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EDUCAÇÃO, LINGUAGENS & LIVROS

Ana Maria Haddad Baptista

1
Agradecimentos Especiais

Aos meus alunos. Surpreendentes. Sempre.

Aos escritores que tomaram para si o desvelamento do mundo e


da existência humana.

2
À Maria Eduarda

3
SUMÁRIO

4
5
Apresentação

Este livro nasceu da grande necessidade de refletir, mais uma vez, a


respeito de leituras e livros, em especial, no âmbito da Educação.
A primeira parte desenvolve alguns questionamentos a respeito do que
seja leitura. Nessa medida, obrigatoriamente, reflete as diversas linguagens e
algumas teorias a respeito de cognição. Ainda existem muitas divergências
acerca do assunto. Desta forma revimos algumas posições colocadas, em
particular, pela Semiótica de Peirce, assim como algumas teorias mais
tradicionais colocadas pela Linguística.
Em que medida a linguagem verbal poderia ser considerada uma
linguagem perfeita? Em que medida a linguagem verbal não precisaria de
outras linguagens para uma perspectiva mais completa e abrangente acerca
dos fenômenos?
Um dos substratos teóricos que sustentam, muitas de nossas
posições, foram colocadas por escritores como Borges, Sabato e outros que
julgamos com plena autoridade para falar a respeito de linguagem, sempre,
de alguma maneira, lembrando que antes do que qualquer coisa os escritores
são aqueles que arejam a linguagem verbal e dão novos rumos ao
pensamento, ou, pelo menos, são os que nomeiam a realidade.
Um outro ponto, visto neste texto, se refere a questões relacionadas
com a leitura de um modo geral. Em que medida as pesquisas a respeito de
leitura acertaram em suas metodologias nada confiáveis? Será que nos dias
atuais as pessoas leem mais ou menos que antigamente? Quais são as
garantias de que antigamente as pessoas liam muito mais como supõem
vários educadores e pesquisadores?
No âmbito da literatura, cremos mais do que nunca, que existe uma
tipologia textual que deve ser colocada em xeque, ou seja, a separação entre
o que seja prosa e o que seja poesia. Tal separação, via de regra, cria um

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verdadeiro abismo entre certos 'gêneros' literários que, a nosso ver, serve
apenas para afastar as pessoas da leitura e do ato de escrever. Desta
maneira, retomamos alguns conceitos para fundamentarmos questões sobre
prosa e poesia. Mostramos, dentro do possível, que prosa e poesia misturam-
se a todo momento. Que prosa e poesia podem estar lado a lado, inclusive,
em livros aparentemente conceituais.
A segunda parte deste livro sugere a leitura de alguns livros e,
naturalmente, faz uma análise a respeito de cada um. Algumas dessas
análises foram publicadas, parcialmente (todas revistas e revisadas), na
Revista Filosofia da Editora Escala.

Ana Maria Haddad Baptista

7
Parte I

Educação, Linguagem & Literatura

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QUESTÕES PRELIMINARES

As questões e discussões que cercam literatura, leitura e educação já


são bastante conhecidas por professores, alunos e muitos pesquisadores.
Muitas vezes, constatei isso em minha prática docente. Contudo, na maioria
das vezes, as fundamentações apresentadas a respeito do assunto são
completamente infundadas e apenas reforçam o senso comum. Pesquisas,
sem metodologias claramente apresentadas, revelam dados que mal
sabemos de onde foram tirados. Via de regra, os resultados publicados a
respeito da questão são desanimadores, frustrantes e, geralmente, com
elementos comparativos fora da real. Compara-se pimentão verde com
coelho peludo; flores azuis com planetas desconhecidos; peixes com pepitas
de ouro. Ou: cavalos com suco de frutas; formigas com filhotes de avestruz.
Sim...a maioria das comparações são, de certa maneira, ridículas e dignas de
risos! Não traduzem, nem de perto, o que deveria ser pensado com maior
rigor e mais próximo da realidade. Da verdade.
O que posso apontar como posições de senso comum?1.O livro no
Brasil custa muito caro. Diante disso os brasileiros pouco leem e ficam sem
estímulo.2. O brasileiro lê muito pouco diante de outros países como Estados
Unidos, França, Inglaterra, Irlanda e outros. 3. As escolas brasileiras, em
todos os graus, não incentivam a leitura. Não há projetos que potencializem o
hábito e a necessidade de se ler. 4. Se os estudantes brasileiros lessem com
maior frequência escreveriam melhor. 5. Que lê bastante escreve bem. 6. Os
estudantes gostam de ler apenas textos da Internet.7. A Internet acabou com
a leitura no mundo. 8. Os estudantes brasileiros mal sabem ler.9. O brasileiro
lê 1.8 livro por ano.10. Na Europa todas as pessoas leem dentro do metrô.
E, nessa medida, as afirmações replicam, duplicam, ressoando em
diversos suportes de difusão, todavia, não ajudam em nada no que tange aos
problemas que, evidentemente, nos desafiam em se tratando de leitura e
literatura.

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Pretendemos neste texto verificar e refletir pontos importantes que
contemplem, em especial, os reais problemas que enfrentamos quando se
trata de leitura, literatura e educação.

Conceito de leitura: considerações importantes

A partir do momento que estamos no mundo iniciamos um longo


processo de leitura. Lemos ao nosso redor. Buscamos compreender, pelos
sentidos, aquilo que nos rodeia. Isto é fato. Conforme vamos crescendo
lemos o mundo que nos chega. Em certo momento vamos para a escola e as
primeiras letras nos são ensinadas. A partir disso fazemos ligações e
relações de nossa leitura de mundo, diria Paulo Freire, com as primeiras
letras que aprendemos, via de regra, com bastante curiosidade e alegria. Que
delícia quando nos damos conta de que já conseguimos decifrar as primeiras
letras. Que encanto! Geralmente, uma criança quando atravessa o mundo
das letras se encanta com cada placa que vê pela frente! Adora mostrar a
todos que agora faz parte e compartilha de um universo no qual se achava
excluído.
Creio que a maioria de nós, que sabemos ler e escrever, lembramos
com certa alegria e prazer o quanto a leitura nos trouxe a presença de uma
espécie de universo paralelo do qual nunca mais seríamos excluídos. Uma
vez saber as letras, assim como ler e escrever, nunca mais seríamos os
mesmos. A leitura e a escrita, neste sentido, uma vez dominadas, nunca mais
seríamos o que éramos antes. Um mundo novo se apresenta para nós!
Contudo, e isso é muito importante, antes de sabermos ler e escrever
sabíamos reconhecer um copo de água, uma fruta, um gato, um cavalo,
nossa casa, nossos brinquedos, enfim, já sabíamos ler o mundo. Se
assistíamos televisão sabíamos perfeitamente o que estávamos vendo e
ouvindo. Ouvíamos canções... O que isso significa para os propósitos de
nossas indagações? Significa que a língua não é a única linguagem possível.
Significa que existem outras linguagens, igualmente importantes se
comparadas com a língua, que nos ajudam na compreensão de mundo e de
nossa própria existência.

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O senso comum, na maioria das vezes, entende que existe somente a
língua enquanto uma linguagem importante. Ora, a linguagem das imagens,
dos sons, do corpo contam muito, também, para que se complete nosso
repertório.
Jorge Luis Borges, famoso escritor argentino, ficou cego nos últimos
dez anos de sua vida. Numa entrevista, entre as muitas que deu em sua vida,
foi indagado porque ele viajava tanto, apesar de estar cego. E ao que ele
respondeu:

Um motivo seria a cegueira, o fato de sentir os


países, embora não os veja. Além disso, se eu fico
em Buenos Aires, minha vida é ...pobre, tenho que
estar continuamente fabulando, ditando. Por outro
lado se eu viajo, recebo novas impressões, e tudo
isso, com o tempo, se torna literatura – o que não
sei se é uma vantagem; mas eu tento
seguir...aceitando e agradecendo as coisas
(Borges, 2009, p. 35).

O que devemos aprender com Borges? Que todas as linguagens são


igualmente importantes. O escritor argentino, apesar de ter se tornado cego,
e, inelutavelmente, sem a capacidade de ler livros de impressão comum,
imagens em todos os graus, nem por isso deixou de sentir o mundo.
Percebê-lo. Ouvi-lo. Tateá-lo. Ou seja, a cegueira não o impediu de continuar
lendo o mundo que o rodeava. Borges buscou em outras linguagens das
quais poderia dispor para continuar escrevendo os belos e fascinantes contos
e poemas que deixou para a humanidade.
Lembremos que há uma tendência muito forte, em especial nas
escolas, em se valorizar apenas aquilo que está escrito. Como se a escrita
fosse a única e real detentora de uma verdade incontestável. Se algo está
escrito merece credibilidade, se não estiver já passa a ser visto com bastante
desconfiança.

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Não pretendemos, de forma nenhuma, contar a história da escrita e da
linguagem, mas não custa lembrar que o processo tem um percurso muito
recente, se comparado com a idade de nosso planeta e se pensarmos que
nossos ancestrais primeiros demoraram muito, inclusive, para falar da
maneira que hoje nos comunicamos. 1
Lembremos: as primeiras sociedades da quais temos registros, dos
mais variados, foram orais. Não havia escrita. Havia um universo totalmente
distinto do atual. É bom recordar: a escrita foi um motivo bastante forte para
as desconfianças de Platão. A memória confiável era somente a individual. A
escrita organiza e remete, de forma gradativa, para outras formas de
memória, de tempos e espaços, muito distintos. A memória individual é
deslocada para fora do homem. Passa a ser, a partir da escrita, armazenada
em suportes de materialidade. Passa a ser socializada, independente, da
vontade de quem produziu um conhecimento ou um texto escrito.
Aparentemente um fato banal. Contudo, um fato de extrema importância, não
porque a escrita acumula conhecimentos, tal tipo de discussão não cabe
aqui. Mas sim porque será determinante na constituição de um mundo
completamente diferente do que se conhecia anterior à invenção da escrita.
Nem melhor nem pior. Uma outra forma de organização. Isso precisa ficar
muito claro para que saibamos entender a imposição, muitas vezes de
caráter ideológico, da importância e exclusividade da escrita. Diria que,
muitas vezes, se dá a impressão de que as pessoas, obrigatoriamente,
deveriam nascer falando, lendo e escrevendo. Posições ingênuas.
Infundadas. Houve muita vida antes da escrita. Houve sociedades. Houve


1 O que teria acontecido antes do surgimento da linguagem? De acordo com

Chomsky “ Isso é adivinhação. Parece ser um absurdo ver a linguagem como uma
ramificação dos gritos de primatas não-humanos, pois ela não compartilha nenhuma
propriedade interessante com eles, ou com os sistemas gestuais ou com qualquer
coisa que conheçamos. Portanto chegamos a um beco sem saída. (...)durante um
milhão de anos o cérebro se expandiu; foi ficando maior que o de outros primatas
remanescentes, e, em certa fase (de acordo com o que sabemos, por volta de cem
mil anos atrás), alguma mudança pode ter ocorrido e o cérebro foi reorganizado para
incorporar a faculdade de linguagem. (...) No caso da linguagem, sabemos que algo
aflorou em um processo evolutivo, e não há nenhuma indicação de alguma mudança
evolutiva desde que ela aflorou. Ela surgiu certo dia, até onde sabemos, muito
recentemente. Não há evidência real referente ao uso da linguagem antes talvez de
cinquenta mil anos atrás, ou algo assim “ (2006, p.186).

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música. Literatura. Poesia. Teatro. Adão e Eva não nasceram falando, lendo
e escrevendo.
Cremos, veementemente, que o conceito de leitura, de uma vez por
todas, precisa ser retomado, em especial pelos educadores, de todos os
níveis e graus. Precisa ser ampliado e aplicado à prática docente.
Muitos educadores, de forma inequívoca, ligam como uma condição
de causa e efeito, a língua ao pensamento. Para se pensar, parece-nos que
tudo indica que seja verdade, há necessidade de uma linguagem. Entretanto,
que fique muito claro: de uma linguagem. Mas não, somente, da língua.
Existem outras linguagens, juntamente com a verbal, que, certamente,
também levam a elaborações de pensamento. Uma coisa nos parece muito
clara e objetiva: quando pensamos várias linguagens estão atuando.

Na verdade, o modelo do objecto mental não pode


ser abordado sem tomarmos um número
importante de precauções. A primeira noção a ter
em conta é a da complexidade. Ninguém
imaginara ainda que o nosso cérebro seria tão
complexo quanto nos revelam as descobertas das
neurociências. Como sabe, o nosso sistema
nervoso é composto por entidades celulares
discretas, os neurónios, que formam uma rede
descontínua (...) cem mil milhões de neurónios,
encontrando-se cada neurónio ligado, em média,
por cerca de dez mil contactos descontínuos a
outras células nervosas. O que perfaz uma ordem
de 1015 contactos no nosso cérebro. Cerca de
meio bilião (mil milhões) por milímetro cúbico! Não
tomamos suficientemente em conta esta
complexidade porque não a vemos a olho nu
quando examinamos um cérebro. (...) Os limites
desta combinatória afastam-se ainda mais quando
temos em conta flexibilidade funcional das
conexões. Assim, A Sagração da Primavera pôde

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ser elaborada pelo cérebro de Stravinski, e a
capela Sistina pelo de Miguel Ângelo. Mas, falta-
nos ainda, compreender as regras de organização
que estas criações aplicaram. 2

O que gostaria de ressaltar a partir do fragmento exposto


anteriormente é que o ato de pensar é, em grande parte, um grande mistério
na ciência, visto que os estudos, embora estejam avançando, ainda têm
muito a ser desbravado. Linguagem e pensamento 3. Em que medida outras
linguagens estariam ligadas ao pensamento?

Um dos problemas mais importantes das


neurociências actuais consiste em definir a
arquitectura cerebral nos seus traços invariantes e
os limites de sua variabilidade, de indivíduo para
indivíduo, e em definir as suas funções. Na
verdade, é a arquitectura e as predisposições
funcionais que lhe estão associadas que
permitirão a formação das representações, a
construção dos objectos mentais. Neste ponto,
importa ainda ter em conta os dois grandes
princípios da arquitectura do cérebro: o


2
O que nos faz pensar? Jean-Pierre Changeux, p. 83-84. Esta obra traz uma
discussão bastante importante entre Jean-Pierre e Paul Ricoeur a respeito do
pensamento.
3
“Estudos sobre a produção das imagens deveriam ser particularmente valiosos
para o esboço da arquitetura geral dos sistemas e de como eles interagem e,
consequentemente, para a exploração dos meios pelos quais a faculdade de
linguagem (ou as várias faculdades de linguagem, se é assim que o quadro de
desenvolve) interage com outros sistemas da mente-cérebro. Alguma luz foi lançada
sobre estas questões pelos ‘experimentos naturais’ (lesões cerebrais etc.), mas
experimentos invasivos diretos estão, obviamente, excluídos. As tecnologias
recentes deveriam oferecer um modo de superar algumas das barreiras impostas
por considerações éticas e os efeitos difusos dos fenômenos naturais. Mesmo nas
fases exploratórias iniciais, há resultados que são bastante sugestivos. Pode ser
possível projetar programas experimentais que poderiam produzir novos e
importantes tipos de informação sobre a natureza da faculdade de linguagem e o
modo como ela é acessada e usada”. (Chomsky, 2006, p. 200).

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paralelismo e a hierarquia. Em primeiro lugar o
paralelismo: o nosso cérebro é capaz de analisar
sinais do ambiente físico ou social por diversas
vias paralelas. Assim, no caso da visão, as vias
visuais analisam em paralelo a forma, a cor e o
movimento. Começam por separar estes traços
que caracterizam um objecto para, em seguida,
refazer a síntese. A arquitectura do sistema visual
está organizada numa multiplicidade de vias
paralelas que, com as vias auditivas, olfactivas,
etc., permitem que o cérebro analise o mundo e
dele faça uma síntese global (Jean-Pierre
Changeux, 1998, p.85).

Embora as implicações entre pensamento e linguagens, tenham muito


que descobrir, creio que fica muito evidente que o processo, o ato de pensar
não fica preso somente à linguagem verbal. Olfato, tato, imagem, em maior
ou menor grau, interferem, acrescentam e operam em qualquer espécie de
síntese.
O que dizer dos grandes escritores que declaradamente rememoram,
de forma reflexiva, os fatos para colocá-los no papel? Será que eles
rememoram apenas palavras ou situações espaciais? Ou seja: eles
rememoram imagens, cheiros, gostos e outras formas “de leitura” de um
passado que os ajudam nas grandes composições dos quais foram autores.
Célebre, e devidamente explorado, é o caso de Proust em sua obra Em
busca do tempo perdido.
Paul Ricoeur , grande pesquisador, em especial, de questões ligadas à
memória: “É sabido que memória e imaginação não cessam de interferir, sob
a forma de fantasmas, entre outras, e devido à tendência para exibirmos as
nossas recordações em imagens, como num ecrã” ( 1998, p. 148).
No entanto convém deixarmos evidente: cada linguagem traduz e
representa, de acordo com suas formas de materialidade e fixação, uma
determinada perspectiva, em todos os sentidos. Nessa medida,
consideremos que ao contemplar uma pintura o meu olhar não pode ser o

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mesmo que eu dispensaria para uma música. Ao olhar uma pintura tenho
relações distintas e posso avaliar o impacto das cores, por exemplo, assim
como a profundidade, os planos, a simetria. Enfim, aspectos específicos a tal
forma de linguagem. Não vejo uma música. Ouço. E existe, a partir dessas
considerações, muitas outras.
Vale a pena a reflexão de Merleau-Ponty a respeito da pintura:

A palavra imagem é mal afamada porque se julgou


irrefletidamente que um desenho fosse um decalque,
uma cópia, uma segunda coisa, e a imagem mental um
desenho desse gênero em nosso bricabraque privado.
(...) Toda a questão é compreender que nossos olhos já
são muito mais que receptores para as luzes, as cores e
as linhas: computadores do mundo que têm o dom do
visível, como se diz que o homem inspirado tem o dom
das línguas. (...) O olho vê o mundo, e o que falta ao
mundo para ser quadro, e o que falta no quadro para ser
ele próprio, e, na paleta, a cor que o quadro espera; e vê,
uma vez feito, o quadro que responde a todas essas
faltas (2004, p.48).

Merleau-Ponty prossegue:

Somos tão fascinados pela ideia clássica da adequação


intelectual que esse ‘pensamento’ mudo da pintura nos
dá às vezes a impressão de um vão redemoinho de
significações, de uma fala paralisada e abortada. E nos
respondem que nenhum pensamento se separa
inteiramente de um suporte, que o único privilégio do
pensamento falante é ter tornado o seu manejável, que
as figuras da literatura e da filosofia tampouco são como
as da pintura realmente adquiridas, não se acumulam
num tesouro estável, e que mesmo a ciência ensina a
reconhecer uma zona ‘fundamental’ povoada de seres

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espessos, abertos, dilacerados, impróprios a ser tratados
exaustivamente, como a ‘informação estética’ dos
cibernéticos ou os ‘grupos de operações’ físico-
matemáticos, e, enfim, que não estamos em parte
alguma em condições de fazer um balanço objetivo nem
de pensar um progresso em si, que toda a história
humana num certo sentido é estacionária. (...) Será o
mais alto ponto da razão constatar que o chão desliza
sob nossos passos, chamar pomposamente de
interrogação um estado de estupor continuado, de
pesquisa um caminho em círculo, de ser o que nunca é
inteiramente? (2004, p. 55-56).

Merleau-Ponty reflete, com um certo amargor, que a pintura é sempre


colocada em segundo plano, visto não cumprir o ‘rigor’ imposto pela ciência e
outros segmentos. Não somente isso...mas reforça o quanto a pintura é
deixada de lado em se tratando de linguagem.

A língua é uma linguagem perfeita?

Sem dúvida, em todos os registros de pesquisas e mais pesquisas, é


mais do que sabido que pensamos, inclusive, com a língua. Parece-nos que
tal fato é praticamente indiscutível. A linguagem verbal é um mecanismo
poderoso que materializa o pensamento. Nessa medida, quanto maior o
repertório linguístico de uma pessoa, possivelmente, maiores serão as suas
chances de criar, inventar, enfim, de conceber determinados conceitos
abstratos. Mas será que a linguagem verbal possui exatidão e perfeição para
isso? Em que medida ela poderia, num primeiro momento, ser superior,
digamos, em relação a outras linguagens?
Recorreremos, novamente, a Jorge Luis Borges (2009, p. 78) que
afirma: “O que interessa é a obra, e a obra é essencialmente misteriosa.
Especialmente o poeta, que trabalha com palavras, e nas palavras está o
sentido que dão os dicionários, e isso talvez seja o que há de menos
importante”. Ora, diante de tal afirmação o que podemos inferir? Que as

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palavras são vazias de significado. Claro que o escritor está se referindo ao
texto literário, no entanto, o dicionário com suas definições de palavras está
inexato. Prossegue o autor: “O mais importante é o ambiente das palavras,
sua conotação e depois a cadência das palavras, a entonação com que são
ditas...Ou seja, estão sendo manejados elementos fugidios, elementos muito
misteriosos” (2009, p. 78-79). Em se tratando de linguagem verbal, na
verdade, nada é exato. Evidentemente, em especial, para os escritores, isso
não constitui nenhuma novidade. O deslocamento das palavras é que importa
para os grandes escritores. A extensão dos significados. A exploração dos
espaços criados pelas palavras dicionarizadas. Tal fato é que realmente
importa para os grandes poetas. Diga-se de passagem: eis um das maiores
trabalhos do escritor. A tal da consciência das palavras de que tantos já
falaram. “A linguagem é uma série de símbolos rígidos, e supor que esses
símbolos são esgotados pelos dicionários é absurdo” (Borges, 2009, p.79).
Prossegue Borges: “(...) supor que há um símbolo para cada coisa é supor
que existe o dicionário perfeito. E evidentemente os dicionários são
meramente aproximativos, não é?” (2009, p.79).
Como vimos a língua é menos perfeita do que se imagina. Achar que a
língua, se comparada com outras formas de linguagem, é superior, ou, a
mais completa, é, no mínimo, um grande equívoco. E isso fica um pouco
mais grave se pensarmos que as línguas fonéticas, ou seja, a maioria das
línguas “vivas” da atualidade representam os sons que, por sua vez,
representam os objetos. Logo, as línguas de cunho fonético não representam
os objetos. Somente aqui já se deveria pensar o quanto a língua é imperfeita.
O uso da língua para efeitos de comunicação atinge, realmente, os
seus objetivos? Esta foi uma das muitas indagações feitas ao grande
pesquisador da área Noam Chomsky (2006, p. 132) e ao que ele responde:

Acho que essa é a pergunta errada. O uso da


linguagem para se comunicar poderia vir a ser
uma espécie de epifenômeno. Quero dizer, o
sistema desenvolveu-se de algum modo, mas
realmente não sabemos como. E, então, podemos
perguntar: como as pessoas o usam? Poderíamos

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verificar que ele não é ótimo para algum dos
modos como queremos usá-lo. Se você quer se
certificar de que nunca entenderemos mal uns aos
outros, então para esse fim a linguagem não é
bem projetada, porque você tem propriedades
como a ambiguidade. Se queremos a propriedade
de que as coisas que normalmente gostaríamos
de dizer sejam ditas de forma curta e simples,
bem, a linguagem provavelmente não tem essa
capacidade. (...) Muitas interações pessoais
desmoronam por causa de coisas como essas na
vida comum. Portanto, em muitos aspectos
funcionais, o sistema não é bem projetado. Há,
contudo, uma pergunta totalmente independente:
ele é bem projetado com respeito aos sistemas
internos com os quais deve interagir? Essa é uma
perspectiva diferente e uma nova pergunta (2006,
p.132).

