Você está na página 1de 23

A CONSTRUÇÃO SOCIAL

DA REALIDADE
Tratado de Sociologia do Conhecimento

PETER L. BERGER
PrDfealof d. SDC/D/0f,/a
na RU1Bera Ulllvrrl'1

TBOMAS LUCKMANN
Pro/estDr de SOclO/Dlla
lia Unl""a'''od. d. Frankfurt

Traduç40 de
FlorÜlno de Souza Fernanflel/

FICHA CATALOGltAPlCA
(preJXIrado pelO Cenlro de C(Jl4lop(J~o'Il/l'folllc do
SlndlallO Nadonal dos l1dllores de Uoro!. BJ)

Borsor PeLar L. ;:
A •COlllltnl;f.o social da reAlIdt.do: Irat.8do do
AOclolorta do conhecimento Iporl Pelar L. Borger
101 'l'bDlllU X.uck:nlllUll traduçllo ele Florlllllo de
SoIWl f'emandes. Petr6poll.S, vozes, 1985.

+
uep. :110m (AntropololPll., 5).
Blbllogratla.
1. Sociologia do conhecimento. ]. LueJunann,
ThOn'lIlS.n. Titulo. JII. Sdrie.
O
EDITORA
CDO - 301.01 , ..·..vOZ6S
•.
'
CDU - ~01
"

Petr6polis
2004
Na análise precedente acentuamos os aspectos estru-
turais na existência social do pessoal que sustenta o
universo. Nenh'uma genuína análise sociológica poderia
proceder de outra maneira. As instituições e os universos
simbólicos são legitimados por indivlduos vivos, que tem
localizações sociais concretas e interesses sociais con-
cretos. A história das teorias legitimadoras é sempre
parte da história da sociedade como totalidade. Não há
-III
"história das idéias" isolada do sangue e do suor da
história geral. Mas devemos, ainda uma vez, acentuar
que isto não significa serem estas teorias nada mais do A Sociedade como Realidade
que reflexos de processos institueionais "subjacentes"; Subjetiva
a relação entre as "idéias" e os processos sociais que as
sustentam é sempre uma relação dialética. E' correto
dizer que as teorias são maquinadas com o fim de le-
gitimar instituições sociais já existentes. Mas acontece, a) A Socialização Primária
também, que instituições sociais sejam modificadas para
se conformarem com teorias já existentes, isto é, tor- SENDO A SOCIEDADE UMA REALIDADE AO MESMO TEMPO
nA-Ias mais 4'legUimas". Os peritos em legitimação po- objetiva e subjetiva, qualquer adequada compreenslio
dem atuar como jusfificadores teóricos do status quo, teórica relativa a ela deve abranger ambos estes aspec-
mas podem aparecer também como ideólogos revolucio- tos. Conforme tivemos ocasião de dizer, estes aspectos
nários. As definições da realidade têm um poder auto- recebem correto reconhecimento se a sociedade for en-
realizador. As teorias podem ser realizadas na história, tendida em termos de um processo dialético ~m curso,
mesmo teorias que eram altamente abstrusas quando fo- ~om~os.to d.e três momentos, exteriorização, objetivação e
ram pela primeira vez concebidas por seus inventores. mterlOrlZaçao. No que diz respeito ao fenômeno social
Karl Marx, meditando na biblioteca do Museu Britânico, estes momentos não devem ser pensados como ocorren~
tornou-se o exemplo proverbial desta possibilidade his- do em uma seqüência temporal. Ao contrário, a socie-
tórica. Por conseguinte, a transformaçllo social deve dade e eada uma de suas partes são simultaneamente
sempre ser compreendida como estando em relação dia~ caracterizadas por estes três momentos, de tal modo que
lética com a "história das idéias". Tanto a compreensão qualquer análise que considere apenas um ou dois deles
"Idealista" quanto a 4lmaterialista" desta relação esque- é insuficjente. O mesmo é verdade com relação a um
cem esta dialética e dessa maneira deformam a história. membro individual da sociedade, o qual simultaneamente
A mesma dialêtica predomina nas transformações glo- exterioriza seu próprio ser no mundo social e interior!za
bais dos universos simbólicos que tivemos ocasião de este último como realidade objetiva. Em outras palavras,
examinar. O 'que permanece sociologicamente essencial restar em sociedade significa participar da dialética da
é o reconhecimento de que todos os universos simbólicos sociedad~
e todas as legitimações são produtos humanos, cuja ",Contudo, o indivlduo não nasce membro da sociedade.
existência tem por base a vida dos indivlduos concretos Nasce com a predisposição para a sociabilidade e tor-
e não possui staius empirico à parte dessas vidas. na-se m:m~r~ da sociedad~ Por conseguinte, na vida
de cada mdlVlduo existe uma seqüência temporal no cur-
SO Óí1 qual é induzido a tomar parte na dial~tica. d.a compreende as definições das situações partilhadas mas
sociedade. O ponto' inicial deste processo é a mtenoTl- somos capazes de defini-Ias recIprocamente. Estabele-
zação a saber a apreensão ou interpretação imediata de ce-se entre nós um nexo de motivações que se estende
um a~onteciment'o objetivo como dotado de sentido, isto para o futuro. Mais importante ainda é o fato de haver
é como manifestação de processos subjetivos de outrem, agora uma continua identificação mútua entre n6s. Não
q~e desta maneira torna-se subjetivamente significativo somente vivemos no mesmo mundo mas participamos
para mim. Isto não quer dizer que compreenda o outro cada qual dO ser do outro.
adequadamente. Posso de fato compreendê~lo ~al, por Somente depois de ter realizado este grau de interio-
exemplo, se está rindo em um acesso de histeria posso rização é que o indivfduo se torna membro da sociedade.
entender o riso como significando hilaridade. Mas a su~- O processo ontogenético pelo qual isto se realiza é a
jetividade dele é entretanto objetivan:ente acesslvel a m:m socialização, que pode assim ser definida como a ampla
e torna-se dotada de sentido para mim, quer haja ou nao e consistente introdução de um individuo no mundo ob-
congruência entre os processos 'subjetivos dele e os meus. jetivo de uma sociedade ou de um setor dela. A socia-
A completa congru@ncia entre os dois significados su~- lização primária é, a primeira socialização que o indivI-
jetivos e o conhecimento reciproco de~ta congrué~cla duo experimenta na infância, e em virtude da qual tor-
pressuJ!.é5ea 'significação, co~forme examinamos. anteflor- na-se membro da sociedade. A socialização secundária
mente~ No entanto a intenorização, no sentido geral é qualquer processo subseqüente que introduz um indivl-
aqui empregado, ~s.tá subjacente tanto .à significação duo já socializado em novos setores do mundo objetivo
quanto às suas formas mai~ cOlT;lplexas.~Ito de maneira de sua sociedade. Podemos aqui deixar de lado a ques.•
mais precisa, a interiorização neste sentido geral cons- tão particular da aquisição do conhecimento relativo ao
titui a base primeiramente da compreensão de nossos mundo objetivo de sociedades diferentes daquela de que
semelhantes e, em segundo lugar, da apreensão do mun- cada homem se tardou primeiramente membro, e bem
do como realidade social ~dotada de sentid~1 assim o processo de interiorização desse mundo como
Esta apreensão não resulta de criações autônomas de realidade, processo que apresenta, ao menos superficial-
significado por indivlduos isolados, mas começa com o mente, certas semelhanças com a socialização primária e
fato do individuo "assumir" o mundo no qual os ou- secundária, não sendo contudo estruturalmente idêntico a
tros iA vivem. Sem dúvida, este "assumir" em si mesmo nenhuma destas. I
constitui em certo sentido um processo original para cada f' imediatamente evidente que a SOCialização primária
organismo humano e o mundo, uma vez "assumido", tem em geral para o indivlduo o valor mais importante
pode ser modificado de maneira criadora ou (menos pro- e que a estrutura básica de toda socialização secundária
vavelmente) até recriado. Em qualquer caso. na forma deve assemelhar-se à da socialização primária. Todo
complexa da interiorização, não somente "compreendo" ~ndivfd~~ceLLem u~ltrutura.,soç,i~ obj~!!y"a,deiirto·
os processos subjetivos momentâneos do outro mas "com- a qUI encon!!!}~LÇl!1Jrºs _!!g!!,!!!.~~~j~~~- .q~e~~.~nçar-
preendo" o mundo em que vive e esse mundo torna-se l~dr~,iL~~@,zação.~stés_-º!!trJ?L s~g~ificativos
o meu próprio. Isto pressupõe que ele e eu participamos são':lh'ê:;.impostÕs;:...a.L~~finições_Jfãclas.,
,p.or est~~.=~~.
s!~1:1!i:'
do tempo de um modo que nlo é apenas efêmero e numa çio aere-~tam-s~..J:_QmO_ a_r.ealidade.objetiva. Desta
perspectiva ampla, que liga intersubjetivamente as seqüên- -_._---
cias de situações. Agora,' cada um de nós não somente I Nou4I dclJnl~llea da .oclo1l2~ÇAo c d. '.UI· doIs subtlpoI soguem multo
de perto o uso corrente nu cl~nclu socl.ls, Adaplamos, apenu, o voca·
bulArlo para cOJllorm6·10 com nosso quadro teórico ISe reler~nc!a glObal.
I No&sa deserlçlo nClte ponto .póla-se ~em d,;,vlda .bundanlcmenle n.
teoria da soclalluçAo d. Meld.
maneira nasceu não some~te em uma estrutura social tificação com os outros sfgnificativos a criança torna-se
objetiva mas também em um mundo social ~bjtttivo. Os capaz de se identificar a si mesma, de adquirir uma
outros significativos que estabelecem a medlaçao deste identidade subjetivamente coerente e plausível. Em ou-
mundo para' ele modificam o mundo no curso da media- tras pala••..
ras, a personalidade é uma entidade reflexa,
ção. Escolhem aspectos do mundo de acordo com sua que retrata as atitudes tomadas pela primeira vez pelos

P~
própria localização na estrutura social e também em vir- outros significativos com relação ao indivíduo ", qu~ se
tude de suas idiosincrasias individu.ais, cujo ·fundamento torna () que é pela ação dos outros para ele significa-
se encontra ná biografia ..de cada um. O mundo social tivos. Este processo não é unilateral nem mecanicisla.
é "filtrado" para o individuo através desta dupla sele- Implica uma dialética entre a identificação pelos outros
tividade. Assim, a criança das classes inferiores não so- e a auto-identificação, entre a identidade objetivamente
mente absorvem uma perspectiva própria da classe in~ alribufda e a identidade subjetivamente apropriada. A
ferior a respeito. do mundo social, mas absorve esta dialética, .que está presente em cada momento em que
percepção com a coloração particular que lhe é dada por o indivlduo se identifica com os oulros para ele signi-
seus pais (ou quaisquer outros indivlduos encarr~gados ficativos, é, por assim dizer, a particularização na vida
de sua socialização primária), A mesma perspectiva da individual da dialética geral da sociedade, que já tive-
classe inferior pode introduzir um estado de esplrito de mos ocasião de discutir.
contentamento, resignação, amargo ressentimento ou fer-
vente rebeldia. Como conseqüência uma criança da classe Embora os detalhes desta dialética tenham natural-
...- mente grande importância para a psicologia social, ex-
inferior não somente irá habitar um mundo grandemente
diferente do que é próprio da criança de uma classe su- cederia nossa finalidade atual se fôssemos acompanhar
perior, mas pode chegar a ter um mundo inteiramente suas implicações para a teoria sócio-psicológica.' Im-
diferente daquele da criança de classe inferior que mora porta-nos mais aqui, para nossas considerações, o fato
na casa ao lado. 4 do individuo não somente absorver os papéis e atitudes
Não é necessário acrescentar que a socialização pri- dos outros mas nesse mesmo processo assumir o mun-
mAria implica mais do que o aprendizado puramente do deles. Qe fato, a identi<!.ade ~~._~efi-
cognoscltivo. Ocorre em circunstâncias carregadas de nida como localização em um cer~ndo--e-.êp'~pod.l;.
alto grau de emoção. De fato, há boas razões para se ~lf)étiv~~ aprõpr~~=Iu~~all!~nt~. _,ç~~_e~~
acreditar que' sem esta ligação emocional com os outros I11undo:-Dlto de ouliã:'-fI'l"m!lra, todas as Identlf1caçoes
significativos o processo de aprendizado seria diffcil, reãIir.nn-se em horizonte que implicam um mundo social
quando não de todo impossfvel.· A criança. identifica-se especifico. A criança aprende que d aquilo que é cha-
com os outros significativos por uma multiplicidade de mada. Todo nome implica uma nomenclatura, que por
modos emocionais. Quaisquer que sejam, a interiorização sua vez implica uma localização social determinada. I

