RESUMO
O presente estudo objetiva apresentar de que maneira a produção cronística de Inês
Pedrosa, uma das mais significativas vozes da Literatura Contemporânea Portuguesa,
evoca discussões a respeito do fazer literário, bem como dos lugares da Literatura, na
contemporaneidade. Valendo-se de uma orquestração de vozes – de riquezas ideológica,
temática e estilística –, a autora em seu discurso cronístico registra histórias ligadas ao
quotidiano social e étnico, denotando não apenas as preocupações e os temas da sociedade
portuguesa, mas também o questionamento de seu próprio ofício – a construção e as
funções da própria literatura. De cunho exploratório e bibliográfico, a pesquisa revela,
nas crônicas pedrosinas selecionadas, um discurso inquieto e crítico, tecido por uma
escritura comprometida e questionadora do contexto contemporâneo.
Palavras-chave: Crônica ; Inês Pedrosa ; literatura; fazer literário.
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Professora Doutora – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
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Focando seu olhar em aspectos que são vistos por todos, mas considerados menos
importantes pelos demais, o cronista é um leitor crítico da sociedade e do mundo.
Valendo-se de sua autoridade, de sua capacidade argumentantiva e persuasiva, por meio
de textos aparentemente “despretensiosos”, é capaz de influenciar a formação de opiniões
de um grande número de indivíduos, sendo a ele conferida, portanto, uma grande
responsabilidade social e literária: “Cabe-lhe a tarefa de seduzir sem trair os seus
princípios e valores, ensinar sem aborrecer e molestar, criticar sem azedume nem raiva,
formar sem deixar de informar” (LAGUARDIA, 2014, p.110).
É a leitura crítica da sociedade portuguesa e do mundo empreendida por Inês
Pedrosa, em suas crônicas, que almejamos abordar no presente estudo. Interessa-nos,
especificamente, desvendar como suas crônicas revelam-se espaços profícuos para a
discussão acerca do fazer literário e do papel da cultura e da literatura no contexto
contemporâneo.
2
Sendo um gênero transdiscursivo, a crônica acaba por ser uma história que desafia constantemente a
estabilidade do cânone, assim como os usos apropriados ou tradicionais de um artefato cultural. A
hibridização ou transdiscursividade da crônica funciona, assim, como uma maneira de quebrar ou infringir
as regras estabelecidas. Sua inerente natureza transgressora é a fonte de sua ambivalência. [...] A crônica é
uma obra essencialmente aberta. Aberta a outras vozes, a outros centros narrativos, a outras interpretações
e a outros discursos (através de citações, fotografias, canções, provérbios ou entrevistas), sua escrita
constitui-se em um diálogo constante com o outro.” (tradução nossa)
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Nas crônicas, a escritora une duas vertentes que marcam bem a sua trajetória: o
jornalismo e a literatura. Apontando a sua produção para o que é hoje um traço da
literatura pós-moderna – o hibridismo de gêneros – , sua crônica, conforme assegura Reis,
é uma espécie de ponte em que se intersectam, às vezes sem notada linha de demarcação,
o campo da representação ficcional e o campo da referência ao real circundante, tangível
e empiricamente conhecido (REIS, 2005).
Em Crónica Feminina e também no conjunto de crônicas posteriormente
publicadas, Inês Pedrosa revela uma escrita comprometida e consciente – “ a palavra tem
o extraordinário poder de mudar as mentalidades, e não há mudança que não comece na
cabeça” – em especial no que concerne à discussão dos gêneros e da importância da
conquista de um espaço social feminino e de seus direitos.
Ainda acredito que o mundo pode melhorar à vista desarmada durante o breve
espaço da minha vida; se não acreditasse, não teria a perseverança de escrever
todas as semanas, esteja onde e como estiver, feliz ou infeliz, varrida pela febre
ou numa ebulição de festa. Dentro de todo cronista há um optimista furioso —
a própria zanga serve de testemunha a esse contrato de encantamento com o
mundo (PEDROSA, 2005, p.14).
autor ou de uma obra com a qual tenha recentemente estabelecido contato. Este é o caso,
por exemplo, da crônica Agustina e Graça3, datada de 17 de dezembro de 2007. Nela, a
autora mais do que apresentar a seus leitores a obra As metamorfoses, de Agustina Bessa-
Luís e Graça Morais, tece comentários acerca do que acredita ser a essência do texto
literário, apontando-nos para a sua concepção de literatura: “Os livros de verdade
inquietam-nos, instigam as pessoas ao sonho e à revolta dele, desarticulam as poses,
desmancham a superfície dos sentimentos, o que pode fazer doer”4 (PEDROSA, 2007).
Contrapondo a produção literária àquela meramente destinada ao entretenimento
e não à reflexão – “Criou-se um exército pluricontinental de gente ocupada a produzir e
comerciar coisas em forma de livro para ocupar o espaço dos livros e os apartar dos
leitores” – Inês Pedrosa destaca o interesse dos governantes em se investir nos best-
sellers, haja vista que “quem governa os destinos alheios quer encontrá-los feitos de
massa mansa (...)” (PEDROSA, 2007).
Atribuindo, ainda que implicitamente, à boa literatura a capacidade de despertar a
consciência e impedir a submissão, “o agrilhoamento à contingência”, Pedrosa direciona
o olhar de seu leitor para o aspecto subversivo da literatura, assumindo sua reflexão clara
aproximação com a postura de Ernesto Sábato, para quem a literatura de qualidade tem a
função de despertar o homem que caminha em direção ao patíbulo (2003).
