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Culturas indígenas e afro-brasileiras no cotidiano escolar brasileiro,


uma reflexão sobre a educação multicultural na escola.

Autora: NELI GOMES DA ROCHA1

RESUMO

A centralidade dada aqui versa sobre caminhos e possibilidades de se identificar


lacunas na forma de condução das práticas pedagógicas que primam pela
diversidade e também de se concretizar ações na direção de uma Educação
Multicultural com ênfase nas Relações Étnico-raciais (afro-brasileiras e indígenas) no
âmbito das políticas, processos e práticas na instituição escolar. Considerando os
dois importantes marcos legais com a aprovação, em 2003, da Lei 10.639/2003 e,
em 2008, a Lei 11.645/08, que reconduzem procedimentos pedagógicos da LDB em
todos os níveis da Educação Nacional visando implantar a obrigatoriedade do ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígenas nas instituições
educacionais em todos os níveis de ensino.

Palavras-chave: multiculturalismo, espaço escolar, educação multicultural.

1. Introdução

A questão do multiculturalismo tem sido pontuada nas últimas duas décadas


de forma contínua e crescente, muito por fruto das movimentações sociais tanto de
base na pauta afro-brasileira quanto na perspectiva das culturas indígenas do Brasil.
O espaço escolar tem sido pautado de diferentes maneiras visando a melhoria na
tratativa com a comunidade escolar e são várias as frentes de interesse que transitam
desde a demanda orçamentária até a composição do currículo.
Ao pensarmos as diversidades na comunidade escolar, podemos partir da
questão da regionalidade (dada a extensão territorial brasileira) até as marcas
culturais expressas nos hábitos e modos de vida que tangenciam a rotina escolar.
Mesmo a questão da língua falada em interlocução com a língua escrita é um desafio
constante. As culturas dos povos indígenas, por exemplo, ainda são pungentes nesse
sentido e configuram um significativo desafio aos profissionais da educação em

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Neli Gomes da Rocha, natural de Teresina/PI. Reside em Curitiba/PR desde 2000. Graduada em
Ciências Sociais UFPR (Bacharelado e Licenciatura), Mestra em Sociologia pela UFPR e Doutoranda
em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Docente Conteudista em Instituições de
Ensino Superior – IES com ênfase nas temáticas Diversidade, Raça, Gênero, Estética e
Multiculturalismo. Pesquisadora da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN.
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compreender essa diversidade como riqueza cultural e não como um peso na rotina
de trabalho. Em pé de igualdade estão os desafios apresentados na tentativa de
equalizar práticas pedagógicas multiculturais sem cair na cilada da estereotipia,
como podemos perceber em determinadas ações realizadas em datas
comemorativas, a exemplo do Dia do Índio em 14 de abril ou do Dia da Consciência
Negra em 20 de novembro, especialmente nos anos iniciais.
Agir de forma multicultural no espaço escolar exige trabalho e dedicação, além
de estudo e formação continuada, assim como a necessária produção de material
pedagógico adaptado aos elementos culturais e a sensibilidade por parte da
comunidade escolar em abordar a temática com empatia e profissionalismo. Os
desafios são significativos e a legislação se impõe como mecanismo legal para sua
efetivação nos mais diferentes contextos sociais.
A reflexão teórica ecoa para outras dimensões do social, chega aos espaços
políticos, legislativos e ganha efetivação na forma de leis. Ao chegar aos espaços
escolares, a efetividade das leis adquire outro patamar, pois passa a interferir na vida
das pessoas. Vimos dois exemplos, a Lei n. 10.639/2003 e a Lei n. 11.645/2008, e
chegando ao cotidiano, isso afeta muito além do conteúdo programático. Nesse
sentido, você já parou para pensar sobre os hábitos de vida que temos na realidade
brasileira? Quais são de origem indígena e africana?
A valorização dessa multiplicidade de expressões está presente em nossa
Constituição de forma mais explicita a partir de 1988, conhecida com a Constituição
Cidadã. A Carta Magna do Brasil reafirma direitos de povos originários e seu direito
à terra, assim como em relação aos povos descendentes de africanos, como os
povos quilombolas. Essas duas matrizes culturais, indígena e africana, ao lado da
cultura portuguesa forjam o povo brasileiro, como apontam as intelectualidades do
pensamento social brasileiro, nomes como Gilberto Freire, Florestan Fernandes,
Lélia Gonzalez, Clóvis Moura, Ailton Krenak, Beatriz Nascimento, Kabengele
Munanga, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva.

