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A ESCRITA CRONÍSTICA AUTORREFLEXIVA DE INÊS PEDROSA:


CONSIDERAÇÕES SOBRE A LITERATURA E O FAZER LITERÁRIO
Diana Navas1

RESUMO
O presente estudo objetiva apresentar de que maneira a produção cronística de Inês
Pedrosa, uma das mais significativas vozes da Literatura Contemporânea Portuguesa,
evoca discussões a respeito do fazer literário, bem como dos lugares da Literatura, na
contemporaneidade. Valendo-se de uma orquestração de vozes – de riquezas ideológica,
temática e estilística –, a autora em seu discurso cronístico registra histórias ligadas ao
quotidiano social e étnico, denotando não apenas as preocupações e os temas da sociedade
portuguesa, mas também o questionamento de seu próprio ofício – a construção e as
funções da própria literatura. De cunho exploratório e bibliográfico, a pesquisa revela,
nas crônicas pedrosinas selecionadas, um discurso inquieto e crítico, tecido por uma
escritura comprometida e questionadora do contexto contemporâneo.
Palavras-chave: Crônica ; Inês Pedrosa ; literatura; fazer literário.

1. Breves considerações sobre a crônica


O conceito de crônica não é consensual entre os estudiosos que sobre esse gênero
teceram reflexões. É notável, entretanto, que, em um contexto marcado por aspectos como
a velocidade, a informação massificada, a interconectividade e a sobrevalorização do
instante, a crônica figure como gênero propício para dar conta dos estímulos culturais da
atualidade, constituindo-se como a representação do efêmero em busca da perenidade.
Carregando em sua própria denominação a questão temporal – do grego chrónos,
tempo – a crônica é um gênero híbrido, geralmente veiculado pelos meios de
comunicação social, e que parte de um episódio, real ou fictício, mas preferencialmente
ligado ao real do cotidiano, sobre o qual se tecem comentários, apreciações pessoais,
juízos de valor.
Outras vezes, a crónica parte de uma simples observação de algo inovador ou
bizarro, interessante ou revoltante, ou mesmo de uma entrevista. É sempre o
registo de algo concreto sobre o qual o discurso se espraia um pouco, numa
busca de generalização, ou de comparação com algo de semelhante, ou mesmo
oposto, mas nunca se eleva a um grau de abstracção filosófica, considerada
excessiva. É algo essencialmente simples e pragmático e, por isso mesmo,
cultural, ligado às necessidades humanas, físicas ou espirituais, individuais ou

1
Professora Doutora – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
2

colectivas: a habitação, o urbanismo, a alimentação, a escola, a higiene, a


saúde, o desporto, a natureza, a economia, a arte, a política, a moral, a
religião…(LAGUARDIA, 2014, p.104).

É justamente por centrar-se no momento atual que a dimensão temporal adquire


relevância na crônica. De acordo com Carlos Reis, a importância desta dimensão
temporal não se refere tanto à sua dinâmica interna, como observamos no movimento
temporal de um conto ou romance, “[...] mas antes na relação da crónica com o seu tempo,
com o movimento da história ainda em decurso, às vezes até com as incidências, com as
figuras, com os conflitos e com as motivações de pequena história, quase sempre
esquecida pela historiografia como ciência e repositório da memória colectiva” (REIS,
2005, s/p).
Breve, concisa, a crônica constitui-se em um texto que envolve o destinarário na
própria mensagem a ser transmitida, em uma espécie de conversa íntima, alcançando um
público-alvo generalista, representado, na atualidade, pelo leitor do jornal ou da revista.
Mantendo limites tênues com a linguagem jornalística, a crônica parece com esse gênero
ter aprendido que é preciso escrever para todos. Se a obra literária supõe, de certa forma,
um receptor culto e disposto a (des)vendar seus códigos, ao leitor da crônica parece serem
feitas menos exigências, o que, no entanto, não invalida, em nenhuma hipótese, a
qualidade estética e o trabalho que se realiza com e na linguagem por meio do exercício
cronístico.
Os limites genológicos da crônica não se limitam com o jornalismo. Maria Esther
Maciel ressalta o diálogo deste gênero com a poesia, a narrativa, o ensaio e a “conversa
fiada”, o que contribui para conquistar o interesse do destinatário:

A crônica é um gênero interessante, pois exige concisão, leveza e


desprendimento. Situando-se no espaço indeterminado entre a narrativa, o
ensaio, a poesia e a conversa fiada. Não prescinde nunca do improviso, por
mais que tenha sido pensada. É um registro precário, mas suficiente, dos dias
e das horas que compõem o que chamamos de vida, pode ser lírica, dramática,
ácida, reflexiva, divertida. Leva quem a escreve ao exercício da liberdade de
falar sobre qualquer coisa, desde que essa coisa possa trazer algo que instigue
o interesse e a imaginação do leitor. Aliás o leitor é fundamento de toda
crônica, pois ela tem que falar ao ouvido de cada um, convidando-o à conversa,
à reflexão e ao devaneio (MACIEL, 2011, s/p).

Esse hibridismo genológico, segundo Salazar (2005), ao mesmo tempo em que


funciona como uma forma de transgressão dos cânones literários, permite à crônica
estabelecer diálogo com outras linguagens e formas de representação do mundo:
3

Al ser un género transdiscursivo, la crónica resulta ser un relato que


desafía de manera constante la estabilidad del canon recibido, así como los
usos apropiados o tradicionales de un artefacto cultural. La hibridación o
transdiscursividad de la crónica funciona así como un modo de infringir o
violentar las reglas, lo establecido. Su inherente voluntad transgresora es el
origen de su ambivalencia. […] La crónica es una obra fundamentalmente
abierta. Abierta a otras voces, a otros centros narrativos, a otras
interpretaciones y a otros discursos (a través de citas, fotografías, canciones,
dichos populares o entrevistas), su escritura constituye un diálogo constante
con lo outro2 (SALAZAR, 2005, s/p.).

Focando seu olhar em aspectos que são vistos por todos, mas considerados menos
importantes pelos demais, o cronista é um leitor crítico da sociedade e do mundo.
Valendo-se de sua autoridade, de sua capacidade argumentantiva e persuasiva, por meio
de textos aparentemente “despretensiosos”, é capaz de influenciar a formação de opiniões
de um grande número de indivíduos, sendo a ele conferida, portanto, uma grande
responsabilidade social e literária: “Cabe-lhe a tarefa de seduzir sem trair os seus
princípios e valores, ensinar sem aborrecer e molestar, criticar sem azedume nem raiva,
formar sem deixar de informar” (LAGUARDIA, 2014, p.110).
É a leitura crítica da sociedade portuguesa e do mundo empreendida por Inês
Pedrosa, em suas crônicas, que almejamos abordar no presente estudo. Interessa-nos,
especificamente, desvendar como suas crônicas revelam-se espaços profícuos para a
discussão acerca do fazer literário e do papel da cultura e da literatura no contexto
contemporâneo.

2. A crônica autorreflexiva de Inês Pedrosa


Nascida em Coimbra, Portugal, no ano de 1962, Inês Pedrosa licenciou-se em
Comunicação Social pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa em 1984 e, atualmente, frequenta o curso de Doutorado em Línguas,
Literaturas e Culturas desta mesma Universidade.
Inserindo-se no panorama literário português da década de 90 – marcado pelo
desconstrucionismo – a escritora e jornalista surge como uma voz representativa na
ocupação e garantia do feminino no espaço literário contemporâneo português,

2
Sendo um gênero transdiscursivo, a crônica acaba por ser uma história que desafia constantemente a
estabilidade do cânone, assim como os usos apropriados ou tradicionais de um artefato cultural. A
hibridização ou transdiscursividade da crônica funciona, assim, como uma maneira de quebrar ou infringir
as regras estabelecidas. Sua inerente natureza transgressora é a fonte de sua ambivalência. [...] A crônica é
uma obra essencialmente aberta. Aberta a outras vozes, a outros centros narrativos, a outras interpretações
e a outros discursos (através de citações, fotografias, canções, provérbios ou entrevistas), sua escrita
constitui-se em um diálogo constante com o outro.” (tradução nossa)
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mostrando-se herdeira de importantes vozes, como a de Agustina Bessa-Luís e Teolinda


