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Formação de professores na perspecƟva de uma

educação culturalmente diversificada: breves


considerações
Teacher educaƟon in perspecƟve of a culturally
diverse educaƟon: brief consideraƟons
Ahyas Siss*
Otair Fernandes**
* Doutor em Educação. Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: ahyassiss@gmail.com
** Doutor em Ciências Sociais. Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
E-mail: otairfernandes@gmail.com

Resumo
O arƟgo é um convite à reflexão acerca da importância da formação de educadores na perspecƟva de
uma educação culturalmente diversificada voltada para sociedades caracterizadas não apenas pela
diversidade cultural e desigualdade social, mas sobretudo, por possuírem uma herança escravista
e colonial que a estrutura, e suas relações, como é o caso da sociedade brasileira. Trata-se de um
dos mais importantes problemas que nos desafiam a todos, professores, pesquisadores e alunos
cuja centralidade é o compromisso da produção de conhecimentos nos campos conformados pela
educação e pelas relações étnico-racial, social, políƟca e ideológica problemaƟzando, ressignificando
e a insƟtuindo em um processo efeƟvamente democráƟco na perspecƟva de negros e indígenas.
Esse foi o tema do V Seminário Internacional: Fronteiras Étnico-Culturais e Fronteiras da Exclusão
– inter/mulƟculturalidade e formação de educadores, realizado em 2012, na Universidade Católica
Dom Bosco (UCDB) em Mato Grosso do Sul.
Palavras-chave
Educação. Formação de professores. MulƟculturalimo.

Abstract
The arƟcle is an invitaƟon to reflect on the importance of teacher training in the perspecƟve of
a culturally diverse educaƟon facing socieƟes characterized not only by the diversity and cultural
and social inequaliƟes but also they have a slave and colonial heritage that structure them and
their relaƟonships as is the case of Brazilian society. This is one of the most important issues that
challenge us all, teachers, researchers and students whose centrality is located on the commitment
to produce knowledge in the field of themaƟc formed by formed by educaƟon and ethnic-racial,
social relaƟons, poliƟcal and ideological quesƟoning, redefining and establishing this producƟon in
a truly democraƟc sense from the perspecƟve of blacks and indigenous. That was the theme of the
FiŌh InternaƟonal Seminary: Ethnic and Cultural Boundaries and Exclusion – inter / mulƟcultural

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 107-119, jan./jun. 2014
educaƟon and educators, happened in 2012, in Dom Bosco Catholic University (UCDB) in Mato
Grosso do Sul, Brazil.
Key words
EducaƟon. Teacher EducaƟon. MulƟculturalism.

Considerações iniciais este é um assunto que desafia a todos


nós, professores e pesquisadores, que
O reconhecimento do mulƟcultu- assumimos, como preocupação central
ralismo e da interculturalidade é fenô- o combate ao racismo em todas as suas
meno recente nas sociedades contem- dimensões e buscamos construir um
porâneas. Nacional e internacionalmen- Ɵpo de produção de conhecimentos que
te, ele se faz notar pelo desenvolvimento tem como base a temáƟca étnico-racial
de um conjunto de ações no campo das como questão cultural, social, políƟca e
políƟcas públicas, sobretudo, na área da ideológica demandada na luta contra o
educação, em parƟcular na formação ini- racismo insƟtucional em nosso país.
cial e conƟnuada de professores voltadas Nesse senƟdo, a educação com-
não apenas aos diferentes grupos étni- preendida como locus privilegiado de
cos e sociais, mas por eles produzidas. formação humana, em particular a
Cabe observar que esse reconhecimento formação de professores, assume papel
não aconteceu ao acaso, mas resulta estratégico se configurando em espaço
de processos de lutas históricas dos onde se trava uma luta coƟdiana contra
diferentes Ɵpos de movimentos sociais, o racismo e as desigualdades sociorra-
em parƟcular aqueles relacionados à ciais, carregado de tensão e de conflito.
cultura, à diversidade étnico-racial e às Por isso entendemos o espaço escolar
questões de idenƟdade como aquelas como um campo de luta onde as práƟcas
empreendidas pelos movimentos sociais políƟcas e ideológicas devem ser consi-
negros, indígenas e feministas, dentre deradas na proposição de projetos que
tantos outros. visam à transformação desse espaço.
Este artigo está voltado para o É sob esta perspecƟva que enten-
estabelecimento de algumas reflexões demos a importância dos Seminários
sobre a formação de educadores no “Fronteiras Étnico/Culturais e Fronteiras
contexto de uma sociedade mulƟcul- da Exclusão” promovidos pela UCDB,
tural com foco na educação cultural- através de seu Programa de Pós-Gradu-
mente diferenciada. Como temática ação em Educação. Desde o ano de 2002
central do V Seminário Internacional: quando do primeiro seminário, esses
Fronteiras Étnico-Culturais e Fronteiras encontros vêm ganhando crescente des-
da Exclusão, ocorrido em setembro de taque e relevante importância acadêmica
2012, na Universidade Católica Dom ao divulgar conhecimentos localizados na
Bosco (UCDB), em Mato Grosso do Sul, confluência das áreas das desigualdades

