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Resumo
O arƟgo é um convite à reflexão acerca da importância da formação de educadores na perspecƟva de
uma educação culturalmente diversificada voltada para sociedades caracterizadas não apenas pela
diversidade cultural e desigualdade social, mas sobretudo, por possuírem uma herança escravista
e colonial que a estrutura, e suas relações, como é o caso da sociedade brasileira. Trata-se de um
dos mais importantes problemas que nos desafiam a todos, professores, pesquisadores e alunos
cuja centralidade é o compromisso da produção de conhecimentos nos campos conformados pela
educação e pelas relações étnico-racial, social, políƟca e ideológica problemaƟzando, ressignificando
e a insƟtuindo em um processo efeƟvamente democráƟco na perspecƟva de negros e indígenas.
Esse foi o tema do V Seminário Internacional: Fronteiras Étnico-Culturais e Fronteiras da Exclusão
– inter/mulƟculturalidade e formação de educadores, realizado em 2012, na Universidade Católica
Dom Bosco (UCDB) em Mato Grosso do Sul.
Palavras-chave
Educação. Formação de professores. MulƟculturalimo.
Abstract
The arƟcle is an invitaƟon to reflect on the importance of teacher training in the perspecƟve of
a culturally diverse educaƟon facing socieƟes characterized not only by the diversity and cultural
and social inequaliƟes but also they have a slave and colonial heritage that structure them and
their relaƟonships as is the case of Brazilian society. This is one of the most important issues that
challenge us all, teachers, researchers and students whose centrality is located on the commitment
to produce knowledge in the field of themaƟc formed by formed by educaƟon and ethnic-racial,
social relaƟons, poliƟcal and ideological quesƟoning, redefining and establishing this producƟon in
a truly democraƟc sense from the perspecƟve of blacks and indigenous. That was the theme of the
FiŌh InternaƟonal Seminary: Ethnic and Cultural Boundaries and Exclusion – inter / mulƟcultural
108 Ahyas SISS; Otair FERNANDES. Formação de professores na perspecƟva de uma educação...
e diversidades etnicorraciais e da edu- ção da temáƟca. A importância desses
cação brasileira, oferecendo subsídios eventos cienơficos pode ser mensurada
e orientações às ações educaƟvas de pela relevância acadêmica das pesquisas
intervenção pedagógica expressas pelas que para eles convergem, bem como
“Diretrizes Curriculares Nacionais para pelo interesse que eles vêm despertando
a Educação das Relações Étnico-Raciais” na academia e fora dela.
além de favorecerem o ensino da cultura O tema em voga no V Seminário
Afro-Brasileira, africana e indígena ao Internacional: Fronteiras Étnico-Cultu-
possibilitarem a circulação de conhe- rais e Fronteiras da Exclusão – Inter/
cimentos relacionados aos campos da mulƟculturalidade e formação de educa-
educação superior e das relações étnico- dores, permite uma discussão insƟgante
raciais brasileiras em consonância com a e desafiadora tendo em vista sua com-
Lei 11645/2008, que altera a Lei n. 9.394, plexidade temáƟca e as várias relações e
de 20 de dezembro de 1996, modificada interseções que podem ser estabelecidas
pela Lei n. 10.639/2003. entre os termos aqui focalizados.
Cabe lembrar que até bem pouco
tempo, eventos acadêmicos centrados 1 Educação culturalmente diferenciada:
nos campos de pesquisa da educação contextualização
e das relações étnico-raciais eram raros
nas universidades brasileiras. Esse pano- O termo educação inter/multi-
rama começou a mudar a parƟr do final cultural, segundo Fleuri (2003), foi uƟ-
dos anos oitenta do século passado. De lizado por Stephen Stoer e Maria Luiza
lá para cá, vêm se mulƟplicando os de- Cortesão, de Portugal, para indicar o
bates, as análises e a produção teórica conjunto de propostas educacionais que
situados nesses campos. Congressos, visam promover a relação e o respeito
Encontros, Seminários e Simpósios na- entre grupos socioculturais, mediante
cionais e internacionais como ocorridos processos democráticos e dialógicos.
em diferentes espaços acadêmicos como Trata-se de uma proposta de “educação
UCDB, UERJ, UFES, UFF, UFRRJ, UFRJ, para a alteridade” configurada por uma
UNESP/USP, ANPEd, ANPOCS dentre perspecƟva de convivência democráƟca
tantos outros, bem como a criação de ampla entre diferentes grupos e culturas,
um Grupo de Trabalho voltado para essa em âmbito nacional e internacional.
