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XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

POVOS INDÍGENAS, CONHECIMENTOS TRADICIONAIS E DIÁLOGO


DE SABERES NAS INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO SUPERIOR:
DESAFIOS PARA UNS E OUTROS

“A epistemologia é toda a noção ou idéia, reflectida ou não,


sobre as condições do que conta como conhecimento”.
Boaventura Sousa Santos
BRAND, Antonio J. (UCDB)
CALDERONI, Valéria A. M. de Oliveira (UCDB)
Resumo: O texto traz uma reflexão sobre conhecimentos tradicionais indígenas e
enfatiza a necessidade de um diálogo de saberes nas práticas de ensino nas Instituições
de Educação Superior, IES. Tem como objetivo abordar os desafios de caráter
epistemológico postos pela presença desses outros, os indígenas, nos espaços
acadêmicos partindo da premissa que suas expectativas e demandas não se restringem
aos contornos já previstos pelos programas de inclusão de setores socialmente excluídos
das universidades. Como procedimento técnico-metodológico recorreu-se a
levantamentos, discussões e acompanhamento de acadêmicos indígenas em suas
trajetórias nas IES, através do projeto Rede de Saberes. O trabalho ancora-se em leituras
de teóricos pós-coloniais e nos estudos culturalistas, tendo como referência a discussão
de temas como conhecimentos tradicionais indígenas, IES, conhecimentos ocidentais,
entre outros. Na construção desta pesquisa acolheu-se a compreensão de que o mundo
não é de um único jeito, somos múltiplos, com visões de mundo distintas, que se
traduzem em epistemologias também distintas. Para que as visões de mundo e as lógicas
de construção de conhecimento dos acadêmicos indígenas possam ser acolhidas nas IES
entendemos ser necessário promover debates em torno desse tema, tendo em vista o
diálogo entre os seus conhecimentos e os conhecimentos ocidentais, para além da
ciência e da técnica que envolve as práticas de ensinar. Entendemos ser essa, também,
uma possibilidade de explicitar as tensões entre regulação e emancipação presente nas
práticas de ensino, além de nos proporcionar um alargamento de nossa compreensão de
mundo.
PALAVRAS-CHAVE: conhecimentos tradicionais indígenas, IES, conhecimentos
ocidentais.

Introdução

Crescem em todo o país as demandas dos povos indígenas por acesso às


Universidades e, de outra parte, mais recentemente, cada vez mais universidades
estruturam iniciativas que objetivam facilitar esse acesso, inseridas, normalmente, em
propostas mais abrangentes através da reserva de cotas para alunos de escolas públicas.
Segundo levantamentos do projeto Rede de Saberes – um projeto de apoio aos
acadêmicos índios nas Universidades, em MS, ainda em andamento, temos em torno de
250 acadêmicos indígenas, em dois cursos de licenciatura específica e aproximadamente
outros 500 acadêmicos em outros cursos regulares.

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A presença de indígenas em espaços acadêmicos é certamente um fenômeno


recente e que deve ser situado no âmbito das profundas mudanças nas relações
desses povos com o Estado e com a sociedade brasileira, decorrentes do novo
paradigma legal definido pela Constituição de 1988, que deslocou, radicalmente, a
perspectiva histórica da integração, que marcou a trajetória do povos indígenas, no
Brasil, até o presente e conferiu às “minorias” o direito à diferença cultural em nosso
país. No caso de MS, devem ser considerados, também, os profundos impasses
verificados nos processos relativos à recuperação dos territórios tradicionais e que
acabam impulsionando os jovens para a busca de espaços no entorno regional.

São povos com saberes e processos sociais e históricos profundamente


diferenciados e que trazem em comum, também, uma longa trajetória marcada pela
“pasada y presente subalternizacion de pueblos, lenguajes y conocimientos” (Walsh,
2007, p. 51). Não se trata, portanto, da inclusão desse outro, no caso os acadêmicos
indígenas, no nosso, em especial, em nossas lógicas de produção e reprodução de saber,
mas, de abrir espaços de diálogo em que suas linguagens e seus processos de produção
de saber possam ser igualmente, legitimados nas Instituições de Ensino Superior. Mas,
para isso será necessário questionar, também, a subalternização historicamente imposta
a esses povos.