2. Educação multicultural na escola

A visão multicultural no espaço escolar denota muito mais que a verbalização


por mudança, é urgente ter ações efetivas de enfrentamento ao silêncio diante das
denúncias de desrespeito à diversidade, aliadas às práticas pedagógicas nos mais
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diferentes campos e disciplinas. O pesquisador Stuart Hall entende e define o


multiculturalismo da seguinte maneira:

O termo multiculturalismo é substantivo. Refere-se às estratégias e políticas


adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e
multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais. É usualmente
utilizado no singular, significando a filosofia específica ou a doutrina que
sustenta as estratégias multiculturais. (HALL, 2006, p. 50)

Importante enfatizar que não se trata meramente do conteúdo ministrado na


disciplina de História, mas isso pode e deve ser introduzido de modo transversal em
toda área de conhecimento, ou seja, da Matemática ao Ensino Religioso. O desafio
que se apresenta é adaptar o conteúdo indicado nos planos de aulas aos contextos
culturais em sua gama de simbologias e códigos próprios. Nesse sentido, segundo
Moreira (2001), quando refletimos sobre uma sociedade mais multicultural, estamos
promovendo “pluralidade de culturas, etnias, religiões, visões de mundo e outras
dimensões das identidades infiltra-se, cada vez mais, nos diversos campos da vida
contemporânea” (MOREIRA, 2001, p. 41)
Hábitos de vida como a rotina alimentar, modos de dormir e vestir, formas de
tratamento interpessoal construídas nos espaços familiares e as relações de trabalho
no espaço público e doméstico podem ser incorporados à rotina escolar como
mecanismo de reconhecimento da cultura produzida em torno do espaço escolar.
Para Silva (2007), é significativo entender que “o multiculturalismo faz referência à
diversidade cultural distribuídas aos estudos voltados para as diferentes culturas, que
estão espalhadas nas cinco regiões do Brasil, cada uma com suas particularidades
e especificidades”. O processo de ensino-aprendizagem sob a ótica multicultural
prima pela escuta e visa mitigar conflitos e desigualdades simbólicas especialmente
entre público historicamente tratado com invisibilidade e silenciamento.

3. Práticas docentes sob a vertente intercultural

Aos profissionais da educação, conciliar a carga de atividades já existentes


associadas às novas demandas multiculturais pode ser visto como “mais trabalho” e,
na verdade, o que merece nossa atenção é refletir sobre formas de articulação do
conteúdo ministrado com os saberes e fazeres de outras matrizes culturais, como
aquelas inspiradas nas matrizes indígenas e afro-brasileiras. A questão central é:
como podemos ser agentes dessa mudança de comportamento nos espaços
escolares em que atuamos? A pergunta pontuada é de suma importância quando a
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motivação pela transformação social é aliada ao trabalho multidisciplinar. Segundo