temáƟca na ANPEd (GT 21 Educação e Tal proposição recebe diferentes de-
Relações Etnicorraciais), consƟtuem-se nominações nos Estados Unidos e em
em momentos privilegiados de agluƟ- países da Europa, como pedagogia do
nação de pesquisadores de todo país e acolhimento, educação para diversidade,
do exterior proporcionando discussão e educação comunitária, educação para
divulgação de conhecimentos, tornando a igualdade de oportunidades ou, mais
visíveis o crescimento e a complexifica- simplesmente, educação intercultural.
110 Ahyas SISS; Otair FERNANDES. Formação de professores na perspecƟva de uma educação...
culturas no interior de um território, sob um jogo das diferenças, segundo esta
a égide de uma cultura hegemônica, com autora, por ser um fenômeno em que
implicações na exclusão étnico-racial e as regras são definidas nas lutas sociais
na formação de estereóƟpos, que po- por atores que, por uma razão ou outra,
dem envolver desde feitos ditos exóƟcos experimentam o gosto amargo da discri-
de determinada cultura até aspectos minação e do preconceito no interior das
como a subordinação de uma etnia por sociedades em que vivem. As regras des-
outra, com implicações na destruição se jogo só pode ser compreendidas de
da formação social dos subordinados. acordo com os contextos sócio-históricos
Dentre as diferentes interpretações do nos quais os sujeitos agem, no senƟdo de
termo, o multiculturalismo pode ser interferir na políƟca de significados em
explicado como movimento políƟco e torno da qual dão inteligibilidade a suas
social legíƟmo das sociedades ocidentais próprias experiências, construindo-se
no contexto de uma democracia plura- enquanto atores.
lista. Os grupos culturais dominados no Várias tem sido as críƟcas ao mul-
interior dessas sociedades reivindicam Ɵculturalismo ou movimento mulƟcultu-
o reconhecimento de suas culturas e ral, entre as quais se destacam aquelas
a representatividade delas em nível que enfaƟzam o seu caráter eurocêntrico
nacional. A luta dos negros americanos, e que ele parte da lógica do capitalismo
a parƟr do início dos anos 1960, pelo multinacional, além do fato que, ao
acesso a direitos e contra a segregação e reconhecer as várias culturas dentro de
o racismo, é vista como um dos exemplos uma mesma sociedade, o faz de forma
do fenômeno do mulƟculturalismo. subordinada, sem quesƟonar a ordem
Porém é importante salientar que hegemônica da cultura ocidental.
o mulƟculturalismo surgiu nesses con- É no bojo desse processo histórico
textos sociais fora do campo educacio- e movimento teórico que as ideias de in-
nal, pois antes se expressava nas artes, terculturalidade e mulƟculturalidade ga-