só se realiza quando há identifica,ção. A criança absorve I NOIIa co"ecp~lo do carAle. reflexo do eu derlvl eI. Cooley e Mead.
os . papéis e as !ltitudes dos out!OS, slgn~flcativos, Isto SUIS' rlllu podem lU clIcontradlS na an'lIu do ~Ct1 IDclal" de Wllllam
Jamea (p,lnclpltl Df P'7chOIIl/{y).
é,. interioriza-os, ~ornando-os. seus. Por meio desta ,lden- , Embora tllo 1110Jlc". ler duonvolvldo ollul. podo·le dlur o luflclenlC
para Indicar a ponlbl1ld.de de ama paleololt. loelal lenulnamentc dlaltllcl.
Eua leria llualmute Imporlante para a anlrapololla IIIos61lca e p.ra a
,,o conceito de "med'açllow derJva de Sartre. que, contudo. nlo pOlsul loclolollt. No que dIz respello a eSlp 61t1ma, ullIa lal p,lcologla soela!
uma adelluada l.orla da aoclaUuçlo. (fundamentalmente de orlentaçlo no scntldo de Mlad, 11111 com o ocrtlclmo
• A dlmendo alctlva da aprcndJulcm InIcial 101 c.peclalm.nle aceDlaa. de Imporlant.! elemento. rellrad01l de outras correnlel do pensam.nlo
da r.e1o pllcologla Inlantll Ireud'.n., elmlora hela v4rla. dueobert.al da loclal ,lenllllcO) tornaria dunecen4rlo procurar alianças teOrlcamenle In.
toor a behDvlorllla da aprendlZacem que lenderlam a conllrmar 1110. Nlo lusleat'vell com o pllcolol15mo Ireudlano ou bchavlorl5la.
queremo, dller que .cdhmo. lia premluas tc6rlc •• 'de amb •• USlI escol •• • Sobre a nOmenclaturA, ,I. Claude Uvl·Slrau5s, LtI ptnJ~t ,t1IWQtlt.
de pslcologla em noua orgulDelltaçlo nute ponlo. pp. 253ss.
·~t
,,:(
Receber uma· identidade implica na atribuição de um
lugar especifico no mundo. Assim como esta identidade
é subjetivamente apreendida pela criança ("eu SOU John
I os vários papéis e atitudes interiorizados; inclusive, en-
tre muitas outras coisas, a auto· identificação corno
pessoa que não derrama a sopa.
Smith"), o mesmo se dá 'com o mundo para o qual
esta identidade aponta. A apropriação subjetiva da iden·
tidade e a apropriação subjetiva do mundo social são
II A formação na consciência do outro generalizado
marca uma fase decisiva na socialização. Implica a in-
teriorização da sociedade enquanio tal e da realidade
apenas aspectos diferentes do mesmo processo de inte~ objetiva nela estabelecida e, ao mesmo tempo, o es"ta-
riorização, mediatlzado pelos mesmos outros significativos. beleclmento subjetivo de uma identidade coerente e con-
A socialização primária cria na consciência da crian·
I tinua. A sociedade, a identidade e a realidade cristalizam
ça uma abstração progressiva dos papéis e atitudes dos subjetivamente no mesmo processo de inleriorização.
outros particulares para os papéis e atitudes em geral. Esta cristalização ocorre juntamente com a interiorização
Por exemplo, na interlorização das normas há uma pro- da linguagem. De fato, por motivos evidentes à vista
g~essão que vai da expressão "mamãe está zangada das precedentes observações sobre a linguagem, esta
comigo agorti' a esta outra "mamãe fica zangada comigo constitui o mais importante contelldo e o mais importante
toda vez que eu derramo' a sopa". Desde que mais ou- instrumento da socialização.
tras pessoas significativas -(pai, avó, irmã mais velha, Quando o outro generalizado cristalizou na consciên-
etc.) apóiam a atitude negativa da mãe com relação ao cia estabelece-se uma relação simétrica entre a realidade
ato de derramar a sopaj 'a generalidade da norma é es- objetiva e a subjetiva. Aquilo que é real "fora" corres-
tendida subjetivamente. O passo decisivo ocorre quando ponde ao que é real "dentro". A realidade objetiva pode
a criança reconhece que todos são contra o fato de en- ser facilmente "traduzida" em realidade subjetiva, e
tornar' a sopa, e a norma generaliza-se tomando a ex- vice-versa. A linguagem evidentemente é o principal vei-
pressão "NlJo ~e deve derramar a sopa", sendo o Ilsett culo deste progressivo processo de tradução em ambas
parte de uma generalidade que inclui, em principio, as direções. Conviriat entretanto, acentuar que a simetria
toda a sociedade, na medida em flue é significativa para entre a realidade objetiva e a subjetiva não pode ser
a criança. Esta abstração dos pal'éis e atitudes dos ou- completa. As duas realidades correspondem uma à ou-
tros slgnificativos .concretos é chamada o outro gene- tra mas não são coextensivas. Há sempre mais realidade
ralizado.· Sua formação na consciência significa que o objetiva "dispon!vel" do que a efetivamente interiorizada
indivlduo identifica..:se agora não somente com os outros em qualquer consciência individual, simplesmenle porque
concretos mas com uma generalidade de outros, isto é, o conteúdo da socialização é determinado pela distribui-
com uma sociedade. Somente em virtude desta identifi- ção social do conhecimento. Nenhum indivíduo interio-
cação generalidade sua Identificação consigo mesmo al- riza a totalidade daquilo que é objetivado como reali-
cança estabilidade e continuidade. O indivíduo tem agora dade em sua sociedade, mesmo que a sociedade e seu
não somente uma identidade em face deste ou daquele mundo sejam relativamente simples, Por outro lado, há
outro significativo, mas uma identidade em geral, sub- sempre elementos da realidade subjetiva que não se ori-
jetivamente apreendida como constante, não importando ginaram na socialização) tais como a consciência da
que outros. significativos ou não, sejam encontrados. Esta existência do próprio corpo do indivíduo anteriormente
identidade, recentemente coerente, Incorpora em si todos e à parte de qualquer apreensão dele socialmente
apreendida. A biografia subjetiva não é completamente
• o l:onetlto de NOUUO gener.lIudo· 6 u•• do aqui Inlclrallunle 110 len- social. O indlviduo apreende-se a si próprio como um
tido Que lhe 101 dado por Mead.
ser ao mesmo tempo interior e exterior à sociedade." tos subseqüenles, a lembrança de uma certeza que nunca
Isto implica que a simetria entre a realidade objetiva e deverá repetir-se - a certeza da primeira aurora da
a subjetiva nunca é uma situação estática, dada uma realidade - fica ainda aderente ao primeiro mundo da
vez por todas. Deve ser sempre produzida e reproduzida infância. A socialização primária realiza assim o que
;(1. aetu. E.m outras palavras, a relação entre o indivlduo (numa visão retrospectiva, evidenlemente) pode ser con-
e o mundo social objetivo assemelha-se a um ato con~ siderado o mais importante conto-da-vigário que a so-
tinuamente oscilante. As raIzes antropo16gicas deste fato ciedade prega ao Indivlduo, ou seja, fazer aparecer como
são evidentemente as mesmas que examinamos ao tra- necessidade o que de fato é um feixe de contingências,
tar da peculiar posição do homem no reino animal. dando deste modo sentido ao acidente que é o nasci-
Na socialização primár'ia não há problema de iden- mento dele.
tificação. Não há escolha' dos outros significativos. A Os conteúdos especificas que são interiorizados na
sociedade apresenta ao candidato à socialização um con- socialização primária variam naturalmente de sociedade
junto antecipadamen,te definido ~e o~tros si~~~ficativos, para sociedade. Alguns encontram-se em toda parte. E'
que ele tem' de aceitar como tais sem POSsibilidade de a linguagem que tem de ser interiorizada acima de ludo,
optar por outro arranjo. Hic Rhodus, hic salta. Temos Com a linguagem, e por meio ~elá, vários esquemas
de nos arranjar com os pais que o destino nos deu. motivacionais e interpretativos são interiorizados com
Esta .injusta desvantagem, Inerente à situação de ser valor institucional definido, por exemplo, querer agir co-
criança, tem como conseqüência evi~ente que, embora mo um menino valente, admitindo naturalmente que os
a criança não seja simplesmente passiva no processo de meninos se dividem em valentes e covardes. Estes es-
sua socialização, são os adultos que estabelecem as re- quemas fornecem à criança programas institucionaliza-
dos para a vida cotidiana, alguns imediatamente aplicá-
gras do jogo. A criança pode partici~ar d? jogo c~m veis a ela, outros antecipando condu Ias socialmente de-
entusiasmo ou ,com mal-humorada reSistênCia. Mas Jn-
finidas para estágios biográficos ulteriores, a bravura
felizmente não há outro jogo à vista. Isto tem um impor-
que lhe permitirA um dia ser aprovado nas provas de
tante corotário. Desde que a criança não tem escolha ao vontade provenientes de seus iguais e de todas as es-
selecionar seus outros significativos, identifica-se auto- pécies de outros, assim como a valentia que dela será
maticamente com eles. Pela mesma razão a interioriz8- eXigida. mais tarde, quando for iniciada como guerreiro,
ção da particular realidade deles é quase inevitãveI.. A por exemplo, ou quando for convocada pelo deus. Estes
criança não interioriza o mundo dos outros que são sig- programas, tanto os imediatamente aplicáveis quanto os
nlflcativos. para ele como sendo um dos muitos mundos antecipat6rios, diferenciam a identidade do indivlduo, se-
possfveis. Jnterioriza-se como sendo o mundo, o único parando-os dos outros, tais como moças, meninos escra-
mundo existente e conceblvel, o mundo tout cOur/. E' vos ou meninos de outro clã. Finalmente, há interiori-
por esta razão que o mundo interioriudo na socialização zação. peto menos dos rudimentos do aparelho legitima-
primAria torna-se muito mais firm~me~te. entrlnchelrado dor, A criança aprende "por que" os programas são tais
na consciência do que os mundos mterlonzados nas so~ como são. Deve-se ser valente, porque o menino deseja
cializações secundárias. Por mais que o sentimento ori- tornar-se um verdadeiro homem. Deve-se executar os
ginal de ine1Jitabllidade seja enfraquecido por desencaR- ritos, porque se não for assim os deuses se enraivecem.
• Compmre-Ie ~om o que cll~ Oeore Slmmel lobre a auto·aprllndo do
E' preciso ser leal ao chefe, porque s6 procedendo assim
homem como sendo tlmllllanulllenle a lotledode Inlerna e a utcrna. O os deuses ajudarão o indivlduo num momento de pe-
concello de -ex~.nlrlcldade· de PleSlner , lamb'm Imporllnle a estl
resplllo. rigo, ete.
Na socialização primária, por conseguinte, é construi-
do o primeiro mundo do indivlduo. Sua peculiar quali- bém, ê provável que a maioria dos programas definam
dade de solidez tem de ser explicada, ao menos em a questão diferentemente para os meninos e para as
parte, pela inevitabilidade da relação do Individuo com meninas. Este reconhecimento mfnimo é naturalmente
os primeiros outros significativos para ele. O mundo imposto à sociedade pelos fatos biológicos. Além disso,
da infância" em sua luminosa realidade, conduz a ter porém, há uma grande variabilidade s6cio-hist6rica na
confiança não somente nas pessoas dos outros signifi- definição das etapas da seqüência da aprendizagem. O
cativos mas nas definições da situação dadas por estes. que ê ainda definido como infância numa sociedade pode
O mundo da infância é maciça e indubitavelmente real. I.l
bem ser definido como estado adulto em outra. E as
Provavelmente não poderia ser de outra maneira, nesta implicações sociais da infAncia variam grandemente de
etapa do desenvoJvimento da consciência. Só mais tarde uma sociedade para outra, por exemplo, no que se refere
o individuo pode dar-se ao luxo de ter um mínimo de às qualidades emocionais, responsabilidade moral ou ca-
dlividas. E provavelmente esta necessidade de um [lroto- pacidade intelectual. A civilização ocidental contemporâ-
realismo na apreensão do mundo refere-se à [!Do ênesg nea (pt!lo menos antes do movimento freudiano) ten-
tanto q~anto .à lé!~OM6éilUEm qualquer. ca~o, o mun- dia a considerar as crianças como naturalmente "ino-
centes" e "meigas". Outras sociedades consideravam-nas
do da infânCIa constltuldo de modo a Jnshlar no in-
div[duo uma estrutura riõmica na qual possa ter con- "por natureza pecaminosas e impuras", diferentes dos
fiança' de que "tudo está bem", se quisermos repetir adultos só pela força e compreensão. Houve variações
o que talvez seja' a . frase mais freqüente pelas mães semelhantes com referência à capacidade infantil de ati-
aos filhos quando estão chorando. A descoberta, ulte- vidade sexual, responsabilidade criminal, inspiração di-
riormente feita, de haver algumas coisas muito diferen- vina, etc. Estas variações na definição social da infância
tes de "estarem bem" pode ser mais ou menos chocan- e de seus estágios afetarão evidentemente o programa de
te, dependendo das circunstâncias biográficas, mas num aprendizagem. "
cas? ou noutro o mundo da infância provavelmente con- O caráter da socialização primária é também afetado
servará retrospectivamente sua realidade peculiar. Per- pelas exigencias do acervo de conhecimentos a ser trans-
manece sendo o "mundo doméstico", por mais longe mitido. Certas legitimações podem exigir um grau de
que o indivíduo se afaste dele mais tarde na vida, indo complexidade lingüistica para serem compreendidas do
para regiões onde absolutamente não se sente em casa. que outras. Podemos suspeitar, por exemplo, que uma
. A social!zação prim~r!a Implica seqüências de apren- criança necessitará menos palavras para compreender que
dizado socIalmente defInidas. Na idade A a criança deve nlo deve se masturbar porque faz o seu anjo da guarda
aprender X, na idade B deve aprender Y e assim por ficar zangado do que para compreender o argumento
diante. Cada um destes programas acar;eta cerlo re- de que a masturbação opõe-se a seu ajustamento sexual
conhecimento social do crescimento e diferenciação bio- futuro. As exigências da ordem institucional global afe-
tarão também a socialização primária. Numa sociedade
lógicas. Assim, cada programa, em qualquer sociedade,
tem de reconhecer que uma criança de um ano de idade serão diferentes as habilidades exigidas em diversas ida-
: :
::! /' não pode aprender o que uma de três anos pode. Tam- des, comparada com outra sociedade, ou mesmo em se-
~ tores diversos da mesma sociedade. A idade em que
"