Gersão.
Sua experiência do jornalismo aliada à sua trajetória literária foram responsáveis
por modelar uma sensibilidade marcada pela vivência na escrita e pelo comprometimento
com a realidade social, conforme assegura Laguardia (2014). Seus escritos, que revelam
uma personalidade inquieta, indagadora e questionadora de seu tempo, abrangem os mais
diversos assuntos: a discussão sobre os gêneros, o espaço da mulher na sociedade, a
militância política, as relações humanas, dentre vários outros, refletindo o percurso e o
amadurecimento de uma escritora-jornalista que estreia com a publicação de crônicas em
jornais como Jornal de Letras e Expresso.
De inegável qualidade estética, sua produção literária é já amplamente conhecida
e premiada. Seu primeiro romance, considerado infanto-juvenil, Mais Ninguém Tem, foi
publicado em 1991. No ano seguinte, iniciou sua escrita romanesca com A Instrução dos
Amantes e, em 1997, publicou Nas Tuas Mãos, romance que recebeu o Prémio Máxima
de Literatura, prêmio que voltou a receber, em 2010, com a obra Os Íntimos. Fazes-me
falta, um de seus mais importantes romances, foi publicado em 2002, representando um
marco na produção romanesca da autora.
Além de romances, Inês Pedrosa também publicou 20 Mulheres para o Século
XX, ensaio que teve início em um projeto para o semanário O Expresso. Compõe-se de
um conjunto de biografias de mulheres marcantes do Século XX, dentre as quais figuram
Simone de Beauvoir, Agustina Bessa-Luís, Coco Chanel, Frida Kahlo, Lou Andreas
Salomé, Virginia Woolf, entre outras. Embora Fica Comigo Esta Noite, livro publicado
em 2003, por seu turno, é constituído por uma reunião de contos, anteriormente escritos
de maneira esparsa para jornais e revistas, nos quais se constata um conjunto de vozes
femininas da contemporaneidade, questionadoras dos homens modernos e de suas
identidades e desejos.
Em 2005, Inês Pedrosa publica Crónica Feminina, uma compilação que reúne 110
crônicas publicadas no jornal Expresso, organizadas cronologicamente – de janeiro de
2002 a dezembro de 2004. Em seu prefácio, intitulado “O que me importa”, ela
apresenta-nos os assuntos que mais a inquietam: “(...) temas como o aborto, a
discriminação, os abusos sobre crianças, a violência sobre as mulheres, a educação e a
justiça atravessam os meus dias com uma constância recorrente. Porquê? Porque me
parecem ser estas as pedras de toque da política actual” (PEDROSA, 2005, s/p).
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Nas crônicas, a escritora une duas vertentes que marcam bem a sua trajetória: o
jornalismo e a literatura. Apontando a sua produção para o que é hoje um traço da
literatura pós-moderna – o hibridismo de gêneros – , sua crônica, conforme assegura Reis,
é uma espécie de ponte em que se intersectam, às vezes sem notada linha de demarcação,
o campo da representação ficcional e o campo da referência ao real circundante, tangível
e empiricamente conhecido (REIS, 2005).
Em Crónica Feminina e também no conjunto de crônicas posteriormente
publicadas, Inês Pedrosa revela uma escrita comprometida e consciente – “ a palavra tem
o extraordinário poder de mudar as mentalidades, e não há mudança que não comece na
cabeça” – em especial no que concerne à discussão dos gêneros e da importância da
conquista de um espaço social feminino e de seus direitos.
Ainda acredito que o mundo pode melhorar à vista desarmada durante o breve
espaço da minha vida; se não acreditasse, não teria a perseverança de escrever
todas as semanas, esteja onde e como estiver, feliz ou infeliz, varrida pela febre
ou numa ebulição de festa. Dentro de todo cronista há um optimista furioso —
a própria zanga serve de testemunha a esse contrato de encantamento com o
mundo (PEDROSA, 2005, p.14).