nos movimentos sociais, em políƟcas, nham força e relevância políƟca e acadê-
implicando o reconhecimento da dife- mica. Ao contrário do mulƟculturalismo,
rença, no direito à diferença, colocando ambas têm em comum uma forte relação
em questão o Ɵpo de tratamento dado às com a educação. Para Fleuri (2003) o
idenƟdades minoritárias. No campo da termo mulƟcultural pode ser entendido
educação, se impõe pelo poder e influ- como categoria descriƟva, analíƟca, so-
ência que possuíam devido o fato de há ciológica ou histórica, para indicar uma
muito anos reivindicar o cumprimento realidade de coexistência de diferentes
dos princípios de igualdade e equidade, grupos culturais num mesmo contexto
relaƟvos às consƟtuições de todos os social, além de representar concepções
países democráƟcos, como nos mostra pedagógico-políticas divergentes. Se-
Gonçalves e Silva (2003). Trata-se de gundo este autor, alguns defendem este
112 Ahyas SISS; Otair FERNANDES. Formação de professores na perspecƟva de uma educação...
campo de luta onde as práƟcas políƟcas pedagógica eficiente ganha dimensão
e ideológicas devem ser consideradas de desafio políƟco-pedagógico. Linhares
na proposição de projetos que visam à (1997) postula que isso equivale a redefi-
transformação desse espaço e de toda nir o papel que escola e professores vêm
a sociedade. Trata-se de um espaço desempenhando, pois a escola
carregado de tensão e de conflito onde
como uma insƟtuição social densa
se trava uma luta coƟdiana contra o ra- de relações educaƟvas onde o ensi-
cismo em todas as suas dimensões e as nar e o aprender pode-se abrir em
desigualdades sociorraciais. caminhos para disƟnguir opressões,
comunicar-se com outras culturas,
2 A formação de professores na ressignificar conhecimentos por
perspectiva de uma educação situá-lo dentro de uma lógica mar-
culturalmente diversificada cada por perspecƟvas do que cons-
Ɵtui problemas para nós, [...] vamos
Formar educadores numa pers- ter que apostar que a fabricação de
pecƟva inter/mulƟcultural significa pre- novos lugares para a escola não po-
pará-los numa perspecƟva diversificada derá dispensar professores e alunos
culturalmente de forma que exercitem [...]. São estes que, [...] irão traduzir
a ação de educar para a convivência os saberes populares em cultura
respeitosa das diferentes subjeƟvidades escolar, acolhendo os desejos dos
trabalhadores, das mulheres, dos
e valores coexistentes em sociedades
negros, de saberes que os fortale-
mulƟculturais e para o respeito à di-
çam (LINHARES, 1997, p. 146).
versidade. Isso não é tarefa fácil, pois
implica uma mudança de aƟtudes e de O surgimento de uma educação em
valores. O reconhecimento do caráter perspecƟva culturalmente diversificada
mulƟcultural da nossa sociedade não nos Estados Unidos se insere na pers-
é o bastante, como também não basta pecƟva mulƟcultural como resultado da
que a escola reconheça que a sua clien- iniciaƟva de pesquisadores e professores
tela é diversificada, seja por gênero, por doutores afro-americanos, “influencia-
classe, por raça e que possuem culturas dos, de início, pelos precursores dos Es-
diferentes. É fundamental que esse re- tudos Negros” e pelo êxito que os Black
conhecimento não seja acompanhado Studies alcançaram nas escolas norte-
por políƟcas de respeito aos diferentes americanas como o demonstram Gonçal-
e por uma mudança de aƟtudes frente ves e Silva (1998). Lá, pesquisadores da
a eles. Sem isso, dificilmente essa escola área de Estudos Sociais como Gwedolin
será capaz de desempenhar seu papel, C. Baker, James A. Banks, Geneva Gay e
de forma democráƟca. Carl A. Grant, associando cultura à idenƟ-
Nesse senƟdo, os processos de for- dade, Formação de Professores e diversi-
mação de professores para uma práƟca dade cultural prescrevem reformulações
114 Ahyas SISS; Otair FERNANDES. Formação de professores na perspecƟva de uma educação...
as formas pelas quais “as diferenças e 11645/2008, que alteram a redação da
as desigualdades se manifestam” nas Lei de Diretrizes e Bases da Educação
relações sociais; analisam estratégias de Nacional em vigor, a Lei 9.394, de 20 de
aprendizagem parƟculares dos diversos dezembro de 1996, ao tornar obrigatória
grupos sociais e aprendem a uƟlizá-las a inclusão da temáƟca “História e Cultura
com o objeƟvo fundamental de oƟmizar Afro-Brasileira e Indígena” no currículo
a educação do alunado. oficial da Rede de Ensino. O impacto
Diferentemente de um mero exer- dessa alteração será senƟdo na forma-
cício de retórica, as relações que as diver- ção dos professores com a insƟtuição,
sidades de gênero, cultura, raça ou etnia em 2004, das “Diretrizes Curriculares
e de classe estabelecem com a educação Nacionais para a Educação das Relações
e com a formação docente na sua versão Étnico-Raciais e para o Ensino de História
norte-americana, compreende análi- e Cultura Afro-Brasileira e Africana” que
ses teóricas e uma práƟca que buscam preconiza:
modificar as relações de poder naquela Art. 1º A presente resolução insƟtui
sociedade. É uma ação coleƟva empre- Diretrizes Curriculares Nacionais
endida por sujeitos históricos no senƟdo para a Educação das Relações
de reconfigurar toda uma sociedade e de Étnico-Raciais e para o Ensino de
insƟtuí-la em bases mais justas. História e Cultura Afro-Brasileira
Nesse senƟdo, o papel exercido e Africana, a serem observadas
pela educação mulƟcultural escolarizada pelas instituições de ensino, que
reveste-se de importância fundamental, atuam nos níveis e modalidades da
e ela vem se alimentando, em grande Educação Brasileira e, em especial,
parte, das análises acadêmicas desen- por InsƟtuições que desenvolvam
volvidas por professores-pesquisadores programas de formação inicial e
conƟnuada de professores.