108 Ahyas SISS; Otair FERNANDES. Formação de professores na perspecƟva de uma educação...
e diversidades etnicorraciais e da edu- ção da temáƟca. A importância desses
cação brasileira, oferecendo subsídios eventos cienơficos pode ser mensurada
e orientações às ações educaƟvas de pela relevância acadêmica das pesquisas
intervenção pedagógica expressas pelas que para eles convergem, bem como
“Diretrizes Curriculares Nacionais para pelo interesse que eles vêm despertando
a Educação das Relações Étnico-Raciais” na academia e fora dela.
além de favorecerem o ensino da cultura O tema em voga no V Seminário
Afro-Brasileira, africana e indígena ao Internacional: Fronteiras Étnico-Cultu-
possibilitarem a circulação de conhe- rais e Fronteiras da Exclusão – Inter/
cimentos relacionados aos campos da mulƟculturalidade e formação de educa-
educação superior e das relações étnico- dores, permite uma discussão insƟgante
raciais brasileiras em consonância com a e desafiadora tendo em vista sua com-
Lei 11645/2008, que altera a Lei n. 9.394, plexidade temáƟca e as várias relações e
de 20 de dezembro de 1996, modificada interseções que podem ser estabelecidas
pela Lei n. 10.639/2003. entre os termos aqui focalizados.
Cabe lembrar que até bem pouco
tempo, eventos acadêmicos centrados 1 Educação culturalmente diferenciada:
nos campos de pesquisa da educação contextualização
e das relações étnico-raciais eram raros
nas universidades brasileiras. Esse pano- O termo educação inter/multi-
rama começou a mudar a parƟr do final cultural, segundo Fleuri (2003), foi uƟ-
dos anos oitenta do século passado. De lizado por Stephen Stoer e Maria Luiza
lá para cá, vêm se mulƟplicando os de- Cortesão, de Portugal, para indicar o
bates, as análises e a produção teórica conjunto de propostas educacionais que
situados nesses campos. Congressos, visam promover a relação e o respeito
Encontros, Seminários e Simpósios na- entre grupos socioculturais, mediante
cionais e internacionais como ocorridos processos democráticos e dialógicos.
em diferentes espaços acadêmicos como Trata-se de uma proposta de “educação
UCDB, UERJ, UFES, UFF, UFRRJ, UFRJ, para a alteridade” configurada por uma
UNESP/USP, ANPEd, ANPOCS dentre perspecƟva de convivência democráƟca
tantos outros, bem como a criação de ampla entre diferentes grupos e culturas,
um Grupo de Trabalho voltado para essa em âmbito nacional e internacional.
temáƟca na ANPEd (GT 21 Educação e Tal proposição recebe diferentes de-
Relações Etnicorraciais), consƟtuem-se nominações nos Estados Unidos e em
em momentos privilegiados de agluƟ- países da Europa, como pedagogia do
nação de pesquisadores de todo país e acolhimento, educação para diversidade,
do exterior proporcionando discussão e educação comunitária, educação para
divulgação de conhecimentos, tornando a igualdade de oportunidades ou, mais
visíveis o crescimento e a complexifica- simplesmente, educação intercultural.