" A comparar com li r.'alldade maciça do mundo In'anlll elpolla por numa sociedade será julgado conveniente para uma crian-
:: Pl ~L .
~i " Comparc·,e com L~vy·B ruhl sobrc o llnAlo,o lIIogtn~t1co do "reall,mo·
ça aprender a dirigir um automóvel pode ser a idade
Inlll,!tll de Pleltel.
:
.
em que, noutra sociedade, ê de esperar que tenha ma· extensão e caráter destes são portanto determinados pela
tado seu primeiro inimigo. Uma criança da classe 8U· complexidade da divisão do trabalho e a concomitante
'perior pode aprender os "fatos da vida" em uma idade distribuição social do conhecimento. Sem dúvida, o co-
na qual urna criança de classe interior dominou os ru- nhecimento universalmente importante também pode ser
dimentos da Mcnica do aborto. Ou uma criança de classe socialmente distribufdo - por exemplo, t!m forma de
superior pode sentir suas primeiras vibrações de emo- "versões" com base de classe - mas o que temos em
çlo patriótica aproximadamente na época em que sua mente aqui é a distribuição social do "conhecimento es-
contemporânea de classe inferior seDte 6dlo da polfeia pecial". conhecimento como resultado da divisão do tra~
e de tudo quando esta representa. balho e cujos "portadores" sio institucionalmente defi-
A socialização' primária termina quando o conceito do nidos. Deixando de lado, por ora, suas outras dimen-
outro generalizado (e tudo quanto o acompanha) foi sões, podemos dizer que a socialização secundária é -
estabelecido na consciência do indivfduo. Neste momento a aquisição do conhedmento de funções especificas,
é um membro efetivo da sociedade e possui sujetiva- funções direta ou indiretamente com raIzes na divisão
mente uma personalidade e um mundo. Mas esta inte- do trabalho. Há certa justificação para esta definição
riorização da sociedade, da identidade e da reaJidade não estreita, mas isto não significa de modo algum toda a
se faz de uma vez para sempre. A socialização nunca história. A socialização secundária exige a aquisição de
é total nem está jamais acabada; Este fato põe diante vocabulários especificos de funções, o que significa em
de nós dois outros problemas: primeiro, como é mae- primeiro lugar a interiorização de campos semânticos
tida na consciência a realidade interiodzada na socia- que estruturam interpretaç15es e condutas de rotina em
lização primária?; segundo, como ocorrem novas Inte· uma área institucional. Ao mesmo tempo, são também
riorJzações - ou socializações secundárias - na biogra. adquiridas "compreensões tácitas", avaliações e colora-
fia' ulterior do indivlduo? Examinaremos estes proble.- ções afetivas desses campos semânticos. Os "submun-
mas em ordem inversa. dos" interiorizados na socialização secundária são ge-
ralmente realidades parciais, em contraste com o "mundo
básico" adquirido na socialização primária. Contudo.
eles também são realidades mais ou menos coerentes,
caracterizadas por componentes normativos e afetivos
E' posslvel conceber uma sociedade na qual não haja assim como cognoscitivos.
outrasociaHzação depois da socialização primária. Tal
socfedad~ evidentemente teria de possuir um cabedal de Além disso, também eles exIgem pelo menos os ru-
conhecimentos muito simples. Todo conhecimento seria dimentos de um aparelho legitimador, freqUentemente
geralmente lmport~nte, diferindo os diversos indlvlduos acompanhado de símbolos rituais ou materiais. Por
apenas em suas' perspectivas relativamente a ele. Esta exemplo, pode surgir uma diferenciação entre soldados
concepção é útil porque estabelece um caso limite, mas de infantaria e de cavalaria. Estes últimos deverão ter
nenhuma sociedade por nós conhecida deixa de ter al- um exercfcio especial, que provavelmente Implicará mais
guma divisão do trabalho, e co~comitantemente alguma do que a aprendizagem das puras habilidades físicas
distribuição social do conhecimento. Logo que tal ocorre necess!rlas para manejar cavalos militares. A linguagem
a socialização secundAda torna·se necessária. da cavalaria tornar-se-á diferente da que é, usada pela
A socialização secundária é a interiorização' de "sub- infantaria. Nascerá uma terminologia referente aos ca-
mundos" lnslitucionais ou baseados em instituições. A valos," suas qualidades e usos e, às situações resultantes
da vida da cavalaria, que serão Inteiramente destitufdas
de importAncia para o soldado a pé. A cavalaria usará puxar carroças de estrume pouco provavelmente embe-
também uma linguagem diferente mais do que no sentido Jezará esta atividade mediante complexos rilos ou feti-
puramente instrumental. Um soldado de infantaria en- chismos e é pouco provável que o pessoal a quem é
colerizado pragueja fazendo' referência à dor nos pés, atribulda esta tarefa se identifique com tal função de
enquanto o cavaleiro mencionará as costas do cavalo. maneira profunda. As Jegitimações, tal como existem,
Em outras palavras, um corpo de imagens e alegorias provavelmente devem ser de natureza compensatória.
é construido tendo por base instrumental a linguagem Assim, existe grande variabilidade sócio-histórica nas
da cavalaria. Esta linguagem especffica de uma função representações impUcadas na sociaHzação secundária. Na
é interiorizada in toto pelo indivíduo, à medida em que maior parte das sociedades, contudo, alguns rituais
se vai exercitando para o combate montado. Torna-se acompanham a transição da socialização primária para
um cavalaria no não somente por adquirir as habilidades a secundária. li

exigidas, mas por ser capaz de compreender e usar esta Os processos formais da socialização secundária são
linguagem. Pode então comunicar-se com seus compa- determinados por seu problema fundamental, a suposição
nheiros de cavalaria em alusões ricas de sentido para de um processo precedente de socialização primária, isto
eles mas completamente obtusas para os homens da in- é, deve tratar com uma personalidade já formada e um
fantaria. Não é preciso dizer que este processo de in- mundo já interiorizado. Não pode construir a realidade
teriorização acarreta a identificação subjetiva com a fun- subjetiva· ex nihilo. Isto representa um problema, por-
ção e suas normas adequadas - "Sou um soldado de que a realidade já interiorizada tem a tendência a per M

cavalaria", uUm soldado, de cavalaria nunca deixa o ini- sistir. Sejam quais forem os novos conteúdos que de-
migo ver o rabo de sua mcmta.ria", "Nunca deixe uma vam agora ser interiorizados, precisam de certo modo
mulher esquecer a sensação das esporas", "Rápido ca~ sobrepor-se a esta realidade já presente. Há, portanto,
va!eiro na guerra, rápido cavaleiro no jogo", ete. Se um problema de coerência entre as interiorizações pri-
surgir a necessidade, este corpo de significados será sus- mitivas e as novas. O problema pode ser de soluçllo
tentado por legitimações que vão de simples máximas mais ou menos difícil, conforme o caso. O soldado,
do- tipo das precedentes até complexas construções mi- tendo aprendido que a limpeza é uma virtude em relação
tológicas. Finalmente, pode haver uma multiplicidade de à própria pessoa, não terá dificuldade em transferir a
cerimOnias e -obj"etos ffsicos representativos, digamos, mesma virtude para o seu cavalo. Mas tendo aprendido
a celebração anual da festa do deus-cavalo, na qual que certas obscenidades são reprováveis em uma crian-
todos os alimentos são ingeridos a cavalo e os cava- ça pedestre, exigirá certa explicação mostrar que são
leiros recentemente iniciados recebem os fetiches cons- agora de rigueur para o membro da cavalaria. Para
tituídos por caudas de cavalo, que dai em diante levarão estabelecer e conservar a coerência a socialização se-
pendurados no pescoço.- - cundária pressupõe procedimentos conceituais para in-
tegrar diferentes corpos de conhecimento.
O caráter desta socialização secundária depende do
status do corpo de conhecimento em questão no interior Na socialização secundária, as limitações biológicas
do universo simbólico em totalidade. O treinamento é tornam-se cada vez menos importantes nas seqClências
necessário para ·-aprender a fazer um cavalo puxar uma de aprendizagem, que agora estabelecem-se em termos
carroça de estrume ou para combater numa batalha. das propriedades intrlnsecas do conhecImento que deve
Mas uma sociedade que limita o uso dos cavalos a
•• COIPI!~re.le .qlll IIS anAlise! cullurll"Bnlropolõglcl5 elOI "rllos d.
pI •• agem" relacionados com I puberdlde.
ser adquirido, ou seja, em termos da estrutura funda~ tarde na vida começa tipicamente a revestir-se de uma
mental desse conhecimento. Por exemplo, para aprender afetividade que lembra a infância, quando procura trans~
.1
o,I certas técnicas de caça ê preciso aprender primeiro a formar radicalmente a realidade subjetiva do indivfduo.
., I escalar montanhas ou para aprender o cálculo é pre~ Este fato cria problemas especiais que analisaremos um
o, ciso aprender primeiro álgebra. As seqUências de apren~ pouco mais adiante.
:j ..' dizado podem também ser manipuladas em função dos
'"
Na socialização primária a criança não apreende seus
o
'.
'i
. direitos adquiridos do pessoal que ministra o corpo de outros significativos corno funcionários institucionais mas
conhecimentos. Por exempJo, pode ser estabelecido que como mediadores da realidade tou! court. A criança lnte-
o índlvlduo deve aprender a adivinhação pelas entranhas rioriza o mundo dos pais como sendo o mundo, e não
dos animais antes de poder aprender a adivinhação pelo como o mundo pertencente a um contexto institucional
,
, VÔO dos pássaros. ou que é preciso ter um diploma de específico. Algumas das crises que acontecem depois da
escola secundária antes da matricula numa escola de socialização primária são causadas na verdade pelo re-
1
embalsamento ou que é preciso ser aprovado no exame conhecimento de que o mundo dos pais não é o único
,~
de gaéJico antes de poder ser eleito para um cargo mundo existente. mas tem uma localização social muito
no serviço civil irlandês. Estas estipulações s10 extrln~ particular. talvez mesmo com uma conotação pejorativa.
secas ao conhecimento 'pragmáticO exigido para a exe- Por exemplo. a criança de mais idade chega a reco-
: cução das funções de adivinho, embalsamador ou fun~ nhecer que o mundo representado pelos pais, o mesmo
1
. t
r
cionArlo público irlandês... São estabelecidas institucio-
n~mente para reforçar o prestfgio das funções em ques~
mundo que anteriormente considerava com certeza come
a realidade inevitável, é de fato o mundo de gente rural
tão ou satisfazer outros jnteresses ideológicos. A edu- do sul. sem educação, de classe inferior. Na sociali~a-
cação primária pode ser perfeitamente sufíclente para ção secundária o contexto institucional é em geral per-
apreender o currículo da escoJa de embalsamento e os cebido. Não é preciso dizer que isto não implica a re~
'.; . funcionários públicos irlandeses executam sua atividade quintada compreensão de todas as ImpUcações do con-
: ,
,
normal em Ifngua inglesa. Pode mesmo acontecer que texto institucional, Contudo, a criança do sul, para nos
as seqüências de aprendizagem manipuladas desta ma- mantermos dentro do mesmo exemplo, compreende que
:
: .
,
neira sejam na prática antifuncionais: Por exemplo. pode
ser estipulado que a educação universitária de "cultura
sua professora ê uma funcionária institucional, de um
modo diferente daquele pelo qual compreende seus pais,
:: geral" tenha de preceder o treinamento profissional de e entende a função da professora como representando
.; sociólogos pesquisadores, embora su~s atividades reais significados institucionalmente especlficos, tais como os
pudessem de fato ser mais eficientemente executadas se da nação por oposição aos da região, do mundo na-
! fossem libertados da carga da "cultura" desta espécie. cional de classe média por oposição ao ambiente de
Enquanto a social'zação primária não pode ser rea- classe inferior que encontra em sua casa, da cidade por
: 1 Iluda sem a identfflcaçllo. .carregada de emoção, da
:
i oposição à roça. Por conseguinte. a interac;ão social en~
: ;
! I
criança com seus outros significativos. a maior parte da tre mestres e alunos pode ser formalizada. Os mestres
:

:
{ socialização secundária pode dispensar este tipo de iden- não precisam ser outros significativos em qualquer sen-
tificação e prosseguir eficientemente só com a quantidade tido da palavra. São funcionArios Institucionais, com a
: de identificação mútua inclufda em qualquer comunica~ atribuição formal de transmitir conheciI1:Jentosespecíficos.
:
ção entre seres humanos. Dito ás claras, a criança deve As funções da socialização secundária têm um alto grau
amar a mãe, mas não o professor. A socialinção mais de anonimato, sendo portanto facilmente destacá .••. eis dos
I
I
: ~
l I
I
ter havido a socialização primária. Dito em termos cla-
executantes individuais. O mesmo conhecimento ensina- ros, mais uma vez, é mais fácil para a criança uescon-
do por um pr:ofessor poderia também ser ensinado por der-se" da professora do que da mãe. Inversamente, é
outro. Qualquer funcionário .deste tipo poderia ensinar possfvel dizer que o desenvolvimento desta capacidade
este tipo de conhecimento. Os' funcionários individuáis de "esconder-se" é um importante aspecto do processo
podem senl dúvida ser' subjetivamente diferenciados de de crescimento e passagem ao estado adulto.
várias maneiras (como mais ou menos agradáveis, me~
lhores ou piores professores de' aritmética, etc.), mas em O tom de realidade do conhecimento interiorizado na
princfpio são substituíveis uns pelos outros. socialização primária é dado quase automaticamente. Na
.., Este formalismo e anonimato estão evidentemente li- socialização secundária tem de ser reforçado por té.c-
gados ao caráter afetivo das 'relações sociais na sacia. nicas pedag6gicas específicas, "provadas" [em inglês,
lização secun~ária. A con~eqüência mais important,e, IItrazido para casa". N. do T,] ao indivlduo. Esta
contudo, consiste em confem ao conteúdo daquilo que frase é sugestiva. A realidade original da inUncia e
é ensinado na soclalizaçAo secundária uma inevltabili- a "casa". Impõe-se inevitavelmente como tal, e por
dade muito menos subjetiva do. que a pos,su(da pelo assim dizer "naturalmente". Comparada a ela, todas as
conteúdo da. socialização pi'!inárJa. Por conseguinte, o outras realidades são "artificiais". Por isso a professora
tom de realidade do conheCimento interlorizado na so- procura "provar" [lItrazer para a casa"] os assuntos
cialização secundária é ,mais fàcilmente posto entre pa- que estA transmitindo tornando-os vIvidos (isto é, fa~
rênteses (isto é, o sentimento subjetivo de que estas in- zend<>-os parecer tão vivos quanto o "mundo doméstico"
teriorizações são, reais é mais fugitivo). São necessários da criança), importantes (isto é, ligando-os com as es-
graves choques no curso dà 'vida, para desintegrar a ma- truturas dotadas de importância já presentes no "mun-
c~ça rea~idade interioriiada na primeira inUncia. E pre- do, doméstico") e interessantes (isto é, levando a aten-
CISO muito menos para destruir as realidades jnteriorl 4
ção da criança a se destacar de seus objetos "naturais",
zadas mais tarde. Além disso, é relativamente fácil anu· passando para outros mais "artificiais"), Estas manobras
lar a realid.ade das interiorizações secundárias. 'A criança são necessárias porque já existe uma realidade interiori-
vive quer queira quer não no mundo tal como é definido zada, .constantemente "em vias de" novas interiorizações.
pelos pais,' m,as pode alegremente deixar atrás o mundo O grau e o caráter preciso destas técnicas pedagógicas
da aritmética logo que sai da aula. variarão com as motivações que o indivlduo t~m para
Isto torna posslvel destacar uma parle da personali- a aquisição do novo conhecimento.
dade e da concomitante realidade, fazendo-as só ,ter im- Quanto mais estas técnicas' tornam subjetivamente
p..ortânci~ par.a a situação funcional específica em. ques- plauslvel ,a continuidade entre os elementos originais do
tao. O Indivlduo estabeJece então uma distância entre . conhecimento e os novos. tanto mais facilmente adquirem
seu eu total e sua realidade, de um lado, e o eu parcial o tom de realidade. Aprende-se uma segunda língua
funcionalmente especifico e a realidade deste de outro construindo sobre a realidade indiscutível da própria IIHn-
lado.· Esta. importante façanha s6 é possivel' depois de gua materna". Durante longo tempo a pessoa retraduz
, li o Conceito de "dl.tlncla de pap~I." 101 erlaelo por Ervln, Oollman • saber, relere'5e o sociedades ealrutur.das de lal modo que elementas
partlcularmenle em AJ)l/u/II1 (Oarden Clt)'. N. V., DOllbledl,-A.nchor, 1901): declslvOI da realidade ob/ctlvada alio InterlorllOdas em procestos secun-
Nona anAlIle Indica que estA dl,tAllcla ,6 ~ poulvel relollvamellte .b dArias de loclallllçllo. EUa cOlls'dero~lio. dll:l-,e de posucem. dcvcrln.
realidades InterlorlzadAl na loclalluçlo lecundArlA. Se • eslendermos As tornAr-nos culdado,os enl n.llo Igualar o "modelo" de Ooflmon (que, Icru-
reAlidade. Interlorludal n. loclalluçlo prlmArl. entramOI 110 domlnlo do cenlemo •• ~ mu1l0 11111 pu~ ~ onAllse de Imporlonlcs o.peelos do moC:erna
que • p.lqulltrra amerlUna Challl' ·pIICop.tl.', qUI Impllu lima dell- socledade lndllllrlal) cam um "mOdelo dramAlIco" loul c/)url. Allnal dc
cJenle lormaçlo d. Idfnlldld.. Vm oulro: ponto multo Interellanle lucerldo contAS, hOllve oulras dramas dUerenles do q,uc é ellflerlmentldo pelo homem
por no.sa InAIII' ~ o 'I'" li
qUII. um "modelo do tipo de Oollmln·
relere aOI I!nmu ulruuarala dentro dOI
de lntençlo aoclal' ~ eJ.eqtllvel.
de empresa conlemporllnea, empenhado na 'o~mlntSlro~lio da Impr."lo·,
,conU~uamente na Ungua orIginal quaisquer elementos da rlva das diferenças intrfnsecas entre o conhecimento da
nova IIngua que está adquirjndo. Só desta maneira a engenharia e o da música, e entre os modos de vida
nova Ifngua, pode c~~eçar a';ter alguma realidade. Quan- em que estes dois conjuntos de conhecimentos são pra.
do esta realidade chega' a .estabelecer-se por si mesma, ticamente aplicados. Um revolucionário profissional, tam-
lentamente torna-se posslvel .. livrar-se da retradução. A bém, necessita um grau imensamente mais alto de iden-
pessoa mostra-se capaz de "pensar" na nova Ifngua. tificação e inevitabilidade do que um engenheiro. Mas
Entretanto, é raro que uma IIngua aprendida tarde na neste caso a necessidade nl0 tem origem nas proprie-
vida alcance a inevitável e evidente realidade da prj~ dades intrlnseças do próprio conhecimento, que pode ser
meira Hngua aprendida na Infa.ncia. Daf deriva, sem muito simples c disperso em seu conteúdo, mas n~ de-
dávida. a qualidade afetiva da "lfngua materna". Mu- dicação pessoal requerida de um revolucionário relati-
tatis mutandls, as mesmas caracterfsticas de construção vamente aos interesses adquiridos do movimento revo-
a partir da realidade "doméstica", de ligação com ela lucionário. As vezes a necessidade das t~cnicas intensi-
à medida que o aprendizado prossegue e a lenta ruptura fieadoras pode provir de fatores tanto intrlnsecO$ quanto
des.ta ligação, 510 atributo de outras seqüências de extrinsecos. Um exemplo éa socialização do pessoal
apr.endizagem na socialização secundária. religioso.
O fato dos processos de social12:ação secundária não As técnicas aplicadas nestes casos destinam-se a in-
pressuporem um, alto grau de identificação e de seu tensificar a carga afetiva do processo de socialização.
conteúdo não possuir a qualidade da inevitabilidade po- Tipicamente, implicam a institucionalização de um com-
dem ser ótels na prática porque permitem seqüências plicado processo de iniciação, um noviciado, no curso
de aprendizado racionais e emocionalmente controladas. do qual o indivlduo entrega-se inteiramente à realidade
Mas, como o contel1do deste tipo de interlorlzaçl0 tem que está. Interiorizando. Quando o processo exige uma
uma realidade subjetiya frágil e pouco digna de con~ transformação real da realidade "doméstica" do indivlduo
fiança comparado com as interlorlzações da socialização constitui uma réplica, tão exata quanto posslvel, do ca-
primária, em alguns casos é preciso criar técnicas especiais ráter da socialização primária, conforme veremos dentro
para produzir a identificação e a inevitabllidade julgadas em pouco. Mas mesmo sem esta tranformação a socia-
necessárias. A necessidade destas técnicas pode ser intrfn- lização secundária adquire uma carga de afetividade de
seca relátivamente ao aprendizado e aplicação dos con- tal grau que a imersão na nova realidade e o devota-
teUdos . da Interiorização ou pode ser estabeleci da em mento a ela são institucionalmente definidos como ne-
favor dos interesses adquiridos do pessoal que ministra cessários. O relacionamento do indivfduo com o pessoal
socializador torna-se proporcionalmente carregado de
o processo, de socializaçãô em questão. Por exemplo, um
"significação", Isto é, o pessoal socializador reveste-se
indivlduo que deseja tornar-se um perfeito músico deve·
do caráter de outros significantes em face do indivIduo
mergulhar em seu assunto até um grau de todo desne- que ,está sendo socializado. O indivfduo entrega-se en-
cessário para um indlv(duo que está aprendendo para tão completamente à nova realidade. "Entrega~se" à
ser engenheiro. A educação para a engenharia pode efe- música, à revolução, à fé, não apenas parcialmente mas
tuar-se . eficientemente mediante processos formais, al- com o que é subjetivamente a totalidade de sua vida.
tamente racionais, emocionalmente neutros. A educação A facilidade com que se sacrifica é evidentemente a con-
musical, porém, Implica tipicamente uma identificação seqQênc"iafinal deste tipo de socialização.
multo mais alta com o maestro e uma Imerslo muito Uma importante circunstância que pode criar a ne-
mais profunda na realidade musical. Esta diferença de- cessidade dessa intensificação ~ a competição entre o
193
Ao psicanalista impõe-se o conhecimento de "análise di.
pessoal das várias insntui.ções encarregado da definição dática", que é apenas sugeri da ao assistente social, ete.
da realidade. No caso do ,1reinamento revoluclonãrio o Ha, por conseguinte, sistemas muito diferenciados de
problema intrrnseco ! a socializaC;ão do indivlduo em socialização secundária em instituições complexas, às
uma contradefiniçâo da realidade, isto ê, contra as de- vezes montados de modo muito sensfvel, de acordo com
finições dos legitimàdores «oficiais" da sociedade. Mas as diversas exigências das várias categorias do pessoal
terá também de haver intensificação na socialização do institucional. li

