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Esse livro é dedicado a duas pessoas,

Meu filho Ícaro que me fez companhia durante essa quarentena.


E a minha namorada Aparecida, que me faz muita falta nesse
período de isolamento.
Prefácio do autor
Esse é um pequeno ensaio bastante despretensioso, escrito com
muita liberdade em que não tentei seguir qualquer norma acadêmica, não
apenas por serem enfadonhas, mas para gozar de maiores liberdades
estilísticas. Eu o disponibilizo nessa versão digital imediatamente após
escrevê-lo, mesmo sem passar por uma revisão mais cuidadosa, tanto em
virtude da situação do mundo, quanto pelo fato de que, mesmo sendo um
ensaio sem grandes pretensões, pode ser uma leitura útil. Além disso, estar
isolado me deixa mais ansioso para ver algo acontecer, mesmo que para isso
tenha de pular as etapas ditadas pelo bom senso e pelo profissionalismo. De
antemão peço desculpas pelos eventuais erros que cometi no texto, eu
normalmente escrevo muito rápido, quase de maneira automática, mas esse
escrito foi particularmente rápido, da minha inspiração para escrevê-lo a ele
estar pronto se passaram apenas oito dias.
Espero que seja uma leitura interessante, divertida e útil. Por mais
que ele tenha sido escrito em um tempo muito curto, ele só foi possível em
virtude de duas décadas debruçado cotidianamente sobre a obra de Jung.
Tentei ser o mais simples, direto e conciso possível, bem como evitar
arroubos literários e erudição desnecessária. O meu intuito é que o aspecto
sistemático do pensamento de Jung, que em geral não é imediatamente
visível em seus escritos, venha para o primeiro plano da consciência do leitor
e isso sirva como um sério alerta para evitar interpretações bobas e
francamente inúteis do pensamento de Jung.
Esse tipo de interpretação, em geral esdrúxula, me irrita
profundamente, pois obscurece os aspectos práticos da ciência de Jung e sua
possibilidade de ajudar as pessoas. Curt Goetz disse, certa feita, que “O
inteligente irrita-se com a burrice. O sábio diverte-se”. Caso eu fosse um
sábio, coisa que não sou, a comunidade junguiana seria pra mim uma fonte
inesgotável de divertimento, mas em geral é apenas uma fonte de irritação.
Esse modesto escrito é mais um dos meus esforços para que Jung possa ser
reconhecido pelo que ele é, e não pelas interpretações malucas que fazem
dele sem qualquer critério. Jung era um médico, capitão do exército suíço, pai
e marido, um cientista e terapeuta preocupado com as agruras e sofrimentos
de seus pacientes, nem mais, nem menos.
O pensamento vivo de Jung
O intuito desse escrito é ajudar a compreender de que maneira se
articula o pensamento de Jung e por quais parâmetros podemos entender a
maneira como elaborou sua Psicologia. Utilizo o termo “pensamento”
justamente por seu caráter genérico e pouco específico, e para evitar o uso da
palavra “teoria”, que, como veremos, é inadequada para descrever a
Psicologia de Jung. Existem muitos preconceitos e incompreensões que
cercam a sua obra, algumas dessas mistificações se devem a qualidade e ao
caráter de seus leitores, e quanto a isso nada, ou muito pouco pode ser feito.
Por outro lado, há de fato uma imensa dificuldade em adentrar ao pensamento
de Jung, e, não raro, numa primeira visada temos impressões equivocadas,
especialmente porque, assim como os americanos, Jung esperava a
inteligência de seus leitores.
Jung conta uma historieta interessante. Quando estava nos
Estados Unidos ao passar por uma linha férrea notou que, diferente da
Europa, não havia uma cerca impedindo que as pessoas arriscassem a vida
passando por cima dos trilhos, havia apenas uma placa de advertência. Diante
desse fato da cultura material, dessa comparação tão peculiar, ele deduziu que
os europeus pressupõem a burrice, pois é preciso impedir pessoas idiotas de
morrerem por serem incautas, apressadas ou intrépidas usando uma cerca. Já
os americanos, supõe que basta um aviso, pois você é inteligente o bastante
para não assumir um risco desnecessário. Americanos pressupõem a
inteligência e os europeus a burrice. Talvez haja uma outra conclusão acerca
do fato observado por Jung, os americanos não dão a mínima para os idiotas,
enquanto os europeus se importam o bastante para que seus idiotas sejam
mantidos vivos, apesar de si mesmos. Se me permitem ampliar ainda mais a
alegoria, eu não pretendo fazer aqui uma placa de advertência, mas uma
cerca conceitual, então, eu lhe peço desculpas estimado leitor, mas, diferente
do que usualmente faço, vou supor que os leitores de Jung são, em média,
idiotas.
