criança, em especial, junto ao pai. Como diria Deleuze: um verdadeiro
devir-criança. O autor francês fala pela criança. Dá voz a uma criança.
Lembrando que os grandes escritores são o que são porque falam em nome
daqueles que não possuem linguagem suficiente para expressar o que
realmente sentem e pensam. Para isto existe a boa Literatura. Viabilizar
vozes oprimidas e esquecidas.
Nessa medida, o livro traz os ecos de um passado de Filomena. Uma
criança que em algum momento de sua vida foi separada da mãe por alguns
anos e seu pai foi quem cuidou dela. Deu-lhe tudo de si para atenuar a
ausência da mãe (que depois reaparece). "Neva hoje em Nova York. Pela
janela do meu apartamento, na rua 59, vejo o prédio em frente onde fica a
escola de dança que eu dirijo. (...) Entre as alunas, há uma menina que usa
óculos. Ela os deixou sobre uma cadeira antes de começar a aula, como eu
fazia com essa mesma idade nas salas da senhora Dismailova. Não se
dança de óculos. Eu me lembro de que, na época da senhora Dismailova, eu
treinava durante o dia para ficar sem os óculos. O contorno das pessoas e
das coisas perdia a nitidez, tudo se tornava desfocado, até os sons pareciam
mais abafados. O mundo, quando eu o via sem óculos, perdia a aspereza." O
que fascina, inclusive, nesta obra é o perfeito equilíbrio entre o verbal e o não
verbal. Quando Filomena (a personagem do livro) tira os óculos, o seu
universo se transforma: como ela diz o mundo fica mais suave. E isso,
durante todo o livro, é feito pelas imagens aquareladas do ilustrador. Imagens
92
esfumaçadas que revelam a busca da memória e o esforço do trabalho
memorialístico, se pensarmos que todo passado pode ser operado.
Lembremos uma vez mais: a Literatura de verdade não é um trabalho
infame de memória, ou seja, lembrar exatamente nossa infância, nossos
casos amorosos, nossas relações, sejam elas quais forem. Um livro de
memórias busca ressignificar nossas reminiscências. Dar um novo contorno a
elas. Haja vista que o autor se transforma em uma mulher que lembra seus
momentos de infância. A doçura e o cuidado do pai para suprir a ausência
materna. Literatura é, acima de tudo, universalidade. Filomena Firmeza traz,
a todo momento da leitura, momentos de uma mulher que presentifica seu
passado aos olhos do atual. Do que ela se tornou. Eis o verdadeiro trabalho
de sua memória.
O livro pode ser lido em voz alta para uma criança. O lido pode ser lido
em voz silenciosa por um adulto. Este livro é um exemplo de que mesmo em
momentos, aparentemente, sem grandes referenciais literários, podemos
esperar que há vozes buscando espaço. Apesar de todos os
estrangulamentos a que que hoje temos assistido, a voz de uma criança, de
fato, ainda consegue dar visibilidades importantes a respeito de nossas vidas
pessoais. O ilustrador, diga-se de passagem, que foi eternamente excluído
da escola e de outros espaços, consegue de maneira suave, dialogar
plenamente com o texto verbal. A obra possui diversas dimensões
plenamente espiraladas. Perfeita coreografia. As dimensões ligam, por
camadas enevoadas, o autor, a menina, o pai da menina e o leitor. A
dimensão mais forte nos leva a estratos de memórias em comum que nos
sugerem o que o autor declara: "Permanecemos sempre os mesmos, e
aqueles que fomos no passado continuam a viver até o final dos tempos."
93
homens sentiram a necessidade de conhecimento para entender melhor o
seu papel no mundo.
Educação como prática da liberdade é uma obra famosa, em mais de
cinquenta países do mundo, do grande educador Paulo Freire. No entanto,
Paulo Freire foi um professor/educador no sentido mais completo. Jamais se
contentou com fórmulas de aprendizagem estabelecidas por qualquer
sistema. Buscou, sempre, de maneira incansável novas maneiras de educar.
E esta obra deveria ser lida não somente por educadores. Mas. Por todas as
pessoas, visto que acima de qualquer coisa é uma grande lição de liberdade.
Paulo Freire parte do princípio de que somos seres temporais, ou seja, de
que existimos no tempo. A temporalidade é um traço humano. Diferente de
um gato, declara o autor. Um gato ou os animais em geral não possuem a
menor consciência de sua temporalidade. Nessa medida, o tempo para eles
possui uma unidirecionalidade. O homem não. O homem emerge no tempo,
logo, pode mudar, transformar. Intervir na realidade que o cerca.