músico em uma socieda.de que oferece aguda competi- A distribuição institucionaliuda das tarefas entre a
ção quanto aos valores estéticos da comunidade musical. socialização primária e a secundária varia com a com-
Por exemplo, pode-se admitir que um músico em for- plexidade da distribuiçlo social do conhecimento. En-
mação nos Estados Unidos atualmente tem que dedi- quanto esta é relativamente pouco complicada o mesmo
car-se à música com uma intensidade emociOnal desne- órgão institucional pode conduzir da socialização primá-
cessária na Viena do século XIX, precisamente porque ria à secundária e executar esta última em considerável
na 'situação americana: existe poderosa competiçlio de- extensão. Nos casos de multo elevada complexidade é
rivada daquilo que subjetivamente aparece como sendo preciso criar órgãos especializados na socialização se·
o mundo materia1ista" e da "cultura de massa" ~a
U
cundária, com pessoal em tempo Integral, especialmente
"briga. de foice". Igualmente, a educação religiosa numa paia as tarefas educacionais em questão. A parte este
situação plurallsta cria. a necessidade de técnicas arti-
If
grau de socialização, pode haver uma série de órgãos
ficiais" de acentuação da realidade, desnecessárias numa socfalizadores que combinam esta tarefa com outras.
sltuaçl0 dominada por us:nmonop6lio religioso. E" ainda Neste caso, por exemplo, pode estabelecer-se que em
~'naturaIJl alguém tornar-se p~dre católico em Roma! de certa idade o menino seja transferido da cabana ma-
um modo diferente do que acontece nos :E;stados UnIdos. terna para o quartel dos guerreiros, onde receberá exer-
Em con'seqnêncla, os seminários teológicos americanos cicio para se tornar cavaleiro. Isto não necessita acarretar
têm de', enfrentar o problem"a da "evasão da realidade" um pessoal educacional em tempo integral. Os velhos
e organizar técnicas para, "manter pregada" a mesma cavaleiros podem ensinar aos novos. O desenvolvimento
realidade. Não ê de admirar que tenham descoberto o da educação moderna é evidentemente a melhor ilustra-
expediente; óbvio de mandar para Roma por algum tempo ção da socialização secundaria realizada sob os auspfcios
seus estudantes mais promissores. de organizações especializadas. O decUnio da posição
Variações semelhantes podem existir no mesmo con- da famllia resultante desse fato, com relação à sociali-
texto instltucional, dependendo das tarefas atrlbufdas a zação secundária, é por demais conhecido para que exija
diferentes categorias do pessoal. Assim, o grau de com- ser tratado aqui com mais detalhes. II
promisso com a profissão militar exigido dos ofIciais de
carreira ê muito diferente" d~ ~xigido dos convocados, c) A Conservação e a Transformaç1o
fato claramente refletido nos respectivos processos de da Realidade Subjetiva
treinamento. Igualmente, exigem-se, compromissos dife-
rentes com a realidade instltuclonal de um diretor e do Nlo sendo a socialização jamais completa e estando os
pessoal de escritório de nlvel Inferior, de um psicanalista conteúdos que interioriza continuamente ameaçados em
e de um assistente social psiquiátrico, eto. Um diretor •• 01 •• tudol da .oelololla dai oCllpaç6u, dClclIyolvldot p•• tlcularmute
por E't'erelt HUlhn, orerecem 11Iterenlnte mlterla! a eu. rupeUo.
'deve ser "politicamente conservador" de um 'modo que ," CI. Tlleott PAr80nl, EllajlJ In Sortaloflr," Thror)'. Pu" anil Appllt4
(Chle'IG, Pre. PruI. 194(9), pp. 23311.
não precisa ser o de um supervlsor de um "pooI" tfplco.
sua realidade subjetiva, toda sociedade viável de criar mais vulnerável às definições desafiadoras da realidade,
procedimentos de conservação da realidade para salva- não porque não sejam julgadas certas ou seja apreen-
guardar um 'c::ertograu de simetria entre a realidade ob- dida como menos do que real na vida cotidiana, mas
jeU"a e a subjetiva. Já examinamos este problema a porque sua realidade é menos profundamente arraigada
propósito da legitimação. Focalizaremos aqui a defesa na consciência, sendo assim mais suscepUvel de desloca-
da realidade subjetiva, mais do que a da realidade ob- mento. Por exemplo, tanto a proibição da nudez, que se
jetiva, isto é" a realidade tal como é apreendida na relaciona com o sentimento individual de vergonha, c é
consciência individual e não tal como ê lnstitucional- interiorizado lia socialização primária, quanto os ç!nones
mente definida. <.10 vestuário adequado às diferentes ocasiões sociais, são
A socialização primária interioriza uma realidade aceitos como legitimas na vida colidiana. Enquanto não
apreendida como inevitável. Esta interiorização pode ser são socialmente desafiados, nem uma coisa nem outra
julgada bem sucedida se, o sentimento de inevitabiUdade constituem problemas para o indivlduo. Contudo, o de-
estiver presente na maior parte do tempo, pelo menos safio teria de ser muito mais forte no primeiro caso do
enquanto. o indivíduo é ativo no mundo da vida cotidiana. que no segundo para constituir uma ameaça à realidade
Mas, mesmo quando o mundo da vida cotidiana con- aceita como verdadeira das rotinas em questão. Uma mo-
serva sua maciça e indiscutlvel realidade in aetu, está dificaçlo relativamente pequena na definição subjetiva
ameaçado pelas 'situações marginais da experiência hu- da realidade bastaria para o individuo considerar correto
mana que não podem ser completamente inclufdas na poder ir para o escritório sem gravata. Seria necessário
atividade diária. Existe sempre a presença obsecante de uma modificação muito mais drástica para levá-Io a ir
metamorfoses, as atualmente lembradas e as que são para o escritório sem qualquer espécie de roupa. A pri-
sentidas apenas como sinistras possibilidades. Há também meira modificação poderia ser socialmente mediatizada
as definições da realidade, competindo umas com as ou- apenas por uma mudança de ocupação, digamos de um
tras e mais diretamente ameaçadoras, que podem ser so- campus universitário rural para um metropolitano. Este
cialmente encontradas. Para um homem de famUia bem último acarretaria uma revolução social no ambiente do
comportado uma coisa é sonhar com indlzfveis orgias na indivfduo. Seria subjetivamente compreendido como uma
solidão noturna, e outra, muito diferente, é ver esses so. profunda conversão, provavelmente depois de uma resis-
nhos empiricamente encenados por uma colOnia de li- tência inicial intensa.
bertinos na casa ao lado. Os sonhos mais facilmente po-
dem ser postos em quarentena no interior da consciência, A realidade das jnteriorizações secundárias é menos
como "coisa sem sentido", que se desp:-eza, ou como ameaçada pelas situações marginais porqtle em geral não
aberrações mentais, que devem dar motivo a um silencioso tem Importância para elas. O que pode acontecer é que
arrependimento. Conservam o caráter de fantasmas em esta realidade seja apreendida como trivial precisamente
face da realidade da· vida cotidiana. ,A execução real im- porque revela a falta de importância para a situação mar-
põe-se à consciência, muito, mais clamorosamente. De ginal. Assim, pode dizer-se que a iminência da morte
fato, pode ter de ser destrufda antes do espírito poder ameaça profundamente a realidade da prévia auto-identifi-
enfrentá:la. Em ~ualque~ caso, "nãó pode" ser negada, cação do indivíduo, como homem, ser moral ou cristão.
como se 'pode ao' menos tentar negar as - metamorfoses A .auto-identificação do individuo como diretor assistente
das situações marginais. do departamento de meias de senhoras não fica tão amei--
O caráter mais ~'attifieial'" da sodalização secundária çada quanto rebaixada a um nivel trivial na mesma si-
torna a realidade subjetiva da interiorização dela ainda tuaçiio. Inversamente, ê posslvel dizer que a conservação
,
:1
~~
~I

:1
il
das interiorizaç6es primAdas em face das situações mar·
:1 ~r~ - ou pelo. menos. a maior parte - encontrados pelo
'. I·
ginais é uma justa medidá de sua realidade subjetiva.
Jndlvfduo na vIda cotidiana servem para reafirmar sua
,11
I A mesma prova seria de todo irrelevante se fosse l!oplicada
','
"
à maiori~ das so~ialitações secundárias. Tem sentido realidade subjetiva. Isto acontece mesmo numa situação
:'1 morrer como homem, ,mas. tem muito pouco morrer como tão "pouco significativa" como viajar num trem diário
" diretor assistente' do departamento de meias de senhoras. para um trabalho. O indivíduo pode não conhecer nin-
"

Aiêm disso, quando, se .espera, que' as interioritações se- guém no trem nem falar com qualquer pessoa. Apesar
cundárias tenham, este grau de persistência na realidade disso, a multidão dos companheiros de viagem reafirma
I
em face de situações marginais, os
procedimentos de so· a estrutura básica da vida cotidiana. Pela conduta glo-
bal os viaja'ntes retiram o indivlduo da tênue realidade
(

I
cialização concomitante terlo de, ser intensificados e, re-
'l j fot.çados da maneira anteriormente ~xaminada. Ainda uma do cstremunhamento matinal e demonstram em termos
,..
vez, ,é posslvel citar como i1ustr~ções os processos reli- irtdub~áveis que o mundo é constitufdo de homens sérios,
,..::
"; gioso e militar de socialização secundária. que vao ao trabalho, de responsabilidade e horários, da
.~i
New Haven Railroad e do Times de Nova York. Este
:~
"
f' conveniente distinguir entre dois tipos gerais de
ç:onservaçlo da realidade, a conservaç!o rotineira e a
cQnservação cr(tica. A primeira destina-se a manter a
dIUrno, evidentemente, reafirma as mais amplas coorde-
nadas da realidade individual. Do boletim meteoro16gico
:~ até os anúncios de "precfsa-se", tudo lhe assegura de
), realidade interiorizada na 'vida cotidiana. a última, a
"
,',
:~ realidade em situações de crise., Ambas acarretam funda- que está, de fato, no mundo mais real possível. Conco--
::
" mentah~lente os m,esmos pro~es~os sociais, embora pos- mitantemente, afirma a condição menos que real dos si-
" sam notar-se algumas diferenças. nistros êxtases experimentados antes do café matinal, a
Conforme vimos, a realidade da ,vida cotidiana mantém- forma estrjlnha de objetos supostamente familiares, de-
"
"
;t se pelo fato de corporific:ar-se e'm rotinas, o que é a pois de acordar de um sonho perturbador, o choque por
:j
;1
essência da institucionalizaçlo: Ademais disso, porém, a ~ã~ reconhecer, a própria face no espelho do banheiro, a
:: realidade da vida cotidiana é continuamente reafirmada mdlzfvel suspeIta, um pouco mais tarde, de que a mu~
'::. na interaçlo do indlv[duo com os outros. Assim como a Iher e os filhos são estrangeiros misteriosos. Grande nú-
,t
realidade é originariamente interiorizada por um processo mero de indivlduos susceptfveis a estes terrores metafr.
:1 social, assim tambéin é mantic1a na consciência por pro- sicos conseguem exorcisá~los até certo ponto no curso de
"~i cessos sociais. Estes últimos não são radicalmente dite. seus rituais diários rigidamente executados, de modo que
rentes dos' exercidos na primeira interiorização~ Refletem a realidade da vida cotidiana está pelo menos cuida-
também o fato bãsico de que a realidade subjetiva deve dosamente estabelecida na ocasião em que saem pela
ter com a realidade objetiva uma relação socialmente porta da rua. Mas a realidade começa a ser completa-
definida. mente segura somente na comunidade anÔnima dos via-
No processo soelal de conservação da realidade é pos· jantes do trem. Chega a se tornar maciça quando o trem
s[",el ,distinguir entre 'os outros significantes 'e os outros entra na Orand Central Station. Ergo sum, pode então
menos importantes.· De modo considerável, todos os ou~ o indivíduo murmurar para si mesmo, e caminhar para o
escritório inteiramente acordado e seguro de si.
• , Hllnl H. Oerth e C. Wrllltl 'MllI.. em Chtlra~l" and SO~/41 SlrllClUrt
(New York. Marcourl, Biact and Co., 1953), lurerem ° lermo "oulros
(nUma," para o, outro. '\l[nllle&tlvol empenhadoe nl con •• rva~lo di na·
Seria, por conseguinte, um erro admitir que somente
Ildade mire tarde li. v[d•• PreferlmOI 1110 un, cale !IrmO devIdO l leme' os outros significativos servem para manter a realidade
Ihln~1l com o termo lflllm,p/lilrc que tem ,lido mllllo IPlllrelado IIB
rtcenle IoOclololll de IInllul Illemi' COIl1 uma col1otaçlo conllderlVllmente subjetiva. Mas os outros significativos ocupam uma po-
dllcrtllle. ' ,
sição central na economia da conservação da realidade.
1~8
199
~~
~~
),
I
r,
I