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A ideia de uma educação na pers- étnicas, religiosas, nacionalistas, den-
pecƟva inter/mulƟcultural surge com o tre outras. Tais movimentos eclodiram
fenômeno da globalização e o apareci- nas úlƟmas décadas do século XX em
mento de novos padrões de regulação países como Estados Unidos Inglaterra,
social propondo a noção da unidade na França, dentre outros. Por força desses
diversidade como alternaƟva às propo- movimentos, as formas pelos quais os
sições do inter e do mulƟculturalismo diferentes grupos sociais construíram
(STOER, 2001). Oriunda dos movimentos a sua história e pautaram as questões
sociais e educacionais nos Estados Uni- das diferenças e das desigualdades na
das e nos países da Europa, ela deriva agenda pública das sociedades capita-
de um processo histórico mais amplo listas contemporâneas e culturalmente
marcado pelo fenômeno do mulƟcultu- estraƟficadas tornaram-se visíveis.
ralismo que se expressa de diferentes Ao quesƟonarem e problemaƟza-
formas e com derivações em outros rem os princípios básicos do modelo de
termos como mulƟcultural, intercultural, democracia liberal, os “novos” atores
transcultural. Para além da polissemia do sociais colocaram em xeque os padrões
termo, o mulƟculturalismo compreende de racionalidade políƟca e de tomada de
diferentes perspecƟvas teóricas e usos decisões do Estado moderno diante dos
distintos expressando interpretações dilemas das sociedades democráƟcas
variadas na construção de propostas liberais que se caracterizam pela com-
políƟcas e pedagógicas com implicações plexidade, pluralidade, fragmentação e
no campo educacional. A literatura sobre desigualdade social. A compaƟbilização
o assunto é bastante heterogênea tanto da parƟcipação políƟca de forma ampla
nas ciências sociais quanto na educação e inclusiva na sociedade e no processo
não havendo uma conceituação única e decisório de governo que resulte na pro-
universalmente válida. dução e efeƟvação de políƟcas públicas
O ponto comum entre diferentes no senƟdo de formar sociedades mais
variações e adjeƟvações do mulƟcul- justas e menos desiguais passou a ser
turalismo é o fato de que todas elas, intencionada na busca para as respostas
de certa forma, estão relacionadas a dessas questões pelo sistema políƟco
questões culturais como diversidade, com bases neoliberais.
idenƟdades e diferenças. Questões essas Nesse processo histórico, os con-
que passaram a temaƟzar os debates ceitos de mulƟculturalidade e de inter-
políticos e acadêmicos no centro do culturalidade foram sendo construídos,
capitalismo mundial ou em sua peri- às vezes usados de formas disƟntas ou
feria em decorrência das pressões dos como sinônimos, conforme o contexto
chamados “novos” movimentos sociais social específico em que emergem.
contemporâneos, sobretudo, os cultu- Na acepção da palavra, o mulƟcul-
rais, especificamente os de bandeiras tural refere-se à coexistência de várias