Chomsky considera um ponto essencial: que o sistema de


funcionamento da linguagem, enquanto língua, está imerso em sistemas
externos preexistentes, em relação à faculdade de linguagem e ao mesmo
tempo interno com respeito à mente. O pesquisador lembra (2006, p.133) que
há um sistema sensório-motor que independe da língua. Poderia até sofrer
mudanças devido à presença da língua, mas, essencialmente, é
independente. Do exposto até o momento podemos inferir que a língua
integra um esquema mental, altamente complexo, com muitos aspectos ainda
a serem desvendados, no entanto, compõe um sistema que leva ao
pensamento. Nessa linha de pensamento outras formas de linguagens não
poderiam ser desprezadas.
De qualquer maneira, também, pode-se inferir que a língua não é um
sistema perfeito de comunicação. Se fosse um sistema perfeito não haveria
equívocos, ambiguidades, mal entendidos e assim por diante.

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Na linha de pensamento de Chomsky deveremos, ainda considerar,
algumas afirmações de extrema importância, ou seja, o pesquisador
evidencia, baseado em diversas fontes que a “estrutura básica da linguagem
[enquanto língua] deve ser essencialmente uniforme e vir de dentro, não de
fora” (2006, p. 114).

A morfologia é uma imperfeição bastante


impressionante; pelo menos é superficialmente
uma imperfeição. Se você tivesse de projetar um
sistema, você não a poria nele. Ela não é única,
entretanto; nenhuma língua formal, por exemplo,
tem uma fonologia ou uma pragmática e coisas
como deslocamento no sentido que todos nós
entendemos: as expressões não aparecem onde
você as interpreta, mas em algum outro lugar.
Todas essas são imperfeições. Na verdade, até o
fato de haver mais que uma língua é um tipo de
imperfeição (Chomsky, 2006, p. 134).

Convém destacar, uma vez mais, a língua é uma forma de linguagem


altamente importante, fato inegável, entretanto, seus mecanismos, suas
relações com outras linguagens e com determinados esquemas cerebrais
estão longe de serem totalmente esclarecidos. Nessa medida, chamamos a
atenção, em especial dos educadores de todas as áreas, que devemos
valorizar todas as formas de linguagem, consequentemente, todas as formas
possíveis de leitura.
Na atualidade o diálogo entre o verbal e a imagem torna-se cada vez
mais evidente. A televisão, o cinema, a web e outros suportes tornam
indispensáveis a leitura de confluência das diversas linguagens. O diálogo,
atualmente, mais do que nunca concretizado, entre a linguagem verbal e as
linguagens não-verbais.

Considerações importantes a respeito da língua

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Vimos até agora que as linguagens, todas elas, devem ser
consideradas. Contudo, fato inegável: a língua, escrita e falada, trouxe uma
forma de desenvolvimento possível e foi determinante para a concepção de
mundo atual. Em todas as esferas. Nessa medida, convém analisarmos, um
pouco mais de perto, quais são as reais possibilidades da linguagem
enquanto língua.
As línguas evoluem? Se tomarmos como hipótese que as línguas
evoluem, seremos obrigados a concluir, como muitos pesquisadores, em
outros tempos, que existem línguas mais perfeitas e outras menos perfeitas.
Seríamos obrigados, inclusive, a admitir que certas línguas nasceram
rudimentares e depois chegaram a uma forma ideal. Tal posição nos soa
cheia de preconceitos e inadequadas.

Como e em que momento a linguagem se diversificou em


idiomas, como e em que momento a linguagem auditiva
se transformou em linguagem visual, com a invenção dos
primeiros sistemas de escrita, são problemas até agora
não resolvidos e que, segundo toda probabilidade,
continuarão para sempre insolúveis. (...) A escrita é
apenas um – provavelmente o mais perfeito e o menos
obscuro – entre inúmeros outros sistemas de linguagem
visual: a essa mesma categoria pertencem os desenhos,
a mímica, os códigos de sinais marinhos e terrestres,
luminosos ou não, os gestos, em particular a linguagem
por gestos dos surdos-mudos, etc. ( Wilson Martins,
2001, p.33)

Na verdade, as origens da língua e suas representações gráficas são


cheias de mistérios. Nada existe, até o momento, de exato e comprovado.
Qualquer história da linguagem é feita, substancialmente, de hipóteses.
Contudo, pode-se afirmar, a exemplo da cultura ocidental, que a passagem
do oral para o escrito foi uma passagem bastante gradativa. E, nessa
medida, parece-nos sensato supor que em todas as sociedades que tiveram

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escrita, o processo foi o mesmo. Quase impossível acreditar que do dia para
a noite uma sociedade passa da oralidade para a escrita.
Um outro aspecto importante colocado por Martins diz o seguinte:

A ‘evolução’ da escrita é uma vista puramente teórica e


lógica que se lança sobre episódios muitas vezes
contemporâneos, mas desligados entre si. Nada indica,
com efeito, que a escrita ideográfica tenha sido inventada
por homens que não mais se satisfaziam com a escrita
pictográfica, e menos ainda que a escrita fonética tenha
nascido de uma consciência da insuficiência dos
sistemas ideográficos. Não há, entre estes sistemas,
nenhuma sucessão necessária no tempo, sendo que
poderíamos tender ao pensamento de que são antes
razões de ordem geográfica que devem ter predominado,
ao lado de outras, mais complexas, de ordem social. E a
prova disso é que, até hoje, sistemas pictográficos e
ideográficos se perpetuam, em círculos restritos no
espaço. (2001, p. 35).

Martins, inclusive, nos alerta para um fato bastante importante: não


existe dentro de um sistema de escrita uma passagem, ou seja, do
ideográfico para o fonético, ou algo semelhante. Contudo, evidentemente,
dentro de cada sistema de escrita, quer o ideográfico, quer o silábico, quer o
fonético, há transformações. E muitas.

Sabemos que não falamos a mesma língua que se falava no século


XV, por exemplo. As transformações culturais, econômicas, tecnológicas e
outras mais, naturalmente, exigem novas formas de nomeação, novas formas
de expressão. E, neste sentido, cada língua encontrará suas próprias formas
para que isso ocorra. Todas as línguas faladas e denominadas vivas mudam
a todo momento. Isso é fato. As fontes de investigação, as mais diversas, das

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quais temos resultados de pesquisa, indicam que os grandes sistemas de
escrita foram inventados de maneira independente. O que nos autoriza a
afirmar que cada sistema linguístico possui a sua história. E que uma história
não é melhor do que a outra. Cada história possui as suas singularidades.
Nenhuma deveria ser considerada superior a outra.

Cremos que a busca por uma língua primeira, ou a tal da língua


adâmica, é uma tarefa insana e sem propósitos. A primeira língua, a língua
mais perfeita, a língua que deu início ao universo. Ou a famosa língua que
propiciava o tal do diálogo perfeito entre os homens, deuses e animais... são
buscas intencionais das raízes linguísticas de uma possível superioridade e
hierarquia que não levam a, absolutamente, nada. 4

O que é, efetivamente, Literatura?

Literatura possui, num sentido amplo, diversas significações. Sabe-se


que seu significado é largamente empregado. Nessa medida, pode-se dizer
da literatura médica, por exemplo. Ou seja, o conjunto de obras a respeito de
Medicina. Existe a literatura a respeito de Biologia, Física, Jornalismo, enfim,
literatura enquanto conjunto de obras a respeito de um determinado assunto,
necessariamente, não restrito a própria Literatura.

De qualquer maneira quando se diz Literatura, via de regra, o seu


sentido é restrito ao campo das Artes. A arte da Literatura no sentido da arte


4 “Um passo de consequências incalculáveis foi dado quando o homem, na tarefa de

fixar e transmitir o pensamento, percebeu que lhe era possível substituir a imagem
visual pela sonora, colocar o som onde até então tinha obstinadamente colocado a
figura. Dessa forma, o sinal se libertaria completamente do objeto e a linguagem
readquiria a sua verdadeira natureza, que é oral. ‘Decompondo’ o som das palavras,
o homem percebeu que ele se reduziu a unidades justapostas, mais ou menos
independentes uma das outras (enquanto som) e nitidamente diferenciáveis. (...) A
ideografia começou por representar os objetos por um sinal que os interpretasse
graficamente e as ideias por outros sinais adequados. Os tipos clássicos de escrita
ideográfica são o chinês, os característicos cuneiformes e os hieróglifos.” (Martins,
2001, p. 40-41.)

23
do bem escrever. A Literatura é vista, nessa perspectiva, como modelar.
Como exemplo de uma língua bem construída e digna, inclusive, exemplar
para as próprias gramáticas.

Na Antiguidade ser um escritor, fazer uma Literatura, era o papel,


fundamentalmente, atribuído ao poeta. Era aquele que, na oralidade,
declamava versos. Poemas inteiros. Como um dos maiores exemplos do
Ocidente temos nosso famoso Homero, que ao que tudo indica, teria escrito
Ilíada e Odisseia. O poeta era, acima de tudo, aquele que imortalizava uma
história passada. Era também o portador da verdade. Ressalte-se, mais do
que nunca, que os poetas eram, na Antiguidade Grega, seres inspirados
pelas Musas, prolongadoras da memória, filhas de Mnemósine. Nessa
medida, tinham o poder de ter contato com as realidades visíveis já
passadas.
O poeta tinha o poder de atravessar um portal e ter acesso ao
passado de seu povo. Nessa medida, quando compunha seus versos
reconstituía o passado, via de regra, heroico, de sua coletividade. Desta
forma, mesmo em outras épocas, o escritor/poeta tem sido visto como aquele
ser que imortaliza um passado, uma pessoa e assim por diante.
Mas aqui cabe uma grande indagação: em que medida podemos avaliar uma
boa literatura? Quais seriam os critérios que validam o que se denomina
literatura, de fato? Eis uma grande questão e, talvez, um grande problema
que, à medida do possível, tentaremos elucidar.
Em primeiro lugar deve-se ter claro que tudo muda. Tudo,
absolutamente, está sujeito a transformações, em especial, todas as artes e,
claro, a Literatura. Desta forma deve-se ressaltar que aquilo que um dia, lá no
passado, foi considerado Literatura e se imortalizou, se fosse produzido hoje,
seria submetido a critérios de avaliação muito diferentes. Por quê? Porque
parte-se de um dos maiores princípios que devem ser levados em conta ao
se legitimar a boa literatura, na atualidade, ou seja, o seu caráter de
inovação. A boa Literatura não se repete em fórmulas desgastadas e que já
foram realizadas. Ora! A boa Literatura não pode se deixar seduzir por
fórmulas já usadas, visto, que dentre outras coisas, a Literatura deve

24
desestabilizar, prolongar e adensar nossa capacidade de percepção. Se ela
se repete isso não vai mais ocorrer.
Para que o exposto se torne mais concreto analisaremos, num
primeiro momento, um texto famoso de Guimarães Rosa (1996,p.555-556-
557).

Desenredo:

Do narrador seus ouvintes:


– Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja.
Tinha o para não ser célebre. Como elas quem pode, porém? Foi Adão
dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta
observação, a Jó Joaquim apareceu.
Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada.
Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor.
Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e
vento. Mas tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.
Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a
alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o
clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo
abismo é navegável a barquinhos de papel.
Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só
retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam
eles de enorme milagre. O inebriado engano.
Até que - deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara
o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá,
mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que de leve a
ferira, leviano modo.
Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para
o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao
barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três

25
estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se
de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e
preta amplitude.
Ela – longe - sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele
exercitava-se a aguentar-se, nas defeituosas emoções.
Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado
fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O
tempo é engenhoso.
Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado.
Vai, pois, com a amada se encontrou - ela sutil como uma colher de chá,
grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de
ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo
popular, por que forma fosse.
Mas.
Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e
parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios.
Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora.
De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a
apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou a mulher, a
desconhecido destino.
Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se
histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas
lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da
barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro.
Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-
se.
Mais.
No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a
progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade.
Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco.
Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade -idéia inata. Entregou-se a remir,
redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De
sofrer e amar, a gente não se desafaz. Ele queria os arquétipos, platonizava.
Ela era um aroma.

26
Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó
Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-
lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de
caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o,
amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que
Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil como refritar almôndegas. Sem
malícia, com paciência, sem insistência, principalmente.
O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia
miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim,
genial, operava o passado - plástico e contraditório rascunho. Criava nova,
transformada realidade, mais alta. Mais certa?
Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção
manifesta. Haja o absoluto amar - e qualquer causa se irrefuta.
Pois produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o
tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior
evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para
cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.
Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em
ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa.
Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.
Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria
retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil
vida.
E pôs-se a fábula em ata.

Observem-se as principais dimensões deste conto:

1. Transgressão

O conto Desenredo transgride em nível de conteúdo e de estrutura. No


estrutural porque, via de regra, um conto, teoricamente, trabalha com
pequenos núcleos de tempo e espaço. Em Desenredo o acontecimento dura,
pelo visto, meses e meses. Transgride em nível de conteúdo porque, via de
regra, dificilmente um homem, no caso, Jó Joaquim, aceitaria as diversas

27
‘traições’ de Vilíria. Guimarães quis tocar num dos pontos mais frágeis de um
homem. Sentir-se traído. Podemos ler a reconciliação como o próprio
narrador coloca: os personagens passaram longe dos comentários da aldeia,
do povo. Trataram de agarrar a felicidade, como diz o conto “três vezes
passa perto da gente a felicidade” . E um ponto importante: em nenhum
momento, durante a narrativa, o autor julga ou analisa as atitudes! Ele joga
para o leitor tal responsabilidade! A literatura que incomoda não julga! O leitor
é obrigado a convocar seus próprios valores para analisar os fatos! Os
personagens do texto Desenredo não dividem o mundo em bom ou mau.
Agem pela espontaneidade. Guiam-se, desta forma, pelos valores nos quais
acreditam. Criados pela atmosfera social em que vivem. Nada mais.

2. Releitura de ditados populares

Desenredo atualiza ditados populares. Recupera e reinventa os


ditados, assim como quebra a continuidade e o lugar comum. Eis alguns
exemplos: “todo abismo é navegável a barquinhos de papel”; “o trágico não
vem a conta-gotas”; “Foi Adão dormir e Eva nascer”; “Todo fim é
impossível?”; “O tempo é engenhoso”; “Nela acreditou, num abrir e não
fechar de ouvidos”; “A bonança nada tem a ver com tempestade” e muitos
outros exemplos que temos no conto em referência.

3. Alto grau de poeticidade

Um dos melhores e autênticos critérios que legitimam a boa literatura é


o seu teor de poeticidade. O grau de poesia. Não custa lembrar que
poeticidade não pertence somente aos poemas. A poeticidade é o carimbo
maior de um texto literário. Em prosa ou em verso. O que determina,
definitivamente, um romance é o seu grau de poeticidade, ou seja, de
literariedade. Octavio Paz, Haroldo de Campos e muitos outros
poetas/ensaístas já falaram longamente a respeito da questão. A separação
entre prosa e poesia é irrelevante. Nessa medida, Desenredo é um conto-
poema! Vejamos alguns exemplos:

28
a.O nome da personagem feminina é um anagrama: Livíria, Rivília, Irlívia,
Vilíria.

b.Jó Joaquim: aliteração nada gratuita. O personagem remete a Jó.


Personagem bíblica famosa por sua paciência e resignação.

c. Rimas: É de notar que o ar vem do ar.

d. Rimas: De sofrer e amar, a gente não se desafaz.

e. Aqui temos uma belíssima aliteração: Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se,


e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.

4. Poeticidade Estrutural:

Predominam em Desenredo as orações coordenadas assindéticas.


Orações justapostas, um dos principais pontos de uma construção textual
poética. Vejamos:

Do narrador a seus ouvintes:

Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado,

bom como o cheiro de cerveja

tinha o para não ser célebre

Com elas quem pode, porém?

Foi Adão dormir e Eva nascer.

Chamando-se

Livíria,

Rivília

ou

Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.

Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão

Aliás, casada.

29
Sorriram-se,

viram-se.

Era infinitamente maio e

Jó Joaquim pegou o amor.

Enfim,

entenderam-se.

Voando o mais em ímpeto de nau tingida a velo e vento.

Mas muito tendo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.

Porque o marido se fazia notório,

na valentia com ciúme;

e as aldeias são a alheia vigilância.

Então ao rigor geral os dois se sujeitaram,

conforme o clandestino amor em sua forma local,

conforme o mundo é mundo.

Todo abismo é

navegável a

a barquinhos de papel.

Não se via quando e como se viam.

Jó Joaquim, além disso,

existindo só retraído,

minuciosamente.

Esperar é reconhecer-se incompleto.

30
Nessa medida, se colocássemos todo o conto em forma de versos,
veríamos que temos um poema. Poema-conto. Conto-poema 5.

5.Interdito

O que seria o interdito? Economia linguística, aquilo que não está


explícito no texto, o que sugere, o que estimula a imaginação do leitor. Alto
teor de informação sem a inutilidade do prolixo. Eis mais uma grande
qualidade de Desenredo. Vejamos: “Tinha o para não ser célebre”: o que
sugere? O que realmente Jó Joaquim tinha para não ser notado? Ou...
famoso? Ele seria muito feio? Um homem fisicamente muito comum? Um
homem sem qualquer atrativo? E muitas mais questões brotam no leitor. E,
claro, não há uma resposta: apenas possibilidades. Novamente: “Sorriram-se,
viram-se”: e sabemos pela narrativa que os dois se apaixonam. Mas...como
teria sido o primeiro encontro? E os outros? Como teria sido o início de tudo?
Enfim, muitas questões se colocam na cabeça de quem lê. Mas o conto não
dá nada ao leitor. O texto insiste em instigar a imaginação, a criação... dentro,
claro, de um quadro de referencialidades e objetividades.

6.Comparações metafóricas inéditas

Um dos marcos de poeticidade de um texto literário, conforme é


amplamente de conhecimento geral, seriam as famosas imagens, metáforas
que um texto é capaz de produzir. O texto é lotado de imagens. Mas. Não de
imagens comuns, comparações comuns. Vejamos algumas que se destacam
do lugar comum: “bom como o cheiro de cerveja”; “olhos de viva mosca,
morena mel e pão”; “ela sutil como uma colher de chá”; “Suas lágrimas
corriam atrás dela, como formiguinhas brancas”; “Soube-se nua e pura”.


5
Esta análise foi “inspirada” pela leitura de diversos ensaios do nosso saudoso e
fascinante Haroldo de Campos.

31
Cremos que a transgressão, em todos os níveis, deveriam nortear os
trabalhos de todos os escritores que possuem a consciência da importância
da Literatura. Assim sendo, sabemos que os grandes da Literatura jamais se
preocuparam em seguir receitas. Por isso, via de regra, sempre inauguraram
novas tendências, novos gêneros.

Conforme é sabido, (e a maioria esquece), a Arte, a Literatura...


sempre caminham à frente, as teorias correm atrás. Primeiro nasceu um
conto de uma cabeça genial, posteriormente, veio uma possível teoria e
assim foi com a crônica, com o romance. Na verdade, toda literatura que se
enquadra docilmente/facilmente/subservientemente em algum
gênero...deve ser questionada. Nas palavras de Guimarães Rosa:

Não, não sou um romancista; sou um contista de contos


críticos. Meus romances e ciclos de romances são na
realidade contos nos quais se unem ficção poética e
realidade. Sei que daí pode facilmente nascer um filho
ilegítimo, mas justamente o autor deve ter um aparelho
de controle: sua cabeça. Escrevo, e creio que este é o
meu aparelho de controle: o idioma português, tal como o
usamos no Brasil; entretanto, no fundo, enquanto vou
escrevendo, eu traduzo, extraio de muitos outros
idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um
idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me
submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos
outros. A gramática e a chamada filologia, ciência
linguística, foram inventadas pelos inimigos da poesia
(1994, p.35).

O nosso grande escritor mineiro, conforme sabemos, é apenas um


entre os grandes da literatura universal que possui a mesma proposta. Os
grandes estão preocupados em renovar, arejar a língua. A grande literatura
está realmente empenhada em nomear o mundo de maneira que se distinga
daquilo foi feito anteriormente. A grande literatura possui o objetivo claro e
evidente de, talvez, ser seguida naquilo em que realmente ela está

32
empenhada. Em outras palavras: libertar! E não seguir os padrões já
estabelecidos pela gramática. A Literatura, de fato, renova a gramática,
renova a língua, renova as construções sintáticas já existentes.

Tal fato nunca é percebido por escritores que escrevem historietas de


consolo. Narrações que apelam apenas para o emocional e para as famosas
identificações subjetivas e projetivas de um eu. De um leitor desavisado. Por
isso a transgressão em todos os níveis é, sim, um dos critérios mais caros
que deve legitimar a verdadeira literatura. Conclui-se, do que foi exposto, que
livros que trazem pequenas ou grandes histórias com modelos de ação,
dificilmente se enquadram no que se deve entender por literatura. Meras
narrações pitorescas apenas subtraem temporalidades/subjetividades. E o
que é pior: podem seduzir de forma inelutável...tamanha a sua capacidade de
sedução para a subserviência.

De acordo com Guimarães Rosa “minha língua (...), é a arma com a


qual defendo a dignidade do homem” (1994, p.52). Eis mais dos grandes
objetivos da grande literatura. Diferentemente da ‘pequena literatura’ que
defende a mesmice, a opressão e a submissão, o verdadeiro escritor está em
busca de uma linguagem que, de verdade, seja uma possibilidade de luta
contra tudo que subtrai a liberdade de ser. De existir. A dignidade do homem
está estreitamente associada com a liberdade. E mais:

A intimidade na obra de um escritor simplesmente me


parece muito real. O escritor deve se sentir à vontade no
incompreensível, deve se ocupar do infinito, e pode fazê-
lo não apenas aproveitando as possibilidades que lhe
oferece a ciência moderna, mas também agindo ele
mesmo como um cientista moderno. Não se pode tratar o
infinito com intimidade, nem com subjetivismo. É preciso
ser objetivo, pois o incompreensível pode, pelo menos,
ser contemplado objetivamente (Guimarães Rosa, 1994,
p.53-54).

33
O escritor mineiro coloca para nós o grande compromisso do escritor.
Como o senso comum, na maioria das vezes, acha que uma obra literária
vem de acasos e meras inspirações, uma vez mais, Guimarães mostra que
literatura é trabalho, luta com as palavras. Agir como um cientista moderna
significa experimentar, detalhar, procurar ver os fatos como eles realmente
são. Lembremos: toda ficção se baseia no real. Possui o real como cenário.
Um escritor não pode ir ao absurdo! Ele não pode colocar que uma pessoa
chorava neve, ou que um cabrito voa. A não ser em um contexto bem
específico. A forma como um escritor coloca as coisas como elas realmente
são é que determina, em grande parte, a obra em si.