i
I 510 particularmente importantes para a progressiva con.• de degradar algumas dcssal> pessuas oa cum.lição de ou-
:: flrmaçJo daquele elemento cruciaJ da realidade que cha~ tros significativos e voitar-se, em lugar delas, para outras,
:1
, ~ I' mamos identidade. Para conservar a confiança de que em busca de confirmações de sua realidade significativa,
é na verdade a pessoa que pensa que ~) o lndivfduo ne- por exemplo, seu psicanalista ou seus velhos companhei-
, cessita não somente a confirmação Implfcita desta iden- ros de clube. Há muitas complexidades possiveis nesta
:
, tidade, que mesmo os' contactos diários casu~is poderiam organização de relações conservadoras da realidade, es-
fornecer, mas a confirmação explicita e carregada de pecialmente numa sociedade onde existe grande mobili-
emoção que lhe é outorgada pelos oulros significantcs dade e diferenciação de. funções. n
para ele. Na anterior ilustração, nosso habitante do su- A relação entre os outros significativos e o "coro" na
búrbio provavelmente pro~urará em sua famnia e em ou- conservação da realidade é dialética, isto é, existe. uma
tros associados privados, dentro do ambiente familiar relação reciproca entre os fatores, assim como no que
(vizinhança, igreja, clube, etc.) essa confirmação, embOTa respeita à realidade subjetiva que servem para confirmar.
os fntimos. companheiros de trabalho possam também de- Uma identificação solidamente negativa por parte do am-
sempenhar essa função. Se além do mais ele dorme com biente mais amplo pode finalmente afetar a identificação
a secretária, sua identidade é confirmada e ampliada. Isto fornecida pelos outros significativos, quando até mesmo
supõe que o indivlduo gosta que sua identidade seja o ascensorista deixa de dizer "senhor'" a mulher re-
confirmada. O mesmo processo diz respeito a confirmação nuncia a identificar o marido como um homem impor-
de identldades das quais., o. indivfduo pode nlio gostar. tante. Inversamente, os outros significativos podem fi-
Mesmo conhecimentos casuais podem confirmar sua auto- nalmente ter um efeito sobrl: o nleio mais amplo, uma
.Identificação como um irremediável .fracasso, mas a mu- esposa "ll.!al" pode ser uma vantagem em vários aspectos,
lher. os filhos e a secretária ratificam este fato com inep
quando O' individuo procura fazer compreender uma certa
gáY~1finalidade. O prl,lCesso que vai da definiçlio da rea- identidade a seus companheiros de trabalho. A conser-
lidade objetiva à conservação da realidade subjetiva é vação c a confirmação da realidade implicam assim a
o mesmo em ambos. os casos .. totalida(]c d'a situação social do indivlduo, embora os
_ Os outros significativos na vida' do indivlduo são os outros significativos ocupem uma posição privilegiada
principais agentes da conservação de sua realidade sub~ ncstes processos.
jetlva. Os outros menos· sJgniflcatlvos funcionam como A importAncia relativa dos outros significativos e do
uma espécie de coro. A mulher, os filhos c a secretária "coro" p'ode ser vista mais facilmente se considerarmos
reafirmam solenemente cada dia que o indivíduo é um os casos de desconfirmação da realidad~ subjetiva. Um
homem importante ou um fracassado sem esperança. As ato desconf;-mador da realidade praticado pela esposa,
tias solteiras, as cozinheiras e os ascensoristas fornecem tomado em si mesmo, tem um poder muito maior do
graus variados de apoio a esta reafirmaçlo. Sem dúvida que um ato semelhante executado por um conhecido
é possfvel existir algum desacordo entre estas pessoas. ocasional. Os atos deste último precisam adquirir certa
O Indivfduo enfrenta então o problema da coerência, que densidade para se igualarem ao poder do prImeiro. A
pode caracteristicamente resolver ou modificando sua reiterada opinião do melhor amigo de um individuo, se-
realidade ou as relações que mantêm sua realidade. Pode gundo o qual os jornais não estão relatando aconteci-
ter a' alternaliva de aceitar a identidade como um malo- mentos consideráveis que se passam por baixo das apa-
gro, por um lado, ou de dar um tiro na secretária ou
divorciar-se da mulher, por outro. Tem tamWm a Opç5D
,1
:'
,i
:1
'/
J
. :~,'
"
rênclas, pode ter mais .peso do que a mesma oplnlao
com as outras. Isto não nega o rico halo de comunicação
::1 expressa pelo barbeiro. Entretanto, a mesma opinião ex-
::i pressa su~sivamente' por' dez conhecidos casuais pode não-verbal que envolve a fala. Entretanto a fala conserva
"