Essa não é uma opinião apenas minha, um outro autor, de quem
particularmente não gosto, James Hillman, compartilha da mesmíssima
opinião, diz ele que: “Junguianos são em sua maioria gente de segunda linha
com mente de terceira categoria”. Se você, estimado leitor, não está descrito
nessa frase, certamente sabe do que eu e Hillman estamos falando.
Se você ainda está lendo, significa que talvez seja alguém que só
precise de uma placa, e não de uma cerca, esse escrito, porém também vai lhe
ser útil. O universo Junguiano é tão apinhado de falsidades, desonestidade, e
crasso desconhecimento de Jung e seu pensamento, que pessoas inteligentes
se afastam assustadas ou francamente horrorizadas. Eu mesmo devo ter
permanecido, porque inicialmente não tive o menor interesse em conversar
com “junguianos” ou me inteirar de que existia uma comunidade ao redor da
obra de Jung. Durante os primeiros dez anos de leitura da obra, ela me
absorveu completamente devido ao imenso desafio intelectual, espiritual e
moral que representa. Só depois eu descobri que essa comunidade era na
verdade um circo...
O trabalho a que me proponho aqui, possui um certo viés
epistemológico, mas não se trata de uma obra de epistemologia,
especialmente por se dirigir a uma finalidade prática. Jung propôs um método
psicoterapêutico, e os estudiosos do seu pensamento, podem acabar se
tornando psicoterapeutas. A psicoterapia é uma prática dificílima,
extremamente arriscada e perigosa. Jung criou o mais abrangente e profundo
método de psicoterapia, algo de uma imensa utilidade prática, capaz de ajudar
muitas pessoas, desde que se compreenda seu pensamento e saiba atuar de
acordo com seu método. Como o fito desse escrito é ajudar justamente as
pessoas que se aventuram nessa senda, ele não se caracteriza como um escrito
de epistemologia propriamente dito.
Como pretendo construir essa “cerca” conceitual? Esclarecendo
algumas categorias que ou estão presentes na obra de Jung, ou que a
descrevem e circunscrevem. Eu acredito que se você, estimado leitor, as
compreender, poderá honestamente retornar aos textos de Jung evitando ser
atropelado pelo trem do misticismo, o vagão do pensamento teosófico, a
locomotiva da interpretação anacrônica de Jung, o vagão do sincretismo com
a psicanálise, ou os vagões do psicologismo, da pseudo-metafísica e do
racionalismo aplicado.
Quais são essas categorias? A dialética, Jung nomeadamente
chama seu método clínico de “método dialético”, compreender do que se
trata e de como Jung se utiliza em termos práticos é fundamental para evitar
ser atropelado pelo psicologismo e pela mistura espúria com a psicanálise ou
qualquer outra teoria da moda. A segunda categoria é o nominalismo, Jung
afirmou diversas vezes que nunca fez uma teoria, mas sim um “nominalismo
culto”, compreender isso evita ser atropelado por uma interpretação
racionalista da obra de Jung. O pragmatismo e o empirismo, bem como a
noção de ciência de Jung compõem outra parte dessa cerca juntamente com
o funcionalismo/estruturalismo e, por fim, as duas últimas partes têm a ver
com Kant: o seu agnosticismo e Dualismo. Como um adendo importante,
também me deterei naquilo que considero ser a ética proposta por Jung, e
esse viés perpassará toda a discussão desse escrito.
Jung denomina o seu método clínico de método dialético, no
entanto ele não possui uma definição regional de dialética (διαλεκτική), ou
em outras palavras, ele não redefine o sentido de dialética em seu sistema de
pensamento. Muito pelo contrário, ao falar em dialética ele usa definições
simples e diretas. Em seu livro A Prática da Psicoterapia, Jung afirma que a
psicoterapia deixa de ser vista como um método simples e mesmo evidente, e
pouco a pouco passa a ser vista como um procedimento dialético, que ele
define simplesmente como uma discussão entre duas pessoas, para em
seguida dar duas definições igualmente concisas. Tratava-se originalmente da
arte de conversação entre os antigos filósofos, mas que logo adquire o
significado de “método para produzir novas sínteses”.