afro-americanos que lecionam nas
diferentes universidades daquele país, O primeiro parágrafo desse arƟgo,
preocupados em transformar a lógica e por sua vez, observa que:
a forma pela qual aquela sociedade se § 1º As InsƟtuições de Ensino Supe-
representa a si mesma e aos grupos que rior incluirão nos conteúdos de disci-
a consƟtuem, como bem o demonstram plinas e aƟvidades curriculares dos
Gonçalves e Silva (1998). cursos que ministram, a Educação
No Brasil, esta é uma discussão das Relações Étnico-Raciais, bem
recente e, portanto, ainda em pleno de- como o tratamento de questões e
senvolvimento. Uma intervenção signifi- temáƟcas que dizem respeito aos
afrodescendentes, nos termos expli-
caƟva na direção da formação dos pro-
citados no Parecer CNE/CP 3/2004.
fessores no contexto de uma educação
culturalmente diversificada tem como Conforme preconizado nessas
ponto de parƟda as leis 10.639/2003 e Diretrizes, as Instituições de Ensino
116 Ahyas SISS; Otair FERNANDES. Formação de professores na perspecƟva de uma educação...
construção das desigualdades sociais universidade, por sua vez, exige-se a
e étnico-raciais que contribuem para elaboração de programas de formação
exclusão de grande parcela da população conƟnuada que possibilitem o desen-
afro-descendente dos bens construídos volvimento e a qualificação profissional
socialmente” e entre eles certamente desses professores, em uma dimensão
está a educação. Esses Núcleos têm con- permanente, possibilitando-lhes perce-
tribuído para formar uma novo perfil de ber e decodificar os estereóƟpos racistas
intelectualidade negra cujos trabalhos antinegros e anti-indígenas veicula-
apontam para “uma possível inflexão dos pelos diversos materiais didáƟcos
para melhor compreender as relações colocados à sua disposição e a poder
raciais no contexto das desigualdades desmisƟficar valores parƟculares que
sociorraciais e maior seriedade desta os currículos escolares muitas das vezes
temáƟca nas pesquisas acadêmicas e tentam tornar gerais ou hegemônicos,
oficiais”. Se por um lado, a inserção dos bem como desmascarar a sobrevida do
diferentes grupos étnico-raciais nas uni- mito da democracia racial que ainda se
versidades brasileiras resulta da pressão faz presente hoje e atua com relaƟva in-
dos movimentos sociais de caráter iden- tensidade na maior parte dos currículos
Ɵtário e os seus sujeitos sobre o campo dos Cursos de Graduação das universi-
da produção acadêmica (negros, indíge- dades brasileiras e que se materializa na
nas, mulheres, homossexuais, outros), práƟca docente.
por outro esta inserção tem significado EnfaƟzamos que a formação inicial
uma mudança do olhar da ciência sobre e conƟnuada de professores é um ele-
a realidade brasileira (GOMES, 2010). mento fundamental para a desconstru-
Sabemos que a formação conƟ- ção das desigualdades sociais e étnico-
nuada é um direito do professor e que raciais que contribuem para exclusão de
esse processo formaƟvo coloca algumas grande parcela da população indígena
exigências para esses profissionais, tais e Afro-brasileira dos bens construídos
como disponibilidade para aprendiza- socialmente. Ela é, seguramente, um
gem e vontade de aprender a aprender, dos caminhos possíveis para se realizar
dentre outras. Da instituição escolar, um trabalho educativo que dê conta
por outro lado, requer-se que sejam dessas complexas questões relações
criadas alternaƟvas, ou condições, que étnico-raciais e que oferece, ainda, im-
propiciem a esses profissionais a conƟ- portantes contribuições no processo de
nuidade de seu processo formaƟvo. Se (des)construção do racismo em nossa
a formação de professores é dever do sociedade através do quesƟonamento
Estado e tarefa da Universidade exige-se, do preconceito e da discriminação, ain-
do Estado, a formulação e implementa- da tão presentes em nossa sociedade e,
ção de políƟcas públicas voltadas para portanto, em nossas escolas, apesar dos
a qualificação desses profissionais. Da discursos em contrário.
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