I começar a contrabalançar a opinião contrária do melhor uma posição privilegiada no aparelho total da conversa.
amigo do indivfduo. A cristalização que ocorre subje- E' importante acentuar contudo que a maior parte da
tivamente como resultado destas várias definições da rea- con,seJVação da realidade na conversa é implícita, não
lidade determinará por conseguinte o modo pelo qual expUcita. A maior parte da conversa não define em mui-
provavelmente o indiv(duo reagirá à aparência de uma tas palavras a natureza do mundo. Ao contrário, oCOrre
sólida falange de carrancudos, silenciosos chineses que fendo por pano de fundo um mundo que é tacitamente
carregam urna pasta de documentos no trem matinal, Isto aceito como verdadeiro. Assim uma troca de palavras,
é, determinará o peso que é ciado à definição da realidade como, por exeJ'Q-pl0,IIbem, está na hora de ir para a
pelo indiv(duo. Usando ai~da outro exemplo, se alguém estação" e "ótimo, querido, passe um bom dia no escri-
é 'um crente católico' a realidade 'de sua fé não está tório", implica um mundo inteiro dentro do qual estas
ameaçada pelos companheiros' de"1rabalho nãó-crentes, proposições aparentemente simples adquirem sentido. Em
más provalmente estará multo ameaçada por uma esposa virtude desta implicação a troca de palavras confirma a
incrédula. Numa sociedade pluralista, portanto, é lógico realidade subjetiva desse mundo.
que a igreja católica tolere uma ampla 'variedade de Entendido isto, ver-se-á que a maior parle, quando não
associações entre pessoas de crenças diferentes na vida a totalidade, da conversa cotidiana conserva a realidade
econOmlca e poHtica, mas continue a considerar com de- subjetiva. De fato, seu caráter maciço é realizado peJa
sagrado o casamento misto. Geralmente falando, em si- acumuiação e coerência da conserva casual, conversa que
tuações nas quais existe competição entre diferentes ins- pode se dar ao luxo de ser casual justamente porque
iitulções deflnidoras 'da realidade podem ser toleradas se refere a rotinas de um mundo julgado verdadeiro. A
todos os tipos de relações entre grupos secundários com perda da casualidade assinala uma quebra nas rotinas e,
os competidores, desde que existam, firmemente estabe- ao menos potencialmente, uma ameaça para a reaHdade
lecidas, relações de grupos primários em cujo interior considerada verdadeira. Assim, é possfvcl imaginar o
uma determinada reali6ade é progressivamente reafirma- efeito sobre a causalidade de uma conversa como a se-
da contra os competidores. • A maneira pela qual a igreja guinte: "Bem, está na hora de ir para a estação"
católica adaptou-se à situação plura1ista nos Estados "Ótimo, querido, não se esqueça de levar o revólver". '
Unidos é um excelente exemplo. Ao mesmo tempo que o aparelho de conversa mantém
O verc'ulo mais' importante da conservação da. realidade continuamente a realidade, também continuamente a mo-
~ a conversa. Pode-se considerar a vida cotidiana do in- difica. Certos pontos são abandonados e outros acrescen-
divfduo em termos do funcionamento de um aparelho tados, enfrequecendo alguns setores ,daquilo que ainda ê
de conversa, que continuamente mantém, modifica e re- considerado como evidente e reforçando outros. Assim
constrói sua realidade subjetiva'. li A conversa significa a realidade subjetiva de uma coisa da qual nunca s~
principalmente, sem dúvida, que as pessoas falam umas fala torna-se vacilante. Uma coisa é comprometer-se em
um ato sexual embaraçoso, outra, muito diferente é falar
• 01 Conc~llal de "grupo prima rio· e -gtupo uCllnda,la-
Coaley. Segulmol Iqlll a usa corrente 111 loclolalla am~rlcanl.
derivam de dele, antes ou depois. Inversamente, a conversa 'dá con-
li SObre o conceito
tillnll,led
de' "lI11llUlllo de conversaçlo , c/. Petcr L. Bercer e
K~lIner, "Marrl~ltc lnd lhe Canltructlon 01 ReaJlly" Dlolltllt4
tornos firmes a questões anteriormente apreendidas de
40 (lfG.t), '11. f'rledrlch Tenbruck (op. c/I.) dl.ellle com Ileu;'1 delalhe. maneira vaga e pouco clara. O indivrduo pode ter dú-
a lunclo das nd~1 comunIcaTIvas nl ,•••nlltençlo das realldadel caMun••
vidas sobre religião. Estas dl1vidas tomam-se reais de
uma maneira muito diferente quando as discute. O in- descontinuidade. Sirva de exemplo o uso da correspon-
dlvfduo então "convence-se" dessas dúvidas, que sio ob- dência para continuar a conversa significativa a despeito
jetivadas como realidade em sua própria consciência. Ge- da separaçlo ffsica." Diferentes conversas podem ser
ralmente falando, o aparelho' de conversa mantém a rea- comparadas no que se refere à densidade da realidade
lidade "fatando'~' de vários elemeqtos da experiência e que produzem ou conservam. Em totalidade, a freqQênc:ia
colocand~os em um lugar definido no mundo real. da conversa reforça seu poder gerador da realidade,
Esta força geradora da realidade, possulda p~la con- mas a falta de freqüência pode às vezes ser compensada
versól, é dada já no fato da objetivação lingüística. Vi- pela intensidade da conversa, quando esta se realiza.
mos como a linguagem objetiva o mundo, transformando Uma pessoa pode ver o amado s6 uma vez por mês,
o ponta rhei da experiência em uma ordem coerente. mas a conversa então empreendida tem suficiente intensi-
No esta~elccilncnto desta ordem a linguagem realiza um dade para compensar a relativa falta de freqaência. Cer·
mundo, no duplo se!!tido de apreendê-Io e produzi-Ia. A tas conversas podem também ser explicitamente definidas
conversação 6 a atualização desta eficácia realiudora da e legitimadas como tendo uma condição privilegiada, tais
linguagem nas situações face a face da existência indi- como as conversas com o confessor, com o psicanalista
vidu31. Na conv(!rsa as objetivações da linguagem tor- ou com uma figura semelhante em "autoridade". A "au-
nam-se objetos da consciCncia individual. Assim, o fato toridade" consiste neste caso na condição cognoscitiva c
fundamental conservador da realidade é o uso continuo normativamente superior que é atribuida a estas con~
da mesma língua para objetivar a experiência. biográfica versas.
reveladora. Em sentido mais amplo, todos os que emprc- A realidade subjetiva depende assím sempre de estru-
gam a mesma língua são outros mantenedores da reali- turas especIficas de plausibilidade, isto é, da base social
dadc. A significação deste fato pode tornar-se ainda mais especffica e dos processos sociais exigidos para sua con-
diferenciada considerando-se 'o, que se entende por 'uma servação. Só é possivel o Indivlduo manter. ~ua auto-iden-
"lIngua comum", da linguagem idiosincrásica de grupos tificação como pessoa de importância em um meio que
primãrios nos dialetos regionais ou de classe, à comuni- confirma esta identidade: uma pessoa só pode manter
dade nacional que se define em relações de IIngua. Exis- sua fé católica se conserva uma relação signiffcativ.3
tem correspondentes "retornos à realidade" para o indi- com a comunidade cat~lica, e assim por diante. A ruptura
vrduo que volta aos poucos indivíduos que entendem da conversa significativa com os mediadores das res-
suas alusões de grupo, setor a que pertence sua pro- pectivas estruturas de plausibilidade ameaça as realidades
míneia, ou à grande coletividade que se identificou com subjetivas em questio. Conforme o exemplo da corres~
uma particular tradição Iingllistica, por exemplo, em pondência indica, o Indivlduo pode recorrer a várias téc-
ordem inversa, aos Estados l)nidos, a Brooklyn, ou às nicas de conservação da realidade, mesmo na ausência
pessoas que freqUentaram a mtsma escola pública. d'a conversa real, mas o poder gerador da realidade des-
A fim de manter ,efetivamente a realidade subjetiva o tas técnicas é grandemente inferior às conversas frente a
aparelho da conversa deve s,er continuo e coerente. As frente, que tais técnicas são destinadas a substituir. Quanto
rupturas de continuidade ou consistencia ipso facto cons- mais tempo estas técnicas estiverem isoladas das confir.
tlf!!em uma a!1,'leçapara a reandade subjetiva em ques~ mações face a face, menos provavelmenle serio capazes
tlo. Já examin~mos os, expedientes que um indivíduo pode de conservar o tom de realidade. ro indivrduo que vive
adotar para fazer ,frente à ameaça de incoerência: Exis- durante muitos anos entre pessoas de diferente religião,
tem também várias, técnicas. para ,enfrentar a ameaça da
a própria sociedade institui procedimentos especlficos
separado da comunidade da.s que partj":pam de sua pró- para situações reconhecidas como capazes de implicar o
pria fé,' pode ~ontinuar a identificar-se, digamos, como \ ri.sco do colapso da realidade. Nestas situações pré-defl-
católico. Por meio da oração; dos exerclcios religiosos e md~s acham~se incluldas certas situações marginais, das
de técnicas semelhantes sua velha realidade católica pode quals a morte é de longe a mais importante. Entretanto.
continuar a ser subjetivamente importante para ele.' Por as crises na realidade podem acontecer em um número
pouco que seja, estas técnicas podem conservar sua con- consideravelmente maior de casos do que os estabelecidos
tlnua autO-:ldentificaçlo' como católico. Contudo, subjeti- por situações limites. Podem ser coletivos ou individuais,
vamente tornar-se-ão vazias de realidade "viva", a não dependendo do caráter do desafio à realidade social-
ser que sejam "revitalizadas" pelo contacto social com mente definida. Por exemplo, os rituais coletivos de con-
outros católicos. Sem dúvida, o indivíduo em geral Iem-j serv~ção da realidade podem ser i}1stitucionalizados para
hra-se das realidades do passado, mas a maneira de, ocasIões d~ catástrofe natural, e rituais individuais para
"refrescar" estas lembranças é conversar com aqueles que' épocas de infortúnio pessoal. Ou, de acordo com outro
participam da importância delas.· I
exemplo, podem ser estabelecidos procedimentos conser-
A estrutura de plausibilidade é também a base social vadores da realidade para enfrentar estrangeiros e sua
para a particular suspensão da dúvida, sem a qual, a ameaça potencial à realidade "oficial". O indivíduo pode
definição da realidade em questão não pode se conservar ter de atravessar uma complexa purificação ritual depois
na consciência. Neste ponto, foram lnteriorizadas e eStão do contacto com um estrangeiro. A ablução é interiori-
sendo continuamente reafirmadas sanções sociais especl~ zada como aniquilação subjetiva da outra realidade re-
ficas contra estas dúvidas desintegradoras da realidade. presentada pelo estrangeiro. Tabus, exorcismos e maldi-
O 'ridfculo é uma destas sanções. Enquanto se conserva
dentro· da 'estrutura de plausibilidade, o indivíduo sente- ções contra os estrangeiros, heréticos ou loucos servem
se ridículo quando surgem subjetivamente dúvidas a res~ igualmente à finalidade da "higiene mental" individual.
peito tia realidade em questão. Sabe que outros sorri- A violência desses procedimentos defensivos será propor-
riam se as anunciasse. Pode sorrir em silêncio, de si cional ã seriedade com que é considerada a ameaça. Se
mesmo, sacudir mentalmente os ombros e continuar a os contactos com a outra realidade e seus representantes
existir dentro' do munao sancionado desta maneira. Não se. tornam freqüentes os procedime~tos defensivos podem
é preciso dizer que este processo de autoterapia será e.vldentemente perder o caráter de crise e tornarem-se ro-
muito' mais diflcil se a estrutura de plausibilidade não foi tineiros. Por exemplo, toda vez que se encontra um es~
mais acessível como sua matriz social. O sorriso tornar~ trangeiro ,tem-se de cuspir três vezes, sem dar grande
se-á forçado, e finalmente com mt{ita probabilidade será importância ao assunto.
substituido por um pensativo rosto carrancudo. Tudo quanto até aqui dissemos a respeito da sociali-
Em situação de crise os procedimentos são 'esse'ncial- ' zação implica a possibilidade, da realidade subjetiva ser
mente os mesmos que na conse~ação rotineira, exceto transformada. Estar em sociedade já acarreta um contí-
que ,as 'confirmações da realidade devem se tornar expll- nuo processo de modificação da realidade subjetiva.
citas e intensas. FreqDentemente são postas em jogo téc- Falar a respeito da transformação implica por conse~
nicas rituais. ,Embora, o indivíduo possa ímprovisar pro- guínte, a discussão dos diferentes graus de' modificaçlo.
cedimentos de sustentação da reaUdade em face da crise. Vamos concentrar-nos aqui no caso extremo, aquele no
qual há uma transformação quase total isto é no qual
!I o C;(lI~c;.llode "Irullo de releftn.'.- tem lmportAnc;11 I este relpello.
o indMduo IImuda de mundos". Se f~rem es~larecidos
Compare-.e eom a anAllle de MenOR dnte ••• unto em IUI SotlCll Tlrr"",
and Social Sfrudllrt.
os processos impUcados no caso extremo, os de casos realidade. Representam a estrutura de plausibilidade nos
menos extremos serão mais' facilmente entendidos. papéis que desempenham com relação ao indivlduo (pa-
Caracteristicamente a transformação é apreendida sub- péis tipicamente definidos de maneira expUcita em ter-
jetivamente como total. Isto .evidentemente é uma com- mos de sua função re-socializante), e mediatizam o
preensão errOnea. Uma vez que a realidade subjetiva novo mundo para o individuo. O novo mundo do indi-
:
,
i
, . nunca é totalmente socializada não pode ser totalmente
transformada por processos sociais. No mfnimo o Indi-
vfduo encontra seu foco cognoscitivo e afetivo na estru-
tura de plausibilidade em questão. Socialmente isto signi-
vlduo transformado terá o mesmo corpo e viverá no mes- fica uma intensa concentração de toda interação signifi-
mo universo fisico. Entretanto, existem casos de trans- t:'ante dentro do grupo que corporifica a estrutura de
formação que parecem totais, quando comparados com plausibilidade e particularmente no pessoal a quem é alri-
modificações menores. Chamaremos alternações essas buida a tarefa de re-socialização.
trarisformações. M
O protótipo histórico da alteração é a conversão re-
A alternação exige processos de re-socialização. Estes ligiosa. As considerações acima podem aplicar-se a este
processos assemelham-se à socialização primária, porque fato dizendo extra ecclesiam nu/Ia saius. Por sa(us que-
têm radicalmente de atribuir tons à realidade e por con- remos dizer aqui (com as devidas desculpas aos te6-
seguinte devem reproduzir em grau considerável a iden- 'logos, que tinham outras coisas em vista quando cunha-
tificação fortemente afl!liva com o pessoal socializante, raln esta frase) a realização empiricamentc bem sucedida
que 'er~ caracterlst,ica da inf~ncia. São diferentes da so-
da conversão. Somente dentro da comunidade religiosa,
cialização primária porque não começam ex m'hilo, c co-
a eeclesia, a conversão pode ser efetivamente mantida
mo resultado devem enfrentar o problema de desmante- como plauslvel. Isto não significa negar que a conversão
lar,: desintegrar' a precedente estrutura nômica da reali- pode antecipar-se à fillação a uma comunidade. Saulo
dade subjetiva. Como pode ser feito isto?
de Tarso procurou a comunidade cristã depois de sua
Uma "receita" para a alternação bem sucedida deve:
cexperiência de Damasco.... Ma~ não é esta a questão.
incluir condições sociais e conceituais, servindo as con-
Ter uma experiência de conversão não é nada demais.
dições sociais evidentemente de matrizes para as concei-
A coisa importante é ser capaz de conservá-Ia, levando-a
h.iais. A ~ondição social mais importante é a possibilidade
a sério, mantendo o sentimento de sua plausibilidade.
de dispor de tlma estrutura efetiva de plausibiJidadc,
isto é, de uma base social que. ,sirva de "laboratório"
'1::' aqui onde entra a comunidade religiosa. Esta fornece
a indispensável estrutura de plausibilidade para a nova
da transformação. Esta estrutura de plausibilidade será
oferecida ao indivlduo pelos outros significativos com os realidade. Em outras palavras, Saulo podia ter-se tor-
quais deve estabelecer forte, identificação afetiva. Não e nado Paulo na solidão do êxtase religioso, mas só teria
posslvel a transfor,maçâo radic~l da realidade subjetiva podido permanecer Paulo no contexto da comunidade
(incluindo evidentemente a identidade) sem esta identifi- cristã que o reconheceu como tal e confirmou o cnovo
caçl0, qU,e innvitavelmente repete as experiências Infantis ser~ em que ele agora localizou sua identidade. Esta
da' dependência emocional com relaçi~ aos outros' signifi- relaçlo enlre conversão e c~munidade não ê um fenÔ-
cativos.· Estes últimos são os guias que conduzem ã nova meno particularmente cristão (apesar dos aspectos his-
toricamente peculiares da eeclesia cristã). E' possfvel O
•• CI. Pele' 1... fler«er, 1,,,l/l:Illon /0 Soclo/OD (Ouden CIlJ' 1\1. V••
Ooubledl)'-Aaehor. I96J), pp. ~41' (em portulllU: In/foduç40 cl :Sot/tI/oela,
V(lle, 1972}. '. CtllO de r••• oc:tlllzaçlo. com SIII relultlnle Idclltlllclçlo cam 01 Olltrol
»0 concclto pslçan1111lco de "IrlnlferenC.I" lcfcre·sc prcclalmcnte a IlrnlllcatlvOl cnClrU&ldOI dele, de lIIodo que nlo se pode tlrlr COIICIUI6.-
UIC fCl\6mc.no, O que os' PlfcanaUllal que o cmpreram nlD comprcrndcm. dei" fen&1MIIO re!lrenlel • ..\ldlde cocaolcllln d.. ·comprunl4Uw
cvldenlemente. I que, o lenbll1eno pode ur encontrado em qpolqDlf prO" que ocorrelll .1 Iltuçlo pllcllIJltllIcl.
indivrduo manter-se muçulmano fora da umma do ~slam, A alternação implica assim a reorganização do. a~~-
budista fora da sangha, mas provavelmente não pode relho de conversa: Os participantes da conversa slgnt.fl-
permanecer hindu em nenhum lugar fora da India. A' re~ cativa mudam. E' a conversa com os novos outros Slg-
ligião exige uma cornunid~de religiosa e a vida em um nificath/os a realidade subjetiva é transformada. Man·
mundo religioso exige a filiação a essa comunidade. ti tém-se mediante a permanente conversação com eles ou
As estruturas de plausibilidade da conversão religiosa na comunidade que representam. Dito de maneira sim-
foram imitadas por organizações seculares de alterna~ ples isto significa que o indivlduo tem agora de ser
ção. Os melhores exemplos encontram-se na área da multo cauteloso com as pessoas a quem fala. São evi-
doutrinação política e da psicolerapia. 11 tadas sistematicamente pessoas e idéias discrepantes das
A estrutura de plausibilidade deve tornar-se o mun- novas definições da realidade." Uma vez que raramente
do do' indlvlduo, deslocando todos os outros mundos, é possível fazer isso com sucesso, quanto mais não seja
espe~ialmente o mundo que o individuo chabitava> antes por causa da mem6ria da realidade passada, ~ ~ova es-
de, sua, alternação. Isto exige a separação do indivíduo trutura de plausibitldade fornecerá caractenstlcamente
dos «habitantes, .dos outros ,mundos, especialmente de vários procedimentos terapêuticos para tratar das ten-
seus «co-habitantes». no mUIJ,doque deixou para trãs. dências de capostasia). Estes procedimentos segu.em o
Ideatmente isto será segregação flsica. Se por alguma modelo geral da terapêutica precedentemente examInado.
razão isto não for possivel, a segregação é estabelecida A mais importante exigência conceitual da alteração
por definição, ou seja por. I;1ma' definição dos outros que é a' disponibilidade de um aparelho legitimador para a
os aniquila. O individuo que executa a alternação de- série completa da transformação. O que tem de ser le-
sengaja-se de seu mundo anterior e da estrutura de gitimado não é somente a nova realidade, mas as eta-
::, plausibilidade que o sustentava, se posslvel corporalmen- pas pelas quais é apropriada e mantida, e o abandono
te, e quando nlo, mentalmente. Num caso e noutro não ou repúdio de todas as outr~s rea1idade~. O lado ~ni-
,,:
i, está mais «atrelado a,os infiéis:., ficando assim protegido quilador do mecanismo conceltual é parlJcularmente Im-
..: da influência potencial destruidora da realidade exercida portante em vista do problema de' desmantelamento que
;t
': por aqueles infiéis. Esta segregação é particularmente tem de ser resolvido. A velha realidadet assim como as
"~I
,[
importante, nas etapas iniciais da alternação (a fase do coletividades e os outros significativos que anteriormente
<novlciado:t). Logo que a nova realIdade se consolidou a mediatizavam para o indivIduo, devem ser reinterpre-
.' ~ tadas dentro do aparelho legitimador da nova realidade.
é posslvel estabelecer de novo relaçl5es circunspectas com
"
';
estranhos, embora os estranhos que costumavam ser bio- Esta reinterpretação produz uma ruptura na biografia
I" ; graficamente significativos sejam ainda perigosos. São subjetiva do individuo em termos de caC.> e <de.»,
p~
;1 os Clnicos que diria «Larga isso, Saulo" e haverá oca- cpré-Damasco) e <p6s-Damasco». Tudo que precede a
:1
I'
siões em que a velha realidade por eles invocada toma alternação ê agora compreendido como conduzindo a ela
,I a forma' de tentação. , . (como um «Velho Testamento>, por assim dizert ou uma
~'1 praeparatio evangetii), tudo que ~ segue é c~mp~eendido
I • E! a 1110 que Durkheim le r'ferl~ em. lUa. 11I4'lIe do c.rAler IlIevUI·
\'tlmenle 10CIII· da ,elllllo, Nlo Ul&rJlmlll, conhldo. li ,lermo "trreJ."
como derivando de sua nova reahdade. lsto smp\tca uma
:\ ,I pari deslcnar • ·comullldade moral" da' rell.llo, porllue 16 t adequado
a um CIIO hl.lorlcamente upectllco na Inlllluclonallzaçlo da ,ellllllo,
Interpretação da biografia passada in tolo, de acordo
I 11 O. ..tudo. da. t~enlell de -'avagem cerebral" empregldu pelo. co- com a fórmula. «Então eu pensava .. '. agora sei" fre-
J
.'
!
munl.t.. ehlnesel .10 conslderavelm'ente reyeladarea dOI pldrlln bblclIs da
alternaçlo. CI•• por exomplo, E<lWard Hunler, Bralnwashlnll /11 Red China
(N~ York. Vanguard Prels, 1951). Oollman, em lell lIyro Af)l/um., ~hega
qaentemente isto 'inclui a retrojeção para o passado dos
próxtmo I mOllr.r o paralelo de procedlllunto com I Illlcolarapla de • '\'~m dluo, c:ompare'le com Festlnr:~r no ~ue diz reapelto a evlllr
': r:rupoa nOI eSlado. Unlilol.
"
:.' 'al deUnlçOel dllcnpantu di realldlde.
"
'.