Mais adiante, no mesmo livro, ele torna essa definição tanto mais
complexa, quanto a regionaliza um pouco, ou seja, ele faz um uso do termo
dialética que é um pouco mais específico ao seu sistema de pensamento. Ao
especificar a sua contribuição no desenvolvimento da moderna psicoterapia,
que surge com Freud, recebe uma contribuição de Adler e, por fim, Jung
aparece subsumindo os dois como casos particulares de sua psicologia mais
geral e acrescenta algo que seus dois antecessores não foram capazes ou não
se interessaram em integrar em seus métodos clínicos. Nesse sentido, trata-se
da capacidade de desenvolvimento individual do paciente, ou seja, do
processo de individuação.
O método dialético é justamente o indicado para lidar com esse
aspecto individual, pois a individualidade é única, imprevisível e não
interpretável. Ao lidar com esse imponderável, o médico deve renunciar a
todos os seus pressupostos e técnicas e limitar-se a um método puramente
dialético, ou dito em outras palavras, evitar todos os métodos. Jung doravante
efetua uma correção em sua afirmação anterior, de que o método dialético
seria o mais recente fruto da evolução dos métodos psicoterapêuticos, porém
não se trata de uma evolução dos métodos, mas de uma completa renúncia a
eles. Nesse sentido a dialética se converte numa atitude, com as
características de ser “a menos preconcebida possível”. Na atitude dialética, o
médico abandona sua posição ativa e simplesmente vivencia junto um
processo evolutivo individual. Fundamentalmente, no método dialético ou
atitude dialética, ou processo dialético, o psicoterapeuta está em pé de
igualdade com aquele que ainda é considerado paciente.
Antes de avançarmos, convém recordar que a problemática que
força o médico a adotar a dialética como procedimento é a da
individualidade, ou seja, o fenômeno da individualidade do paciente: a sua
separação da primitiva participação mística seja com as imagos parentais ou
com a sociedade; é o que obriga ao abandono de todos os métodos e ter como
única ferramenta a própria personalidade. Aqui se revela uma característica
empírica de Jung, ele não força o objeto (nesse caso a individualidade) a se
conformar a conceitos ou categorias pré-concebidas, puramente racionais.
Dito de outra maneira, somente a individualidade do médico pode lidar com a
individualidade do paciente em um diálogo livre de preconceitos teóricos ou
filosóficos. O que nos remete a antinomia entre conhecimento e
compreensão, que eu formulo, a partir de Jung como “o conhecimento não
importa perante a compreensão e a compreensão não importa perante o
conhecimento”. Jung afirma, em Presente e Futuro, que não pode haver
autoconhecimento a partir de uma teoria, pois quanto mais uma teoria
pretende validade universal menor sua possibilidade de aplicação a uma
conjuntura de fatos individuais. Como as teorias se baseiam na experiência
elas são estatísticas, estipulam uma média ideal que elimina todas as exceções
e esse valor médio ideal figura na teoria como um fato fundamental, com isso
as exceções se anulam reciprocamente.
O método estatístico nos dá um termo médio ideal de uma
conjuntura de fatos e não a sua realidade empírica, esta por sua vez se
caracteriza justamente pela irregularidade. A conclusão é que não pode haver
autoconhecimento por meio de pressupostos teóricos, já que o objetivo do
autoconhecimento é um individuo, ou seja, uma exceção e uma irregularidade
relativas. O indivíduo não é caracterizado pelo regular (médio) e o universal,
mas pelo único. Ele não é uma unidade recorrente, mas algo único que não
pode ser comparada e nem mesmo conhecida de antemão. Em nosso, caso, o
do método dialético, ou seja, a compreensão de um outro indivíduo no
processo analítico, é preciso abandonar os pressupostos teóricos pelo fato da
individualidade não ser um valor ideal, ou uma regularidade, tampouco
unidade recorrente, mas uma exceção e irregularidade não passível de
comparação com dados preexistentes da realidade ou teóricos. Assim o
conhecimento se dirige ao regular e universal, enquanto a compreensão se
dirige ao individual. O que é vantagem para o conhecimento redunda em
desvantagem para a compreensão, no caso do terapeuta ele deve sustentar os
opostos sem contradição e atentar tanto para o conhecimento quanto a
compreensão, visto a compreensão ser indispensável ao tratamento psíquico
que tenha como horizonte a individuação, em outras palavras, que seja
pautado pela ética da individuação.