Moreira e Candau (2003), “a formação multicultural deve ajudar os professores a
desenvolverem uma nova identidade, uma nova postura, assim como novos saberes,
novos objetivos, novos conteúdos, novas estratégias e novas formas de avaliação”
(MOREIRA; CANDAU 2003, p. 157)
Podemos pensar na forma como nos alimentamos, nas palavras e termos
usuais que dizemos, nos utensílios de nossas casas, na relação com a saúde ao
utilizar os saberes do meio vegetal e animal. Para exemplificar: o consumo de
alimentos feitos à base da planta mandioca, como a farinha, o beju, a tapioca; os
nomes de cidades, como Arapongas/PR, que tem origem no Tupi uirá'ponga, que faz
referência ao pássaro e significa uirá: “pássaro, ave” + pong': “soar, fazer ruído”; a
rede como utensílio de descanso presente em muitos lares por todo Brasil; as plantas
para cura de enfermidades, como a Aloe vera (a babosa), o rícinos (a mamona) e o
urucum, todos encontrados nos quintais e fruto da sabedoria popular indígenas e
afro-brasileiras.
Cada exemplo citado está presente de alguma forma nos hábitos cotidianos
do brasileiro, que estão fortemente ligados ao modo de vida ancestral de origem
indígena e africana, ainda que você não tenha a real consciência disso. Todas essas
dimensões do social podem ser acionadas como importantes atividades formativas
nos espaços educacionais e culturais. Nas aulas de Geografia, de Ciências, de
Matemática, e não apenas no ensino de História ou Artes.

3.1 Educação pluriétnica entre os povos indígenas do Brasil

Você pode estar se perguntando: o que é importante saber sobre os povos


indígenas de hoje? Mas a cultura dos povos indígenas não é toda igual? Qual a
necessidade de se estudar os povos indígenas na atualidade? Devemos deixar
explícito que a intencionalidade aqui é possibilitar a reflexão crítica enquanto
profissionais no campo educacional em todos os níveis – da educação infantil ao
ensino superior – e a importância em adquirir mais ferramentas de diálogo em
qualquer ambiente profissional.
Na obra O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas
no Brasil de hoje, publicada em 2006 e organizada pelo intelectual indígena Gersem
dos Santos Luciano – Baniwa, primeiro indígena Mestre em Antropologia Social no
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Brasil e representante indígena no Conselho Nacional de Educação, teremos a visão


orgânica do intelectual indígena Baniwa que esse momento permite. Segundo
Luciano (2006):

Este livro é uma tentativa de abordar questões que envolvem


autoidentificação, autoestima, autorepresentação e autoprojeção dos índios
diante de si mesmos e da sociedade de uma maneira geral. As ideias estão
baseadas na experiência de vida e de trabalho junto a centenas de lideranças,
comunidades e povos indígenas com os quais tive a oportunidade e o
privilégio de partilhar desafios e conquistas, tristezas e alegrias, derrotas e
vitórias, como foram as importantes conquistas relativas aos direitos
indígenas na Constituição Brasileira em vigor (LUCIANO, 2006, p. 19)

Inspirados nesse propósito, a reflexão aqui posta versa sobre possibilidade de


aproximação com as culturas autóctones dos povos indígenas do Brasil de modo
digno e na medida que merece, partindo sempre das narrativas da intelectualidade
indígena que nas últimas décadas estão recebendo visibilidade e reconhecimento.
Nesse sentido, pensamos que há, sim, uma longa e resiliente produção de narrativas
e expressividade. Encontramos reflexões como a seguinte passagem, na qual
Luciano (2006) nos explica:

É importante destacar que quando estamos falando de identidade


indígena não estamos dizendo que exista uma identidade indígena genérica
de fato, estamos falando de uma identidade política simbólica que articula,
visibiliza e acentua as identidades étnicas de fato, ou seja, as que são
específicas, como a identidade baniwa, a guarani, a terena, a yanomami, e
assim por diante. De fato não existe um índio genérico, como já dissemos
no início deste livro. Talvez exista no imaginário popular, fruto do preconceito
de que índio é tudo igual, servindo para diminuir o valor e a riqueza da
diversidade cultural dos povos nativos e originários da América continental.
(LUCIANO, 2006, p. 40)

Abordar a identidade indígena nos leva a pensar nas pluralidades, nas redes
de relações culturais e na teia de visões de mundo com a complexidade que lhe é
peculiar. O fazer diário já configura diferentes espaços de ensino-aprendizagem
desde a mais tenra idade. Não há mais espaço para generalizações puramente
conceituais como muito foi feito com os povos originários das Américas. Um ponto
que merece destaque é trazer a relação com a natureza como elemento central,
observando que as fases da natureza se consroem também o ritmo de vida das
comunidades. Nesse sentido, Luciano (2006) expõe:

Essa diversidade cultural dos povos indígenas demonstra a multiplicidade


de povos e das suas relações com o meio ambiente, com o meio mítico
religioso e a variação de tipos de organizações sociais, políticas e
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econômicas, de produção de material e de hábitos cotidianos de vida. Pode-


se afirmar que os modos de vida dos povos indígenas variam de povo
para povo conforme o tipo de relações que é estabelecido com o meio natural
e o sobrenatural. (LUCIANO, 2006, p. 44)

A dinâmica das terras indígenas é acompanhada por todas as pessoas, de


crianças a idosos, e a transmissão de conhecimento é efetuada pela oralidade,
acionado as memórias dos “antigos” e rememorando formas de se relacionar com a
natureza. Atualmente, com a ampliação dos espaços educacionais formais, inclusive
inseridos em territórios indígenas, há muita preocupação com a continuidade de
traços culturais, que são rompidos com a forma como o ensino escolar é sedimentado
na realidade brasileira. A convivência adquire outra desenvoltura, mais fragmentada
em áreas dos conhecimentos programáticos e não com a forma orgânica de se
ensinar pela experiência.
Entre os povos Juma, Akuntsu, Xetá, Avá-Canoeiro, Aricapú, Kulina e
Karipuna podem existir muitas divergências, porém, de ponto de vista geral, o modo
de vida indígena estabelece alguns pilares definidores de autorrepresentação e
autoimagem indígena. A relação com a musicalidade, a dança, a alimentação, os
ritos de seu grupo para se tornar um homem ou uma mulher são alguns marcadores
sociais importantes. Segundo Luciano (2006):

A língua indígena é um elemento cultural importante para a autoestima


e a afirmação identitária do grupo étnico, ao lado de outros elementos
culturais, como a relação com a terra, a ancestralidade cosmológica, as
tradições culturais, os rituais e as cerimônias. [...] Como as línguas indígenas
são orais, fundamentalmente são transmitidas de geração para geração, o
que aumenta o apego dos povos às suas línguas próprias. Os nomes e os
sobrenomes tradicionais, por exemplo, servem para firmar a autoidentidade e
marcar a posição social que o indivíduo ocupa na organização sociopolítica
do seu grupo. (LUCIANO, 2006, p. 123-124)

Nesse sentido, a manutenção do vínculo do grupo com seu território é


fundamental. Viver em comunidade é partilhar comportamentos, ser colocado em
um mundo simbólico desde a infância. O contexto será alterado quando chegar a
idade de acessar o ensino formal, as escolas indígenas têm impulsionado a saída
dos jovens indígenas e inserido outra dinâmica de educação para as crianças
indígenas. No ambiente escolar, com a figura do profissional de educação não
indígena, hábitos são alterados e a convivência com a própria cultura estará limitada
aos espaços domésticos em horários determinados, interferindo diretamente na
dinâmica do grupo, com efeitos diretos na forma de se relacionar com a comunidade,
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inserindo, por exemplo, a questão das tecnologias cada vez mais presentes na vida
das pessoas. Segundo Luciano (2006):

A vida indígena é um todo integrado e articulado. Cada povo tem o


direito de decidir se acessa as novas tecnologias ou não, e em que
condições e perspectivas quer fazê-lo. Neste sentido, é impressionante ver
como os índios Yanomami, que têm menos de 50 anos de contato permanente
com outras populações, já estão se apropriando do computador e da
internet para fortalecer tradições e conhecimentos, além de defenderem os
seus direitos, enquanto outros povos, com mais de cinco séculos de
contato, não dão importância a esses recursos. (LUCIANO, 2006, p. 123)

Por outro lado, o acesso à educação formal tem ampliado a entrada no ensino
superior e nas escolas técnicas. Gradualmente, gerações são formadas em cursos
como Pedagogia, Enfermagem, Direito, Medicina e Comunicação Social. São
conquistas que, embora individuais, também são coletivas.