Mas...discute o educador como fazer isso de forma democrática e
participativa? Somente respeitando a cultura do outro. Nessa perspectiva
Paulo Freire propõe uma educação em que o diálogo entre alunos e
professores é fundamental. O verdadeiro educador deve, sempre, respeitar o
aluno.
Um educador, de acordo com Paulo Freire, não pode somente
transferir conhecimentos. O verdadeiro educador deve levar o aluno a pensar
por si só e a buscar autonomia. A educação deve ter nobreza e sensibilidade
de buscar estratégias em que o aluno possa realmente aprender e como tal,
possivelmente, intervir em sua vida. Intervenção implica em participação
política em todas as suas esferas.
Um outro motivo para se ler Educação como prática da liberdade é
pela qualidade da linguagem do autor. A linguagem de Paulo Freire é,
simplesmente, arrebatadora! Eis um dos grandes exemplos de texto literário
que traduz conceitos de forma carregada de poeticidade. O autor não poupa
imagens, metáforas e outros recursos estilísticos que somente os grandes
escritores conseguem materializar.
94
Bauman sobre Bauman
95
em especial, porque o sistema neoliberal isenta o Estado na maior parte de
suas responsabilidades.
Ler este livro é uma grande lição de política, erudição e cultura. A
leitura de Bauman, em todas as suas obras, nos traz grandes aprendizados
porque nos alerta, a todo momento, das condições sociais e de suas
armadilhas, via de regra, invisíveis a um olhar sem as lentes dos grandes
analistas como Bauman.
A crítica e a convicção
96
grande pensador. Quando perguntado a respeito de tempo o autor, entre
coisas importantes, responde que para ele sempre existirão duas leituras a
respeito do tempo, ou seja, uma leitura cosmológica e uma leitura
psicológica, um tempo do mundo e um tempo da alma. Declara que o tempo
não pode propor a uma visão única. Para abordar o tempo de forma mais
completa, declara Ricoeur, é preciso ter instrumentais práticos e conceituais.
O grande filósofo também nos convida a pensar a respeito da estética.
O que espanta em Ricoueur é seu arcabouço conceitual. Grande humanista e
com isso ganhamos fundamentações ricas não somente em experiências,
mas conceituais. Para o pensador francês a obra de arte desnuda aspectos
da realidade que, possivelmente, jamais teríamos acesso, a não ser por meio
das grandes obras de arte.
A Força da Idade
97
artistas e escritores num mundo muito diferente do atual. A recepção de uma
nova obra ou de grandes óperas, filmes e outros eventos culturais.
A escritora francesa não foi uma filósofa da contemplação. Acima de
qualquer coisa foi uma grande andarilha, quase aventureira. Mulher de ação.
Na maioria das vezes na companhia de Sartre. Viajava pelo interior da
França. Caminhava, muitas vezes, por todos os lugarejos ao redor de Paris
ou perto de cidadezinhas francesas, a pé. Chegou a caminhar, em certos
momentos de suas viagens, até quarenta quilômetros num mesmo dia.
Dormia ao ar livre... em cima de telhados. Escalava montanhas com mochilas
nas costas. E o melhor: sempre com pouquíssimo dinheiro. As suas viagens
são, via de regra, com o dinheiro contado. Todas as experiências de
andarilha serviram para a prática de sua escritura. Observadora
extraordinária, como no fragmento a seguir: "Nunca me aborrecia. Marseille
não se esgotava. Caminhava pelo molhe em que as águas e o vento batiam,
olhava os pescadores, em pé entre os blocos de pedra de encontro aos quais
as ondas rebentavam e que procuravam no fundo das águas turvas não sei
que alimento; perdia-me na tristeza das docas; rondava em torno da porta de
Aix e pelos bairros em que homens trigueiros vendiam e revendiam sapatos
velhos e andrajos."
Mas Simone de Beauvoir viaja também por outros países com Sartre.
Note-se que numa época em que a mobilidade mundial era muito diferente do
que hoje se apresenta. O casal viajou pela Espanha, Grécia, Marrocos, Itália
e muitos outros países, muitas vezes, de navio (para viajar de avião naquela
época era preciso ter muito dinheiro). Em todas as viagens relatadas o que
vale são as reflexões que faz, juntamente, com Sartre a respeito do
comportamento das pessoas. Da geografia e da gastronomia dos lugares
visitados. Com isso, nós leitores, passamos a compreender e a comparar
melhor, as diferenças que marcam uma época e uma cultura.