Jung não propõe o abandono da ciência ou do método estatístico,
apenas aponta sua patente limitação quando se trata de uma psicoterapia que
tem diante si não um termo médio ideal, mas um ser humano de carne, osso
com uma existência individual, e que possui em si o germe, a potencialidade
da individualidade psíquica. Ele gostava de um velho ditado suíço, o de que
não se deve jogar fora o bebê junto da água suja do banho, ao criticar o
método estatístico ele o faz não simplesmente para abandoná-lo, mas para
constituir uma perspectiva que possa levar em conta a individualidade, sem
abrir mão de constituir uma Psicologia geral de cunho científico, como
veremos adiante.
Como podemos compreender isso a luz da dialética? Entender a
ligação dessa sofisticada discussão metodológica e epistemológica de Jung
que redunda na sugestão de uma ética analítica, com a arte de conversação
entre os antigos filósofos? Eu usarei o conhecimento histórico e filosófico
como uma maneira de ajudar você, estimado leitor, a melhor compreender
Jung. Tudo o que eu apresentar doravante, são ferramentas heurísticas, isto é,
explicativas. Jung supõe uma vasta erudição em seus leitores, nenhum leitor
culto médio possui o grau de erudição requerido para se compreender sua
vasta obra, não se culpe por isso. Desde cedo eu segui o conselho de Joseph
Campbell de procurar os autores que eram referência para os grandes autores
que eu estava lendo, como Jung, e seguir seus rastros intelectuais para melhor
compreendê-lo.
Uma coisa importante é marcar a diferença entre Jung e os
“antigos filósofos”, a primeira e mais fundamental é a de que Jung jamais foi
filósofo. Se pensarmos em Platão em especial, muitos acusam Jung de
praticar uma espécie de neo-platonismo ao falar em arquétipos (visto esse ser
um termo platônico, uma perífrase explicativa para a ideia, o eidos,
platônico), todavia a noção de arquétipo de Jung pouco ou nada tem a ver
com a noção platônica. É preciso que fique claro que Jung negava a
metafísica, não era filósofo e era um cientista, como veremos ao falar em seu
agnosticismo e nominalismo culto, e principalmente, não era um
racionalista, mas um empirista e pragmático. O problema é que no meio do
“circo”, ou seja, da comunidade junguiana, algumas pessoas fazem um uso
dos arquétipos como se eles fossem de fato um platonismo psicológico, e
incorrem num horrendo psicologismo.
Jung não parte em sua análise dos fatos psicológicos de princípios
prontos, que regeriam a articulação entre os fatos psicológicos. Ele faz
justamente o oposto, procura compreender a maneira como os fatos
psicológicos se articulam sem recorrer a qualquer princípio que os regule de
maneira universal e apriorística, procurando no interior dos próprios fatos
psicológicos a sua forma de estruturação. Jung também não simplesmente
generaliza os fenômenos empíricos e a partir dessas generalizações cria
conceitos que existem apenas na sua cabeça, é por isso que ele se apressava
em dizer que não criou uma teoria, pois seus conceitos não são essas
generalizações que se afastam dos fatos empíricos. Ele até mesmo nomeia
seus conceitos de “conceitos empíricos” ou “conceitos experimentais”. Seus
conceitos descrevem os fenômenos, mas não os explicam. Não é a toa que ele
compara os arquétipos a classificação botânica, pois a classificação botânica
não é um fato empírico, mas descreve e classifica o fato empírico da
similaridade entre as famílias das plantas. Assim como a classificação
botânica, os arquétipos não regem a articulação dos fatos empíricos, mas são
nomes que descrevem fenômenos análogos. Os conceitos de Jung foram
criados com o intuito de traduzir objetivamente a realidade dos fenômenos
psíquicos observados.
Nesse sentido, quando eu vou encarar um fenômeno individual,
que não pode ser comparado, mas que é uma irregularidade relativa, se antes
eu já não dispunha de princípios prontos que regeriam a articulação dos
fenômenos, à moda racionalista, aqui eu perco até mesmo a possibilidade de
usar generalizações teóricas, ou o método estatístico de propor uma média
ideal, pois a individualidade não é uma média, mas uma exceção à média.