Saiba mais
Indicamos que o material a seguir seja acessado e consultado para maior
aprofundamento do tema, sustentado a partir das narrativas de representantes
indígenas, expressando suas visões de mundo. Um exemplo é a fala de Jacira,
uma mulher Kangwaá, da terra Indígena Bananal/SP: “Eu sou povo vivo, minha
cultura permanece. [...] Enquanto houver um indígena vai haver cultura, vai haver
canto, vai haver espiritualidade e com certeza natureza” (Jacira, mulher Kangwaá).

CINEDOC BRASIL. Kangwaá – Cantando para Nhanderú – Índios Tupi Guarani.


2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6poEuFqAe8E>.
Acesso em: 18 ago. 2023.

COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO – CPI/SP. Terra Indígena Bananal (Peruíbe). Disponível


em: <https://cpisp.org.br/wp-content/uploads/2016/12/TI_Bananal.jpg>. Acesso
em: 18 ago. 2023.

3.2 A Diáspora Africana e o multiculturalismo

Angolas, Congos, Benguelas, Cabindas, Moçambiques são alguns dos grupos


africanos que desembarcaram em terras brasileiras ao longo de pouco mais de três
séculos, na chegada forçada às Américas que inseriu muitos povos africanos na
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realidade brasileira, e apesar dos pesares foram esses povos que permitiram a
continuidade de elementos culturais de matrizes africanas pela inevitável adaptação
ao contexto social, geográfico e cultural. Essa faceta multirracial do Brasil é celebrada
mundo afora e está presente na produção intelectual dos pensadores e literatos.
Também se apresenta em dados sociais de intensa desigualdade.
Importante ressaltar que nem a dominação física nem a dominação simbólica
anularam ou deixaram cair no esquecimento a riqueza cultural oriunda do contexto
cultural africano existente em terras das Américas e Caribe. Nosso propósito aqui é
apontar conceitos de grande importância para o entendimento das culturas negras
do Brasil.
O conceito de identidade em relação ao território aponta tensionamentos
pertinentes para nossa reflexão. Segundo Munanga (2012):

A terra e os territórios quilombolas devem ser entendidos como constitutivos


identitários comuns para todas essas comunidades. São a terra e os territórios
que constroem o vínculo vital entre eles e seus antepassados que habitaram
e morreram nessa terra da qual depende a sobrevivência individual e coletiva.
Se perderem a terra e seus territórios, essas comunidades deixarão de existir
enquanto comunidades quilombolas. Suas histórias, culturas, visões do
mundo, cosmogonias e religiões fora desse patrimônio social e, portanto,
inalienável, deixarão também de existir. A terra e o território são como o corpo
individual e social que serve de suporte material para todas as nossas
identidades, até intelectuais. Da mesma maneira que a negritude é um fator
constitutivo da identidade coletiva negra por causa da história que os
portadores da cor negra sofreram na história da humanidade, os territórios e
as terras quilombolas constituem a “alma” de sua identidade, sem a qual eles
deixarão de existir ontologicamente. (MUNANGA, 2012, p. 19)