Entretanto, paradoxalmente, muitos escritores não foram dignos de


crédito, em especial, em seus primeiros escritos. Um deles, apenas a título
de exemplo, foi Borges. O famoso escritor argentino declarou, em diversas
entrevistas, que com trezentos pesos que havia ganho de seu pai, mandou
imprimir trezentos exemplares de seu primeiro livro. Mas existem centenas de
casos na história da literatura nacional e universal. Principalmente, quando
uma literatura rompe demais com os modelos preestabelecidos, causa
tamanho impacto que é rejeitada não somente pelo público, como pelos
críticos em geral. Isso é fato. E nada incomum. O novo causa impacto. Gera
dúvidas. Causa desconforto em todos os graus. Isso tudo considerando que a
literatura gira em torno de temas universais. Comuns em todas as épocas, ou
seja, a solidão, a esperança, a tirania, a subserviência, o amor, o ódio. E
ainda: a traição, a benevolência, a esperança.

Um outro caso bastante conhecido é o de Cora Coralina. Escritora


goiana. Cora Coralina somente foi reconhecida nacionalmente quando Carlos
Drummond de Andrade fez elogios à literatura da escritora que, aliás, é um
caso que deve ser ressaltado. Cora Coralina possui poemas-prosa.

Vejamos:

O prato azul-pombinho

34
Minha bisavó - que Deus a tenha em glória -
sempre contava e recontava
em sentidas recordações
de outros tempos
a estória de saudade
daquele prato azul-pombinho.

Era uma estória minuciosa.


Comprida, detalhada.
Sentimental.
Puxada em suspiros saudosistas
e ais presentes.
E terminava, invariavelmente,
depois do caso esmiuçado:
“- Nem gosto de lembrar disso...”
É que a estória se prendia
aos tempos idos em que vivia
minha bisavó
que fizera deles seu presente e seu futuro.

Voltando ao prato azul-pombinho


que conheci quando menina
e que deixou em mim
lembrança imperecível.
Era um prato sozinho,
último remanescente, sobrevivente,
sobra mesmo, de uma coleção,
de um aparelho antigo
de 92 peças.
Isto contava com emoção, minha bisavó,
que Deus haja.

Era um prato original,


muito grande, fora de tamanho,
um tanto oval.
Prato de centro, de antigas mesas senhoriais
de família numerosa.
De fastos de casamento e dias de batizado.

Pesado. Com duas asas por onde segurar.


Prato de bom-bocado e de mães-bentas.
De fios-de-ovos.
De receita dobrada

35
de grandes pudins,
recendendo a cravo,
nadando em calda.

Era, na verdade, um enlevo.


Tinha seus desenhos
em miniaturas delicadas.
Todo azul-forte,
em fundo claro
num meio-relevo.
Galhadas de árvores e flores,
estilizadas.
Um templo enfeitado de lanternas.
Figuras rotundas de entremez.
Uma ilha. Um quiosque rendilhado.
Um braço de mar.
Um pagode e um palácio chinês.
Uma ponte.
Um barco com sua coberta de seda.
Pombos sobrevoando.

Minha bisavó
traduzia com sentimento sem igual,
a lenda oriental
estampada no fundo daquele prato.
Eu era toda ouvidos.
Ouvia com os olhos, com o nariz, com a boca,
com todos os sentidos,
aquela estória da Princesinha Lui,
lá da China - muito longe de Goiás -
que tinha fugido do palácio, um dia,
com um plebeu do seu agrado
e se refugiado num quiosque muito lindo
com aquele a quem queria,
enquanto o velho mandarim - seu pai -
concertava, com outro mandarim de nobre casta,
detalhes complicados e cerimoniosos
do seu casamento com um príncipe todo-poderoso,
chamado Li.

Então, o velho mandarim,


que aparecia também no prato,
de rabicho e de quimono,
com gestos de espavento e cercado de aparato,

36
decretou que os criados do palácio
incendiassem o quiosque
onde se encontravam os fugitivos namorados.

E lá estavam no fundo do prato,


- oh, encanto da minha meninice! -
pintadinhos de azul,
uns atrás dos outros - atravessando a ponte,
com seus chapeuzinhos de bateia
e suas japoninhas largas,
cinco miniaturas de chinês.
Cada qual com sua tocha acesa
- na pintura -
para pôr fogo no quiosque
- da pintura.

Mas ao largo do mar alto


balouçava um barco altivo
com sua coberta de prata,
levando longe o casal fugitivo.

Havia, como já disse,


pombos esvoaçando.
E um deles levava, numa argolinha do pé,
mensagem da boa ama,
dando aviso a sua princesa e dama,
da vingança do velho mandarim.

Os namorados então,
na calada da noite,
passaram sorrateiros para o barco,
driblando o velho, como se diz hoje.
E era aquele barco que balouçava
no mar alto da velha China,
no fundo do prato.

Eu era curiosa para saber o final da estória.


Mas o resto, por muito que pedisse,

37
não contava minha bisavó.
Dali para a frente a estória era omissa.
Dizia ela - que o resto não estava no prato
nem constava do relato.
Do resto, ela não sabia.
E dava o ponto final recomendado.
“- Cuidado com esse prato!
É o último de 92.”

Devo dizer - esclarecendo,


esses 92 não foram do meu tempo.
Explicava minha bisavó
que os outros - quebrados, sumidos,
talvez roubados -
traziam outros recados, outras legendas,
prebendas de um tal Confúcio
e baladas de um vate
chamado Hipeng.

Do meu tempo só foi mesmo


aquele último
que, em raros dias de cerimônia
ou festas do Divino,
figurava na mesa em grande pompa,
carregado de doces secos, variados,
muito finos,
encimados por uma coroa
alvacenta e macia
de cocadas-de-fita.

Às vezes, ia de empréstimo
à casa da boa tia Nhorita.
E era certo no centro da mesa
de aniversário, com sua montanha
de empadas, bem tostadas.
No dia seguinte, voltava,
conduzido por um portador
que era sempre o Abdênago, preto de valor,
de alta e mútua confiança.

Voltava com muito-obrigados


e, melhor - cheinho

38
de doces e salgados.
Tornava a relíquia para o relicário
que no caso era um grande e velho armário,
alto e bem fechado.
- “Cuidado com o prato azul-pombinho” -
dizia minha bisavó,
cada vez que o punha de lado.

Um dia, por azar,


sem se saber, sem se esperar,
antes do salta-caminho,
partes do capeta,
fora de seu lugar, apareceu quebrado,
feito em pedaços - sim senhor -
o prato azul-pombinho.
Foi um espanto. Um torvelinho.
Exclamações. Histeria coletiva.
Um deus-nos-acuda. Um rebuliço.
Quem foi, quem não foi?...

O pessoal da casa se assanhava.


Cada qual jurava por si.
Achava seus bons álibis.
Punia pelos outros.
Se defendia com energia.
Minha bisavó teve “aquela coisa”.
(Ela sempre tinha “aquela coisa” em casos tais.)
Sobreveio o flato.
Arrotando alto, por fim, até chorou...

Eu (emocionada) vendo o pranto de minha bisavó,


lembrando só
da princesinha Lui -
que já tinha passado a viver no meu inconsciente
como ser presente,
comecei a chorar
- que chorona sempre fui.

Foi o bastante para ser apontada e acusada


de ter quebrado o prato.
Chorei mais alto, na maior tristeza,
comprometendo qualquer tentativa de defesa.

39
De nada valeu minha fraca negativa.
Fez-se o levantamento de minha vida pregressa
de menina
e a revisão de uns tantos processos arquivados.
Tinha já quebrado - em tempos alternados,
três pratos, uma compoteira de estimação,
uma tigela, vários pires e a tampa de uma terrina.

Meus antecedentes, até,


não eram muito bons.
Com relação a coisas quebradas
nada me abonava.
E o processo se fez, pois, à revelia da ré,
e com esta agravante:
tinha colado no meu ser magricela, de menina,
vários vocativos
adesivos, pejorativos:
inzoneira, buliçosa e malina.

Por indução e conclusão,


era eu mesma que tinha quebrado o prato azul-pombinho.

Reuniu-se o conselho de família


e veio a condenação à moda do tempo:
uma boa tunda de chineladas.

Aí ponderou minha bisavó


umas tantas atenuantes a meu favor.
E o castigo foi comutado
para outro, bem lembrado, que melhor servisse a todos
de escarmento e de lição:
trazer no pescoço por tempo indeterminado,
amarrado de um cordão,
um caco do prato quebrado.

O dito, melhor feito.


Logo se torceu no fuso
um cordão de novelão.
Encerado foi. Amarrou-se a ele um caco, de bom jeito,
em forma de meia-lua.
E a modo de colar, foi posto em seu lugar,
isto é, no meu pescoço.
Ainda mais
agravada a penalidade:
proibição de chegar na porta da rua.
Era assim, antigamente.

40
Dizia-se aquele, um castigo atinente,
de ótima procedência. Boa coerência.
Exemplar e de alta moral.

Chorei sozinha minhas mágoas de criança.


Depois me acostumei com aquilo.
No fim, até brincava com o caco pendurado.
E foi assim que guardei
no armarinho da memória, bem guardado,
e posso contar aos meus leitores,
direitinho,
a estória, tão singela,
do prato azul-pombinho.

41
Cora Coralina consegue, em seu poema-conto narrar uma história,
sem, contudo, perder o grau de poeticidade que cerca sua literatura
pitoresca, agradável e de um estilo quase incomparável. O que perpassa por
tal estilo? Uma forma completamente singular de deslocamento de
linguagem. Uma forma diferente de escrever. De expressar, no caso, uma
lembrança de sua infância. Um estilo se define por sua particularidade em
relação a outras formas de uso comum, no caso, da linguagem verbal. Por
esta razão, em especial, alguns textos são tão saborosos, diferentes,
sedutores. Fogem do lugar comum.
Estilo é uma das maiores façanhas que um escritor pode criar na
linguagem literária. Façamos uma breve comparação com a matemática:
Para a resolução de uma equação do segundo grau completa ou incompleta,
podemos recorrer, conforme se sabe, à fórmula geral de resolução:

Esta fórmula também é conhecida como fórmula de Bhaskara.


A linguagem matemática, denominada como paradigma do puro
pensamento, é impessoal. Veja-se o seu grau de universalidade. Não existe
um estilo na linguagem específica da Matemática. Ela é o que é. Qual é o
estilo de uma fórmula? Outra coisa importante para que se compreenda
melhor o pensamento matemático: a matemática não se aprende por
experiência. Borges afirmou, em uma entrevista, que se quisermos

42
demonstrar a uma pessoa que 3 mais 3 são 6... não precisaremos começar
com laranjas e depois com cadeiras e assim por diante. Depois que
entendemos que 3 mais 3 são 6... isso torna-se aplicável a qualquer coisa.
Ou seja, aplicável a tudo. Mas isso ocorre no pensamento matemático. Muito
diferente do que ocorre na Literatura que busca incansavelmente um estilo.
Cora Coralina consegue por meio de um poema narrativo contar uma história
e colocar outra dentro da mesma história. Vale-se de rimas e outros recursos
imagéticos incomuns para marcar a poesia no texto. Tal procedimento é uma
verdadeira marca em sua literatura, não somente no poema exposto, como
em outros poemas. Temos, desta maneira, uma marca de estilo na escritora
goiana.
E existem outros elementos, muito importantes, que devemos
considerar em se tratando de literatura. Ou seja, necessariamente elementos
literários que caracterizam um texto podem estar presentes e estão...em
textos de Filosofia, tratados científicos e outros que, aparentemente, não são
considerados literários!
Um grande exemplo é o caso de Sartre. Ele não apenas sempre
escreveu textos filosóficos marcantes, assim como romances. No entanto,
jamais deixou de lado a busca incansável de um estilo singular. Escreveu
diversos romances. No entanto, seus ensaios “aparentemente conceituais”
são plenos de imagens, como no fragmento a seguir:

Mas o tempo do homem é sem porvir? O do prego, do


torrão de terra, do átomo, vejo bem que é um presente
perpétuo. Mas o homem é um prego pensante? Se se
começa por mergulhá-lo no tempo universal, no tempo
das nebulosas e dos planetas, das dobras terciárias e
das espécies animais, como num banho de ácido
sulfúrico, o caso está encerrado (2005, p.99).

Como se vê um texto cheio de imagens e comparações metafóricas.


Evidentemente, Sartre não foi o único. Bachelard, grande epistemólogo,
possui textos conceituais em que jamais deixou de lado belas e fascinantes
imagens. Os textos ensaísticos do poeta mexicano Octavio Paz são

43
verdadeiros retratos de sua própria poesia. Plenos de poeticidade. Um outro
grande exemplo é o de Gilles Deleuze:

Os gonzos são o eixo em torno do qual a porta gira. O


gonzo, Cardo, indica a subordinação do tempo aos
pontos precisamente cardinais pelos quais passam os
movimentos periódicos que ele mede. Enquanto o tempo
permanece em seus gonzos, está subordinado ao
movimento extensivo: ele é a sua medida, intervalo ou
número. Sublinhou-se com frequência essa característica
da filosofia antiga: a subordinação do tempo ao
movimento circular do mundo como Porta Giratória. É a
porta cilíndrica, o labirinto aberto à origem eterna. Haverá
toda uma hierarquia dos movimentos segundo sua
necessidade, perfeição, uniformidade, rotação, seus
espirais compostos, eixos e portas particulares, com os
números do Tempo que lhes correspondem. Sem dúvida,
há aí uma tendência do tempo a emancipar-se, quando o
movimento que ele mede é, ele próprio, cada vez mais
aberrante, derivado, marcado por contingências materiais
e meteorológicas e terrestres; mas é uma tendência para
baixo, que depende ainda da aventura do movimento. O
tempo permanece, pois, subordinado ao movimento no
que ele tem de originário e de derivado (1997, p.36).

O que existe no texto exposto? Um ensaio a respeito do tempo. Mais


precisamente: Deleuze faz uma comparação a partir dos gonzos, da
circularidade do tempo, ou seja, o tempo cíclico, tal como foi concebido pela
Antiguidade Grega. Num determinado momento da história da humanidade o
tempo sai fora dos eixos e deixa de estar subordinado ao movimento. Liberta-
se dos movimentos como se concebia antigamente. Ou seja, existe, de
acordo com o fragmento de Deleuze, uma nova percepção de temporalidade.
A imagem fascinante do tempo fora dos eixos. O tempo fora dos gonzos,
imagem famosa que ele busca em Hamlet. Sinal de que a filosofia de

44
Deleuze jamais deixou de se alimentar de Literatura, o que se comprova por
tantas e tantas outras obras do pensador francês, como por exemplo, Proust
e os Signos, e muitas outras.
Lembremos que Bergson ganhou um prêmio Nobel (e merecidamente)
de Literatura. Outro filósofo que sempre buscou uma forma própria de
expressar não somente sua filosofia, como outras formas de pensamento,
sem jamais deixar de lado criatividade e inventividade em seus escritos.
Paulo Freire, educador brasileiro, em todas as suas obras faz notar
seu estilo densamente literário. Cheio de imagens singulares. Michel Foucault
jamais deixou de expressar em seus escritos imagens e metáforas
maravilhosas. Enfim, não temos como esgotar centenas e centenas dos mais
variados exemplos de experiência literária em seu sentido mais pleno.
Com isso queremos reforçar um conceito que não possui nenhuma
novidade: a literatura não se dá apenas em romances, contos e poemas. A
literatura, o texto literário, pode e está presente nos mais variados tipos de
texto. Abaixo as formas subservientes de enquadramentos de pretensos
“gêneros”. Físicos, químicos, matemáticos, filósofos, podem, perfeitamente,
fazer literatura, como acabamos de expor.
E, nessa medida, o inverso é verdadeiro:

Tendo experimentado a constância e a consequência do


fenômeno até certo grau, eu deduzo daí uma lei empírica
e a prescrevo para os fenômenos futuros. Se a lei e os
fenômenos se adaptarem completamente à sequência,
eu terei vencido; se não se adaptarem tão bem, atentarei
às circunstâncias dos casos particulares e me obrigarei a
buscar novas condições sob as quais possa representar
de modo mais puro os experimentos contraditórios; mas
se diversas vezes se repetir, sob as mesmas
circunstâncias, um caso que contrarie minha lei, vejo que
deverei prosseguir com todo o trabalho e buscar um
ponto de vista superior (Goethe, 2012, p.74).

45
O famoso autor de inúmeros romances famosos, Goethe, foi um
grande cientista. Observou, selecionou, experimentou, repetiu diversos
experimentos com grande rigor e metodologia. Poucos sabem que A Teoria
das Cores do escritor alemão é uma teoria totalmente plena de originalidade.
Ele, em sua época, em muitos pontos, contradisse Newton no que se refere
às cores. No entanto, Goethe estava certo. Foi um grande botânico. Quem
diria? Um escritor ligado a feitos científicos? Naturalmente, não é o único
caso. Mas um caso relevante e digno de ser mencionado. O escritor alemão
tinha um carinho verdadeiro pela natureza e, inclusive, por isso se dedicou
muito ao estudo da mesma. Tal estudo, com muita segurança, se reflete em
suas obras literárias.
Outro caso digno de ser mencionado é o de Étienne Klein, em sua
obra O tempo: de Galileu a Einstein. O autor é um grande físico. Contudo, na
obra em questão consegue elaborar grandes ensaios a respeito do tempo
que ultrapassam, tranquilamente, os limites da linguagem da física, como no
seguinte fragmento textual:

Um rio nunca é igual a si mesmo, dado que é feito de


elementos constantemente renovados. Esta constatação
é válida para nós. Também nós 'fluímos': cada segundo
que passa empurra-nos em direcção a um mundo novo e
para um eu inédito. É, por isso, completamente possível
avançar, com Heráclito, que a única coisa que não muda
é a propriedade que têm as coisas e os seres de mudar,
de modo que nada pode permanecer idêntico a si
mesmo. Nesta retrospectiva, a mudança e a
impermanência exprimem paradoxalmente uma lei
intemporal: sempre em acção, manifestam a eternidade.
E fazem surgir uma questão: qual é pois esta ordem
subjacente ou imanente que governa realidades
perpetuamente móveis? No entanto, e de modo
finalmente muito surpreendente, a nossa maneira de
falar do tempo como de um rio toma sistematicamente o
partido inverso: associa-o à instabilidade, ao movimento.

46
É o tempo que flui, convencemo-nos, não o mundo, nem
nós próprios.
(...) dizer que o tempo flui como um rio implica que tenha,
em relação às suas hipotéticas margens, uma certa
velocidade. Na linguagem corrente, esta propriedade, a
velocidade, é-lhe de resto constantemente atribuída. Não
se diz que o tempo passa 'cada vez mais depressa'? Mas
uma velocidade, em geral, é a derivada de uma certa
quantidade em relação...ao tempo. A velocidade do
tempo obtém-se, portanto, determinando o ritmo da
variação do tempo que diz respeito...a ele próprio. ainda
agora começamos e já nos deparamos com um
obstáculo. Temos que nos habituar: o tempo tem um
prazer diabólico em transformar em armadilhas terríveis
os enunciados mais simples. (2007, p.28-29)

No texto de Klein, um físico, vimos que o autor vai muito além de


comentários ou explicações do âmbito restrito da física. Com signos
extremamente sensíveis faz um questionamento, carregado de poeticidade,
acerca do tempo de Heráclito (famoso pela sua teoria do fluir). Klein remete o
leitor a imagens de um rio que flui, fazendo uma releitura do movimento,
todavia, não com a linguagem pretensamente objetiva da física, mas com
uma linguagem rica em imagens e recursos especificamente literários.
Defendemos, acima de tudo, como muitos pensadores já fizeram: cada obra
é um obra. Cada obra é única. Na verdade, os gêneros que nada mais fazem
do que classificar obras e buscar tabelas de classificação que nada valem.
Servem, unicamente, para nortear determinadas obras que possuem, entre
si, algumas meras semelhanças.
A literatura, em qualquer tipo de texto, busca nomear aquilo que até
aquele momento mostrou-se inexato. Mostrou que poderia ser mais próximo
daquilo que merece o objeto num sentido mais geral. Isto é, um sentimento,
um objeto concreto, uma expressão abstrata. Nomear novamente aquilo que
não satisfaz mais em todos os graus e sentidos. Eis a literatura cumprindo,

47
de verdade, o seu papel. A palavra retomando seu lugar, ou seja, de nomear.
Arejar. Colocar a verdade a nu.
E tal tipo de literatura, vamos insistir, pode estar presente num livro de
Filosofia, num livro de Geografia, num livro de Arqueologia. Enfim, em
qualquer tipo de obra que não estritamente a literária. Tudo vai depender do
grau de recursos literários que o autor da obra poderá ter a sensibilidade e
genialidade de empregar. Nessa medida, os critérios que tornam uma obra
mais literária ou não permanecem os mesmos. Sendo que o critério mais
essencial seria: originalidade, de fato.
Foucault nos alerta que as obras literárias não deixam de designar-se
no interior delas mesmas. Em que medida? Não apenas por ideias, beleza e
apenas sentimentos. A linguagem e, consequentemente, a literatura é
integrante de um sistema de signos. Tal sistema não se encontra isolado.
Integra, logicamente, uma rede de signos distintos, “signos que não são
linguísticos, são signos que podem ser econômicos, monetários, religiosos,
sociais, etc "(Foucault, 2006, p. 94). A literatura se sustenta, na realidade, por
meio de vários estratos de signos. Ela é profundamente polissêmica, o que
não se confunde com ambiguidade ou vários significados e interpretações
para determinada mensagem.
A literatura está obrigada a recorrer a um determinado universo de
sedimentos semiológicos e deve significar-se a ela mesma; “a literatura não é
outra coisa que a reconfiguração, em uma forma vertical, de signos que estão
dados na sociedade, na cultura, em sedimentos separados” (Foucault, 2006,
p. 94).

As pessoas antigamente liam mais do que hoje?

Os escritores em determinadas épocas eram ouvidos. Talvez uma


espécie de conselheiros. Sábios. As transformações sociais e os altos
interesses das cadeias e corporações econômicas desencadeiam, muitas
vezes, proposital e intencionalmente o ofuscamento da boa literatura e,
consequentemente, dos objetivos maiores de um bom escritor.