Acreditando, portanto, na potência da literatura em formar indivíduos críticos e
pensantes, a autora adverte-nos a respeito da incapacidade (ou conivência) dos editores,
denominados por ela como “sargentos da Gestão e do Marketing” ou “Batalhões do
Produto e do Objetivo”, em fazer com que obras de qualidade alcancem o grande público:
“Enriqueceriam mais, por dentro e por fora, a fazer chegar às pessoas livros de verdade –
mas, em geral, não sabem o suficiente para saber isso. Por falta de leitura, e excesso de
‘power-point’. O inglês técnico não é tudo na vida, nem pouco mais ou menos”
(PEDROSA, 2007).
Não se limitando ao território português, Inês Pedrosa lança seu olhar para a
literatura brasileira, destinando uma crônica a Clarice Lispector – No escuro com
Clarice5. Datada de 05 de janeiro de 2012, e tendo como pano de fundo os comentários
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Disponível em http://expresso.sapo.pt/opiniao/opiniao_ines_pedrosa/agustina-e-graca=f191242
4
Como as crônicas analisadas neste estudo foram consideradas em sua versão eletrônica, não haverá
indicação do número de página, apenas o ano de publicação.
5
Disponível em http://ler.blogs.sapo.pt/830256.html
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da autora sobre os festejos do início de ano – “Tenho uma enorme dificuldade em começar
o ano: o frenesim festivo angustia-me, não o entendo” – o texto de pedrosino, além de
comentar aspectos da obra de Lispector, traz, a partir dela, reflexões sobre o que considera
ser efetivamente o literário:
(...) um mundo de uma lucidez alucinante, que nos instiga a desbravar o tutano
da vida. As frases de Clarice são relâmpagos que iluminam a mais bruta e
profunda matéria do ser humano. Todos os seus livros são prodigiosos, no
sentido literal: a cada releitura trazem novas descobertas – e, ao contrário do
que tantas vezes se diz, não é necessário ser-se “intelectual” para aceder a
Clarice (PEDROSA, 2012).
Resgatando o que na crítica literária foi designado pelos formalistas russos como
a capacidade da palavra literária de provocar o estranhamento, Inês Pedrosa ressalta a
desautomatização provocada pelo literário, enfatizando como a escrita clariceana nos
desperta
(...) a capacidade de olhar para o já visto e já nomeado como se não o
conhecêssemos. O dom da sua escrita é o de iluminar os objectos e os seres
mais simples, interrogando-os para os entender, sem juízos prévios. A força da
sua voz advém dessa inocência inexpugnável, valente, ilimitadamente ousada
(PEDROSA, 2012).
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Disponível em http://expresso.sapo.pt/opiniao/opiniao_ines_pedrosa/os-dons-casmurros=f411395
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a comparação entre Machado de Assis e Eça de Queiroz, vale-se do literário para discutir
a respeito do espaço conferido à literatura na contemporaneidade.
De Machado de Assis, costuma dizer-se, nas poucas vezes em que dele por cá
se diz alguma coisa, que é o Eça de Queiroz do Brasil. É pouco, fraco e injusto,
quer para um quer para outro dos escritores – porque ninguém (mesmo que não
seja escritor) é clone geográfico de outro, e porque, como sabe quem
verdadeiramente lê, a única nação que limita e engrandece a literatura é a
língua em que se exprime (PEDROSA, 2008).
7
Disponível em http://expresso.sapo.pt/opiniao/opiniao_ines_pedrosa/a-literatura-nao-interessa-
nada=f132357
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Disponível em http://expresso.sapo.pt/opiniao/opiniao_ines_pedrosa/o-lance-do-poema=f68805
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textos um olhar agudo, engajado e comprometido com a realidade, e uma crença na força
da palavra, concebida como instrumento de inserção no mundo e de possibilidade de
atuação social.
Considerações finais
As crônicas de Inês Pedrosa revelam, como pudemos observar, um exercício de
intervenção social por meio do qual a autora, valendo-se da palavra, apresenta uma
postura crítica e um olhar comprometido com as questões do contexto em que se insere.
Dentre as questões sobre as quais debruça seu olhar crítico e questionador
encontra-se a importância da cultura e, mais especificamente, da literatura no contexto
contemporâneo. A autora defende arduamente o texto literário em contraposição às
inúmeras publicações sem nenhuma qualidade estética que nos são continuamente
ofertadas. Além disso, revela, em suas crônicas, uma concepção de literatura como direito
que deve ser garantido a todos, haja vista constituir-se como elemento essencial à
formação cidadã, dialogando, na defesa dessa concepção, com importantes críticos
brasileiros.
Compartilhando com seus leitores os autores e obras que constituem a sua
biblioteca pessoal, o que é feito por meio da apresentação deles em seus textos e também
por meio dos diálogos intertextuais que com eles estabelece, Inês Pedrosa, mais do que
sugerir leituras, incita em seu leitor o senso crítico, ao mesmo tempo em que lança um
olhar questionador à falta de espaço concedido à literatura.
Quem chora crocodilescamente porque o povo não gosta de ler são as pessoas
que não gostam de ler, mas estudaram o suficiente para perceber que a leitura
confere o poder insanável da liberdade de espírito. Pessoas que erguem muros
negros de estatísticas para vedar o acesso do condomínio de luxo do
pensamento a outras pessoas – mesmo ou sobretudo quando quase não usam
os relvados luxuriantes de páginas que lhes servem de paisagem. (PEDROSA,
2005).
Referências
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