Tal qual ocorrido com as culturas indígenas, alguns elementos culturais foram
(e são) fundamentais para o longo processo de resiliência das populações negras do
Brasil. Inúmeros são os legados afro-brasileiros que permeiam nosso cotidiano,
muitas vezes sem nem percebermos. Façamos um rápido exercício. Você
certamente já saboreou uma feijoada, não é? Ou mesmo já ouviu falar em alimentos
que recebem o óleo de dendê, a exemplo do acarajé? Em algum momento, já ouviu
os toques musicais com tambores? Ou já recebeu um cafuné, que é uma carícia com
as mãos nos cabelos? Para todas as opções, o forte elo com as culturas africanas
presentes nos trópicos, por exemplo, é de origem iorubana, como o akarà-jẹ, que é
o bolinho de feijão fradinho com camarão muito consumido na Bahia.
Nosso propósito agora é a aproximação com alguns legados que são
inspirados nas culturais africanas, porém, genuinamente brasileiros. A capoeira é um
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deles, com seus movimentos corporais híbridos que transitam entre os espaços: dos
jogos, das lutas marcial e das danças. Repreendida intensamente em tempos
coloniais, ela se ramificou por todo o território brasileiro de Norte a Sul com a ginga
que lhe é peculiar. Os mestres de capoeira recebem hoje o reconhecimento como
guardiões dessa técnica como patrimônio imaterial, envolvendo muito além do corpo
de quem joga e abarcando a construção de instrumentos musicais como o berimbau.
Ao olharmos para os espaços educacionais, não raro a capoeira está presente
nos mais diversos contextos na forma de ação pedagógica de implementação da Lei
n. 10.639/2003. E podemos associar a prática da capoeira ao conceito de Diáspora
Africana, como bem pontua Stuart Hall (2015): “um sistema de representação
cultural” e “as identidades nacionais não são coisas com as quais nascemos, mas
são formadas e transformadas no interior da representação” (Hall, 2015, p. 30).
Assim, apresentamos a perspectiva da experiência da Diáspora como forma de
reconhecimento de toda a diversidade que abarca a concepção de identidade.
Tal qual a cultura afro-brasileira, as culturas indígenas possuem diferentes
formas de danças e jogos corporais próprios de suas realidades. Citamos dois
exemplos: o povo Kyikatêjê/Parakatêyes, da região do Pará, pratica o Aipenkuit, e os
Karajás praticam o Idjassú. Assim como os povos indígenas Xinguanos, Bakairis,
Huka Hukas e Xavantes, do Mato Grosso.
Para cada uma dessas perspectivas, há possiblidade de sensibilização para a
abordagem da temática. Segundo Trindade (2006), “ao redescobrirmos os valores
civilizatórios afro-brasileiros, podemos compreender que vivemos embates terríveis,
sociais e históricos [...] Outros modos de ser, fazer, brincar e interagir existem”
(TRINDADE, 2006, p. 30). Para a intelectual Azoilda Loretto da Trindade, é de suma
importância a utilização de “armas da sedução” para o exercício de convencimento
dos profissionais da educação como mote para a implementação da legislação
anteriormente mencionada.
Para as matrizes dos povos indígenas e africanos, podemos indicar
aproximações entre os chamados “valores civilizatórios”, como circularidade,
religiosidade, corporeidade, musicalidade, memória, ancestralidade, cooperativismo,
oralidade, energia vital e ludicidade (TRINDADE, 2000).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desconhecimento sobre as culturas de matrizes africanas e indígenas ainda


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é realidade no Brasil, com acesso ainda limitado aos conhecimentos produzidos para
além da lógica eurocentrada. A língua é um marcador social importante e falar
português atualmente coloca o indivíduo em um cenário de reconfiguração do uso da
própria língua e seu lócus original. A diversidade de línguas de base oral africanas e
indígenas é uma realidade e, resilientes, elas não se deixam cair no esquecimento.
Nosso foco nesse momento foi apresentar reflexões de intelectuais indígenas
e afro-brasileiros contemporâneos, com o objetivo de aproximação das temáticas que
têm inquietado campos complexos da cultura e do sagrado, mas também reforçar a
importância de sensibilização com as temáticas aqui apresentadas. A diversidade
cultural é um importante legado que sustenta nossas identidades e deve receber a
devida visibilidade e reconhecimento.
Cabe mencionar, ainda, o quanto é desafiador esse propósito que exige
esforço contínuo de alteridade e respeito. Para isso, é necessário ter a leitura atenta
e a escuta aguçada, como formas de maior e melhor entendimento das expressões
humanas que são múltiplas e refletem o quanto precisamos olhar para dentro e
reconhecer o nosso papel em todo esse contexto. Considerando que há muito tempo
o silêncio foi a regra e, agora, temos a oportunidade de reconhecer em nossas
trajetórias tais legados.
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5. FONTES

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