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culturas no interior de um território, sob um jogo das diferenças, segundo esta
a égide de uma cultura hegemônica, com autora, por ser um fenômeno em que
implicações na exclusão étnico-racial e as regras são definidas nas lutas sociais
na formação de estereóƟpos, que po- por atores que, por uma razão ou outra,
dem envolver desde feitos ditos exóƟcos experimentam o gosto amargo da discri-
de determinada cultura até aspectos minação e do preconceito no interior das
como a subordinação de uma etnia por sociedades em que vivem. As regras des-
outra, com implicações na destruição se jogo só pode ser compreendidas de
da formação social dos subordinados. acordo com os contextos sócio-históricos
Dentre as diferentes interpretações do nos quais os sujeitos agem, no senƟdo de
termo, o multiculturalismo pode ser interferir na políƟca de significados em
explicado como movimento políƟco e torno da qual dão inteligibilidade a suas
social legíƟmo das sociedades ocidentais próprias experiências, construindo-se
no contexto de uma democracia plura- enquanto atores.
lista. Os grupos culturais dominados no Várias tem sido as críƟcas ao mul-
interior dessas sociedades reivindicam Ɵculturalismo ou movimento mulƟcultu-
o reconhecimento de suas culturas e ral, entre as quais se destacam aquelas
a representatividade delas em nível que enfaƟzam o seu caráter eurocêntrico
nacional. A luta dos negros americanos, e que ele parte da lógica do capitalismo
a parƟr do início dos anos 1960, pelo multinacional, além do fato que, ao
acesso a direitos e contra a segregação e reconhecer as várias culturas dentro de
o racismo, é vista como um dos exemplos uma mesma sociedade, o faz de forma
do fenômeno do mulƟculturalismo. subordinada, sem quesƟonar a ordem
Porém é importante salientar que hegemônica da cultura ocidental.
o mulƟculturalismo surgiu nesses con- É no bojo desse processo histórico
textos sociais fora do campo educacio- e movimento teórico que as ideias de in-
nal, pois antes se expressava nas artes, terculturalidade e mulƟculturalidade ga-
nos movimentos sociais, em políƟcas, nham força e relevância políƟca e acadê-
implicando o reconhecimento da dife- mica. Ao contrário do mulƟculturalismo,
rença, no direito à diferença, colocando ambas têm em comum uma forte relação
em questão o Ɵpo de tratamento dado às com a educação. Para Fleuri (2003) o
idenƟdades minoritárias. No campo da termo mulƟcultural pode ser entendido
educação, se impõe pelo poder e influ- como categoria descriƟva, analíƟca, so-
ência que possuíam devido o fato de há ciológica ou histórica, para indicar uma
muito anos reivindicar o cumprimento realidade de coexistência de diferentes
dos princípios de igualdade e equidade, grupos culturais num mesmo contexto
relaƟvos às consƟtuições de todos os social, além de representar concepções
países democráƟcos, como nos mostra pedagógico-políticas divergentes. Se-
Gonçalves e Silva (2003). Trata-se de gundo este autor, alguns defendem este

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termo como um modo de aproximar as pode levar a movimentos separaƟstas,
diferenças etnoculturais, isolando-as ao fundamentalismo ou ainda, como
reciprocamente; outros propugnam a postula Wieviorka (1991), a organizações
perspecƟva de convivência democráƟca sociais micrototalitárias.
entre todos os grupos diferentes. No Brasil, umas das formas pelas
Já o termo intercultural, segundo quais o mulƟculturalismo se apresenta
esse autor, pode indicar realidades e pode ser caracterizada como “processo
perspecƟvas incongruentes entre si. Diz de ascensão social de grupos cultu-
que há quem o reduz ao significado de re- ralmente dominados” (GONÇALVES;
lação entre grupos “folclóricos”; há quem SILVA, 1998), como luta dos membros
amplia o conceito de interculturalidade desse grupo contra todas as formas de
de modo a compreender o “diferente” exclusão, cuja face mais visível é a da
que caracteriza a singularidade e a irre- discriminação racial em um país que, por
peƟbilidade de cada sujeito humano; há mais de trezentos e cinquenta anos foi
ainda quem considera interculturalidade escravista e que há mais de um século
como sinônimo de “mesƟçagem”. negou ser racista. Esperar que um país
O fato é que não há consenso assim consƟtuído tenha receitas pron-
sobre o uso deste ou daquele termo. A tas de combate ao racismo, projetos de
diversidade de perspecƟvas é um dos construção de cidadania, do respeito
traços caracterísƟcos desse movimento. à diferença ou, ainda, que tome como
Daí advém a sua riqueza e também as tarefa prioritária sua a defesa dos direi-
suas dificuldades. Reduzi-los a um único tos consagrados pela consƟtuição e que
código e esquema a ser proposto como são historicamente negados aos Afro-
modelo transferível universalmente é brasileiros é de fato um ingenuidade.
um risco muito grande. O MulƟculturalismo que defende-
O MulƟculturalismo, como todo e mos toma a si essas tarefas, na busca da
qualquer Movimento Social ou Cultural, construção de uma sociedade igualitária
não é monolíƟco, e pode estruturar-se e radicalmente democráƟca em todas
pelo menos de duas formas diferentes. as suas dimensões. É nesse senƟdo que
Na primeira, ele assume uma forma afir- entendemos o mulƟculturalismo e é nes-
maƟva da diversidade cultural, racial ou sa perspecƟva teórica que trabalhamos
de gênero, afirmando uma subjeƟvidade uƟlizando-nos de suas contribuições na
que luta contra a discriminação racial análise das múlƟplas relações que se
enquanto formas de dominação e de ex- estabelecem entre políticas públicas,
clusão. Apresenta projetos alternaƟvos educação (educação entendida em todos
de organização social e por isso mesmo os seus senƟdos) e as relações étnico/
não se isola, não se fecha em si mesmo. raciais brasileiras. Nessa direção, a edu-
Na segunda forma, ele possui uma “face cação como locus privilegiado de for-
guerreira” que, em muita das vezes, mação humana é estratégica enquanto