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Objetivamente as pessoas não liam mais do que nos dias atuais. Em
todos os lugares e nas diversas dimensões onde existem linguagens.
Lembremos com rigor: somente a partir do início do século XX é que houve
expansão das linguagens a que hoje temos acesso. Portanto, como as
gerações poderiam ler mais? Grande parte da população, em todos os países
do mundo, era analfabeta. Então como as pessoas antes liam mais? As
publicações, se comparadas ao dias de hoje, eram em número infinitamente
menor...Os diversos atalhos, atualmente, para acesso de livros digitalizados
é enorme. Novamente: como antigamente as pessoas liam mais? O acesso
ao ensino em todas as suas instâncias era muito mais restrito...como as
pessoas liam mais em outros tempos? Como inferir se as pessoas liam mais?
A única coisa que podemos afirmar com bastante segurança: antes,
principalmente, antes da Internet, havia mais tempo disponível para a leitura
impressa. A velocidade e o ritmo das transformações eram bem mais lentos e
com isso, talvez, sobrasse mais tempo para a leitura impressa.
Mas já vimos, anteriormente, que é preciso tomar cuidado com os
conceitos atuais de leitura, visto que foram ampliados. Outro ponto muito
importante: em que proporção podemos medir a leitura de um livro? Quais
seriam os critérios para tal? Sabemos que é quase impossível. Quem declara
que leu, realmente, terá lido o livro? Em que grau de entendimento? Em que
grau de velocidade? Um livro que exige repertório, com certeza, exigirá do
leitor uma velocidade muito menor de leitura se compararmos com um livro
de leitura mais simples. Como ficariam então os critérios adotados? Como
avaliar a qualidade de uma leitura? De um livro declarado que lido? Missão
quase impossível.
E vamos mais adiante: o que as pessoas estão lendo? Apenas os
famosos campeões de venda no mundo? Se sim...via de regra tais obras
possuem apenas conteúdos vazios e cheios de aventuras. Se sim...não é o
brasileiro que está lendo tal tipo de literatura que não leva a caminho
nenhum. Note-se que para averiguar qualidade e quantidade de leitura fica
cada vez mais complexo. Em todo o caso ouçamos Sêneca (4 a.C-65 d.C.):

Até mesmo os gastos com estudos, embora sejam os


melhores gastos, só serão razoáveis se tiverem

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moderação. Para que inúmeros livros e bibliotecas dos
quais o dono, durante uma vida inteira, lê apenas os
índices? Uma infinidade de livros sobrecarrega, mas não
instrui. Melhor ater-se a poucos autores do que errar por
muitos.
Quarenta mil livros arderam em Alexandria. Belíssimo
monumento de régia opulência elogiou outro, assim
como Lívio, que disse ter sido uma obra máxima de
elegância e do cuidado dos reis.
Não foi, porém, do meu ponto de vista, nem elegância
nem cuidado, mas estudada luxúria, ou melhor, não foi
estudada, pois não para os estudos, apenas para os
espetáculos essas obras foram reunidas. Tal como
acontece com muitos que, embora desconheçam as
primeiras letras, fazem dos livros não instrumentos de
estudos, mas apenas ornamentos de sala de jantar.
Assim, juntem-se apenas os livros que sejam suficientes,
nenhum por ostentação. (...) Qual o motivo de tua
complacência com quem coleciona armários de cipreste
e de marfim e busca livros de autores desconhecidos ou
não recomendados para bocejar entre tantos milhares de
livros, uma vez que se compraz apenas com as capas e
os títulos?
Verás, pois, na casa dos homens mais ilustres, qualquer
livro que tenha sido escrito sobre oratória e história,
tendo as estantes abarrotadas até o teto. Hoje, como as
piscinas nas termas, a biblioteca também é um
ornamento obrigatório em qualquer casa de prestígio.
Eu perdoaria tal mania se o erro fosse por um exagerado
desejo de estudos. Agora, estas conquistadas obras de
gênios consagrados, instaladas em torno de estátuas de
seus autores, são compradas apenas para adorno das
paredes. (2013, p.63-64).

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Pelo texto de Sêneca, há milhares de anos, possuir uma bela
biblioteca já significava poder e prestígio. Ter estantes e estantes lotadas de
livros bonitos, grossos, encadernados, ao longo da história do homem, de
alguma forma, sempre significou prestígio. Uma certa cultura livresca acima
de qualquer suspeita. Família letrada. E assim por diante.
Atualmente, por mais que se diga que as pessoas dividem livros
impressos com outras formas de leitura, temos que admitir que ainda reina o
prestígio cultural de se ter muitos livros em casa. Ainda... possuir uma
biblioteca significa muito para a maioria da população. Em todos os lugares
do mundo. Mas a nossa indagação permanece: em que medida as pessoas
estão lendo aquilo que compraram? Em que medida não enfeitam suas
paredes com livros?
Cremos que tais questões devem ser pensadas, refletidas e
analisadas, em especial, por todos aqueles que de alguma forma estão
envolvidas com a Educação, com leitura e livros. A maioria das estatísticas
apresentadas em relação a índices da leitura impressa devem ser
questionadas. Via de regra, possuem metodologias duvidosas e
tendenciosas.

51


















PARTE II


Porque devemos ler...










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Hinos Homéricos

Todas as evidências de estudiosos e pesquisadores levam a crer que
Homero, o grande poeta da Antiguidade Grega, existiu por volta de 800 anos
anos antes de Cristo e teria sido, inclusive, o autor das maravavilhas
literárias: Ilíada e Odisseia, se fizermos uma leitura coerente do passado, ou
seja, entre outras coisas, que o conceito de autoria de hoje não se aplica ao
que se entende por autoria na Antiguidade; na verdade, muitas outras obras,
dos mais variados gêneros ,sofreram o mesmo processo.
Hinos Homéricos traz para o público, uma raridade em termos de
literatura. Poucos, na atualidade, se arriscam a aprender o grego clássico e
muito menos a traduzi-lo, portanto, temos em mãos uma obra muito cara em
termos editoriais. A obra foi traduzida para a língua portuguesa por diversos
estudiosos ao longo dos anos. Algumas são bilíngues.
Hinos Homéricos traz para o leitor diversos hinos poéticos dedicados
por Homero aos mais variados deuses da mitologia grega. Entre eles:
poemas a Apolo, Hermes, Afrodite, Atena e muitos outros. Considerada a
deusa protetora das cidades. Dentre tantas coisas que ela teria feito a favor
dos homens destacam-se as oliveiras, assim como ter inventado a fabricação
do azeite, o que lhe autoriza a soberania, naturalmente, sobre a cidade de
Atenas.
Impetuosidades, paixões e outros sentimentos humanos permeiam e,
muitas vezes, colocam em xeque vários conflitos dos deuses comuns
também aos humanos. Os deuse gregos não são divindades isoladas e
intocáveis. São seres que possuem inveja, ira, raiva, amor, tanto quanto os
humanos. A imortalidade os diferencia do humano. Eles sabem que a finitude
é o grande drama.
Deve-se ressaltar que a mitologia deve ser encarada como uma
perspectiva possível do real e do universo. Destaque-se, inclusive, que o
pensamento lógico e racional iniciado pela Filosofia dialogou, naturalmente,
com o pensamento mítico. Poucos lembram que a Filosofia durante muitos

53
séculos admitia a perspectiva mítica, como as obras de Platão nos lembram:
a invocação das Musas e de muitas outras entidades.
A leitura de Hinos Homéricos possibilita, entre muitas outras coisas,
lembrar, uma vez mais, que a principal fonte das grandes construções de
língua estão na literatura; a literatura homérica foi o grande marco de fontes
literárias, de língua, além de contribuir para com outras áreas do
conhecimento.
Possibilita, também , (nunca é demais lembrar), pensarmos sobre a
miserável condição humana : finitude, contradições, limitações. Por um outro
lado, ainda a capacidade de formular sonhos, fantasias, utopias, e, buscar a
completude por meio de caminhos indeterminados, cheios de alternâncias
para a novidade e o jamais experimentado.

Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa

Assistimos, nos dias de hoje, a um assombroso desmoronamento de


valores, entre outras coisas, que, mesmo as pessoas que vivenciaram
experiências terríveis estão pasmada e, quase, impotentes. O poder, talvez,
nunca tenha corroído tão aguda e velozmente convicções outrora
sedimentadas. Diálogos intertextuais, referências a acontecimentos e
saberes universais, memórias em seu sentido mais geral, são processos
varridos de formas sutis ou explícitas.
Saudades do passado? Éramos felizes e nunca suspeitamos? Será
que, definitivamente, não conseguimos alcançar o ritmo das novas formas de
existir? Tudo pode ser. Não há uma resposta completa e satifatória para tais
questionamentos.
De qualquer maneira, é nesse contexto que surge uma verdadeira
obra-prima, ou seja, Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa, Marilena
Chauí. Como diria Giorgos Seféris (1900-1971) em relação aos grandes
livros: uma verdadeira reserva de vida. Em outras palavras: um bom livro
preenche nossos constantes vazios diante da mesmice da vida. Das
injustiças. Da submissão. Das desigualdades.

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Cada ensaio de Marilena Chauí é um convite, bastante sedutor, para
se ler ou retomar Espinosa. O filósofo das paixões humanas. Da liberdade.
Da justiça. A leitura dos ensaios como um todo nos dá algumas certezas, e
não esperança, visto que “Espinosa demonstra que, em si mesma, a
esperança não é boa, pois é uma alegria inconstante que nos torna
dependents de bens futuros incertos e de promessas cujo cumprimento
nunca está assegurado”. Quais seriam as certezas? De que as paixões
tristes, sempre tirânicas, com as quais a humanidade, historicamente, foi e
está submetida, podem ser extirpadas, despotencializadas.
A obra aponta para as teias invisíveis do poder estabelecido ou não.
Cada página dos ensaios de Marilena sintetizam provocações, verdadeiras
convocações existenciais que abalam e desestabilizam, sem concessões,
posições políticas, ideológicas.
De repente, ler Espinosa, diante da exposição impecável da autora, é
uma necessidade imperiosa porque somos levados, obrigatoriamente, a
repensar e redefinir nossos próprios conceitos e critérios a respeito de
alegria, desejo, felicidade e liberdade. Kundera, talvez, pensaria: a leveza da
insustentabilidade da liberdade…quase inanalisável…um fio de brilho
intocável.
Entretanto, a obra possui, além do conteúdo, uma outra dimensão,
importante, para que a filósofa seja compreendida mais justa e plenamente
(como poucos merecem): a dimensão estilística. Se a maioria dos
acadêmicos prima pelo famoso discurso vazio para seus pares, por jargões
incompreensíveis para a maioria do planeta, Marilena Chauí, como sempre,
opta e possui, objetivamente, um estilo de ensaio digno. Clareza na
exposição dos conceitos. Terminologia rigorosa e compreensível mesmo
para os não filósofos, como certamente desejaria Espinosa. Não faz da
filosfofia um reduto para minorias. Seus ensaios existem para serem lidos,
compreendidos e, sobretudo, praticados, eis o admirável, o eterno fascínio
de um texto, seja literário no sentido estrito da expressão ou não.
Enfim, nas palavras da autora: “Uma paixão, demonstra Espinosa,
nunca é vencida por uma razão, mas apenas por outra paixão mais forte e
contrária; e uma paixão forte só é vencida por uma ação mais forte e
contrária; e uma paixão forte só é vencida por uma ação mais forte e

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contrária.” Eis a lição e recados mais evidentes que a filósofa nos deixa para
despertar o que a maioria de hoje deixou de lado: a capacidade da
indignação que tanto envolve a humanidade, num verdeiro torpor. Inércia.
Comodismo. Incapacidade de olhar para o outro.

E se Obama fosse africano?

O que significa ler? Será que basta pegar um livro, de preferência


impresso, colocá-lo à frente dos olhos? Este, via de regra, é o processo mais
geral e conhecido. Leitura, infelizmente, significa isso para a maioria das
pessoas. Pasmem! As escolas, em todos os níveis possíveis, reproduzem tal
inverdade absurda. Ler é um processo muito mais amplo, conforme muito já
colocaram.
E se Obama fosse africano?, Mia Couto, é uma leitura, neste caso,
impressa, obrigatória. O escritor e biólogo africano tem se destacado em
vários países – merecidamente, lembrando que muitos famosos são
covardemente enfatizados por nada digno – quer por sua literatura com um
grau incrível de poeticidade, quer por sua sensibilidade (além de posições
políticas bastante fundamentadas) em relação aos problemas do continente
africano. Especialmente quando declara: “A pressa em mostrar que não se é
pobre é, em si mesma, um atestado de pobreza. A nossa pobreza não pode
ser motivo de ocultação. Quem deve sentir vergonha não é o pobre mas
quem cria a pobreza.”
Contudo, destaque-se, primeiramente, o conceito do autor africano em
relação à leitura : “Falamos em ler e pensamos apenas no livros, nos textos
escritos. O senso comum diz que lemos apenas as palavras. Mas a ideia de
leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos
os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida.
Tudo pode ser página.”
A obra em referência possui diversos ensaios que refletem questões
que deveriam tocar de perto todo ser consciente das condições mais gerais
deste planeta que habitamos, ou seja, de que há verdadeiros estratos sociais
que vivem acima de qualquer coisa. No Olimpo. Praticamente inatingíveis.

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Contudo, há estratos que vivem na mais completa miséria, como é o caso da
maioria dos países africanos.
Mia Couto, entre outras coisas, conceitua a temporalidade africana,
como um recurso argumentativo de leitura política, de forma fascinante.
Segundo o autor, o povo africano, de um modo geral, faz uma leitura do
tempo presente enquanto um processo vertical, isto é, sem pensar no futuro.
Há um presente profundo que despreza uma projeção para a posteridade. O
tempo passado para os africanos age de forma paralisante sobre os
habitantes que ficam presos aos movimentos de opressão, em todos os
níveis, pelos quais passaram. O passado age como uma sombra maléfica.
Este mesmo passado se desdobra numa temporalidade circular. O que seria,
neste caso, uma temporalidade circular? Um tempo em constante diálogo
com os mortos. O futuro, para Mia Couto, mostra-se esvaziado. “Estamos tão
entretidos em sobreviver que nos consumimos no presente imediato. Para
uma grande maioria, o porvir tornou-se um luxo. Fazer planos a longo prazo é
uma ousadia a que a grande maioria foi perdendo o direito. Fomos exilados
não de um lugar. Fomos exilados da actualidade. E por inerência, fomos
expulsos do futuro.”
A literatura e, consequentemente, a leitura de Mia Couto, acima de
qualquer outro predicado, mostra-se em plena convergência e sintonia com
as necessidades mais atuais do que se denomina pós-modernidade ou algo
que o valha. Dito de outra maneira: uma literatura que de forma simultânea
reflete ternurosamente as necessidades materiais da humanidade, assim
como suas necessidades mais interiores. Poucos escritores, nos dias atuais,
possuem a sensibilidade de Mia Couto.

Cadernos de Lanzarote II

Pensadores, vencedores, vencidos, artistas, escritores, atores,


filósofos, e muitos outros, pensaram e refletiram, ao longo da história da
humanidade sobre questões de justiça. Pergunta-se? De fato: quais são os

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limites da justiça? Materializa-se o Crime e Castigo? Sabe-se que não. Os
mitos gregos e romanos, em grande parte, carregavam tais ponderações. O
mal nem sempre é castigado. Poucas vezes, infelizmente, o bem triunfa
sobre o mal…e, desta forma, vive-se um universo, em diferentes esferas,
cheio de injustiças sociais e culturais. Há muito para se fazer pela
humanidade. Um trabalho quase insano.
Cadernos de Lanzarote II do nosso saudoso e muito e muito querido
José Saramago é uma leitura fascinante. Reserva de vida. Pontencializadora
para quem busca um certo consolo diante das inúmeras situações, cotidianas
ou não, que enfrentamos a cada segundo.
O livro de Saramago é, na verdade, um diário bastante sintético de
vários anos do autor. Neste diário conhecemos mais de perto e num registro
bastante singular, próprio dos diários, os pensamentos do autor, assim como
suas atitudes perante as mais diversas situações.
Destacam-se nos Cadernos a grande importância que Saramago
dava ao ser humano. O quanto ele lutou, sem conceder, em prol da justiça .
Ou seja, o escritor não nos deixou somente um legado, em termos mais
objetivos, de literatura. Aliás que legado! Em todos os níveis. O escritor
português deixa, inclusive, uma grande obra política no melhor sentido e
significado do conceito. Posições claras e, acima de qualquer coisa, justas.
Persegue, a todo custo, sem desanimar um minuto sequer, conceitos de
justiça e mais: intervenções. Suas atitudes perante tudo sempre projetam
ações efetivas, concretas, materiais. Saramago desmente os famosos
ditados que cercam escritores e artistas de que vivem num planeta fora das
esferas atuantes concretas.
Em diversos momentos (e foi acusado de pessimista), Saramago,
coloca que a literatura por si somente não consegue ser uma grande agente
de transformações sociais. Ele não acredita nisso. Sob sua perspectiva a
literatura pode até mudar algumas vidas, contudo, segundo ele, são casos
bastante particulares. Casos isolados. De pouco alcance. “Como poderemos
nós, insisto, embora provocando a troça das futilidades humanas e o escárnio
dos senhores do mundo, restabelecer o debate sobre literatura e
compromisso sem parecer que estamos a falar de restos fósseis? Espero que
num futuro próximo não venham a faltar respostas a esta pergunta e que

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todas juntas possam fazer-nos sair da resignada e dolorosa paralisia de
pensamento e acção em que nos encontramos. Por minha parte, limitar-me-ia
a propor, sem mais considerações, que regressemos rapidamente ao Autor, à
concreta figura de homem e mulher que está por trás dos livros, não para
que ela ou ele nos digam como foi que escreveram as suas grandes ou
pequenas obras (o mais certo é não o saberem eles próprios), não para que
nos eduquem e instruam com as suas lições (que muitas vezes são os
primeiros a não seguir),mas, simplesmente, que nos digam quem são, na
sociedade que somos, eles e nós, para que se mostrem como cidadãos deste
presente, ainda que, com os escritores, creiam estar trabalhando para o
futuro.”
E assim, muito mais pelos Cadernos do que propriamente pelo legado
literário do autor, sabemos que ele executava aquilo que apregoava. Sempre
presente (mesmo) em situações que envolviam decisões culturais, e,
sobretudo, políticas (no sentido estrito).
Cadernos de Lanzarote II, em tempos de barbárie como os atuais,
renova fios interiores de nossa subjetividade. Devolve-nos uma certa
capacidade de indignação tão necessária para suportarmos a inesgotável
perversidade que a todo segundo estamos sujeitos. Enquanto isso, o escritor
português, neste momento, livre, sorri por se achar liberto de gaiolas
epistemológicas (termo cunhado pelo meu querido professor e pensador
Ubiratan) que tanto cegam a humanidade do óbvio.

Odisseia

Prolongadoras da Memória, as Musas, sabe-se, foram consideradas,


de fato, inspiradoras dos grandes poetas antigos, sendo que um dos mais
conhecidos é o nosso bom, querido e velho Homero (aproximadamente 800
a.C.) que materializa tradições orais. “O homem multiversátil, Musa, canta, as
muitas/errâncias, destruída de Troia, pólis sacra,/as muitas orbes que mirou e
mentes de homens/ que escrutinou, as muitas dores amargadas/ no mar a
fim de preservar o próprio alento/ e a volta aos sócios.”

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Os poetas, durante as centenas de anos que antecederam a nossa
era, foram considerados os mestres da verdade. De acordo com a maioria
dos especialistas (incluindo os poetas antigos) as Musas os conduziam para
um passado coletivo; não para um passado egoisticamente individual do
próprio poeta, mas a um passado mais geral: o passado de seu povo, de sua
gente. Nessa medida, a nobre, muito nobre, função do poeta era a de trazer
de volta as memórias, muitas vezes, gloriosas de um povo.
Homero não ficou calado. Eis uma das razões pelas quais a obra do
poeta grego, ainda hoje, faz tanto sucesso e foi fonte inspiradora de tantas
outras.
Odisseia, Homero, jamais deixou seu merecido lugar de honra dentro
do universo literário, especialmente, no Ocidente. Eis uma obra, realmente,
inesgotável. Quanto mais se lê, mais instigante. Quanto mais se relê,
lacunas como “os caminhos dos jardins que se bifurcam” atormentam a
imaginação e os diversos níveis de estratos que consolidam a subjetividade
humana. Deuses, deusas e outras divindades mitológicas agem sem
descanso nesta obra prima grega:
“Ártemis casta, filha de Cronida, flechas /lançando contra o peito, a
vida me levaras/neste presente, ou furacão me sequestrando/ lançara-me em
sendeiros nebulosos, me/ cuspindo à foz oceânica autorrefluente,/como os
tufões levaram antes as Pandáridas,/ orfãs em casa, após os deuses
dizimarem/ os genitores. Afrodite as preservou/com queijo, mel-dulçor e vinho
deleitoso./ Mais do que às outras, Hera concedeu-lhes graça/ e sensatez;
sublimidade deu-lhes Ártemis,/ Palas lhes ensinou lavores resplendentes.”
A Odisseia é um texto sem território. Pertence-nos como o ar que respiramos.
Poesia e poeticidade para todas as idades. Se lida e ouvida por crianças
aprofundará, com muita certeza, sonhos e devaneios próprios do universo
infantil. Se lida por jovens e adolescentes criará, certamente, mais sonhos e
perspectivas. Se lida por pessoas mais maduras e experientes, em todos os
graus, deverá provocar questões como: até que ponto o destino pode ser
conduzido por nós? Em que medida estamos predeterminados? Haveria
intercessões nos caminhos humanos? Os deuses moram no Olimpo? E se
moram: descansam ou trabalham por um mundo mais justo? Ou seja, o

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poema de Homero deixa no ar questionamentos que até hoje permanecem
mais atuais do que nunca.

Diário de uma Guerra Estranha

Existem literaturas que comportam um alto grau de filosofia. Machado


de Assis, Fernando Pessoa, T.S. Elliot e outros. Assim como também existem
filosofias que possuem um alto grau de poeticidade que caracterizam, entre
outros elementos, a literatura. Gaston Bachelard, Gilles Deleuze estariam,
com tranquilidade, nesta lista.
Diário de uma Guerra Estranha, de Jean-Paul Sartre, grande pensador
enquanto um escritor, contudo, sem fugir da filosofia como seria de se
esperar. A maioria dos diários de grandes escritores e, neste caso, de
grandes filósofos, possuem uma dimensão filosófica inescapável. Sartre
define seu diário: “Este caderno é útil para mim porque me ensina, se me é
permitido falar assim, a pensar espontaneamente. Eu era sitemático demais.
Eu teria elaborado, facilmente, uma teoria sobre a guerra, partindo dos
princípios para chegar às últimas conclusões. Em vez disso, inscrevo, aqui,
meus pensamentos tais como estes me ocorrem e não dissimulo que existem
contradições no que pensei sobre o ser-em-guerra, neste ou naquele dia.
Mas tanto faz. Em vez de uma teoria sobre a guerra , pretendo fazer
descobertas.”
Sartre participou da segunda guerra mundial _ durante o período de
setembro de 1939 a março de 1940 _ como metereologista, sem integrar a
infantaria, ou seja, sem pegar nas armas diretamente. Desta forma, houve
tempo e uma certa disponibilidade, como ele mesmo afirma, ao longo de sua
escritura, para fazer anotações sobre sua condição, sobre a condição
humana dentro de um contexto de guerra, assim como pensar em sua
literatura romanesca e filosófica .
Este diário _ alternado entre situações escritas e descritas com
bastante objetividade, como por exemplo, a espera das cartas, em especial a
de Simone de Beauvoir (Castor), os momentos em que vai comer com seus
companheiros, conversas banais com seus amigos e os grandes momentos

61
de reflexões existenciais _ merece uma leitura cuidadosa por diversas
razões.
Uma delas: os grandes questionamentos que Sartre faz a respeito da
guerra em si. O papel da Segunda Guerra Mundial. Nessa perspectiva, o
autor, como muitos historiadores observaram, diz que a Segunda Guerra
seria uma espécie de continuidade da primeira, que, na verdade, deixou
muitos pontos irresolvidos no planeta.
Evidentemente, Sartre não para por aí. Os grandes questionamentos
brotam como gotas intensas de uma grande chuva de verão: o que,
individualmente, um homem faz numa situação de guerra? Quais são as
disposições? Quais as disponibilidades individuais e coletivas para uma
guerra? Em que medida se colabora ou não para as grandes misérias que a
guerra envolve?
Nessa perspectiva, predomina na escritura de Sartre o abalo de
nossas possíveis certezas acerca de nós mesmos. Um outro motivo
essencial para a leitura da obra em questão seria a revisão provocada na
identidade da humanidade: “Questionar a natureza humana, usando métodos
próprios da natureza humana. Saber que a natureza humana já se define
pelo questionamento que formula sobre si mesma. De um só golpe,
colocamos o espírito, não o corpo, a psique, não a história, nem o social ou o
cultural, mas a condição humana enquanto unidade indivisível, como objeto
de nosso questionamento.”
Nestes tempos de guerra, mesmo que isoladas, como no Oriente
Médio, a leitura deste livro traz, certamente, um grande grau de visibilidade
se pensarmos o quanto de imbecilidade e miséria humana a guerra carrega.
Em que medida assistimos, sem envolvimento, como estátuas de pedra, a
mortes e sofrimentos que, talvez, fossem atenuados ou, mesmo, evitados,
caso houvesse intervenções efetivas? Socorro! Onde estão os humanos?