No presente artigo pretende-se abordar os desafios de caráter epistemológico


postos pela presença desse outro, o indígena, nos espaços acadêmicos, partindo da
premissa que suas expectativas e demandas não se restringem aos contornos já previstos
pelos programas de inclusão de setores socialmente excluídos das Universidades,
atualmente em andamento. Esses outros, no caso, acadêmicos indígenas, são
constituidores de conhecimentos e/ou saberes construídos a partir de outras visões de
mundo, em especial, de outro entendimento sobre o espaço do homem no contexto dos
demais seres que compõem o universo.

Ao contrário do pensamento ocidental, os povos indígenas entendem que


homens, plantas e animais integram o mesmo mundo, distinguindo-se dos primeiros, em
muitos casos, apenas “pela diversidade de aparências e pela falta de linguagem
(Carneiro, 1987, p. 56 e Descola, 1988, p. 132), exigindo a superação da concepção
dualista e hierarquizada, que orienta a visão ocidental e cristã de mundo. Para Descola
(1988, p. 132), os conceitos que vêm da tradição grega sempre levam a ver na natureza

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uma “realidad exterior al hombre que éste ordena, transforma y transfigura”. Para os
povos indígenas, essas diversas realidades interagem e se inter-comunicam
constantemente.

São visões de mundo distintas, que se traduzem em epistemologias também


distintas. Ou como afirma Sahlins (1990), culturas distintas apresentam, também,
distintas historicidades. Há, por isso, diversos desafios a serem problematizados que
dizem respeito à dificuldade de diálogo com essas historicidades distintas, que remete,
diretamente para a persistência de relações de colonialidade, que seguem condicionando
e impedindo o diálogo e a legitimação dessas outras epistemologias. Essas são as
principais questões desse trabalho, que se inspira nos teóricos pós-coloniais e nos
estudos culturalistas, entendendo que estes permitem outras práticas e interpretações
daquelas dominantes e ocidentalizadas, importantes para a discussão do presente.

Tendo como referência levantamentos, discussões e o acompanhamento de


acadêmicos indígenas em suas trajetórias nas Instituições de Ensino Superior, através do
Rede de Saberes - e apoiado em autores como Walsh (2007, 2009), Santos (2005),
Bhabha (2003), Mato (2009), entre outros, e no que Hall (1997) entende por
centralidade da cultura, são de diversas ordens as ambivalências e os desafios postos
pela exigência de diálogo entre os conhecimentos dos acadêmicos indígenas e o já
estabelecido nas Universidades, no caso os saberes ocidentais.

Ao dar “centralidade” à cultura (Hall, 1997), argumenta que esta é constituidora


de todos os aspectos da vida social. O autor afirma “[...] que não é que ‘tudo é cultura’,
mas que toda prática social depende e tem relação com o significado:
conseqüentemente, que a cultura é uma das condições constitutivas de existência dessa
prática, que toda prática social tem dimensão cultural” (HALL, 1997, p.33). Este
entendimento ajuda-nos a pensar sobre conhecimentos e práticas de ensino nas IES,
levando-nos a compreensão de que estes devem ser pensados na relação histórica, social
e cultural.

Isso implica em repensar como se deram na América, os processos de


colonização, que deslegitimizaram e subalternizaram povos e conhecimentos, impondo-
lhes uma forma de saber, a européia, colocada como universal. Não se trata de uma
questão cronológica, pois, certamente, a América hoje não é mais colônia da Europa,
mas sim de uma revisão epistêmica, que passa pelo questionamento das relações de
poder, que seguem caracterizadamente coloniais.

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Portanto, se o desafio posto é “trazer o direito das diferentes formas de


conhecimento a uma existência sem marginalização ou subalternidade por parte da
ciência oficial” (SANTOS, 2005, p. 30), ou, ainda, dar voz a “culturas negadas e
silenciadas” (SANTOMÉ, 1995), historicamente, não bastam, certamente, mecanismos
facilitadores para o ingresso dos acadêmicos índios, ou, em outros termos, programas
que objetivem “ampliar” o acesso ao “saber moderno”, mantendo a “subalternidade”
acima referida (SANTOS, 2005, p. 35).

Os povos indígenas em busca das IES – deslocamentos necessários


Verificamos, no aspecto legal, importantes deslocamentos na abordagem da
diferença, nesse caso, da diferença que marca os povos indígenas no Brasil, que devem
ser atribuídos em especial à luta cada vez mais organizada dos povos indígenas, que
adquiriram significativa visibilidade no cenário nacional e mundial, criando centenas de
organizações indígenas e ocupando um crescente número de espaços nas administrações
públicas, locais, regionais e nacionais (BRAND, 2011).