:1
q "
esquemas inlerpretativos' presentes (a fórmula para isso desta maneira. Estes últimos tornam-se atores de um
é: «Então eu já sabia, embora de maneira pouco cla- drama involuntário, cujo significado nio conseguem ver.
ra ... ") e motivos que não eram subjetivamente pre- Não ê de admirar que, caracteristicamente, rejeitem a
sentes no passado mas são agora necessários para a atribuição que Ihes é feita. E' por esta razão que os
reinterpretação .do que ocorreu então (a fórmula é a profetas tipicamente saem-se mal em sua terra. Neste
seguinte: lI:.Realmente fiz isso. porque ... »). A biografia contexto é que se pode entender a declaração de Jesus
anterior à alternação é caracteristicamente aniquilada in segundo a qual seus seguidores devem abandonar o pai
toto, sendo envolvida numa categoria negativa que ocu- e a mãe.
., pa uma posição estralé,gica no, novo aparelho legitima- Não é difícil agora propor uma cprescrrçao) especi-
.: dor: "Quando eu ainda vivia uma vida de pecado", fica para a allernação em qualquer realidade concebível,
• d «Quando eu ~inda tinha uma consciência burguesa~,
,:! por mais implausivel que seja do ponto de vista de
..;, cQuando era amda motivado por estas necessidades neu- quem está de fora. f' possível prescrever procedimentos
,I

:.1 r6ticas InconscJentes•.. A ruptura biográfica identifica-se especlficos, por exemplo, para convencer os indivíduos
:1 assim com a separação cognoscitiva das trevas e da luz. de que devem pôr-se em comunicação com seres prove-
',I
" Além desta reinterpretação in 10/0 deve haver rein- nientes do espaço exterior, desde que se submetam a
terpretações particulares de acontecimentos e pessoas uma permanente dieta de peixe cru. Deixemos à ima-
./ com significação' passada. O indivfduo que sofre a aI- ginação do leitor, se tiver gosto para isto, elaborar em
J'1 ternação' estaria sem dúvida melhor se pudesse esque- detalhes o que seria uma tal seita de ictíosofistas. A
'1
I cer completamenle 'alguns destes. Mas esquecer comple- cprescrição~ implicaria a construção de Ullla estrutura de
I, tamente é coisa sabidamente. diflcil. Por conseguinte, o plausibilidade ixtiosoflsta, convenientemente separada do
" que é necessârlo é uma radical· reinterpretação do sig- mundo exterior e equipada .com o necessário pessoal
nificado desses acontecimentos e pessoas passados na socializador e terapêutica. A elaboração de um corpo
biografia do indivíduo. Sendo relativamente mais fácil de conhecimentos ictiosofista suficientemente requintado
inventar coisas que nunca aconteceram do que esquecer para explicar o nexo evidente entre o peixe cru e a tele-
aquelas que realmente aconteceram, o indivfduo pode patia galáctica não tinha sido descoberto antesj e tam·
fabricar acontecimentos e inseri-Ios nos lugares adequa- bém as necessárias legitimações e aniquilações para da-
dos, sempre que f~rem necessários para harmonizar o rem sentido ao caminho do indivfduo em direção a esta
passado lembrado com o passado reinterprelado. Sendo grande verdade. Se estes procedimentos forem cuidado-
a nova realidade; e nlo a antiga, que agora lhe apa~ samente seguidos, haverá uma alta probabilidade de su-
rece como dominantemente plausível, pode ser perfeita- cesso, desde que o indivíduo seja seduzido ou seqQes-
~ente «sincero. nesse procedimento. Subjetivamente pão Irado em um instituto de lavagem cerebral ictiosofista.
está mentindo a ..respeito do passado, mas fazendo-o Existem naturalmente na prática muitos tipos inter-
harmonizar-se com a verdade, que necessariamente abran- mediArios entre a re-socialização, tal como acaba de ser
g~ tanto o presente quanto o passado. Esta questão, examinada, e a socialização secundária, que continua a
dIga-se de passagem, é muito importante se quisermos ser constru(da sobre as interiorizações primárias. Nes-
compreender corretamente os motivos que se acham por tas há transformações parciais da realidade subjetiva ou
trás das falsificações e invenções de documentos religio- de particulares setores dela. Estas transformações par-
sos, historicamente freqUentes. Também as pessoas. prin- ciaIs são comuns na sociedade contempor!nea em ligação
cipalmente os outros significativos, são relnterpretados com a mobilidade social do indivfduo e o treinamento
profissional." N'este caso' a tra~stormação da realidade que se tornou um médico importante no subúrbioj «evi-
subjetiva pode ser considerável transformando-se o indi- dentemente» veste-se e fala de modo diferente; ceviden-
viduo em um tipo aceitável da classe média superior ou temente» agora vota a favor dos repl1blicanos; «evidente-
em um médico aceitável e inferiorizando os adequados mente~ casou-se com, uma moça vassar, e talvez seja
apêndices da realidade. Mas"estas 'transformações carac- também um fato natural que só raramente visite os pais.
teristicamente l!stão longe da re-socializaçlo. São cons- Estes esquemas interpretativos, existentes prontos numa
truidas com bases nas interioriz~ções primárias e geral- sociedade onde há considerável mobilidade para cima e
mente evitam abruptas descontinuidades na biografia sub- já interiorizados pelo índivlduo antes que ele pr6prlo se
jetiva do indivíduo. Como resultado, enfrentam o pro- tenha tornado realmente móvel, garantem a continuidade
blema de conservar a coerência entre os primeiros e os biogrãfica e suavizam as incoerências que despertam.·'
ts,rdios' elementos da realidade subjetiva. Este problema, Procedimentos semelhantes OCorrem em situações nas
que, não está presente nesta forma na re-socialização, quais as transformações são consideravelmente radicais
que rompe a biografia subjetiva e reinlerpreta o passado mas definidas como de duração temporária, por exem-
mais do que correlaciona o presente com ele, torna-se plo, o serviço militar de curto perlodo ou em casos de
tanto mais agudo quanto mais a socialização secundária hospitalização não demorada, f' fácil ver aqui a di-
II

tende 'para a re-soclalização sem realmente coincidir com ferença com relação à plena re-socialização, comparan-
ela. A re-socialização é como o caril! do nó górdio do do-se o que acontece com o treinamento para a carreira
problema da coerência, consiste em renunciar à questão militar ou com a socialização de pacientes crônicos. Nos
da coerência e reconstruir a' realidade de nOl/o. casos- do primeiro tipo a coerência com a realidade e a
,Os procedimentos, de manutenção da coerência impli- identidade anterior (existência civil ou de pessoa sa-
cam também um remendo do passado, mas de maneira dia) está já estabelecida pela suposição de que finalmen-
menos radical, uma abordagem ditada pelo fato de que te o indivíduo retornará àquelas condições.
em tais casos existe em geral uma associação contCnUil Falando de modo geral, é possível dizer que os proce-
com, pessoas e grupos que foram anteriormente signifi- dimentos em questão têm caráter oposto. Na re-sociali-
cativos .. Continuam a l!star em redor, provavelmente pro- zação o passado é reinterpretado para se harmonizar
testarão contra as reinterpretações demasiado fantasisfas, com a realidade presente, havendo a tendência a retro-
e devem ser eles próprios convencidos de que as trans- jetar no passado vários elementos que subjetivamente
formações ocorridas são plausiveis. Por exemplo, no ca- não eram acessfveis naquela época. Na socialização se-
so de, transformações que se passam em ligação Com a cundária o presente é interpretado de modo a manter-se
mobilidade social c~istem esquemas lnterpretativos pron- numa relação continua com o passado, existindo a ten-
tos, que explicam o acontecido a todas as pessoas in- dência a minfrnizar as transformações realmente ocorri-
teressadas sem. estabelecer a total metamorfose do indi- das. Dito de outra maneira, a realidade básica para a
vlduo afetado. Assim, os pais de um indivrduo dotado re-socialização é o presente, para a socialização secun-
desta mobilidade para cima aceitarão certas mudanças no dária é o passado.
comportamento e nas atitudes deste indivíduo como um
acompanhamento nec~ssãrio, ou até mesmo desejável, de
sua nova posição na vida. «Evidentemente», concordarão, '. o concellO. .ttlbeteeldo pOf Rtnmln, de ';dlreçlo IIlfl o outro· I o
conCeito d. Merton di Mloelallu;lo 11Illelpltorl.- lha Imporl&nel. 1 nle
Irving teve de disfarçar, sua natureza de judeu, agora retaeHo. ,
Ill' Cf. 01 en•• lol IGbr. loelolo.ll. m~dlel por 11.1101 Preldeon. Thcodor
1. Llmlrl I JUllUl A. Roth em A.rnold Rose (ed,l. Human Brhwlor and
SOCllÚ Ptrn:e"cr,

Você também pode gostar