De santos e sábios: escritos estéticos e políticos

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James Joyce (1882-1941), considerado um dos maiores escritores da
literatura ocidental pela maioria dos críticos, autor do famoso, entre outros,
Ulisses, ainda é tido como quase inacessível, visto suas obras possuírem um
alto grau de complexidade. As obras de Joyce são enigmáticas,
fragmentadas. Estruturalmente originais. Fogem, em todos os sentidos, da
maioria dos padrões estabelecidos pelos cânones literários. Na verdade fica
difícil ler Joyce sem um certo repertório literário.
De santos e sábios: escritos estéticos e políticos, do escritor em
questão, parece-nos um presente fascinante tanto para quem já conhece a
obra do autor, como para quem pretende conhecê-la.
Em que consiste esta obra? Conferências, ensaios, cartas, poemas
que foram traduzidos por um grupo de estudiosos brasileiros. Cada tópico
contém um breve comentário do tradutor.
Em geral os tópicos ensaísticos do autor irlandês refletem o humor, a
ironia aguda, a crítica que ele irá concretizar em suas obras ficcionais.
Destaco o tópico em que Joyce, 1903, buscou construir sua própria estética:
“São belas as coisas cuja apreensão agrada. Assim, a beleza é aquela
qualidade de um objeto sensível em virtude da qual sua apreensão agrada ou
satisfaz o apetite estético que deseja apreender as relações mais
satisfatórias do sensível. Ora, o ato da apreensão estética envolve pelo
menos duas atividades, a atividade de cognição, ou percepção simples, e a
atividade de recognição, ou reconhecimento.”
As questões da estética sempre foram um verdadeiro poço de dúvidas
e questionamentos. Afinal, quais seriam os critérios que poderiam definir o
belo, maravilhoso, grotesco ou predicativos enquadrados em outras
classificações? Haveria um gosto universal? Joyce busca refletir tais
questões a título, principalmente, de provocação.
No tópico Drama e Vida observa-se que Joyce, mesmo ainda muito
jovem, traça o que o definirá como um representante exemplar da literatura:
“A sociedade humana é a encarnação de leis imutáveis que estão encobertas
e envolvidas pelos caprichos e pelas circunstâncias da vida dos homens e
das mulheres. O reino da literatura é o reino (muito vasto) desses
comportamentos e humores acidentais, e o verdadeiro artista literário se
ocupa principalmente deles.”

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A obra em questão além de ser um excelente exemplo de escritura,
visto que Joyce é preciso, claro, provocador, possui um estilo de escritura
definido, mostra uma fase de nossa história (primeiros anos do século XX)
sob a perspectiva de um olhar agudo. Nessa medida, tomamos conhecimento
das preocupações de um escritor que critica severamente a sociedade
irlandesa ao mesmo tempo que exalta escritores e artistas dignos, a nosso
ver, de serem lembrados e comentados por James Joyce.

Poemas de Adonis

Adonis é o pseudônimo de Ali Ahmad Said Esber, um dos maiores


poetas árabes de todos os tempos, cuja primeira publicação, em português,
de uma fascinante seleção de poemas é um presente para nós leitores. A
tradução, diretamente do árabe, foi realizada por Michel Sleiman.
Apresentação sedutora de um dos maiores escritores brasileiros vivos, ou
seja, Milton Hatoum.
Quem foi Adonis? De acordo com os registros mitológicos,
largamente divulgados na tradição grega (inclusive) nasceu de uma árvore.
Uma criança que nasceu tão bela que foi duramente disputada por Afrodite e
Perséfone.
O poeta árabe traz para nós uma poesia autêntica e que libera toda a
potencialidade de uma escrita que materializa sensibilidade, crítica mordaz ;
não a crítica panfletária e direta, mas aquela inundada por uma onda de
ironias que invadem o nosso universo, agudamente debruçada sobre os
poderes e rivalidades , infelizmente construídos, entre Oriente e Ocidente.
A memória do poeta evoca e transforma suas experiências em versos
com imagens, em todos os graus. Transbordam em sua poesia a exigência
de leitores disponíveis a um ardoroso exercício de pensamento. Adonis não
concede, como, por exemplo, no seguinte trecho: NOVA YORK- WALL
STREET – RUA 125- QUINTA AVENIDA/ Fantasma medúseo se ergue dos
ombros./ Mercado de escravos de todo tipo. /Pessoas vivem como plantas
em jardins de vidro./Miseráveis invisíveis interpenetram-se como o pó no
tecido do espaço- espiral de vítimas./O sol é funeral,/o dia, tambor negro.

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Desde que o mundo é mundo …podemos nos relacionar com o que
quer que seja de diversas formas e maneiras. Podemos nos relacionar com o
rio para pescar. Para catar pedregulhos. Para andar de barquetas. Para
andar por suas doces águas declaradamente traiçoeiras. Para apenas
admirá-lo. Para adocicar nossos pés. Adonis mostra a sua relação com a
famosa Quinta Avenida de Nova York, que, diga-se de passagem, contradiz a
maioria do planeta. Desgraçadamente a Quinta Avenida é objeto e alvo
mundial de admiração. O poeta árabe alerta os leitores para uma outra
leitura da famosa avenida. A leitura de um escritor sagaz, agudo e que não
se deixa seduzir por uma visão meramente consumista de um país
declaradamente imperialista que se sustenta, como se sabe, com a
submissão e escravidão de seu próprio povo e fragilizados do planeta.
Outro destaque do livro de Adonis é o seu poema Guia para viajar
pelas florestas do sentido. O título, por si , corresponde a uma imagem
fascinante do que virá depois. Nas palavras do poeta: O que é a
melancolia?/anoitecer/no espaço do corpo./O que é a sorte?/dado/na mão do
tempo./O que é sonho?/faminto que não para/de bater à porta da realidade./
O que é a tristeza?/ palavra descartada por engano/ pelo dicionário da
alegria./O que é a surpresa?/pássaro/ que escapou da gaiola da realidade./
Pergunto: o que é Adonis? Poeta que consegue captar, com
sensibilidade, os pré individuais que pululam ao nosso redor, mas como
poucos consegue dar visibilidade e flechar leitores para outras perspectivas
de uma existência que continuamente requer redefinições, novos conceitos,
verticalizações subjetivas para caminhos de criatividade que nos darão armas
para corroer a tristeza, a injustiça, a desigualdade e deslealdade que nos
circundam. Poesia de boa qualidade é vitamina que contamina. Vivam as
palavras!

Escrito sobre Jade: poesia clássica chinesa

Há críticos de Literatura que se destacam por suas posições amargas


e pessimistas diante de um objeto literário. Repelem o novo. Odeiam a vida

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em sua plenitude. Acham, via de regra, que as obras passadas sempre
foram melhores em relação ao novo. Não é o caso de Haroldo de Campos.
Continuamente buscou experimentações. Buscou obras originais para
destacá-las e fazer notar pontos que, muitas vezes, passaram despercebidas
em outras épocas. Em outras palavras: eterno mestre. Sua obra, como um
todo, dificilmente será esquecida. As Musas, embora obscurecidas,
reaparecem, mesmo que de vez em quando.
A fascinante obra Escrito sobre Jade: poesia clássica chinesa é um
verdadeiro convite a uma forma de literatura muito especial: literatura
explorada em diversas dimensões, a saber: o primoroso projeto gráfico,
original, um apelo sem precedentes à contemplação do belo. O livro
enquanto materialidade. A capa dura com um pequeno recorte colorido na
lombada instiga, de saída, qualquer leitor. Todo o livro oferece imagens que
dialogam perfeitamente com os textos poéticos apresentados. Bem ao estilo
“haroldiano” que, entre coisas, primava a convergência entre o verbal e o
não-verbal. A edição é bilíngue destacando os ideogramas chineses como
espaços concebidos dentro de uma leveza conceitual e gráfica. Destaco,
inclusive, o trabalho incansável, sensível e sério de Trajano Vieira,
habitualmente, atento em reunir os trabalhos de Haroldo de Campos e
reorganizá-los.
Comecemos pelo título: escrito sobre Jade. O que evoca Jade? A
famosa pedra, em suas mais diferentes tonalidades de verde, usada como
ornamento (em diversos graus e sentidos). Jade, acima de qualquer outra
coisa, materialmente, ecoa e ressoa: resistência. Conforme se sabe, é um
dos maiores símbolos da China, visto significar, entre outras coisas, desde os
tempos mais antigos, um meio de se comunicar com os deuses. Jade
representa, inclusive, para os chineses, inteligência, justiça, honestidade,
felicidade, poder ,riqueza.
Mas Haroldo de Campos justifica o título enquanto uma convergência
memorial, ou seja, segundo ele, nomes de livros. Le Livre de Jade (1908) de
Judith Gautier e Escrito sobre un Cuerpo (1969) de Severo Sarduy.
O grande poeta e ensaísta faz uma verdadeira viagem em busca de poemas
clássicos chineses que marcaram épocas. Desta forma, poetas como Shi-
King, Wang Wei e outros, das mais variadas eras, materializam-se em

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português com a leveza que a língua chinesa costuma marcar, como na
seguinte poesia de Li Po (701-762 d. C.): nuvens são cambraias/pétalas tuas
faces/brisa / que farfalha/ nas varandas/ altas/ cristaliza/ orvalho/ diamantes/
de água/ se não posso/ vê-la/ nos píncaros/ de jade/ sob a lua/ ei-la/ no
pavilhão/ de jaspe.
A contemporaneidade avança, inexoravelmente, esvaziando de
maneira profunda os antigos padrões de subjetividade que incluíam
momentos de silêncio. Momentos de pensar e refletir. Os textos poéticos
exemplares (que conseguiram sobreviver) estão ao nosso redor. As Musas
(prolongadoras da memória) ainda possuem vozes ativas. Certamente,
existirão outros possibilidades de interioridades. De sociedades. Mas a
palavra poética, em todos os casos, será eternamente necessária para
lembrar a humanidade de que precisamos de espaços que propiciem a
liberdade de pensar e contemplar. Espaços em que a racionalidade impura,
perversa e invasiva possui um limite. Eis um dos grandes avisos da
poeticidade. E mais: “a dama que fez baixar as persianas de cristal
comtempla na transparência a clara lua de outono.”

Vida e proezas de Alexis Zorbás

A literatura, como toda arte que se preze, deve trazer para o leitor,
entre tantas outras coisas, inquietações. O que se entende por inquietações?
Pontos, agulhadas, intensidades que provoquem muito mais do que um
indagar passageiro…A boa literatura deve mexer com a humanidade a
ponto de se reconhecer que após a leitura de determinados textos nunca
mais seremos os mesmos.
Vida e Proezas de Alexis Zorbás, do grande escritor grego moderno
Nikos Kazantzákis, é um exemplo de excelente literatura. O autor grego é
um dos mais conhecidos da literatura universal e um dos mais lidos
(merecidamente) da literatura grega moderna.
Nikos Kazantzákis nasceu em 1885 e morreu em 1957 na bela e
histórica ilha de Creta . Sempre foi um homem inquieto. Nasceu para

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batalhar, em todos os níveis, por um mundo melhor. Por uma humanidade
mais digna . Pela amplitude dos direitos iguais. Pelas condições de dignidade
dos seres humanos. Cansado de atuar mais diretamente na política,
concluiu que o melhor caminho, para ele, seria uma espécie de revisão do
estabelecido por meio da literatura. Sua meta: a interioridade humana. Para
ele somente uma mudança interior e subjetiva poderia melhorar as condições
do mundo. Estudou Direito e Filosofia. Andou o mundo e visitou diversos
países e culturas para ver de perto e de maneira mais concreta misérias e
riquezas em todos os graus.
Na obra em questão narra a história de um intelectual e escritor (há
várias evidências autobiográficas) que está em busca de material para sua
literatura e possui grandes dramas existenciais. Conhece Zorbás: um
homeme do povo que adora dançar, cantar e viver plenamente os seus
amores. Um homem que vive quase exclusivamente o presente. “Encontrei-o
pela primeira vez no Pireu. Eu descera ao porto para pegar o barco para
Creta. Faltava pouco para amanhecer. Chovia. Soprava um forte siroco e
chegavam respingos do mar até a pequena cafeteria.” Zorba passa a
acompanhar por algum tempo o intelectual. Nesta relação de amizade surge
o grande enredo do livro.
Tem-se, desta forma, a perspectiva de um intelectual preocupado com
grandes dramas da humanidade e de outro lado um homem que
despreocupado com livros. Centra-se apenas na experiência e na vida mais
imediata e prática. Zorba é um personagem leve. O intelectual e escritor um
personagem pesado. A responsabilidade pesa-lhe a todo momento em sua
existência. “Todas as coisas neste mundo têm um sentido oculto, pensei.
Todas as coisas - homens, animais, árvores, estrelas – são hieróglifos, e feliz
daquele, ou coitado daquele, que começa a decifrá-los e a adivinhar o que
dizem…No momento em que as avistamos, não entendemos: pensamos que
são homens, animais, árvores, estrelas. Somente depois de anos, muito
tarde, captamos seu sentido.”
Zorba representa claramente a alegria, a satisfação imediata das
necessidades humanas, mas que também deixa escapar seus dramas mais
íntimos. “Pendurei novamente a lâmpada em seu lugar e fiquei observando
Zorbás a trabalhar. Ele se entregava por inteiro ao trabalho, não tinha nada

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mais no pensamento, tornava-se um com a terra, com a picareta, com o
carvão.” Enfim, a leitura de Vida e Proezas de Alexis Zorbás, discute, entre
outras coisas, a condição humana em níveis aprofundados, mas uma coisa
fica muito evidente na obra: não temos saída. Viver é coexistir com a solidão.
Viver é satisfazer determinadas necessidades. Viver é o eterno embate entre
a crença e a descrença. Viver é, acima de qualquer coisa, habituar-se com a
miséria material e imaterial. Intelectual à busca de sentidos para o oculto.
Dançarino em busca de prazeres mais imediatos. Todos em busca de
respostas que somente o transcorrer da vida poderá ou não dar visibilidade.

Conversas com escritores

Literatura traduz um verdadeiro universo de possibilidades e sentidos


desde que alguém pronunciou palavras que encantavam, quer pela sedução
de narrativas, quer pelas rimas e outros recursos que, de alguma maneira,
legitimam uma literariedade. Um texto carregado de poeticidade, mesmo que
conceitual, via de regra, seduz a humanidade. Entretanto, uma coisa
permanece, ainda, um tanto obscura, como muitos já colocaram: podemos ter
acesso ao mundo criado pelo escritor, contudo, jamais teremos acesso direto
às fontes, via de regra, insondáveis, de um autor. O processo de criação não
se presta à visibilidade. Infinito. Profundo. Inalcançável. Pessoal. Intranferível.
Conversas com escritores, Ramona Koval (entrevistadora), busca, em parte,
matar a curiosidade do leitor, em especial, a respeito do processo criativo de
escritores consagrados como: Amoz Oz, Gore Vidal, Malcon Bradbury, Saul
Bellow, Jeanette Winterson e muitos outros. Além disso, as entrevistas
buscam as posições dos autores em relação ao mundo, à cultura e outros
assuntos de interesse mais geral.
A entrevistadora mostra-se, elegantemente, profunda leitora e
conhecedora das obras de cada entrevistado. Não buscou perguntas
padronizadas. Para cada escritor ou escritora se dirige de forma
personalizada. Respeitosa. Este é um dos pontos que chamam a atenção de
um leitor um pouco mais atento.

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Conversas com escritores é livro excelente em vários sentidos. Num
mundo onde o tempo para leituras impressas se torna cada vez mais
roubado, um deles é a vantagem de a cada momento estar em companhia de
um escritor diferente. As entrevistas, relativamente curtas , facilitam as
necessárias interrupções de uma leitura.
A entrevista de Amoz Oz é imperdível: equilibrado e sensível. O
escritor israelense dá uma aula autêntica sobre linguística: “Digo o seguinte:
o hebraico é um instrumento musical extremamente algébrico, muito conciso,
quase simbólico. (…)Tem algo nessa concisão do hebraico, no espaço muito
apertado dessa língua, que não encontro no inglês .” E o escritor explica de
maneira bastante elucidadora o quanto uma língua estrutura a forma de
pensar de uma sociedade. As concepções gerais e particulares de uma povo.
Linguagem, em suma, é uma determinada forma de existir no mundo e para o
mundo.
O escritor Martin Amis fala do papel do poeta: “Porque o que o poeta
faz é desacelerar as coisas, examiner o momento com um cuidado e um
significado meticulosos, acossado por pequenos medos, e realmente
procurer situar um momento significativo. Os romancistas também tentam
fazer isso, mas a uma velocidade muito maior e sem deixar que as coisas se
desacelerem”.
Enfim: a leitura do livro em questão nos leva, em muitos momentos, a
pensar na literatura como ela realmente mereceria. Quando a entrevistadora
pergunta ao escritor Malcom Bradbury se os leitores amam os escritores, ele
nos responde: “Acho que é um amor correspondido. Os escritores amam
seus leitores, sentem isso por eles enquanto escrevem o livro, e essa relação
sedutora e intrincada que se constrói assim é muito agradável”.
Literatura, sem dúvida, apesar das incríveis adversidades pelas quais passa
e sempre passou, continua sendo um poço de mistérios em si mesmos.
Mistérios que talvez permaneçam impenetráveis. Nada como uma boa
literatura para desvendá-los!

O livro do travesseiro

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Há publicações que ainda, nos dias atuais, são surpreendentes.
Leveza, surpresa e relatos inesperados a partir de Sei Shônagon. Escritos
entre os anos de 994 e 1001 quando servia na Corte de Teishi em Heiankyô,
hoje, Quioto, Japão.
O livro do travesseiro é um texto muito diferente e, realmente, digno
de ser lido. A autora oferece ao leitor narrativas breves, como se fossem
pequenas crônicas, em especial, a respeito da natureza e de certas
observações em relação a comportamentos daquela época.
O extraordinário, nesta obra, é podermos ter acesso a um mundo tão distante
geográfica e temporalmente a nós. Mais de mil anos nos separam da autora.
O mundo era completamente diferente e ainda mais: um universo oriental.
Um outro ponto importante: temos uma voz feminina. Lembremos que
raramente temos perspectivas femininas a respeito do passado da
humanidade. Isso ocorre tanto no Ocidente como no Oriente. Nesta obra
temos a grande felicidade de ouvir vozes femininas. Isso muda todo o foco.
Eis o grande valor histórico desta obra, além do indiscutível valor literário,
como, por exemplo no seguinte trecho: “Quanto a pássaros, embora pertença
a terras estrangeiras, é muito enternecedora a cacatua. Dizem que ela imita
tudo o que falam as pessoas. O cuco-pequeno. A galinha –d’água. A narceja.
A gaivota, ‘pássaro-da-Capital’. O pintassilgo verde. A papa-moscas.”
Embora seja uma narrativa, supreende, uma vez mais, a melodia, o ritmo,
elementos primordiais de poeticidade.
Durante a leitura da obra absorvemos o comportamento das pessoas
que viveram tão distantes de nós. Imaginamos um tempo sem as tecnologias
de hoje e a descrição de encontros, em todos os sentidos, completamente
diferentes dos atuais. Um sistema político e hierárquico que promove outras
formas de relação entre as pessoas e formas de existir, talvez, nunca
imaginadas por nós, como no seguinte trecho: “Acima de tudo mesmo, nada
há de mais detestável do que uma pessoa mal vestida que vem assistir aos
eventos imperiais em uma carruagem miserável. Se fosse somente para ouvir
sermões budistas, não haveria problema, pois estaria vindo para redimir-se
das faltas cometidas. Mesmo assim, não deixa de ser indecoroso comparecer
com esses trajes, mas, quando se trata do Festival Kamo, aí sim, nem sequer

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deveria estar presente a assisti-lo. Sua carruagem não tem persiana interna e
deixa à mostra somente as mangas de um quimono branco sem forro.”
Ao final da leitura da obra em questão, com todos os seus encantos
de um universo bastante diferente do atual, algumas coisas, infelizmente,
notamos que há em comum, com a contemporaneidade, como por exemplo:
sentimentos de inveja, desamor, humilhação e outros bastante degradantes.
Mas o que mais chama a atenção se compararmos a época dos relatos
japoneses com o mundo de hoje é em relação à miséria: “o andar lento de
uma carruagem imunda”, ou, “uma mulher maltrapilha que carrega a criança
nas costas, em dias muito frios ou muito quentes”, ou, “um mendigo
velho”…Em síntese: a miséria nunca deu trégua para a humanidade, em
todos os tempos, em todas as etapas históricas. Triste e real constatação
que, por mais evidente que seja, mostra o quanto ainda teremos que lutar
para que tenhamos um mundo um pouco mais justo. O futuro é longo e
nunca será bonzinho. Nosso consolo, ou pelo menos, um pequeno: as
reservas de vida propostas pelas grandes literaturas. Nada mais resta!

A Rosa o que é de Rosa : Literatura e Filosofia em Guimarães Rosa

Literatura e Filosofia são áreas cuja proximidade nem sempre


alcança o entendimento que deveria ter. Desde a Antiguidade grega que a
Literatura, sob alguma dimensão, foi pensada por poetas e filósofos,
conforme é sabido. Poetas, durante muitos séculos, foram vistos como
portadores de verdades e fixadores de um passado coletivo. Pelas mãos das
Musas tinham acesso a mundo inacessíveis aos seres mais comuns.
Todavia, em especial, Platão sempre desconfiou dos poetas, da poesia.
Na obra póstuma A Rosa o que é de Rosa: Literatura e Filosofia em
Guimarães Rosa, Benedito Nunes (1929-2011), organização de Victor Sales
Pinheir, lançada recentemente, temos, uma vez mais, um grande presente do
nosso saudoso Benedito Nunes, pensador incansável a respeito das relações
entre Literatura e Filosofia.