O espaço literário é, assim, concebido como um espaço profícuo para importantes


discussões políticas, sociais e culturais: “Os que têm o pensamento e arte como profissão
não podem demitir-se da intervenção cívica – toda a arte é política” (PEDROSA, 2013
apud LAGUARDIA, 2014, p.344), revelando-se o empenhamento pessoal na causa
pública uma marca que atravessa todas as crônicas.
Destarte, seus textos cronísticos – que combinam informação, crítica, reflexão e
fabulação, constituem-se como importante veículo de diálogo com o contexto em que se
inserem e revelam nítida aproximação com o gênero ensaístico.
Ainda que o tema mais recorrente na produção de Inês Pedrosa seja o feminino e
a defesa de seus direitos, outras importantes questões figuram nas páginas de suas
crônicas, de forma que sua literatura apresenta-se como um exercício de questionamento
crítico da sociedade contemporânea, conduzindo seus leitores à reflexão. Dentre tais
questões, neste estudo, interessa-nos a discussão que a autora empreende, em suas
crônicas, acerca da importância da cultura, mais especificamente da literatura e do fazer
literário na contemporaneidade.
A importância atribuída à leitura, em especial à leitura literária, no processo de
formação do indivíduo é notável nas crônicas de Pedrosa. Uma das estratégias de que se
vale a autora para refletir acerca da relevância do literário consiste na apresentação de um
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autor ou de uma obra com a qual tenha recentemente estabelecido contato. Este é o caso,
por exemplo, da crônica Agustina e Graça3, datada de 17 de dezembro de 2007. Nela, a
autora mais do que apresentar a seus leitores a obra As metamorfoses, de Agustina Bessa-
Luís e Graça Morais, tece comentários acerca do que acredita ser a essência do texto
literário, apontando-nos para a sua concepção de literatura: “Os livros de verdade
inquietam-nos, instigam as pessoas ao sonho e à revolta dele, desarticulam as poses,
desmancham a superfície dos sentimentos, o que pode fazer doer”4 (PEDROSA, 2007).
Contrapondo a produção literária àquela meramente destinada ao entretenimento
e não à reflexão – “Criou-se um exército pluricontinental de gente ocupada a produzir e
comerciar coisas em forma de livro para ocupar o espaço dos livros e os apartar dos
leitores” – Inês Pedrosa destaca o interesse dos governantes em se investir nos best-
sellers, haja vista que “quem governa os destinos alheios quer encontrá-los feitos de
massa mansa (...)” (PEDROSA, 2007).
Atribuindo, ainda que implicitamente, à boa literatura a capacidade de despertar a
consciência e impedir a submissão, “o agrilhoamento à contingência”, Pedrosa direciona
o olhar de seu leitor para o aspecto subversivo da literatura, assumindo sua reflexão clara
aproximação com a postura de Ernesto Sábato, para quem a literatura de qualidade tem a
função de despertar o homem que caminha em direção ao patíbulo (2003).
Acreditando, portanto, na potência da literatura em formar indivíduos críticos e
pensantes, a autora adverte-nos a respeito da incapacidade (ou conivência) dos editores,
denominados por ela como “sargentos da Gestão e do Marketing” ou “Batalhões do
Produto e do Objetivo”, em fazer com que obras de qualidade alcancem o grande público:
“Enriqueceriam mais, por dentro e por fora, a fazer chegar às pessoas livros de verdade –
mas, em geral, não sabem o suficiente para saber isso. Por falta de leitura, e excesso de
‘power-point’. O inglês técnico não é tudo na vida, nem pouco mais ou menos”
(PEDROSA, 2007).
Não se limitando ao território português, Inês Pedrosa lança seu olhar para a
literatura brasileira, destinando uma crônica a Clarice Lispector – No escuro com
Clarice5. Datada de 05 de janeiro de 2012, e tendo como pano de fundo os comentários

3
Disponível em http://expresso.sapo.pt/opiniao/opiniao_ines_pedrosa/agustina-e-graca=f191242
4
Como as crônicas analisadas neste estudo foram consideradas em sua versão eletrônica, não haverá
indicação do número de página, apenas o ano de publicação.
5
Disponível em http://ler.blogs.sapo.pt/830256.html
7

da autora sobre os festejos do início de ano – “Tenho uma enorme dificuldade em começar
o ano: o frenesim festivo angustia-me, não o entendo” – o texto de pedrosino, além de
comentar aspectos da obra de Lispector, traz, a partir dela, reflexões sobre o que considera
ser efetivamente o literário:
(...) um mundo de uma lucidez alucinante, que nos instiga a desbravar o tutano
da vida. As frases de Clarice são relâmpagos que iluminam a mais bruta e
profunda matéria do ser humano. Todos os seus livros são prodigiosos, no
sentido literal: a cada releitura trazem novas descobertas – e, ao contrário do
que tantas vezes se diz, não é necessário ser-se “intelectual” para aceder a
Clarice (PEDROSA, 2012).