Esses deslocamentos ou avanços verificaram-se, em especial, no campo da


educação escolar, no qual, por força do que vem disposto na mesma Constituição
Federal, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB/96, e na Resolução nº
3/99, do Conselho Nacional de Educação, fixando diretrizes e prevendo normas e
ordenamentos jurídicos próprios para as escolas indígenas. No entanto, tanto a LDB/96
como os demais documentos legais desse período não fazem referência ao acesso e à
permanência de estudantes indígenas no ensino superior público e, segundo Amaral
(2010, p. 87), muito menos ainda à oferta de um ensino superior diferenciado.

Com relação à educação superior, o documento mais relevante advindo dos


povos indígenas é, certamente, o da I Conferência Nacional de Educação Escolar
Indígena, I CONEEI, realizada em Luziânia, Goiás, em 2009, sob a responsabilidade do
MEC, em parceria com a Fundação Nacional do Índio, FUNAI e o Conselho Nacional
de Secretários de Educação, CONSED. Nesse documento, na Parte 3, letra E – Das
modalidades de ensino na Educação Escolar Indígena, encontramos um total de 10
recomendações relativas ao tema da educação superior.

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Destaca esse documento, a relevância da oferta, por parte das IES públicas, além
das licenciaturas, de “cursos específicos e diferenciados nas diferentes áreas de
conhecimento” e de “programas específicos de pesquisa, extensão e pós-graduação para
professores e estudantes indígenas em todos os cursos...”. Esse documento, que contou
com a ampla participação de delegados indígenas, certamente já é reflexo do que nos
dizem os censos de 2000 e 2010 – de que os povos indígenas estão cada vez mais
próximos e inseridos nos entornos regionais e nacional. E, nesse contexto, percebem o
ensino básico de qualidade nas suas aldeias e as Universidades como espaços
estratégicos relevantes em seus esforços de melhorar suas condições de inserção,
diálogo e de enfrentamento nesses novos territórios, sem abrir mão da afirmação de suas
múltiplas identidades e projetos de autonomia.

O conceito de qualidade, que orienta suas demandas no campo da educação,


talvez dialogue pouco com os critérios adotados nas avaliações dos órgãos federais de
ensino, mas, ao contrário, deve ser referido às expectativas indígenas frente à
educação escolar e superior. E aí temos que ter presente que lidamos como povos
distintos, com cosmovisões próprias e, portanto, apresentam, também, expectativas
múltiplas frente à educação.

De acordo com Lima e Hoffmann (2004, p. 171), os jovens indígenas que


buscam as IES podem ser fenotipicamente muito parecidos com os habitantes regionais
com que convivem e serem até mesmo invisíveis enquanto integrantes de coletividades
etnicamente diferenciadas. Mas, seguem com seus sistemas de valores e de pensamento
e com suas visões de mundo nas quais os direitos e saberes coletivos constituem-se em
um diferencial importante. Seguem, portanto, também, como portadores de identidades
diferenciadas dos outros estudantes regionais, pobres, negros ou brancos.

Um aspecto importante a ser considerado nessas demandas indígenas diz


respeito ao fato de que não representam apenas projetos pessoais ou familiares, mas, em
muitos casos, traduzem e vem orientadas por expectativas coletivas de comunidades e
povos. Segundo Nascimento e Urquiza (2010, p. 116), “[...] cada povo indígena projeta
e deseja para si um tipo de alteridade, o que se confunde com a constituição da pessoa, a
sua formação e o seu ideal” (Cf. Luciano, 2006, p. 131), que é sempre coletivo: o que é
bom para o indivíduo é bom para seu povo.

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A simples “ampliação do acesso”, mantendo os saberes indígenas à margem, se


traduziria, também, na formação de intelectuais desconectados de seu povo e de suas
lutas. Segundo Brand (2011), esse é um fundado temor de muitos sábios indígenas,
frente à crescente demanda dos jovens de suas aldeias em busca das IES, considerando,
especialmente, experiências históricas recentes.

Ambivalências e desafios epistemológicos decorrentes da presença indígena

Podemos, certamente, afirmar que os saberes indígenas e, portanto, suas visões


de mundo, seguem ausentes ou restritos a um espaço marginal nas práticas de ensino e
no currículo formal, nos quais são colocados como diferentes, enquanto, desiguais,
exóticos e estranhos e que pouco tem a dizer ou aportar ao conhecimento legitimado
como válido dentro das Universidades. Segundo Mato (2009, p. 77-78) persistem “duas
classes” de saber - uma primeira classe, correspondendo à ciência, de “validade
universal”, “verdadeiro e aplicável em qualquer tempo e lugar”, e uma segunda classe,
caracterizada como étnica, popular, local ou “particular” e “não-universal”.