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O que nos diz de importante a obra em questão? Nunca é demais
lembrar que Guimarães pesquisou e estudou muita Filosofia e que Benedito
Nunes jamais deixou em segundo plano a importância que dava à Literatura
para refletir a Filosofia. A obra como um todo possui várias abordagens a
respeito da escritura de Guimarães Rosa, sem nunca deixar o viés filosófico .
Contudo, merece ser destacada a brilhante leitura de Benedito Nunes no que
diz respeito, especificamente, à literatura e filosofia em Grande Sertão:
Veredas. Nunes enfatiza que a “filosofia afirmou-se como discurso
privilegiado (…) condensa-se o traçado, em que a perspectiva metafísica do
pensamento filosófico se fixou – perspectiva de que platonismo foi o
conformador e o difusor históricos – da teoria como visão do inteligível, como
apreensão do verdadeiramente real, objeto último de todo conhecimento.” No
entanto, ressalta Nunes: Sócrates afirma a diferença entre o discurso racional
(verdadeiro) e o da fábula (mentiroso). Prossegue afirmando que Hegel
fundamenta uma outra perspectiva, além de traçar, magistralmente, os
pontos essenciais de trajetória da literatura e filosofia até a
contemporaneidade. Nunes destaca, em especial, dois pontos da obra de
Guimarães Rosa. Primeiramente, a linguagem: “Independentemente da
articulação metafórica elaborada sobre o espaço social e humano de
imediata referencialidade regional – o Sertão - , a reflexividade dominante da
narração, isto é, do processo narrativo, do discurso como tal, entrança
metáforas que são tipos do pensamento. Despreendido de um enorme bloco
da linguagem filosófica, que liga o neoplatonismo à Patrística”.
Outro ponto importante destacado por Nunes é a questão do tempo
em Grande Sertão. O filósofo propõe: o tempo da narrativa, o tempo do relato
oral, o tempo que corresponde aos acontecimentos e o tempo da evocação,
da lembrança. Nada mais sábio do que as proposições de Nunes se
lembrarmos que as questões a respeito de tempo seriam ainda muito mais
complexas e obscuras, se as abordagens literária e filosófica não existissem.
Por quê? Como já disse Deleuze: a busca do tempo tem uma relação
essencial com a busca da verdade. Literatura e filosofia, ambas, mesmo que
por critérios diferentes, anseiam a busca ontológica do ser. Busca de
temporalidades, busca de verdades!

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A leitura da obra em referência possibilita uma estrada favorável e
prazerosa para os leitores que desejam um aprofundamento para se
entender os meandros das diversas escolas filosóficas, assim como para
aqueles que anseiam compreender com mais clareza os pressupostos da
literatura de Guimarães, ou seja, a linguagem enquanto palavra reinventada.
E nessa medida enquanto expressão máxima do ser. Do existir.
Parafraseando Sartre em um de seus belos ensaios…um livro, na
verdade, não passa de um amontoado de folhas secas. No entanto pode ser
uma grande forma em perfeito movimento, ou seja, a leitura.
Somente a leitura poderá movimentar as palavras! De que adianta um livro
numa bela estante?

Eu não vim fazer um discurso

Muitos discursos são meramente formais e sem vida. É quase


consensual o que se espera de discursos, não importa a ocasião. Via de
regra, palavras de agradecimentos, vazias e que preenchem um lugar
comum do que a maioria espera ouvir ou ler.
Contrariamente ao exposto, a obra Eu não vim fazer um discurso, o
fascinante escritor Gabriel García Márquez reúne diversos “discursos” feitos
ao longo de sua vida que desdizem, certamente, tudo o que o senso comum
possa pensar a respeito do assunto.
O autor latino americano já é um grande conhecido pelo estilo literário
bem humorado, otimista e irônico. A obra em referência nos traz as posições
políticas, culturais e literárias de García Márquez. Nessa medida, um dos
pontos altos desta obra está em suas exposições a respeito da literatura,
como no fragmento a seguir: “(...) temos o direito de nos perguntar: o que
estamos fazendo aqui? (...) Não me atrevo a insinuar uma resposta, mas uma
proposta: estamos aqui para tentar que um encontro de intelectuais tenha
aquilo que a imensa maioria deles não teve: utilidade prática e continuidade.
Para começar, existe algo que o diferencia. Além de escritores, pintores,
músicos, sociólogos, historiadores, há neste encontro um grupo de cientistas

74
esclarecidos. Ou seja: nos atrevemos a desafiar o contubérnio tão temido das
ciências e das artes; a misturar numa mesma caldeira aqueles que ainda
confiamos na clarividência dos presságios e aqueles que só acreditam nas
verdades verificáveis: a muito antiga adversidade entre a inspiração e a
experiência, entre o instinto e a razão.” Nessa medida, o escritor latino
americano explora, maravilhosamente, as possibilidades e o permanente
diálogo entre a literatura e as ciências. Retoma o velho debate, contudo,
bastante importante, de que as ciências, as artes em geral e a literatura não
estão isoladas ou são inimigas, visto que, de acordo com o autor, as
interrogações da literatura e das ciências são praticamente as mesmas
“sobre um mesmo abismo”.
Vale lembrar que as ciências e a literatura possuem questionamentos
e buscam, em certa medida, problematizar, tematizar e questionar pontos
importantes para a humanidade, todavia, por caminhos de criação diferentes.
Enquanto as ciências buscam verificar e legitimar suas hipóteses por
intermédio de uma racionalidade, por meio de métodos, ou seja, seguindo,
via de regra, um determinado paradigma, a literatura, assim como as artes,
privilegiam a intuição, esta, entendida, não apenas como um mero presságio,
mas, sim, como um dos elementos que integram a imaginação e o raciocínio.
O autor colombiano em vários dos “discursos” apresentados traz para nós
questões e situações ligadas ao valor de uma amizade. A todo momento faz
alusões aos amigos e à cumplicidade que existiu ou existe entre eles. Traduz,
com muito humor, as situações de apuros ou vitórias com os amigos, a
maioria deles, escritores. A troca de leituras, desentendimentos e outros
aspectos das verdadeiras amizades.
García Márquez, na verdade, é um dos maiores representantes da
alma latino americana. Por quê? Porque jamais omitiu em suas obras em
geral e muito menos na obra em questão, que o latino americano possui uma
‘quentura’ jamais vista em outros povos e outras culturas. O latino ama a
vida, apesar das dificuldades de um denominado ‘terceiro mundo’. O latino
acredita em presságios. O latino possui a rara capacidade da admiração. O
latino é intuitivo. Amoroso. Apaixonado. Criativo. O latino sabe, como
ninguém, preencher, em todo os sentidos, Cien Años de Soledad.

75
O amor de uma boa mulher

Alice Munro é uma das poucas mulheres deste mundo que conseguiu
ganhar um prêmio Nobel de Literatura. Desde que este foi instituído raras
escritoras conseguiram levar um para suas casas. Por quê? Será que as
mulheres possuem algo a menos que não conseguem escrever literatura
considerada de primeira linha? Será que as Musas odeiam as mulheres?
Justo as grandes prolongadoras das memórias? Evidentemente, conforme se
sabe, que as razões são outras. Historicamente as mulheres foram deixadas
de lado, sempre, para outras formas de ocupação. Mesmo com todos os
avanços em busca da liberação feminina, a mulher, durante o século XX,
pouco conseguiu. Prova disso é o Nobel de Literatura (diga-se de passagem
não somente o Nobel de Literatura...).
Nessa medida, mais do que nunca, devemos conhecer melhor a
grande Alice Munro, escritora canadense. O amor de uma boa mulher
comprova, com certeza, a materialização de uma obra literária que carrega
um alto teor de competência e habilidade na escritura de contos.
Os contos de Alice Munro provam que a contemporaneidade
consegue, ainda, olhares agudos, em especial, a situações do cotidiano, que
vão além de uma simples crônica. O amor de uma boa mulher traz oito
contos longos. Diferentemente da maioria do gênero, vê-se nesta literatura
um espaço raro de aprofundamento de análise do comportamento humano.
Da alma humana, como no seguinte trecho: “Vez por outra, contudo, vinha
um momento em que tudo parecia ter algo para lhe dizer. Os arbustos
agitados, a luz descolorante. Como um relâmpago, de roldão, sem dar tempo
para se concentrar. Logo quando seria desejável ter um panorama da
situação, você era confrontado com uma visão acelerada e ridícula, como se
estivesse num brinquedo de parque de diversões. E por causa disso admitia
a ideia errada, sem dúvida a ideia errada, de que alguém morto pudesse
estar vivo e morando em Jacarta”.
A literatura de Alice Munro não é, de forma alguma, feminista.
Contudo, consegue desvendar de maneira primorosa e detalhada a alma

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feminina. Seus desdobramentos mais íntimos. A alma feminina sem
julgamentos. Uma literatura sem análise das atitudes de personagens. A
escritora, na construção de seus contos, age como se estivesse a uma
distância que busca isenção, ao mesmo tempo que suas lentes agudas
conseguem dar os pormenores das situações descritas com alto grau de
sensibilidade.
Na verdade, a obra como um todo, o que nos diz? Entre tantas outras
coisas: que o mundo é complexo. Que a vida é a busca do preenchimento
das incompletudes, não somente as imateriais. Que estamos imersos,
individualmente, nos labirintos inescapáveis da solidão. Que quando
pensamos que estamos imersos em águas de calmaria... turbilhões de poeira
intentam cegar e subtrair momentos de segurança. Que literatura é uma
profunda camada de desconforto necessário para que possamos sobreviver
com dignidade!

Um solitário à espreita

Muitas vezes na literatura temos um grande cronista, ou seja, aquele


escritor que por meio de textos breves consegue captar do cotidiano um
lapso e transformá-lo, via de regra, num texto saboroso. Tal tipo de gênero
possui muita aceitação entre o público brasileiro desde o século XIX.
Um solitário à espreita vem de um dos maiores romancistas brasileiros da
atualidade, ou seja, Milton Hatoum. Há muitos e muitos anos tem
demonstrado, de longe, ser um escritor que na linguagem é bastante
econômico, exato, pontual (lembra de leve Graciliano Ramos, Guimarães
Rosa) e consegue dar profundidade a todos os temas aos quais se propõe a
tratar. Merecidamente ganhou diversos prêmios em Literatura.
Na obra em referência o escritor brasileiro oferece ao público crônicas
bastante especiais em todos os sentidos. Na verdade, as crônicas foram
publicadas em jornais e revistas nos últimos dez anos (como o próprio autor
notifica no início do livro) e misturam-se imagens captadas do dia a dia,

77
assim como fragmentos de memórias do autor, como no seguinte trecho em
que Milton se refere à avó: “Quis o acaso que eu fosse um de seus netos
queridos. Com os filhos ela era implacável, como são as mães de uma penca
de marmanjos. Quando os seis homens da casa se atracavam como
gladiadores e berravam camelôs em pânico, bastava um olhar da matriarca
para que os vozeirões se rebaixassem a miados de angorá. Podiam brigar
por dinheiro, futebol ou política, mas nunca por amor a uma mulher, já que a
única mulher na vida deles era ela mesma.”
Um solitário à espreita, nestes tempos de loucura temporal, quando o
tempo se tornou uma espécie de mercadoria mais preciosa do que o próprio
dinheiro (gente bilionária possui bens, muito e muito dinheiro, mas não
consegue tempo, inclusive, para gastá-lo), é um livro que pode ser lido aos
poucos, visto que os textos são independentes.
Mas os textos, embora independentes entre si, visto que cada crônica
é um tema, possuem traços em comum. Quais seriam os mais essenciais?
Um deles é o grande humor aliado a um amargor suave do narrador/escritor,
como por exemplo: “Em novembro a sorveteria fechou. Ghodor socorreu o
irmão, mas este teve de vender sua casa, sua lambreta velha e os anéis que
iam brilhar nas mãos de sua recente namorada, uma beleza cabocla muito
mais vaidosa que idosa. Até os copinhos de papel foram a leilão.” Um outro
traço que irmana as crônicas é a ironia. E uma ironia fina, elegante, que, via
de regra, faz o leitor mergulhar agudamente em suas próprias situações, eis
um ponto fundamental desta obra. Se uma crônica, conceitualmente, é um
texto leve, as crônicas de Hatoum conseguem a proeza de nos lembrarmos
de nossas vivências, também, com certa leveza , de que apenas uma boa
literatura consegue. E, finalmente, o nosso escritor faz uma advertência
bastante importante a respeito da Literatura: segundo ele, para muitos
escritores a fonte de suas narrativas estaria nas memórias de infância e
juventude. “A memória incerta e nebulosa do passado acende o fogo de uma
ficção no tempo presente.” Comenta que as experiências vividas por um
escritor são muito importantes por aqueles que elegem as letras. Contudo,
assegura o autor, para aquele que aspira ser um escritor há um elemento
fundamental: a leitura. Com isso, inferimos, uma vez mais, quer o escritor, ou
qualquer um de nós, para que, realmente, possamos penetrar em outros

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universos, em especial o filosófico, o domínio de linguagem é o grande
passo. Entretanto, o grande passo para o mundo da linguagem em geral
possui somente um caminho: LITERATURA.

O idiota da família

Sartre, de acordo com os muitos registros que temos, sempre buscou,


em especial, refletir e sugerir respostas a grandes indagações que
historicamente permearam a humanidade.
A grande obra O idiota da família (Gustave Flaubert de 1821 a 1857), volume
I, é um verdadeiro diálogo ensaístico entre Sartre e Flaubert. Obra densa,
grandiosa. Sartre, na verdade, busca por intermédio da vida de Flaubert,
incluindo cartas e demais registros, além das obras, estabelecer paralelos
entre o autor e obra. Contudo, como seria de se esperar, Sartre não está em
busca de relacionar mecanicamente obra e autor, e, demais tentativas para
explicar a literatura de Flaubert que tanto o fascinou! Seria uma grande
ingenuidade esperar tal procedimento de nosso filósofo existencialista!
Sartre vai em busca do homem. O que é um homem? Em que medida um
homem preserva sua individualidade? O que é uma singularidade?
Nessa perspectiva, num exercício meticuloso, aproxima de certa forma,
Literatura e Filosofia em grandes intersecções! Mas o que pode ser um
homem? “Assim é Gustave. Assim o constituíram. E, sem dúvida, nenhuma
determinação é impressa em um ser vivo sem que ele a possa ultrapassar
com sua maneira de vivê-la. No pequeno Flaubert, a atividade passiva e o
voo sem motor são sua maneira de viver a passividade constituída: o
ressentimento é a sua maneira de viver a situação que lhe é atribuída dentro
da família Flaubert. Em outros termos, as estruturas desta família são
interiorizadas em atitudes e exteriorizadas em práticas por meio das quais o
menino se torna o que o fizeram. De maneira inversa, não encontramos
dentro dele nenhuma conduta, por mais complexa e elaborada que ela possa
parecer, que não seja originalmente a superação de uma determinação

79
interiorizada.” Ao lermos a obra em questão misturam-se, descontruindo
qualquer conceito de gênero que tenhamos definido, elementos de romance,
biografia, autobiografia, filosofia e, sobretudo, muita literariedade.
Questionamentos a respeito do que possa ser determinado pela educação
familiar em nosso futuro, frustações que são agudamente sublinhadas pelo
ato de escrever. O que pode um vida entre a determinação e
indeterminação? De que maneira aquilo que há de mais profundo no ser se
destaca na determinação? Eis uma das essências deste livro.
Nesta obra, entre centenas de outros pontos que poderíamos
salientar, uma que merece destaque: o que leva um homem a ser um grande
escritor? Neste momento do livro somos obrigados, praticamente, a fazer um
balanço a respeito dos escritores em geral. Um escritor busca
fundamentalmente por meio de uma obra mostrar a totalidade de uma vida.
Mas para isso deve partir de uma sensibilidade singular. Uma percepção
nunca antes experimentada. Daí o caráter de subjetividade que permeia toda
e qualquer literatura. Por um outro lado, não basta apenas sentir. Possuir
uma perspectiva subjetiva. É necessário objetivá-la. Eis um dos maiores
desafios da literatura. E isso se chama deslocamento de linguagem.
Remetemo-nos, uma vez mais, aos problemas que tanto inquietaram os
lúcidos: escrever não é contar uma bela historinha. Uma memória. Escrever é
o grande desafio de transpor um mundo interior, aliado a uma experiência e a
uma sensibilidade aquilo que poderia auxiliar a humanidade e,
possivelmente, resgatar diálogos interiores que convoquem nosso
compromisso com valores exclusivamente dignos e relevantes.
Sartre faz um alerta: em Flaubert, em 1835, existe “uma dupla
concepção da literatura: por um lado, na medida em que ele procede do
monólogo interior, ela lhe parece um saciamento totalitário, irreal mas
materializado, de seus rancores e de seus desejos; é um virulento frenesi que
só se acalmará quando ela tiver aprisionado o mundo para denunciar sua
irrealidade; por outro lado, é um apelo à calma, um convite para reunir-se, em
vida, à eterna ataraxia dos mortos”.

Borges Sabato: diálogos

80
Borges e Sabato, grandes escritores argentinos, foram envolvidos por
intermédio de Orlando Barone para um possível diálogo. Somente por tal
proposta podemos entrever o que virá do livro Borges Sabato: diálogos.
Quais foram as estratégias de Orlando Barone? Em diferentes etapas
e momentos consegue reunir Borges e Sabato em Buenos Aires. Provocar
assuntos para que os dois, de maneira bastante informal, discutam e reflitam.
Nessa medida, o mundo ganha. A humanidade ganha.
Um dos assuntos que merecem ser destacados é a questão a respeito
da famosa distinção que se quer fazer entre prosa e poesia. O senso
comum, conforme se sabe, insiste na separação rígida entre romance e
poema. Há muitos e muitos anos, em especial, com o Modernismo, que tal
separação de gêneros torna-se cada vez mais impossível e sem justificativas.
Pergunta-se: o que seria um romance sem poeticidade? Conclui-se que um
texto em prosa, rigorosamente, seria uma receita de bolo, pudim ou um
manual técnico. Mas nas palavras de Sabato: “Os grandes romances,
embora não estejam escritos em verso, oferecem sempre grandes momentos
poéticos. Pode-se sentir isso tanto em Tolstói como em Proust, em Faulkner
como em Virgínia Woolf. Além disso, em um sentido mais profundo, eu
acredito que toda arte ou alcança a categoria ou não é nada mais do que
crônica jornalística ou naturalista.” E Borges completa: “Um poema longo que
só constasse de frases poéticas seria intolerável. Os poetas do século XVIII,
não é mesmo? Existe um limite. Mesmo nos contos, é melhor que não se
note demais o ofício.”
Em outras partes do livro percebe-se o respeito recíproco entre os dois
grandes argentinos. De qualquer maneira, Barone deixa o leitor entrever que
ambos possuem momentos de muita nostalgia quando se referem a épocas
passadas. Ora momentos de uma coletividade, ora momentos pessoais.
Contudo, foram simplesmente arrasados pelo tempo.
Outro ponto dos diálogos que merece ser destacado é um relativo às
diversas manifestações de representações humanas. Barone discute com os
escritores qual teria sido a primeira arte humana. Cremos que a resposta de
Sabato seja digna de transcrição: “Eu penso, em primeiro lugar, que o

81
homem é um ser emocional, em segundo lugar, intelectual. O homem
primeiro sente o mundo e depois cavila sobre o mundo, ou seja, a arte
precede a filosofia, a poesia é anterior ao pensamento lógico. Por isso eu sou
da opinião de que, mas claro, são conjecturas, as primeiras manifestações do
homem são a dança e a linguagem poética. Com ambos os instrumentos ele
expressa os seus temores, as suas esperanças, faz suas invocações, trata
de se comunicar”.
E, nessa medida, assuntos como percepção, cognição e aspectos
relacionados com a intuição são suavemente discutidos por Borges e Sabato.
Diga-se de passagem mestres de primeira grandeza em relação ao assunto.
Os livros que tratam, mais diretamente, do que pensam os grandes escritores
são leituras que acrescentam verdadeiras luzes aos nossos repertórios,
sejam eles quais forem. Sabemos, mais de perto, como os ‘grandes’ sentem
certas coisas, como encaram a música, a juventude, a política e certos
aspectos de nosso cotidiano.
Borges e Sabato, provavelmente, hoje, devem estar no Olimpo por
pura intervenção das Musas junto a Zeus e Menmósine. Provavelmente
desaprovam o descompromisso daqueles que fazem da literatura apenas um
relato de aventuras pessoais. Contudo, aprovam, com sorrisos, literaturas
contemporâneas que dão continuidade às possibilidades ficcionais que
operam no plano da justiça humana em todos os graus e sentidos.

Semíramis

A Literatura durante muitos séculos foi, na forma, poesia.


Parafraseando, uma vez mais, Octavio Paz, há povos sem prosa...mas não
sem poesia. A prosa é “filha tardia”. Houve um tempo em que a própria
Filosofia foi escrita em forma de poemas. Os diálogos de Platão, conforme se
sabe, são plenos de literariedade, ou seja, possuem muitas imagens
poéticas.
Semíramis, Ana Miranda, obra lançada recentemente, é um verdadeiro
bálsamo poético em forma de prosa. A autora já é, merecidamente,

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consagrada por textos anteriores. Contudo, Semíramis arrasa. Vejamos as
razões.
Semíramis é um romance-poema. Cada capítulo do livro é
relativamente curto, quase independente um do outro. Num único parágrafo.
Cada parágrafo é intensamente trabalhado na linguagem. Imagens,
metáforas, enfim, todos os recursos de poeticidade dão materialidade a uma
história plena de sensibilidade, tendo como pano de fundo a vida do nosso
grande escritor brasileiro José de Alencar ou Cazuza como era conhecido
entre os mais íntimos.
Em nenhum momento do livro a autora hesitou no trabalho duro e
difícil da luta pelas imagens mais exatas naquilo que pretendia passar para,
nós, os leitores. As aliterações, em muitos momentos, são plenas, como no
seguinte trecho: “...e vovó percebeu o ciúme de vovô, imagino que foi quando
ela menos odiou dona Bárbara, porque dona Bárbara fazia o vovô sentir o
que o vovô fazia a vovó sentir por toda a vida a cada instante.” Ritmos que se
mesclam e potencializam subjetividades. Não há como ler o livro com pressa.
Não! A obra nos arrasta a todo o momento para encontros inusitados com
nossa “alma”. De forma inescapável. Absolutamente sem meras projeções
subjetivas. O mergulho é denso. Profundo.
Enquanto isso desenrola-se uma história, quase velada, de José de
Alencar. Obrigatoriamente somos levados a sondar a vida do autor de A
Viuvinha, Lucíola, Iracema. Inelutável: será que Alencar amou, de fato,
Chiquinha? Será que Alencar foi rejeitado por ela? Casou-se algum dia? Com
quem? E, nessa medida, o livro nos obriga a consultar as fontes documentais
daquele que foi a nossa maior expressão literária romântica...E, na verdade,
na escritura de Ana Miranda ressoam ecos poéticos de Alencar, sem, em
nenhum momento, retirar a autenticidade e singularidade da escritora-
poetisa. Ao mesmo tempo reflete questões fundamentais a respeito do papel
do poeta, como no seguinte fragmento: “Padre Simeão dizia que as cousas
acontecem apenas para serem cantadas, e se não forem cantadas, deixam
de existir, só aconteceu a Guerra de Troia, dizia o padre, entre dois
continentes, a morte de tantos heróis, para que Homero as escrevesse em
seus versos imorredouros, e lá estava eu e meu pequeno drama interiorano,
cantado, elevado aos altares das grandes leoas.”