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campo de luta onde as práƟcas políƟcas pedagógica eficiente ganha dimensão
e ideológicas devem ser consideradas de desafio políƟco-pedagógico. Linhares
na proposição de projetos que visam à (1997) postula que isso equivale a redefi-
transformação desse espaço e de toda nir o papel que escola e professores vêm
a sociedade. Trata-se de um espaço desempenhando, pois a escola
carregado de tensão e de conflito onde
como uma insƟtuição social densa
se trava uma luta coƟdiana contra o ra- de relações educaƟvas onde o ensi-
cismo em todas as suas dimensões e as nar e o aprender pode-se abrir em
desigualdades sociorraciais. caminhos para disƟnguir opressões,
comunicar-se com outras culturas,
2 A formação de professores na ressignificar conhecimentos por
perspectiva de uma educação situá-lo dentro de uma lógica mar-
culturalmente diversificada cada por perspecƟvas do que cons-
Ɵtui problemas para nós, [...] vamos
Formar educadores numa pers- ter que apostar que a fabricação de
pecƟva inter/mulƟcultural significa pre- novos lugares para a escola não po-
pará-los numa perspecƟva diversificada derá dispensar professores e alunos
culturalmente de forma que exercitem [...]. São estes que, [...] irão traduzir
a ação de educar para a convivência os saberes populares em cultura
respeitosa das diferentes subjeƟvidades escolar, acolhendo os desejos dos
trabalhadores, das mulheres, dos
e valores coexistentes em sociedades
negros, de saberes que os fortale-
mulƟculturais e para o respeito à di-
çam (LINHARES, 1997, p. 146).
versidade. Isso não é tarefa fácil, pois
implica uma mudança de aƟtudes e de O surgimento de uma educação em
valores. O reconhecimento do caráter perspecƟva culturalmente diversificada
mulƟcultural da nossa sociedade não nos Estados Unidos se insere na pers-
é o bastante, como também não basta pecƟva mulƟcultural como resultado da
que a escola reconheça que a sua clien- iniciaƟva de pesquisadores e professores
tela é diversificada, seja por gênero, por doutores afro-americanos, “influencia-
classe, por raça e que possuem culturas dos, de início, pelos precursores dos Es-
diferentes. É fundamental que esse re- tudos Negros” e pelo êxito que os Black
conhecimento não seja acompanhado Studies alcançaram nas escolas norte-
por políƟcas de respeito aos diferentes americanas como o demonstram Gonçal-
e por uma mudança de aƟtudes frente ves e Silva (1998). Lá, pesquisadores da
a eles. Sem isso, dificilmente essa escola área de Estudos Sociais como Gwedolin
será capaz de desempenhar seu papel, C. Baker, James A. Banks, Geneva Gay e
de forma democráƟca. Carl A. Grant, associando cultura à idenƟ-
Nesse senƟdo, os processos de for- dade, Formação de Professores e diversi-
mação de professores para uma práƟca dade cultural prescrevem reformulações