Duas formas de conhecimento que expressam “dois mundos”, um deles


“possuidor de verdades absolutas”, apoiado na “superioridade da civilização ocidental”
e com pretensão de um saber universal (MATO, 2009, P. 78), para quem o outro saber é
não - cientifico e local, que foi, historicamente, “silenciado”, “desqualificado” e
“subalternizado” como manifestação de “superstição”, estático, exótico, ou, na melhor
das hipóteses, como um saber prático e local (SANTOS, 2005). Como seres desprovidos
“de saber e cultura” (SANTOS, 2005, p. 29) e como “antecedentes”, os povos indígenas
foram e são, ainda, em muitos casos, vistos como sujeitos que demandam “processos de
evangelização ou aculturação” (idem, 2005, p. 26).

Como pensar em outras epistemologias, lembrando sempre a afirmação de


Esteban (2009, p.1), de que o “discurso hegemônico da inclusão e tolerância mantém a
perspectiva da negação da diferença, buscando enquadrá-la num dos diversos espaços
instituídos no projeto de sociedade unívoco” e que, para essa autora, o diálogo e as
“experiências democráticas de aprendizagem” exigem destruir essa segregação da
diferença em “lugares predefinidos”.

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De outra parte, entendemos que as reflexões de Bhabha (2003, p. 20 e 21),


quando afirma que a “articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma
negociação complexa (...), que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais”,
podem contribuir para sinalizar caminhos frente ao desafio do diálogo em torno de
epistemologias tão distintas e em condições socialmente tão assimétricas. Referindo-se
aos “momentos ou processos” produzidos na “articulação das diferenças”. Bhabha,
(2003, p. 51) fala em “entre-lugares” nos quais o “valor cultural é negociado”. Por
negociação, o autor quer se referir exatamente a “articulação de elementos antagônicos
ou contraditórios: uma dialética sem a emergência de uma história teleológica ou
transcendente”, que permitem objetivos “híbridos”.

Bhabha (2003, p. 20) reconhece como “inovador e politicamente crucial” a


necessidade de “passar além das narrativas de subjetividade originárias e iniciais e de
focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de
diferenças culturais”, chegando assim ao que denomina de “entre - lugar” como espaço
de formulação de “estratégias de subjetivação” entre os diferentes.

Mas, para Walsh, (2009, p. 14), essa negociação que se efetiva nos “entre-
lugares” (BHABHA, 2003) exige questionar a “colonialidade do poder”, que ainda
perdura e que “estabeleceu e fixou uma hierarquizada relação entre brancos (europeus),
mestiços e, apagando suas diferenças históricas, culturais e linguísticas, ‘índios’ e
‘negros’ como identidades comuns e negativas”. Nesse sentido, precisamos partir da
premissa de que o conhecimento historicamente produzido e legitimado como universal
é cultural – reflete lógicas de uma cultura, no caso a ocidental e não é neutro.

A aceitação dessa premissa já constituiria uma importante base para o diálogo e


a aceitação de outras epistemologias. Segundo Santos (2000, p. 30), “estamos tão
habituados a conceber o conhecimento como um princípio de ordem sobre as coisas e
sobre os outros que é difícil imaginar uma forma de conhecimento que funcione como
princípio de solidariedade”.

E nesse contexto são relevantes as reflexões de Esteban (2009, p.1), para quem
“(...) as margens enunciam outras histórias, outros abismos e delas se estendem outras
pontes, que não buscam reduzir a intensidade e visibilidade dos confrontos”. São
confrontos que se “estabelecem como conseqüência dos encontros nem sempre
harmoniosos dos diferentes projetos, limites, demandas e possibilidades”.

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Trazendo essas reflexões para os objetivos do presente texto podemos já


visualizar um importante caminho de práticas pedagógicas relevantes, o de construir ou
criar espaços ou “contextos relacionais” (Fleuri, 2006) dentro das IES nos quais todos,
acadêmicos indígenas, com suas visões de mundo e lógicas de produção de
conhecimento e professores e pesquisadores, também, com suas visões de mundo e
lógicas de produção de conhecimento, possam desenvolver relações de reciprocidade e
troca, tendo em vista desafios comuns, no caso, a construção de novos saberes para
novos e cada vez mais complexos problemas que todos vivenciamos.