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Ana Miranda nos lembra: Os mestres da Verdade são os poetas. As
Musas, filhas de Mnemósine, os levam para os acontecimentos que
definitivamente devem ser imemoriais. Somente a literatura poderá
imortalizar a finitude. Atenuar miserabilidades. Prolongar sensibilidades.
Semíramis é um jato de poesia que potencializa existências.

O amor nos tempos do cólera

Existem, basicamente, duas categorias bastante conhecidas de


escritores. A primeira categoria é aquela dos escritores que produzem uma
literatura conformista, ingênua, cheia de receitas de felicidades que jamais
serão concretizadas. A esta categoria, inclusive, pertencem os escritores
omissos. Que vivem encastelados em belas ilhas. Rondando desgraças para
recontá-las, e muito mal, para um público, muitas vezes, ávido para
descarregar seus dramas particulares e mal resolvidos. Esta categoria odeia
envolvimentos políticos de qualquer espécie. O bom é estar “na onda imunda
que inunda a mídia”. Ganhar dinheiro e desfrutar a vida.
Felizmente, existe uma outra categoria: a dos escritores que produzem
a verdadeira literatura. São escritores angustiados, insatisfeitos com a
realidade, sempre miserável, que rodeia a humanidade. Buscam,
incansavelmente, deslocamentos de linguagens para produzirem novas
formas de existir, novas formas de combate aos possíveis cem anos de
solidão que habitam, inelutavelmente, os corações humanos. Gabriel García
Márquez, com muita segurança, enquadra-se nesta categoria.
O amor nos tempos do cólera é apenas um dos grandes presentes
que o autor deixou para a humanidade. Uma bela história de amor. Um amor
indestrutível. Uma espera de cinquenta anos. Nesta bela narração, cheia de
sabores que somente o autor colombiano pode dar, aprende-se que uma
relação a dois requer muita tolerância e concessões. Aprende-se que fácil é
deixar relações que incomodam na primeira dificuldade. O desafio é manter
uma relação amorosa, no tédio inescapável do cotidiano, sempre acesa e
com a cumplicidade de quem convive muitos e muitos anos com o mesmo

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companheiro ou companheira. Quem poderia ter escrito melhor ? “Rogou a
Deus que lhe concedesse ao menos um instante para que ele não partisse
sem saber quanto o amara por cima das dúvidas de ambos e sentiu a
premência irresistível de começar a vida com ele outra vez desde o começo
para que se dissessem tudo que tinham ficado sem dizer, e fizessem bem
qualquer coisa feito mal no passado. Mas teve que render-se à intransigência
da morte.” Ou: “Não se sentiam mais como noivos recentes (...) Era como se
tivessem saltado o árduo calvário da vida conjugal, e tivessem ido sem
rodeios ao grão do amor (...) Pois tinham vivido juntos o suficiente para
perceber que o amor era o amor em qualquer parte, mas tanto mais denso
ficava quanto mais perto da morte.” Esta obra, afirmou, em diversos
momentos, o próprio autor, era o grande legado que deixava para o
imemorial da literatura. Talvez a melhor e maior história de amor que alguém
conseguiu imortalizar.
Gabo (como era chamado entre os amigos) deixa um grande legado.
Não deixa somente suas obras que deverão eternizá-lo. Deixa o exemplo de
envolvimentos com as causas que realmente importam. Envolveu-se em lutas
para desenvolver a literatura, o cinema e outras artes, além de outras que
sempre ultrapassaram o estritamente pessoal.
Imagine-se Gabo com grande gaborito e sorridente entrando, sem
pedir licença, no Olimpo em busca das nove Musas, prolongadoras da
memória. Sorridentes elas, finalmente, vão conhecê-lo mais de perto. Imunes
às tristezas dos mortais (tão efêmeros) deliciam-se com as possibilidades
narrativas que de agora em diante poderão desfrutar sem culpa. Afinal, seus
sussurros sempre foram muito bem ouvidos e eternizados por aquele que
nunca se rendeu à crônica da morte anunciada de uma literatura grandiosa.

Cangaços

A memória, nestes tempos de “hipermodernidade”, ganha novos


contornos. As lamentações seriam totalmente inúteis. Claro está que tudo
passa muito mais rapidamente do que antes. A velocidade das

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transformações tornam passadas, de forma praticamente instantânea, tudo.
Em especial, as grandes literaturas. Logo, o melhor caminho, à medida do
possível, é acompanhar de forma criativa o que ocorre e agir.
Graciliano Ramos, grande representante de nossa literatura, inclusive,
para muitos outros países, ressurge com a obra Cangaços graças ao trabalho
meticuloso e rigoroso de organização de Ieda Lebensztayn e Thiago Mia Sall.
Os organizadores reuniram textos de Graciliano Ramos a respeito do
banditismo sertanejo, entre outros. Tais textos do autor alagoano expressam
suas perspectivas lúcidas focando as misérias do sertão, como tão bem o
autor já fizera, em especial, na obra Vidas Secas. Não custa lembrar: se
existiu um escritor inconformado com a injustiça, com a opressão e todos os
tipos de submissão, foi Graciliano Ramos. Toda a sua literatura, de forma
bastante criativa e original, buscou dar voz aqueles que não a tinham.
Famoso é o caso de Fabiano, personagem de Vidas Secas. Poucos
escritores tiveram a consciência de linguagem, e seu poder, como o autor
alagoano.
Esta obra traz, inclusive, de volta Lampião. O famoso cangaceiro e
alguns de seus feitos. “Há dias surgiu por aí um telegrama a anunciar que o
meu vizinho Virgulino Ferreira Lampião tinha encerrado a sua carreira, gasto
pela tuberculose, deitado numa cama, no interior de Sergipe. (...) Não é a
primeira vez que Lampião tem morrido. E sempre que isto se dá as notas
com que se estira o acontecimento deturpam a figura do bruto e manifestam
a ingênua certeza de que tudo vai melhorar no sertão. O zarolho de
romantiza, enfeita-se com algumas qualidades que se atribuíam aos
cangaceiros antigos, torna-se generoso, desmancha injustiças, castiga ou
recompensa, enfim aparece inteiramente modificado.” O que se pode inferir
por este fragmento? Um dos critérios maiores que legitimam as grandes
literaturas. O autor alagoano não julga o comportamento de Lampião. A
abordagem de Graciliano é muito lúcida: Lampião é uma figura lendária (e
continua sendo). Por um lado, os sertanejos criaram uma figura heroica que
nunca existiu. Por um outro ele foi considerado um grande bandido.
Com base nos outros textos deste livro, inclusive, Graciliano não julga
e analisa comportamentos. Expõe situações de injustiças sociais. Expõe a
situação existencial de seres que quando maltratados, em todos os graus e

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sentidos, buscam uma saída para lutar por sua sobrevivência. O universo
graciliânico jamais possuiu heróis, mocinhas, bandidos. O universo do
escritor alagoano é extremamente humano. Situações que implicam na busca
de valores que consigam possibilitar um mundo respirável.
Com tal literatura o autor mostra o quanto lutou com as armas da
linguagem por um mundo com menos misérias. Nessa medida, como muitos
já disseram e com razão, Graciliano por intermédio do sertanejo e do
cangaço existente em sua época, ultrapassa os limites geográficos do sertão.
Os dramas humanos passam a ser dramas de caráter universal. A miséria e
a injustiça. A subserviência. A tirania, como sempre, de sistemas que buscam
excluir a dignidade de poder existir com liberdade. “Corisco não possui
barbas nem virtude. Se tivesse permanecido em cima, acataria um certo
número de coisas sérias, tomaria em consideração os domingos, as festas
de guarda, a honra das donzelas. Fora da sociedade, metido no mato como
um bicho, sem calendário, e sem mulher, desprezou noções rijas e antigas.
Submeteu-se à lei da necessidade. (...) Um branco degenerado. Há por lá [no
Nordeste] muitos brancos degenerados pela miséria.”

Wladimir Nabokov: Fala, Memória

A leitura de um bom livro sempre se prende a uma escolha, afinal,


felizmente, temos, nos dias atuais, muitas republicações de obras primas. O
mercado editorial na ânsia de concorrer com a deslealdade de outros meios
de leitura, busca acertar. Para sorte de todos aqueles que não deixam passar
em branco um bom livro. Uma literatura, de fato, que afete nossa percepção.
Para ser mais precisa: que afete definitivamente nossa forma de existência.
Fala, Memória, do famoso autor russo Vladimir Nabokov, é um verdadeiro
presente para os leitores. Uma autobiografia, que, realmente, merece ser
chamada de obra prima literária baseada em fatos e acontecimentos. Deve-
se destacar, uma vez mais: um dos pontos que caracterizam a atualidade
(para o bem ou para o mal) é a excessiva preocupação com “um si mesmo”.
Extremo individualismo sem precedentes, em todos os sentidos. Tal postura
se reflete em atos grandes e pequenos. Muitas vezes, não custa relembrar,

87
de forma lamentável. O que importa é o famoso eu, eu, eu e nada mais. A
maioria das autobiografias, em especial, da atualidade, buscam isso.
Irritantemente.
A obra em questão mostra um eu em diversas etapas. De forma
elegante. E o que é o melhor: tudo, absolutamente, tudo que o grande
escritor russo nos coloca, possui literariedade. Uma beleza de escritura. Que
bom poder afirmar, mais uma vez, que um livro de memórias pode ser
literário, como tantos, felizmente, que já existem. Porém, raros. Não sejamos
tão confiantes. Nabokov não fica somente descrevendo seus momentos e
suas sensações. Consegue dar voz a outras pessoas que integraram sua
vida, como, por exemplo, na fascinante imagem de Mademoiselle: “Ela
gastara toda a sua vida em se sentir desgraçada; essa desgraça era seu
elemento natural; suas flutuações, profundidades cambiantes, só isso dava a
ela a impressão de movimento e vida. O que me incomoda é que uma
sensação de desgraça, e mais nada, seja insuficiente para tornar uma alma
imortal. Minha enorme e morosa Mademoiselle está muito bem na terra, mas
é impossível na eternidade.”
O autor russo consegue estruturar uma autobiografia, sempre
recuperando momentos de sua vida, ao mesmo tempo que apresenta as
pessoas que tomaram parte dela. E, nessa medida, fragmentos de uma
memória que sabe que os fatos já se passaram e, portanto, no instante de
fixar a narrativa, deixaram de ser os mesmos. O que em nenhum momento
passa despercebido pelo autor. À medida em que escreve, também, faz
algumas reflexões importantes a respeito do tempo, como por exemplo:
“Inicialmente, eu não tinha consciência de que o tempo, tão ilimitado à
primeira vista, era uma prisão. Ao examinar minha infância (que é a coisa
mais próxima do prazer de examinar a própria eternidade) vi o despertar da
consciência como uma série de flashes espaçados, com os intervalos entre
eles diminuindo aos poucos até se formarem claros blocos de percepção,
fornecendo à memória um apoio escorregadio.”
Fica claro que o escritor não concebe a memória apenas como um arquivo
classificatório. A estrutura interna do livro demonstra isso. Ele busca,
fundamentalmente, uma teoria, uma concepção muito particular e instigante a
respeito do tempo, assim como da memória.

88
Vladimir Nabokov teve uma vida intensa. Nasceu na Rússia e por
ocasião dos bolcheviques no poder, ele e sua família moraram em diversos
lugares no mundo. Além de escritor, foi professor. De qualquer maneira
temos na obra em referência uma bela autobiografia despojada de todos os
vícios imperdoáveis de escritura voltada única e exclusivamente para um eu
ordinário e cheio de vaidades.

Fora do Lugar

De acordo com as inúmeras fontes que temos, ora da Psicologia, ora


da Biologia e outras áreas do saber, nosso passado, em particular, o
individual, é lido, sentido e vivido sob a ótica do presente. Uma espécie de
condenação humana. Diga-se que tal condenação é necessária. Que triste se
jamais deixássemos de esquecer algumas coisas. Sabe-se que a memória,
para nossa (in)felicidade, filtra, hierarquiza e seleciona o que mais temos de
significativo para ser interpretado no presente. Seres intratemporais...
fluímos. O tempo passa. Cultiva temporalidades indiferentes. Nós mudamos
a cada milésimo de segundo. Nada se fixa. Eternizamos, subjetivamente,
alguns momentos.
Fora do Lugar: memórias de Edward Said é um verdadeiro exercício
de memória do autor. Uma obra fascinante. Autobiográfica. Edward Said
nasceu em Jerusalém (1935) e, infelizmente, morreu em 2003. Considerado
um dos maiores intelectuais de todos os tempos. Teve uma formação
humana muito sólida aliada a uma educação familiar bastante rígida. Viveu
boa parte de sua vida no Cairo e em alguns países árabes. Cursou
Universidades americanas. A de Princeton e a de Harvard. Nessa medida,
possui, com muita segurança, bastante ponderação cultural , além de uma
incrível sensibilidade ao analisar questões relacionadas entre o Oriente e o
Ocidente. Aliás, tais ponderações foram as principais causas que deixaram
Said tão reconhecido em todo o mundo. Pode-se afirmar que Said, por sua
extrema sensibilidade e profundo respeito pelo ser humano, consegue
equilibrar suas tendencialidades, das quais ninguém, praticamente, consegue

89
escapar, ora por força de uma formação, ora por força de uma paixão quando
reflete as mais diversas questões a respeito de cultura, religião e política.
Nesta obra autobiográfica ele declara: “este livro foi escrito em grande
parte durante períodos de doença ou tratamento, às vezes em casa, em
Nova York, às vezes desfrutando da hospitalidade de amigos ou instituições
na França e no Egito. Comecei a trabalhar em Fora do lugar em maio de
1994, enquanto me restabelecia de três sessões iniciais de quimioterapia
para tratamento de leucemia.” Said lutou contra a doença por mais ou menos
dez anos. Até ser definitivamente vencido por ela. No entanto jamais parou
de escrever. A doença foi determinante na firme decisão de escrever um
livro de memórias, cuja perspectiva predominantemente subjetiva o autor não
nega.
A obra não segue uma cronologia linear (e sem graça) da infância até
o momento em que ele relata suas memórias, ou seja, os momentos de
reflexão em que o autor recupera fatos de sua vida. Há um longo exercício de
vai e vem que é um dos pontos altos deste livro porque causa uma tensão
textual vigorosa que prende o leitor. Quer se saber mais e mais do autor. E,
nessa medida, somos, agradavelmente, transportados para o Cairo do início
do século XX. Um Egito completamente distinto do que se apresenta hoje,
entre outros motivos, porque a Palestina ainda não tinha se dividido. Somos
transportados para Beirute e para as montanhas do Líbano. Os veraneios da
família do autor, via de regra, eram no Líbano (sua família era extremamente
abastada). As impressões de infância do autor são reportadas, em grande
grau, para a escola e para seus pais.
Said estudou em diversas instituições. Ora de composição inglesa, ora
de composição americana. E com isso traça, involuntariamente, uma
verdadeira história da educação. A atitude dos professores. O regime escolar.
E há coisas de causar espanto a educadores, estudantes e pesquisadores:
mesmo em se tratando de escolas pagas e consideradas de alto nível
cultural, os regimes escolares como um todo, são profundamente injustos,
desinteressantes e cheios de “castigos”. Por conta dos relatos do autor
podemos tecer comparações com a situação atual das escolas e vemos, em
grande medida, o quanto avançamos em relação às discriminações (por mais
que elas existam). Nas palavras de Said: “Ficávamos perfilados ali

90
supostamente [na escola] para ser contados e acolhidos ou dispensados.
(...)Isso parecia um educado ritual para camuflar o sacrifício de ficar em fila,
onde tinha lugar todo tipo de coisas desagradáveis. Como éramos proibidos
de abrir a boca na classe, exceto para responder as perguntas de
professores, a fila era a um só tempo um bazar, uma casa de leilão e um
tribunal, onde eram trocadas as mais extravagantes ofertas e promessas, e
onde as crianças menores eram intimidadas verbalmente pelos meninos mais
velhos, que as ameaçavam com os mais medonhos castigos.”
Após o ensino médio Said foi para a Universidade de Princeton e,
posteriormente, para a Harvard. Somente depois de ter sofrido todas as
formas possíveis de incompreensões por parte de sua família, de seus
professores e diretores. Por quê? Porque seu comportamento, em geral, não
trilhava pelo que se esperava de um bom menino. Dócil, obediente e que
concordasse com tudo. Said sempre se mostrou rebelde e mais centrado
naquilo que lhe interessava. Somente começou a se destacar no plano
intelectual durante o ensino médio.
Finalmente, a leitura das memórias de Said nos proporciona uma das
maiores lições para pais, professores, estudantes e professores, ou seja, o
quanto as escolas sempre foram cegas a alunos contrários aos cânones. E
vale ressaltar, uma vez mais: o quanto o sistema escolar costuma jogar fora
grandes talentos e insubmissos. Said é mais um exemplo daqueles que
sofridamente conseguiu escapar do sistema e mostrar que a autenticidade e
convicção devem ser perseguidas a qualquer preço. Não há grandes desafios
e quebra do estabelecido sem grandes penalidades para a alma.
Eternamente a solidão perseguirá convictos por um mundo mais humanizado.
Digno de ser comtemplado.

Filomena Firmeza

Um prêmio Nobel, em qualquer modalidade, é uma das homenagens


mais ambicionadas por escritores, cientistas e outros que, de alguma forma,
foram eleitos. De qualquer maneira não custa lembrar que houve quem o
recusasse. Entre eles o nosso incrível e extraordinário Sartre. Nem um Nobel
o deixou mais feliz. Muito menos a quantia em dinheiro que convenhamos:

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deixaria muita gente de cabeça virada! Afinal...o prêmio é por volta de um
milhão de dólares. E, certamente, Sartre não foi o único.
Patrick Modiano recebeu o Nobel em Literatura deste ano. Na
verdade, de acordo com o que foi divulgado em diversos setores da mídia,
ele ficou bastante surpreso. Foi o editor da Gallimard ( sua editora na França)
quem o avisou do cobiçado prêmio.
Em princípio, para aqueles que adoram classificações,
enquadramentos e formas precisas, poderia ser uma obra infanto-juvenil.
Mas não é. Filomena Firmeza é um texto escrito para todos. Não importa qual
a faixa etária. Como todos os bons livros. Naturalmente determinados livros
estritamente literários dependem de um certo repertório prévio, isso é eterno.
O livro em questão fala por uma mulher que recorda seus momentos
de criança, em especial, junto ao pai. Como diria Deleuze: um verdadeiro
devir-criança. O autor francês fala pela criança. Dá voz a uma criança.
Lembrando que os grandes escritores são o que são porque falam em nome
daqueles que não possuem linguagem suficiente para expressar o que
realmente sentem e pensam. Para isto existe a boa Literatura. Viabilizar
vozes oprimidas e esquecidas.
Nessa medida, o livro traz os ecos de um passado de Filomena. Uma
criança que em algum momento de sua vida foi separada da mãe por alguns
anos e seu pai foi quem cuidou dela. Deu-lhe tudo de si para atenuar a
ausência da mãe (que depois reaparece). "Neva hoje em Nova York. Pela
janela do meu apartamento, na rua 59, vejo o prédio em frente onde fica a
escola de dança que eu dirijo. (...) Entre as alunas, há uma menina que usa
óculos. Ela os deixou sobre uma cadeira antes de começar a aula, como eu
fazia com essa mesma idade nas salas da senhora Dismailova. Não se
dança de óculos. Eu me lembro de que, na época da senhora Dismailova, eu
treinava durante o dia para ficar sem os óculos. O contorno das pessoas e
das coisas perdia a nitidez, tudo se tornava desfocado, até os sons pareciam
mais abafados. O mundo, quando eu o via sem óculos, perdia a aspereza." O
que fascina, inclusive, nesta obra é o perfeito equilíbrio entre o verbal e o não
verbal. Quando Filomena (a personagem do livro) tira os óculos, o seu
universo se transforma: como ela diz o mundo fica mais suave. E isso,
durante todo o livro, é feito pelas imagens aquareladas do ilustrador. Imagens

92
esfumaçadas que revelam a busca da memória e o esforço do trabalho
memorialístico, se pensarmos que todo passado pode ser operado.
Lembremos uma vez mais: a Literatura de verdade não é um trabalho
infame de memória, ou seja, lembrar exatamente nossa infância, nossos
casos amorosos, nossas relações, sejam elas quais forem. Um livro de
memórias busca ressignificar nossas reminiscências. Dar um novo contorno a
elas. Haja vista que o autor se transforma em uma mulher que lembra seus
momentos de infância. A doçura e o cuidado do pai para suprir a ausência
materna. Literatura é, acima de tudo, universalidade. Filomena Firmeza traz,
a todo momento da leitura, momentos de uma mulher que presentifica seu
passado aos olhos do atual. Do que ela se tornou. Eis o verdadeiro trabalho
de sua memória.
O livro pode ser lido em voz alta para uma criança. O lido pode ser lido
em voz silenciosa por um adulto. Este livro é um exemplo de que mesmo em
momentos, aparentemente, sem grandes referenciais literários, podemos
esperar que há vozes buscando espaço. Apesar de todos os
estrangulamentos a que que hoje temos assistido, a voz de uma criança, de
fato, ainda consegue dar visibilidades importantes a respeito de nossas vidas
pessoais. O ilustrador, diga-se de passagem, que foi eternamente excluído
da escola e de outros espaços, consegue de maneira suave, dialogar
plenamente com o texto verbal. A obra possui diversas dimensões
plenamente espiraladas. Perfeita coreografia. As dimensões ligam, por
camadas enevoadas, o autor, a menina, o pai da menina e o leitor. A
dimensão mais forte nos leva a estratos de memórias em comum que nos
sugerem o que o autor declara: "Permanecemos sempre os mesmos, e
aqueles que fomos no passado continuam a viver até o final dos tempos."