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metodológicas e curriculares no senƟdo racial, são desenvolvidas análises das
de se criar uma igualdade de oportuni- características raciais do alunado, de
dade, de rendimento e de progressão suas aƟtudes e das aƟtudes dos mem-
escolar para os alunos, quaisquer que bros de outros grupos étnicos frente aos
sejam sua classe social e seu grupo racial. primeiros, após o que são elaboradas
Dentre outros objeƟvos, essa educação fórmulas ou estratégias que possibilitem
em perspecƟva mulƟcultural se propõe o desenvolvimento de aƟtudes e valores
segundo Banks (1995), a instrumentalizar em uma perspecƟva democráƟca junto
os alunos, possibilitando-lhes construir aos discentes.
“conhecimentos, aƟtudes e habilidades A formação de docentes em uma
necessárias para um agir efeƟvo em uma perspecƟva mulƟcultural era feita atra-
sociedade plural, bem como no interagir, vés de Workshops nos quais os profes-
negociar e comunicar-se com pessoas sores já em exercício travavam contatos
de diferentes grupos” com o objetivo com princípios e orientações de carac-
principal de possibilitar a construção de terísƟca mulƟcultural. Gollnick (1995)
uma sociedade que valorize a diversidade. afirma que, em um momento posterior,
De acordo com esse autor, a refor- os próprios estabelecimentos de ensi-
mulação curricular, na direção de uma no entenderam que uma formação de
educação diversificada culturalmente, professores só poderia ser considerada
deverá passar por quatro momentos saƟsfatória se incluísse conteúdos mul-
diferentes. No primeiro, dar ênfase a Ɵculturais na sua agenda. Nesse senƟdo,
contribuições, heróis e heroínas, fesƟ- Grant e Tate (1995) assinalam o fato de
vidades, alimentação e dados culturais que há cursos de formação de docentes
fundamentais dos diversos grupos ét- que privilegiam o combate aos estere-
nicos. No segundo momento, deve-se óƟpos racistas, classistas ou de gênero,
acrescentar o currículo com conteúdos buscando eliminá-los.
e assuntos que dizem respeito a um Em relação à formação docente,
grupo étnico específico. Em um terceiro outras propostas dizem respeito à pre-
momento, deve-se modificar a própria paração do professor para o trabalho
estrutura curricular possibilitando aos no contexto de um grupo específico.
alunos a análise de fatos, de temas e Nesse caso, o eixo da formação privilegia
a apreensão de conceitos na perspec- a valorização da história desse grupo,
tiva de grupos sociais diversificados. suas lutas e contribuições. Esses autores
No quarto e úlƟmo momento, deve-se afirmam ainda que uma parcela significa-
elaborar o currículo obedecendo-se ao Ɵva de cursos de formação de docentes
objeƟvo principal, qual seja possibilitar entende ser a educação mulƟcultural um
a reflexão e a tomada de decisões e de mecanismo com potencial de promover
soluções de problemas sociais por parte a “igualdade na estrutura social e o plura-
do alunado. No combate ao preconceito lismo cultural”. Para tanto, eles analisam

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as formas pelas quais “as diferenças e 11645/2008, que alteram a redação da
as desigualdades se manifestam” nas Lei de Diretrizes e Bases da Educação
relações sociais; analisam estratégias de Nacional em vigor, a Lei 9.394, de 20 de
aprendizagem parƟculares dos diversos dezembro de 1996, ao tornar obrigatória
grupos sociais e aprendem a uƟlizá-las a inclusão da temáƟca “História e Cultura
com o objeƟvo fundamental de oƟmizar Afro-Brasileira e Indígena” no currículo
a educação do alunado. oficial da Rede de Ensino. O impacto
Diferentemente de um mero exer- dessa alteração será senƟdo na forma-
cício de retórica, as relações que as diver- ção dos professores com a insƟtuição,
sidades de gênero, cultura, raça ou etnia em 2004, das “Diretrizes Curriculares
e de classe estabelecem com a educação Nacionais para a Educação das Relações
e com a formação docente na sua versão Étnico-Raciais e para o Ensino de História
norte-americana, compreende análi- e Cultura Afro-Brasileira e Africana” que
ses teóricas e uma práƟca que buscam preconiza:
modificar as relações de poder naquela Art. 1º A presente resolução insƟtui
sociedade. É uma ação coleƟva empre- Diretrizes Curriculares Nacionais
endida por sujeitos históricos no senƟdo para a Educação das Relações
de reconfigurar toda uma sociedade e de Étnico-Raciais e para o Ensino de
insƟtuí-la em bases mais justas. História e Cultura Afro-Brasileira
Nesse senƟdo, o papel exercido e Africana, a serem observadas
pela educação mulƟcultural escolarizada pelas instituições de ensino, que
reveste-se de importância fundamental, atuam nos níveis e modalidades da
e ela vem se alimentando, em grande Educação Brasileira e, em especial,
parte, das análises acadêmicas desen- por InsƟtuições que desenvolvam
volvidas por professores-pesquisadores programas de formação inicial e
conƟnuada de professores.
afro-americanos que lecionam nas
diferentes universidades daquele país, O primeiro parágrafo desse arƟgo,
preocupados em transformar a lógica e por sua vez, observa que:
a forma pela qual aquela sociedade se § 1º As InsƟtuições de Ensino Supe-
representa a si mesma e aos grupos que rior incluirão nos conteúdos de disci-
a consƟtuem, como bem o demonstram plinas e aƟvidades curriculares dos
Gonçalves e Silva (1998). cursos que ministram, a Educação
No Brasil, esta é uma discussão das Relações Étnico-Raciais, bem
recente e, portanto, ainda em pleno de- como o tratamento de questões e
senvolvimento. Uma intervenção signifi- temáƟcas que dizem respeito aos
afrodescendentes, nos termos expli-
caƟva na direção da formação dos pro-
citados no Parecer CNE/CP 3/2004.
fessores no contexto de uma educação
culturalmente diversificada tem como Conforme preconizado nessas
ponto de parƟda as leis 10.639/2003 e Diretrizes, as Instituições de Ensino