Outro ponto essencial desta obra: os aspectos ligados à esfera
educacional. A autora francesa foi uma grande professora. Em todos os
lugares em que lecionou, escolas denominadas secundárias (correspondem
hoje, no Brasil, ao ensino médio), deixou sua marca singular. Libertou suas
alunas de preconceitos. Sabia que deveria torná-las independentes,
sobretudo, para pensar. Sempre se preocupou com a autonomia intelectual
98
de suas alunas. Com isso podemos entender melhor como eram as escolas,
assim como o papel do professor. Simone jamais deixou de preparar cursos
inovadores para seus alunos. Jamais deixou de pesquisar, ler e buscar
soluções para que sua jornada professoral fosse a melhor possível.
E, finalmente, esta obra é um verdadeiro conselheiro para quem
deseja, um dia, escrever, qualquer gênero. Romances. Contos. Filosofia.
Texto acadêmico. Por quê? Porque a autora, durante toda a obra, revela sua
obstinação, em um dia se tornar uma verdadeira escritora. Relata, com a
maior sinceridade e rigor com ela mesma, suas tentativas para escrever um
romance. Não somente lia tudo o que lhe vinha nas mãos, como escrevia e
jogava aquilo que achava inqualificável. Conversava e debatia com amigos
intelectuais, assim, claro, como com Sartre (crítico severo). Ela era exigente e
sabia que um bom livro deveria ser construído com rigor. Jamais deixou que
as ingenuidades tomassem conta de suas obras. Confessa, com grande
profundidade psicológica, os caminhos em busca de uma literatura rigorosa.
Ficava horas e horas, meses, anos...escrevendo e reescrevendo. Nesta
medida, nós, leitores, uma vez mais, ganhamos. A obra em referência é um
grande tesouro. Produto de um intenso trabalho de memória aliado a um
grande talento literário. Uma obra que possibilita revisar nossos valores e
comportamentos diante das responsabilidades com as quais nos deparamos
em nossas vidas.
99
não poderia jamais contemplar "qualquer um". Pode-se afirmar que a
biografia e as memórias, em geral, seguiram o mesmo rumo.
Durante o século XX, em especial até os anos cinquenta, o panorama
mudou um pouco, mas de forma expressiva. Iniciou-se um movimento no
sentido de exaltar não somente reis e imperadores, mas outras pessoas, via
de regra, não dignas de serem biografadas e muito menos de fazer uma
autobiografia. E, finalmente, dos anos oitenta do século passado para cá as
biografias e autobiografias quase viraram febre. Basta um ator famoso, ou
jogador de futebol, ou cantor estar envolvido com algum tipo de escândalo,
em especial, de sua vida privada, para que, em pouco tempo, surja uma
biografia ou uma autobiografia linear, unilateral e ordinária. Relatos de
bisbilhotices não faltam em tal tipo de literatura horripilante. Verdadeiras
colunas de fofocas detestáveis.
No entanto, felizmente, no meio ao universo descrito, surgem as
grandes biografias e autobiografias. Sartre: uma biografia, Annie Cohen-
Solal, é um livro exemplar. Sejamos francos: a começar pela escolha do
biografado. Sartre, ultimamente tão esquecido (suas obras em geral estão
esgotadas no Brasil e no exterior) merecia mais. Um dos motivos, ou, talvez,
o mais importante: pensou, repensou, analisou e praticou a liberdade.
Nesta biografia muito bem documentada a autora começa pela origem
do filósofo do existencialismo. As mais remotas. E a partir daí traça toda a
trajetória de Sartre: professor, pesquisador, filósofo, romancista, ensaísta.
Inseparável de Simone de Beauvoir, a Castor. Juntos mantiveram uma
relação totalmente singular: cinquenta anos de uma cumplicidade sem
precedentes onde cada uma tinha sua autonomia. Um casal que jurou um
pacto de total liberdade, sem jamais perder os objetivos em comum. De
acordo com a autora eles liam juntos, viajavam, escreviam, enfim, o pacto de
autonomia e cumplicidade nunca foi rompido. Cada um, evidentemente,
pagando seu preço.
Um dos pontos que chamam a atenção nesta obra refere-se à
capacidade de reflexão do casal. À medida que Sartre e Simone conviviam,
paravam e refletiam a teoria que, de forma obstinada, intrigava Sartre.
Lembremos o que a obra evidencia: Sartre em sua Filosofia jamais abriu mão
de pensar a liberdade. Em que medida a liberdade pode ou não ser
100
potencializada pela humanidade? Esta biografia demonstra, com bastante
propriedade, o exercício de pensamento de Sartre, em especial, depois da
Segunda Guerra Mundial. Os limites do social no comportamento e ação
individuais.