Resgatando o que na crítica literária foi designado pelos formalistas russos como
a capacidade da palavra literária de provocar o estranhamento, Inês Pedrosa ressalta a
desautomatização provocada pelo literário, enfatizando como a escrita clariceana nos
desperta
(...) a capacidade de olhar para o já visto e já nomeado como se não o
conhecêssemos. O dom da sua escrita é o de iluminar os objectos e os seres
mais simples, interrogando-os para os entender, sem juízos prévios. A força da
sua voz advém dessa inocência inexpugnável, valente, ilimitadamente ousada
(PEDROSA, 2012).

A partir dos comentários tecidos sobre Uma aprendizagem ou O Livro dos


Prazeres, Inês Pedrosa convida o seu leitor não meramente a conhecer a obra de
Lispector, mas a reconhecer a obra literária como uma obra aberta e que permite a
aproximação e identificação de seu leitor: “(...) tudo aquilo de que ela fala nos rasga as
entranhas, por muito estranho que pareça – e nessa estranheza entranhada a nossa alegria
e a nossa dor são também a descoberta do mundo”.
Com essa afirmação, Pedrosa atenta seu leitor para uma das forças da leitura
literária: sua capacidade de promover o deslocamento de nossa perspectiva, um entregar-
se a tudo que se move na narrativa, oferecendo, esse mergulhar no texto, uma forma eficaz
de convencimento, de moldagem de opiniões e, justamente por isso, uma ameaça,
conforme defende Compagnon (2012).
Dialogando com a produção de diferentes autores, Inês Pedrosa, mais do que
revelar sua biblioteca particular, apresenta a literatura como algo que ultrapassa as
fronteiras territoriais, conforme se observa em Os Dons Casmurros6, crônica de 29 de
setembro de 2008, em que a autora, partindo do que considera uma atitude inadequada –

6
Disponível em http://expresso.sapo.pt/opiniao/opiniao_ines_pedrosa/os-dons-casmurros=f411395
8

a comparação entre Machado de Assis e Eça de Queiroz, vale-se do literário para discutir
a respeito do espaço conferido à literatura na contemporaneidade.
De Machado de Assis, costuma dizer-se, nas poucas vezes em que dele por cá
se diz alguma coisa, que é o Eça de Queiroz do Brasil. É pouco, fraco e injusto,
quer para um quer para outro dos escritores – porque ninguém (mesmo que não
seja escritor) é clone geográfico de outro, e porque, como sabe quem
verdadeiramente lê, a única nação que limita e engrandece a literatura é a
língua em que se exprime (PEDROSA, 2008).

Neste texto, além de exaltar a qualidade da literatura machadiana, a qual defende


que deveria ser ensinada nas escolas portuguesas – “Por todas as razões, não só por ser
um mestre da construção narrativa, um atleta olímpico da maratona que é o romance como
da corrida de cem metros que é o conto, mas porque é um escritor dotado de uma
comunicabilidade transbordante” – direciona seu olhar crítico para a ausência de espaço
destinado à literatura em um dos mais importantes meios de comunicação de massa: a
televisão.
Observa-se uma comunhão de esforços entre os comandantes das Academias,
oficiais ou marginais, e as chefias dos canais públicos de comunicação – em
particular essa entidade política suprema que é a televisão – para que os
grandes autores permaneçam um luxo de acesso restrito (PEDROSA, 2008).

É evidente que a ausência da literatura na televisão é pensada e significativa, seja


no contexto português ou brasileiro. Facilitar o contato com o livro permitiria a formação
de um número maior de leitor, aspecto esse que constitui ameaça à classe dominante. Isso
porque, conforme assegura Pedrosa em sua crônica, “um povo menos lido é naturalmente
menos reflexivo, isto é, menos inquieto, isto é, menos exigente. Come o que lhe dão e
verga-se perante os grandes senhores que sabem ou podem mais do que ele” (PEDROSA,
2008).
Valendo-se de postura crítica, Inês Pedrosa, nesta e em outras crônicas, adverte
que o acesso à boa literatura pode gerar seres humanos conscientes de seus direitos
políticos em um mundo plenamente controlado. O contato efetivo com o literário pode
permitir que os seres saibam o que desejam e sejam capazes de articular as suas demandas,
a fincarem sua posição no mundo e a tornarem os discursos verdadeiros instrumentos de
conquista da liberdade, postura reflexiva essa que em muito se assemelha à defendida por
críticos como Compagnon, Barthes e Candido.
Atribuindo à literatura um caráter emancipatório, Inês Pedrosa finaliza sua crônica
afirmando:
Acresce que a leitura é um antídoto do medo. Quem saboreia o prazer da leitura
nunca está sozinho. Entende a transitoriedade de tudo, e a possibilidade da
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mudança. Entende-se a si mesmo, e aprende a saber o que quer. É isto que a