Educação como prática da liberdade

A Educação é um processo que possui, conforme se sabe, uma longa


história. De alguma maneira, num determinado momento histórico, os

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homens sentiram a necessidade de conhecimento para entender melhor o
seu papel no mundo.
Educação como prática da liberdade é uma obra famosa, em mais de
cinquenta países do mundo, do grande educador Paulo Freire. No entanto,
Paulo Freire foi um professor/educador no sentido mais completo. Jamais se
contentou com fórmulas de aprendizagem estabelecidas por qualquer
sistema. Buscou, sempre, de maneira incansável novas maneiras de educar.
E esta obra deveria ser lida não somente por educadores. Mas. Por todas as
pessoas, visto que acima de qualquer coisa é uma grande lição de liberdade.
Paulo Freire parte do princípio de que somos seres temporais, ou seja, de
que existimos no tempo. A temporalidade é um traço humano. Diferente de
um gato, declara o autor. Um gato ou os animais em geral não possuem a
menor consciência de sua temporalidade. Nessa medida, o tempo para eles
possui uma unidirecionalidade. O homem não. O homem emerge no tempo,
logo, pode mudar, transformar. Intervir na realidade que o cerca.
Mas...discute o educador como fazer isso de forma democrática e
participativa? Somente respeitando a cultura do outro. Nessa perspectiva
Paulo Freire propõe uma educação em que o diálogo entre alunos e
professores é fundamental. O verdadeiro educador deve, sempre, respeitar o
aluno.
Um educador, de acordo com Paulo Freire, não pode somente
transferir conhecimentos. O verdadeiro educador deve levar o aluno a pensar
por si só e a buscar autonomia. A educação deve ter nobreza e sensibilidade
de buscar estratégias em que o aluno possa realmente aprender e como tal,
possivelmente, intervir em sua vida. Intervenção implica em participação
política em todas as suas esferas.
Um outro motivo para se ler Educação como prática da liberdade é
pela qualidade da linguagem do autor. A linguagem de Paulo Freire é,
simplesmente, arrebatadora! Eis um dos grandes exemplos de texto literário
que traduz conceitos de forma carregada de poeticidade. O autor não poupa
imagens, metáforas e outros recursos estilísticos que somente os grandes
escritores conseguem materializar.

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Bauman sobre Bauman

Este livro é, acima de qualquer coisa, uma grande lição de sociologia,


consequentemente, de política. Mas. Não somente um liçãozinha qualquer.
Bauman, merecidamente, é considerado um dos maiores pensadores vivos
do mundo. Suas análises, em todas as suas obras, são lotadas de " agudas
agulhadas ágeis". Bauman é o tipo do pensador que não concede.
Aparentemente parece cruel e pessimista. No entanto não é. Na verdade ele
é um grande realista no melhor sentido da expressão. Por quê? Porque
desmascara aquilo que o sistema apresenta como suave e esperançoso. Ler
Bauman é ler a realidade com olhos de extrema visibilidade. Em muitos
momentos ultrapassa as lentes do nosso bom e querido Foucault.
A obra, na verdade, é centrada em diversas entrevistas realizada por
Keith Tester. O livro é dividido em cinco partes por temas como política,
individualidade e outros. O que podemos ressaltar nesta obra?
Primeiramente, o percurso intelectual do autor. Bauman declara, ao longo, de
todas as entrevistas quais os principais pensadores que o influenciaram e o
permitiram analisar e construir esquemas conceituais de análise. E com isso
somos obrigados a rever nossos autores e revisar nossos conceitos de
análise.
Uma das partes mais instigantes desta está centrada na questão da
liberdade. Em que medida somos livres? Podemos escolher entre o bem e o
mal. Num primeiro momento sim, afirma o autor. E associa o conceito de
liberdade com o de dignidade. Declara que a partir do momento que nossa
escolha seja negada, há, então, a entrada da indignidade.
Um dos fios de unidade de todas as entrevistas e que deve ser destacado se
traduz na grande preocupação que o autor tem com a questão da justiça,
injustiça e tudo o que poderia contribuir com Estados mais democráticos, de
fato, e tornar a humanidade, verdadeiramente, mais feliz e igualitária.
Nessa medida, um dos pontos mais importantes deste livro fascinante está
na denúncia de Baumann no que se refere ao sistema neoliberal, ou seja, as
leis de mercado. De acordo com o sociólogo as leis de mercado submetem
as sociedades de tal maneira que existem poucas soluções para os homens,

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em especial, porque o sistema neoliberal isenta o Estado na maior parte de
suas responsabilidades.
Ler este livro é uma grande lição de política, erudição e cultura. A
leitura de Bauman, em todas as suas obras, nos traz grandes aprendizados
porque nos alerta, a todo momento, das condições sociais e de suas
armadilhas, via de regra, invisíveis a um olhar sem as lentes dos grandes
analistas como Bauman.

A crítica e a convicção

A crítica e a convicção é um belo livro de entrevistas com o grande


filósofo e, acima de tudo, o grande pensador Paul Ricoeur. Os
entrevistadores são: François Azouvi e Marc de Launay. Logo no início das
diversas entrevistas temáticas do livro, Paul Ricoeur declara que aceitou a
forma de entrevista porque seria uma maneira de ele se distanciar um pouco
da gravidade e do peso de uma escrita como habitualmente está
acostumado. Declara Ricoeur que numa entrevista a palavra fica com menos
controle dele mesmo e vê nisso um aspecto positivo.
Lembramos, neste ponto, que, realmente, qualquer livro de entrevistas
nos traz momentos muito ricos. Por quê? Porque os entrevistados deixam
escapar coisas que estritamente na escrita talvez não colocassem. Com isso,
nós, leitores temos muito a ganhar!
Um ponto das entrevistas que deve ser evidenciado é o que se refere
à Sorbonne (ele foi nomeado em 1956). Naturalmente para o departamento
de filosofia. Ricoeur declara que ficou muito pouco à vontade naquela
universidade francesa. Destaca, sobretudo, que não via na Sorbonne uma
real comunidade entre mestres e estudantes. Não via relacionamentos
efetivos entre os mestres da universidade. Tinha, inclusive, a impressão de
um deserto intelectual. E, nessa medida, ficamos sabendo que uma das
universidades mais famosas do mundo, também, possui muitas fragilidades.
Não é a perfeição que muitas vezes imaginamos.
Um outro ponto importante neste livro é o que se refere a questões do
tempo. Ricoeur é sabidamente um filósofo que possui muitas obras a respeito
de tempo e de memória. Particularmente, a literatura deve muito a este

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grande pensador. Quando perguntado a respeito de tempo o autor, entre
coisas importantes, responde que para ele sempre existirão duas leituras a
respeito do tempo, ou seja, uma leitura cosmológica e uma leitura
psicológica, um tempo do mundo e um tempo da alma. Declara que o tempo
não pode propor a uma visão única. Para abordar o tempo de forma mais
completa, declara Ricoeur, é preciso ter instrumentais práticos e conceituais.
O grande filósofo também nos convida a pensar a respeito da estética.
O que espanta em Ricoueur é seu arcabouço conceitual. Grande humanista e
com isso ganhamos fundamentações ricas não somente em experiências,
mas conceituais. Para o pensador francês a obra de arte desnuda aspectos
da realidade que, possivelmente, jamais teríamos acesso, a não ser por meio
das grandes obras de arte.

A Força da Idade

Simone de Beauvoir (1908-1986) grande mulher. Filósofa, escritora,


pesquisadora, professora e, sobretudo, andarilha. Escreveu livros
propriamente literários, ou seja, romances. Escreveu ensaios. Dos mais
variados. Somente lendo, pelo menos algumas de suas obras, para que se
dê conta do extraordinário talento e desprendimento de Simone de
Beauvoir. Foi companheira absoluta, durante cinquenta anos, de Sartre.
A força da idade é uma obra de memórias que abrange o período de
1929 a 1944. O leitor não encontrará nesta obra feitos e relatos de um
verdadeiro Narciso. Muito menos a tal da isenção (que sempre é hipócrita).
Nesta obra Simone de Beauvoir faz uma análise, bastante aguda, de sua
vida, em especial a partir de seus vinte e um anos. Relata as leituras que
influenciaram sua carreira. Os grandes clássicos, a literatura moderna de sua
época, sem jamais se restringir aos franceses.
Um dos pontos fortes da obra é que ela acaba sendo um quadro
minucioso de época. Um verdadeiro livro de História, visto que analisa, por
exemplo, os momentos tensos que antecederam a Segunda Guerra Mundial.
Outro ponto importante desta obra singular: a agitação dos intelectuais,

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artistas e escritores num mundo muito diferente do atual. A recepção de uma
nova obra ou de grandes óperas, filmes e outros eventos culturais.
A escritora francesa não foi uma filósofa da contemplação. Acima de
qualquer coisa foi uma grande andarilha, quase aventureira. Mulher de ação.
Na maioria das vezes na companhia de Sartre. Viajava pelo interior da
França. Caminhava, muitas vezes, por todos os lugarejos ao redor de Paris
ou perto de cidadezinhas francesas, a pé. Chegou a caminhar, em certos
momentos de suas viagens, até quarenta quilômetros num mesmo dia.
Dormia ao ar livre... em cima de telhados. Escalava montanhas com mochilas
nas costas. E o melhor: sempre com pouquíssimo dinheiro. As suas viagens
são, via de regra, com o dinheiro contado. Todas as experiências de
andarilha serviram para a prática de sua escritura. Observadora
extraordinária, como no fragmento a seguir: "Nunca me aborrecia. Marseille
não se esgotava. Caminhava pelo molhe em que as águas e o vento batiam,
olhava os pescadores, em pé entre os blocos de pedra de encontro aos quais
as ondas rebentavam e que procuravam no fundo das águas turvas não sei
que alimento; perdia-me na tristeza das docas; rondava em torno da porta de
Aix e pelos bairros em que homens trigueiros vendiam e revendiam sapatos
velhos e andrajos."
Mas Simone de Beauvoir viaja também por outros países com Sartre.
Note-se que numa época em que a mobilidade mundial era muito diferente do
que hoje se apresenta. O casal viajou pela Espanha, Grécia, Marrocos, Itália
e muitos outros países, muitas vezes, de navio (para viajar de avião naquela
época era preciso ter muito dinheiro). Em todas as viagens relatadas o que
vale são as reflexões que faz, juntamente, com Sartre a respeito do
comportamento das pessoas. Da geografia e da gastronomia dos lugares
visitados. Com isso, nós leitores, passamos a compreender e a comparar
melhor, as diferenças que marcam uma época e uma cultura.
Outro ponto essencial desta obra: os aspectos ligados à esfera
educacional. A autora francesa foi uma grande professora. Em todos os
lugares em que lecionou, escolas denominadas secundárias (correspondem
hoje, no Brasil, ao ensino médio), deixou sua marca singular. Libertou suas
alunas de preconceitos. Sabia que deveria torná-las independentes,
sobretudo, para pensar. Sempre se preocupou com a autonomia intelectual

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de suas alunas. Com isso podemos entender melhor como eram as escolas,
assim como o papel do professor. Simone jamais deixou de preparar cursos
inovadores para seus alunos. Jamais deixou de pesquisar, ler e buscar
soluções para que sua jornada professoral fosse a melhor possível.
E, finalmente, esta obra é um verdadeiro conselheiro para quem
deseja, um dia, escrever, qualquer gênero. Romances. Contos. Filosofia.
Texto acadêmico. Por quê? Porque a autora, durante toda a obra, revela sua
obstinação, em um dia se tornar uma verdadeira escritora. Relata, com a
maior sinceridade e rigor com ela mesma, suas tentativas para escrever um
romance. Não somente lia tudo o que lhe vinha nas mãos, como escrevia e
jogava aquilo que achava inqualificável. Conversava e debatia com amigos
intelectuais, assim, claro, como com Sartre (crítico severo). Ela era exigente e
sabia que um bom livro deveria ser construído com rigor. Jamais deixou que
as ingenuidades tomassem conta de suas obras. Confessa, com grande
profundidade psicológica, os caminhos em busca de uma literatura rigorosa.
Ficava horas e horas, meses, anos...escrevendo e reescrevendo. Nesta
medida, nós, leitores, uma vez mais, ganhamos. A obra em referência é um
grande tesouro. Produto de um intenso trabalho de memória aliado a um
grande talento literário. Uma obra que possibilita revisar nossos valores e
comportamentos diante das responsabilidades com as quais nos deparamos
em nossas vidas.

Sartre: uma biografia

As biografias, na verdade, começaram enquanto uma espécie de


gênero, há muitos e muitos séculos. Plutarco, conforme é sabido, realizou
muitas biografias, as tais das biografias paralelas. Nessa medida, comparava,
por exemplo, grandes imperadores. Destacava e analisava os feitos de cada
biografado.
Posteriormente, as biografias foram "resguardadas" para os
considerados vencedores (como diria Benjamin) da História. Uma biografia

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não poderia jamais contemplar "qualquer um". Pode-se afirmar que a
biografia e as memórias, em geral, seguiram o mesmo rumo.
Durante o século XX, em especial até os anos cinquenta, o panorama
mudou um pouco, mas de forma expressiva. Iniciou-se um movimento no
sentido de exaltar não somente reis e imperadores, mas outras pessoas, via
de regra, não dignas de serem biografadas e muito menos de fazer uma
autobiografia. E, finalmente, dos anos oitenta do século passado para cá as
biografias e autobiografias quase viraram febre. Basta um ator famoso, ou
jogador de futebol, ou cantor estar envolvido com algum tipo de escândalo,
em especial, de sua vida privada, para que, em pouco tempo, surja uma
biografia ou uma autobiografia linear, unilateral e ordinária. Relatos de
bisbilhotices não faltam em tal tipo de literatura horripilante. Verdadeiras
colunas de fofocas detestáveis.
No entanto, felizmente, no meio ao universo descrito, surgem as
grandes biografias e autobiografias. Sartre: uma biografia, Annie Cohen-
Solal, é um livro exemplar. Sejamos francos: a começar pela escolha do
biografado. Sartre, ultimamente tão esquecido (suas obras em geral estão
esgotadas no Brasil e no exterior) merecia mais. Um dos motivos, ou, talvez,
o mais importante: pensou, repensou, analisou e praticou a liberdade.
Nesta biografia muito bem documentada a autora começa pela origem
do filósofo do existencialismo. As mais remotas. E a partir daí traça toda a
trajetória de Sartre: professor, pesquisador, filósofo, romancista, ensaísta.
Inseparável de Simone de Beauvoir, a Castor. Juntos mantiveram uma
relação totalmente singular: cinquenta anos de uma cumplicidade sem
precedentes onde cada uma tinha sua autonomia. Um casal que jurou um
pacto de total liberdade, sem jamais perder os objetivos em comum. De
acordo com a autora eles liam juntos, viajavam, escreviam, enfim, o pacto de
autonomia e cumplicidade nunca foi rompido. Cada um, evidentemente,
pagando seu preço.
Um dos pontos que chamam a atenção nesta obra refere-se à
capacidade de reflexão do casal. À medida que Sartre e Simone conviviam,
paravam e refletiam a teoria que, de forma obstinada, intrigava Sartre.
Lembremos o que a obra evidencia: Sartre em sua Filosofia jamais abriu mão
de pensar a liberdade. Em que medida a liberdade pode ou não ser

100
potencializada pela humanidade? Esta biografia demonstra, com bastante
propriedade, o exercício de pensamento de Sartre, em especial, depois da
Segunda Guerra Mundial. Os limites do social no comportamento e ação
individuais.
A biógrafa destaca, em muitos pontos desta obra, o trabalho insano de
Sartre ao jamais fugir de um de seus objetivos fundamentais de vida:
escrever literariamente a respeito de Filosofia. Romances filosóficos. E assim
foi reconhecido pelos melhores pensadores de sua época, como por
exemplo, André Gide, Merleau-Ponty e tantos outros. Sartre acreditava,
cremos que com muita razão, que somente uma linguagem literária teria a
propriedade de, realmente, concretizar conceitos filosóficos. Daí sua
obstinação em perseguir uma Filosofia que fosse registrada por meio da
literatura. A espessura da Literatura seria a arma perfeita para seus objetivos
de escritor.
Um outro ponto destacado pela autora é a questão famosa do Nobel.
Lembremos com alegria e felicidade: Sartre, elegantemente, teve a grande
coragem, em todas as esferas, de recusar um Nobel. Por tal atitude pode-se
medir, em parte, o desprendimento do pensador. Milhões de pessoas
sonhariam em ganhar um Nobel. Sartre recusa. Quais foram os motivos
declarados pela biógrafa? Ela se baseia, naturalmente, nas declarações de
Sartre, ou seja, ele recusa, como explica em carta à Academia Sueca, que
nunca gostou de homenagens e prêmios. Além disso, não pode aceitar que
um escritor seja uma instituição.
A biografia em questão é longa. Sem dúvida houve um trabalho de
pesquisa muito grande. Contudo, de forma implícita a autora deixa uma
provocação, sem precedentes, aos leitores. Isto é: leiam a obra de Sartre.
Somente ela, por si mesma, poderá nos aproximar das 'vertigens
pensamentais' sentidas por um daqueles que deve ser considerado um dos
maiores pensadores e defensores da liberdade humana. Sartre deve ser
lembrado pela humanidade como um homem que nunca deixou de lado o
objetivo de materializar conceitos, na teoria e na prática, de atenuar a vida.
Lá onde ela tende à estagnação e ao conformismo dos indignos. Lá onde há
sempre uma tendência ao lamento e à submissão.

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Tempo e Espaço na cultura japonesa

A obra Tempo e Espaço na cultura japonesa do grande estudioso


Shuichi Sato traz uma importante contribuição, em diferentes níveis, para
todos os leitores. Uma delas é a configuração do tempo e do espaço numa
cultura muito diferente da nossa, mesmo se considerarmos a globalização e
um mundo interligado pela Internet.
Suichi traça um panorama e diversas comparações entre concepções
de tempo e espaço mais universais e a japonesa. Um traço fundamental da
concepção do tempo na cultura japonesa é o quanto no Japão o passado,
realmente, se efetiva e se enterra no próprio passado. Ou seja, de um modo
geral, os japoneses evitam lembrar o passado, tendo por base que o que
passou ...passou. O passado não pode voltar atrás. Nessa medida, os
japonese olham, sempre, para a frente. Olham e projetam o futuro. Remoer
erros ou faltas cometidas no passado devem ser, definitivamente,
esquecidas. "Em todos os níveis da sociedade japonesa, há uma forte
tendência de se viver o presente, deixando o passado ser levado pelas águas
e confiando o futuro à direção do vento. O sentido dos acontecimentos do
presente se define por si mesmo, independentemente da relação entre a
história passada e a finalidade futura".
Um outro ponto que nos chama a atenção, nesta obra, é a primorosa
tradução feita por Neide Nagae e Fernando Chamas. Ela foi realizada
diretamente da língua japonesa e, na verdade, isto é um ponto mais
importante do que possa imaginar. A concepção de tempo japonesa ensina, a
todos nós, que o futuro somente pode ser materializado, a partir do momento
que se deixem as lamentações do passado enterradas de uma vez por todas.
O segredo é olhar para os bons ventos que nos acenam para uma vida
melhor.

102
Inconclusões

Sabe-se, e tal processo tem sido amplamente debatido, que a Internet


possibilita, como nunca, o acesso a informações, livros, filmes. Enfim: o
planeta jamais dispôs de tanta "memória" acessível em todas as esferas.
Mas. O que fazer com tantas fontes disponíveis? As Musas prolongadoras da
memória virão nos amparar? Como separar o que tem valor daquilo que não
tem? Somente uma formação humanística sólida. Como se fosse uma
montanha rochosa quase impermeável. Particularmente, não podemos crer
em outra coisa.
E somente acreditamos que uma formação humanística sólida possa
existir, inclusive, se abarcar a literatura em todas as suas plenas
possibilidades. Ora mais estrita, ora em conjunto com obras filosóficas,
históricas e outras, cujos autores tenham tido, realmente, uma preocupação
com a exatidão de seus conceitos e de seus postulados.
Sartre já tinha percebido que somente a literatura poderia traduzir melhor os
conceitos, mesmo que filosóficos...Tal constatação o escritor francês reflete
em diversos momentos de sua vasta obra. Os 'romances' de Sartre, como se
sabe, são verdadeiras teorias de Filosofia. No entanto, jamais deixou de lado
a literatura. Mas...claro que não foi o único. Podemos apontar Deleuze,
Foucault, Octavio Paz e muitos outros grande pensadores que se valeram
dos recursos da literatura para dar maior densidade a suas respectivas
teorias. Nas palavras de Sartre em O que é Literatura?: "Ninguém é escritor
por haver decidido escrever certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de
determinado modo. E o estilo, decerto, é o que determina o valor da prosa."
(1998,p.22) Prossegue afirmando que determinados temas podem até sugerir
o estilo, contudo, não podem comandá-lo. Não existem temas que não
possam ser tratados de forma literária.
Destacamos que o estilo, sempre, é um achado subjetivo que materializa, de
fato, consciência e domínio de linguagem. Criar um estilo materializa e
determina a profundidade de um conceito. Nesta medida, não acreditamos,
de forma alguma, que aqueles que escrevem por escrever no que a

103
linguagem possui de mais ordinário contribuam com grandes novidades para
uma real consciência da linguagem e da necessidade da leitura em seu
significado mais amplo.
Somente o domínio da linguagem e os elementos que a fundamentam,
de fato, podem levar a novos horizontes conceituais e pensamentais.
Infelizmente, a área mais específica da Educação parece, via de regra,
esquecer disso. Nosso melhor argumento está concretizada nas obras de um
dos maiores pensadores a respeito de Educação, ou seja, Paulo Freire.
Este, que merecidamente é patrono brasileiro da Educação, possui em
sua linguagem elementos incontáveis de literariedade. Suas obras são
verdadeiros pactos de literatura ao postular conceitos cheios de figuras de
linguagens, metáforas e outros recursos que configuram o seu estilo que
jamais se confunde. No entanto, muitas vezes, foi denominado pelos seus
pares como 'muito didático' e outras denominações ordinárias ditas por quem
não possui o menor esclarecimento a respeito de linguagem e consciência.
Lembremos que a busca, que jamais termina, de um estilo implica,
conceitualmente, em liberdade, autonomia e possíveis preenchimentos de
incompletudes em todas as esferas, em especial, as das subjetividades.

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VON FRANZ, Marie-Louise. Mistérios do Tempo. Rio de Janeiro: Edições Del
Prado, [s.d.].

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PRIMEIRA E SEGUNDA ORELHAS:

"Quando uma sociedade, mais ou menos estável, avança num passo mais
lento, o homem, para poder se distinguir de seus semelhantes (semelhantes
que tão tristemente se parecem), atribui uma grande atenção a suas
pequenas particularidades psicológicas, pois só elas podem lhe trazer o
prazer de saborear a individualidade que ele pretende inimitável. Mas a
guerra de 1914, esse massacre absurdo e gigantesco, inaugurou na Europa
uma nova época, em que a história, autoritária e ávida, surgiu diante do
homem e tomou conta dele. É de fora que, doravante, o homem será
determinado em primeiro lugar. E ainda: esses choques vindo do exterior
não serão menos surpreendentes, menos enigmáticos, menos difíceis de
compreender, com todas as consequências sobre a maneira de reagir e de
agir do homem, do que as feridas íntimas escondidas nas profundezas do
inconsciente; e não menos fascinantes para um romancista. Só ele, aliás,
poderá apreender como ninguém mais essa mudança que o século trouxe à
existência humana. Não preciso dizer que para isso ele deverá torcer a forma
romanesca usada até então."

Milan Kundera

Quarta Capa:

"O presunçoso finge desprezar as pessoas ou pretende que estas o


venerem: é que ele não ousa abordá-las em pé de igualdade; abdica de sua
liberdade porque teme os perigos que ela lhe oferece. Essa cegueira, essas
mentiras chocam-se particularmente nos escritores, cuja primeira virtude -
mesmo que escolham as mais longínquas divagações - deve ser uma
sinceridade sem medo."

Simone de Beauvoir

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