Mas, para isso, é importante uma observação de Geertz (1989, p. 24), de que
“compreender a cultura de um povo expõe a sua normalidade sem reduzir sua
particularidade (...)”. Segundo o autor, isso torna possível o diálogo com o outro e não
sobre o outro.

Conclusões provisórias

As reflexões acima indicam o quanto precisamos problematizar as políticas


educacionais das IES, se quisermos incluir a presença desses outros, não nos estreitos
limites das políticas de inclusão social, mas como interlocutores qualificados, situados
em outra tradição cultural e, portanto, com outras historicidades. A criação de
“contextos relacionais” acima ou de espaços de diálogo e de entre-lugares, onde a
“negociação” e a troca com os que vem das nossas margens epistêmicas e sociais seja
possível exige questionar e desnaturalizar relações de poder coloniais que seguem
marcando e definindo o lugar e as relações para com estes outros, no caso os povos
indígenas.

Discursar sobre as práticas de ensino torna-se algo complexo quando temos o


entendimento de que elas demandam respostas não só pedagógicas, mas também de
natureza cultural. Cunha (2004, p. 529), ao referir-se a “atitudes emancipatórias” nas
práticas de ensino superior, conclui que estas “exigem conhecimentos acadêmicos e
competências técnicas e sociais que configurem um saber fazer que extrapole os
processos de reprodução”. Esse é certamente um dos desafios postos às práticas
pedagógicas com a chegada aos espaços acadêmicos desses múltiplos outros.

Por isso, defendemos a importância de uma revisão epistêmica e a


ressignificação das práticas de ensino institucionalizadas nas IES, procurando construir

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práticas assentadas no diálogo intercultural, desnaturalizando relações estabelecidas.


Adquire relevância nessa perspectiva a criação de grupos de pesquisa e de redes
interativas, como possibilidade de consolidação de processos partilhados e de espaços
dialógicos de produção de conhecimento entre índios e não índios. Caso contrário,
estaremos contribuindo para reprodução dessas relações coloniais, que reforçam os
processos de discriminação.

Walsh (2009) fala em “interculturalidade critica - como prática política” que


nos levaria a esse diálogo, troca ou negociação de saberes nas IES. Para Walsh a
interculturalidade crítica “não se limita às esferas políticas, sociais e culturais”. A
decolonialidade proposta por Walsh (2009) pode ser uma possibilidade de se
ressignificar as marcas das identidades/diferenças herdadas nos processos de
colonização.

A Universidade, pela sua condição de legitimadora do conhecimento ocidental,


colocado como universal, tornou-se contribuinte para dar forma discursiva aos
conhecimentos legitimados no processo de nossa colonização, regulados por
documentos como os currículos, projetos pedagógicos, processos avaliativos e tantos
outros que determinam o que ensinar e aprender.

Debates em torno dos conhecimentos tradicionais indígenas e conhecimentos


ocidentais, para além da ciência e da técnica que envolve as práticas de ensinar – fica
aqui delineada, como possibilidade de alargamento de nossa compreensão de mundo, a
partir do entendimento de que há lógicas distintas decorrentes de cosmovisões
diferentes.

Visibilizar as tramas discursivas que envolvem a produção dos conhecimentos,


nos possibilitou considerar que o currículo e as práticas de ensino encontram-se
reguladas pela cultura ocidental, o que de certo modo inviabiliza o diálogo com os
outros conhecimentos colocados às margens, no caso, os conhecimentos tradicionais
indígenas. Nossa intenção não é adotar um modelo curricular a ser aplicado nas IES,
mas estabelecer uma constante problematização, tendo em vista uma leitura analítica
das práticas de ensino institucionalizadas. Entendemos que estas preocupações devem
levar em conta a dimensão histórica e cultural na construção dos conhecimentos,
imbricada na tensão entre regulação e emancipação dessas práticas.

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A incorporação da visão indígena e de suas lógicas (ou de outros) abre,


certamente, novas perspectivas e fortalece iniciativas e projetos centrados numa relação
mais equilibrada com os recursos naturais e tendo como eixo central o território e o
conhecimento que sobre ele tem cada povo indígena, aliado a sua experiência histórica,
novas e inéditas alternativas de desenvolvimento poderão ser construídas, contribuindo
para o efetivo bem estar desses outros, fortalecendo sua organização social e sua
autonomia.

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