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Superior (IES) deverão contemplar na for- das universidades o cumprimento dessa
mação acadêmica de seus estudantes, em legislação junto às diferentes instâncias
parƟcular os dos cursos de licenciatura acadêmicas, buscando adequar os currí-
plena: (1) a diversidade étnico-racial; (2) culos dos cursos de licenciaturas e de ba-
o respeito às diferenças; (3) novas pers- charelado à referida lei e intervindo, de
pecƟvas na pesquisa acadêmica sobre forma direta, nos processos de formação
relações raciais no Brasil; (3) introdução de professores nos seus aspectos inicial e
da temáƟca africana, afro-brasileira e conƟnuada, bem como nas modalidades
indígena nos currículos para além do presencial e à distância.
eurocentrismo; (4) ampliação da consci-
ência dos educadores de que a questão Considerações finais
étnico-racial não diz respeito apenas ao
negro, e sim a toda a sociedade brasi- Acreditamos que uma educação
leira; e (5) entendimento de que o trato numa perspecƟva intercultural ou mulƟ-
pedagógico e democráƟco da questão cultural aponta para a necessária prepa-
étnico-racial é também um direito. Para ração dos educadores diversificada cul-
tanto, precisam urgentemente repensar turalmente, de forma que estes exerci-
os projetos pedagógicos desses cursos tem a ação de educar para a convivência
com vistas a preparar o futuro professor respeitosa das diferentes subjeƟvidades
para educar numa sociedade diversifica- e valores coexistentes em sociedades
da por gênero, classe social, cultura, raça mulƟculturais e para o respeito à diver-
ou etnia, respeitando as diferenças. sidade com foco privilegiado naqueles
Nesse ambiente insƟtucional, os grupos que foram cultural, econômica
Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e e poliƟcamente marginalizados.
Indígenas (NEABs), têm desempenhado Nessa perspecƟva, a atuação dos
papel significaƟvo e fundamental na im- NEABIs nos processos de formação
plementação dessa Lei. Uma formação de professores os insƟtui como atores
na perspecƟva culturalmente diversifi- fundamentais nos processos de “des-
cada se consƟtui importante demanda
apenas daqueles os grupos étnico-raciais
dos brasileiros, segundo o site da Associação
e sociais alocados em posição de subal- Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN): Bra-
ternidade e que desejam romper com sília (1), Goiás (2), Mato Grosso (3), Mato Grosso
essa situação. Enquanto atores sócio- do Sul (2), Amapá (1), Pará (2), TocanƟns (1),
históricos, esses Núcleos espalhados por Alagoas (2), Bahia (8), Ceará (2), Maranhão (2),
Paraíba (1), Pernambuco (4), Piauí (2), Rio Grande
várias IES na maioria dos estados brasilei-
do Norte (1), Sergipe (1), Paraná (6), Rio Grande
ros1 demandam fortemente e de dentro do Sul (6), Santa Catarina (5), Espírito Santo
(2), Minas Gerais (10), Rio de Janeiro (11), São
Paulo (7). Ver <hƩp://www.abpn.org.b/neabs/
1
Os 82 Neabs estão distribuídos pelos esta- pagina_principal>. Acesso em 27 jun. 2012.