A biógrafa destaca, em muitos pontos desta obra, o trabalho insano de
Sartre ao jamais fugir de um de seus objetivos fundamentais de vida:
escrever literariamente a respeito de Filosofia. Romances filosóficos. E assim
foi reconhecido pelos melhores pensadores de sua época, como por
exemplo, André Gide, Merleau-Ponty e tantos outros. Sartre acreditava,
cremos que com muita razão, que somente uma linguagem literária teria a
propriedade de, realmente, concretizar conceitos filosóficos. Daí sua
obstinação em perseguir uma Filosofia que fosse registrada por meio da
literatura. A espessura da Literatura seria a arma perfeita para seus objetivos
de escritor.
Um outro ponto destacado pela autora é a questão famosa do Nobel.
Lembremos com alegria e felicidade: Sartre, elegantemente, teve a grande
coragem, em todas as esferas, de recusar um Nobel. Por tal atitude pode-se
medir, em parte, o desprendimento do pensador. Milhões de pessoas
sonhariam em ganhar um Nobel. Sartre recusa. Quais foram os motivos
declarados pela biógrafa? Ela se baseia, naturalmente, nas declarações de
Sartre, ou seja, ele recusa, como explica em carta à Academia Sueca, que
nunca gostou de homenagens e prêmios. Além disso, não pode aceitar que
um escritor seja uma instituição.
A biografia em questão é longa. Sem dúvida houve um trabalho de
pesquisa muito grande. Contudo, de forma implícita a autora deixa uma
provocação, sem precedentes, aos leitores. Isto é: leiam a obra de Sartre.
Somente ela, por si mesma, poderá nos aproximar das 'vertigens
pensamentais' sentidas por um daqueles que deve ser considerado um dos
maiores pensadores e defensores da liberdade humana. Sartre deve ser
lembrado pela humanidade como um homem que nunca deixou de lado o
objetivo de materializar conceitos, na teoria e na prática, de atenuar a vida.
Lá onde ela tende à estagnação e ao conformismo dos indignos. Lá onde há
sempre uma tendência ao lamento e à submissão.
101
Tempo e Espaço na cultura japonesa
102
Inconclusões
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linguagem possui de mais ordinário contribuam com grandes novidades para
uma real consciência da linguagem e da necessidade da leitura em seu
significado mais amplo.
Somente o domínio da linguagem e os elementos que a fundamentam,
de fato, podem levar a novos horizontes conceituais e pensamentais.
Infelizmente, a área mais específica da Educação parece, via de regra,
esquecer disso. Nosso melhor argumento está concretizada nas obras de um
dos maiores pensadores a respeito de Educação, ou seja, Paulo Freire.
Este, que merecidamente é patrono brasileiro da Educação, possui em
sua linguagem elementos incontáveis de literariedade. Suas obras são
verdadeiros pactos de literatura ao postular conceitos cheios de figuras de
linguagens, metáforas e outros recursos que configuram o seu estilo que
jamais se confunde. No entanto, muitas vezes, foi denominado pelos seus
pares como 'muito didático' e outras denominações ordinárias ditas por quem
não possui o menor esclarecimento a respeito de linguagem e consciência.
Lembremos que a busca, que jamais termina, de um estilo implica,
conceitualmente, em liberdade, autonomia e possíveis preenchimentos de
incompletudes em todas as esferas, em especial, as das subjetividades.
104
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PRIMEIRA E SEGUNDA ORELHAS:
"Quando uma sociedade, mais ou menos estável, avança num passo mais
lento, o homem, para poder se distinguir de seus semelhantes (semelhantes
que tão tristemente se parecem), atribui uma grande atenção a suas
pequenas particularidades psicológicas, pois só elas podem lhe trazer o
prazer de saborear a individualidade que ele pretende inimitável. Mas a
guerra de 1914, esse massacre absurdo e gigantesco, inaugurou na Europa
uma nova época, em que a história, autoritária e ávida, surgiu diante do
homem e tomou conta dele. É de fora que, doravante, o homem será
determinado em primeiro lugar. E ainda: esses choques vindo do exterior
não serão menos surpreendentes, menos enigmáticos, menos difíceis de
compreender, com todas as consequências sobre a maneira de reagir e de
agir do homem, do que as feridas íntimas escondidas nas profundezas do
inconsciente; e não menos fascinantes para um romancista. Só ele, aliás,
poderá apreender como ninguém mais essa mudança que o século trouxe à
existência humana. Não preciso dizer que para isso ele deverá torcer a forma
romanesca usada até então."
Milan Kundera
Quarta Capa:
Simone de Beauvoir
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