União dos Senhores da Alta Cultura e do Baixo Entretenimento não quer
(PEDROSA, 2008).

As crônicas de Pedrosa, assim, em muito se aproximando do ensaio, direcionam


o leitor a olhar criticamente para o que lhe é oferecido, atentando-o para a importância da
leitura literária na formação de uma cidadania ativa.
É a crítica à desvalorização da cultura literária em detrimento a uma
supervalorizaçao do futebol – cenário que claramente conhecemos também no Brasil –
que ocupa as páginas de A literatura não interessa nada7, de 08 de outubro de 2007, na
qual o Encontro Internacional da Associação Brasileira de Professores de Literatura
Portuguesa (ABRAPLIP), que passou praticamente despercebido em Portugal, serve
como ponto de partida para os as reflexões da autora, a qual ironicamente afirma: “Não
era caso para mais, certamente; quinhentas comunicações feitas por estudiosos de várias
partes do Brasil e do mundo, sobre obras e autores portugueses, valem menos do que um
erudito suspiro do treinador de futebol José Mourinho”.
Lamentando esta situação, Inês Pedrosa põe em discussão um outro aspecto
bastante relevante: as fronteiras que ainda cerceiam as literaturas de língua portuguesa,
as quais, muitas vezes, permanecem desconhecidas entre os países lusófonos.
O que interessa é deixarmos de falar de “português de Portugal” e “português
do Brasil”, e exportarmos a língua através dessa maravilha que ela tem
produzido e se chama “literatura de expressão portuguesa” – venha ela de
Portugal ou do Brasil, de Angola, Cabo-Verde ou Moçambique (PEDROSA,
2007).

Assegurando que “o que molda as literaturas não é a geografia, globalizada por


aviões e ‘ecráns’, mas a língua”, a autora concebe a literatura como elemento de união
entre os diferentes povos e culturas, defendendo a ideia de que os escritores de diferentes
países falantes da língua portuguesa seriam mais lidos se fossem expostos nas livrarias ao
lado dos escritores locais, com a eliminação das fronteiras geográficas.
Vista a partir de uma perspectiva realmente global, a literatura é, novamente,
apresentada ao leitor como uma necessidade humana, independente do espaço físico em
que se encontre o indivíduo e, justamente por isso, como um bem, um direito que deve
ser assegurado a todos. Um direito que possibilita ao indivíduo o seu próprio
conhecimento. Compartilhando da posição de Antonio Candido, para quem

7
Disponível em http://expresso.sapo.pt/opiniao/opiniao_ines_pedrosa/a-literatura-nao-interessa-
nada=f132357
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A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser


satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma
aos sentimento e à visão do mundo ela nos reorganiza, nos liberta do caos e,
portanto, nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa
humanidade (1995, p.186).

Inês Pedrosa assim inicia a crônica O lance do poema8, datada de 02 de junho de


2007:
Pobres leitores deste rico Ocidente atulhado em bugigangas de papel
disfarçadas de livros, tralha iletrada embrulhada em talha dourada: quereis
saber quem sois? Quereis conhecer o fundo infinito do vosso ser sem fundo.
Nos poeta os encontrareis (PEDROSA, 2007).

Nela, a autora argumenta a favor de uma literatura de qualidade em meio a um


contexto em que equivocadamente se atribui o rótulo de literário a tudo que vem sendo
publicado:
Falo dos poetas convocados pela palavra, em prosa ou verso, ficção
ou ensaio, não dos seus muitos e muito fáceis imitadores – aqueles costureiros
do tempo que, com um retalho do real (...), mais um laivo de turismo virtual e
um pó de humor de manual, fazem volume de estilistas, seja na versão
compacta da feijoada paradigmática para triunfo académico ou na versão leve
da salada histórica para consumo endémico (PEDROSA, 2007).