116 Ahyas SISS; Otair FERNANDES. Formação de professores na perspecƟva de uma educação...
construção das desigualdades sociais universidade, por sua vez, exige-se a
e étnico-raciais que contribuem para elaboração de programas de formação
exclusão de grande parcela da população conƟnuada que possibilitem o desen-
afro-descendente dos bens construídos volvimento e a qualificação profissional
socialmente” e entre eles certamente desses professores, em uma dimensão
está a educação. Esses Núcleos têm con- permanente, possibilitando-lhes perce-
tribuído para formar uma novo perfil de ber e decodificar os estereóƟpos racistas
intelectualidade negra cujos trabalhos antinegros e anti-indígenas veicula-
apontam para “uma possível inflexão dos pelos diversos materiais didáƟcos
para melhor compreender as relações colocados à sua disposição e a poder
raciais no contexto das desigualdades desmisƟficar valores parƟculares que
sociorraciais e maior seriedade desta os currículos escolares muitas das vezes
temáƟca nas pesquisas acadêmicas e tentam tornar gerais ou hegemônicos,
oficiais”. Se por um lado, a inserção dos bem como desmascarar a sobrevida do
diferentes grupos étnico-raciais nas uni- mito da democracia racial que ainda se
versidades brasileiras resulta da pressão faz presente hoje e atua com relaƟva in-
dos movimentos sociais de caráter iden- tensidade na maior parte dos currículos
Ɵtário e os seus sujeitos sobre o campo dos Cursos de Graduação das universi-
da produção acadêmica (negros, indíge- dades brasileiras e que se materializa na
nas, mulheres, homossexuais, outros), práƟca docente.
por outro esta inserção tem significado EnfaƟzamos que a formação inicial
uma mudança do olhar da ciência sobre e conƟnuada de professores é um ele-
a realidade brasileira (GOMES, 2010). mento fundamental para a desconstru-
Sabemos que a formação conƟ- ção das desigualdades sociais e étnico-
nuada é um direito do professor e que raciais que contribuem para exclusão de
esse processo formaƟvo coloca algumas grande parcela da população indígena
exigências para esses profissionais, tais e Afro-brasileira dos bens construídos
como disponibilidade para aprendiza- socialmente. Ela é, seguramente, um
gem e vontade de aprender a aprender, dos caminhos possíveis para se realizar
dentre outras. Da instituição escolar, um trabalho educativo que dê conta
por outro lado, requer-se que sejam dessas complexas questões relações
criadas alternaƟvas, ou condições, que étnico-raciais e que oferece, ainda, im-
propiciem a esses profissionais a conƟ- portantes contribuições no processo de
nuidade de seu processo formaƟvo. Se (des)construção do racismo em nossa
a formação de professores é dever do sociedade através do quesƟonamento
Estado e tarefa da Universidade exige-se, do preconceito e da discriminação, ain-
do Estado, a formulação e implementa- da tão presentes em nossa sociedade e,
ção de políƟcas públicas voltadas para portanto, em nossas escolas, apesar dos
a qualificação desses profissionais. Da discursos em contrário.

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Daí decorrem alguns imperaƟvos vêm sendo historicamente relegados a
como, por exemplo, a garanƟa da in- segundo plano de importância, ou sendo
serção de jovens e adultos negros e in- tratados de forma ơmida pelas agências
dígenas nas universidades; assegurar-se de fomento e apoio a pesquisas acadê-
a qualidade de ensino e a adoção de pe- micas o que, sem dúvida, não concorre
dagogias interétnicas, interraciais e não para a potencialização das pesquisas
sexistas no sistema educacional, além da que se situam no campo da Educação
adoção de tratamento preferencial, nas das Relações Étnico-Raciais (Erer´s) e nas
políƟcas de apoio à pesquisa cienơfica e fronteiras étnico-culturais e da exclusão
tecnológica, a projetos inseridos no cam- dos direitos da cidadania.
po das relações étnico-raciais, os quais

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Recebido em fevereiro de 2014


Aprovado para publicação em abril de 2014

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