Apresentando-nos mais um dos autores de sua biblioteca – Antonio Cicero – Inês


Pedrosa desvela a qualidade estética que perpassa as poesias e ensaios deste poeta
brasileiro, convidando-nos a conhecê-lo. No entanto, mais do que desvelar seu amplo
repertório literário-cultural, a autora evidencia sua preocupação com o fazer literário não
meramente por meio dos comentários que tece a respeito desta temática, mas, também,
“materializando” esta preocupação à medida em que elabora seu próprio texto. No
seguinte excerto: “Não falo só nem particularmente dos fazedores de versos, pois há
muito quem verseje sem que se veja um vero sopro que sério seja nesse versejar”
(PEDROSA, 2007), é notável o cuidado com a seleção vocabular, a sonoridade e o ritmo,
cuidado esse que se evidencia em toda a produção literária da autora.
O diálogo intertextual que se evidencia nas crônicas de Pedrosa, bem como o
cuidadoso trabalho com e na linguagem que nelas se observam são aspectos que
encontraremos em dimensões ainda maiores em seus romances, como se as crônicas se
constituíssem em uma espécie de laboratório para a experimentação das estratégias e
técnicas presentes em seus romances, como se os textos cronísticos funcionassem como
espaço de incubação de seus textos romanescos. Permeiam, no entanto, todos os seus

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Disponível em http://expresso.sapo.pt/opiniao/opiniao_ines_pedrosa/o-lance-do-poema=f68805
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textos um olhar agudo, engajado e comprometido com a realidade, e uma crença na força
da palavra, concebida como instrumento de inserção no mundo e de possibilidade de
atuação social.

Considerações finais
As crônicas de Inês Pedrosa revelam, como pudemos observar, um exercício de
intervenção social por meio do qual a autora, valendo-se da palavra, apresenta uma
postura crítica e um olhar comprometido com as questões do contexto em que se insere.
Dentre as questões sobre as quais debruça seu olhar crítico e questionador
encontra-se a importância da cultura e, mais especificamente, da literatura no contexto
contemporâneo. A autora defende arduamente o texto literário em contraposição às
inúmeras publicações sem nenhuma qualidade estética que nos são continuamente
ofertadas. Além disso, revela, em suas crônicas, uma concepção de literatura como direito
que deve ser garantido a todos, haja vista constituir-se como elemento essencial à
formação cidadã, dialogando, na defesa dessa concepção, com importantes críticos
brasileiros.
Compartilhando com seus leitores os autores e obras que constituem a sua
biblioteca pessoal, o que é feito por meio da apresentação deles em seus textos e também
por meio dos diálogos intertextuais que com eles estabelece, Inês Pedrosa, mais do que
sugerir leituras, incita em seu leitor o senso crítico, ao mesmo tempo em que lança um
olhar questionador à falta de espaço concedido à literatura.
Quem chora crocodilescamente porque o povo não gosta de ler são as pessoas
que não gostam de ler, mas estudaram o suficiente para perceber que a leitura
confere o poder insanável da liberdade de espírito. Pessoas que erguem muros
negros de estatísticas para vedar o acesso do condomínio de luxo do
pensamento a outras pessoas – mesmo ou sobretudo quando quase não usam
os relvados luxuriantes de páginas que lhes servem de paisagem. (PEDROSA,
2005).

Reconhecendo na ausência deste espaço o atender de um interesse daqueles que


almejam a manutenção do poder, a autora vê nas crônicas um espaço de exercer seu
civismo, tentativa esta que é feita por meio de um texto que, sem descuidar de seu trabalho
com e na linguagem, é capaz de atingir o público-leitor e promover a reflexão, seja acerca
da questão literária ou de tantas outras questões sociais que tanto carecem de um olhar
crítico em nosso contexto.
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Referências
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COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Tradução de Laura Taddei Brandini.
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LAGUARDIA, Angela Maria Rodrigues. Vozes femininas em A descoberta do mundo,
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MACIEL, Maria Esther. Estado de Minas, Caderno Cultura. Belo Horizonte, 5 de julho
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______. A literatura não interessa nada. In: Expresso, 08 de outubro de 2007.
______. Agustina e Graça. In: Expresso, 17 de dezembro de 2007.
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