Nesse caso, o método clínico é um procedimento dialético, pois a dialética é
uma forma de compreender as coisas em si e por si mesmas, assim, ao invés
de saber de antemão, aprioristicamente os princípios universais que regem a
articulação dos fenômenos psicológicos, Jung descobre dialeticamente a
lógica de articulação desses fenômenos neles mesmos.
Curiosamente, isso resolve o problema do abandono de todos os
métodos, pois a dialética não é um método que já vem pronto de antemão e
pode ser simplesmente aplicado de maneira mecânica a realidade dos fatos
psicológicos e que me permite chegar a um certo resultado. Paradoxalmente,
o método depende dos objetos em questão, do percurso percorrido no trato
com esses. A dialética não aponta um caminho de antemão, pois é a lógica
interna desses objetos investigados que vai indicar e constituir o caminho, ou
seja, o método. Isso já era assim em Platão e Heráclito, por mais que o
filósofo de Éfeso seja apontado como o pai da dialética, é em Platão que o
termo é incorporado ao léxico filosófico pela primeira vez, e aí inicia uma
longa carreira, que passa por nomes como Aristóteles, Hegel e Marx.
Acerca de Platão, lemos em Filosofia e Método, do padre
Henrique de Lima Vaz, que o caminho dialético não obedece a um caminho
de regras fixadas de antemão, mas segue as peculiaridades próprias do
conteúdo investigado, a partir de uma pergunta ou dificuldade inicial.
Nos diálogos socráticos de Platão, vemos alguns aspectos da
dialética que podem nos ajudar a compreender melhor o que Jung se propõe a
fazer. Sócrates não se coloca como um grande conhecedor de nenhum tema
específico, ao contrário, como atesta a sua famosa afirmação “tudo o que sei
é que nada sei”, ele assumia uma postura de ignorância, ou seja, de ausência
de pressupostos. Assim, ele partia de uma pergunta ou problema inicial para
averiguar o conhecimento de alguém que alegava ter um saber sobre
determinado assunto por meio de uma conversa que consistia em perguntas
que não estavam prontas de antemão, mas que dependiam das respostas dadas
ao problema inicial. Esse problema era, em geral, aparentemente simples.
Sócrates fazia perguntas para testar o conhecimento alegado pelo
seu interlocutor, mesmo não tendo ele mesmo esse conhecimento, pois
pressupunha que não se podia ter o conhecimento de um fato isolado, mas
que esses fatos estavam em interação. As perguntas eram então dirigidas à
pessoa que julgava saber o que era o amor, ou a verdade etc., e estavam
sutilmente conectadas ao problema original da conversa, caso uma
contradição emergisse isso era o indicativo de que o interlocutor não possuía
o saber que alegara de início. A “verdade”, seja ela qual for, não é
imediatamente revelada por esse tipo de diálogo, mas se estabelece a
existência de contradições o que invalidam a alegação inicial de
conhecimento sobre algo.
Resumidamente, temos duas pessoas uma que vai propor uma
pergunta e a outra que vai responder essa pergunta, em seguida, o interlocutor
que fez a pergunta vai testar a resposta dada por meio de uma série de
perguntas sutilmente ligadas ao problema inicial proposto, com o intuito de
averiguar a existência de contradições o que tornaria a resposta inicial falsa.
Assim, resumindo ainda mais, nos diálogos platônicos (onde vemos o uso
prático da dialética), vemos uma discussão dos dois lados em questão, uma
explicação da verdade, e uma exposição do erro.
Obviamente esse é um resumo da generalização mais ampla
possível do método dialético em Platão, pois a maneira como ele o apresenta
varia de acordo com a obra que estivermos observando. Em termos muito
gerais, ao se observar diversos momentos da dialética platônica em suas
obras, percebe-se que o primeiro objetivo de Sócrates era negativo, ou seja,
demonstrar o erro de seus interlocutores, mas já em Sócrates existe um
segundo movimento de considerar as similaridades entre as proposições
particulares que pudessem indicar a existência de um universal capaz de
subsumir as proposições particulares. Tanto em Sócrates quanto em Platão,
por influência de Parmênides temos um direcionamento do método dialético
para as formas eternas, aos universais em sentido realista e não nominalista.
Platão, em seus diálogos posteriores a fase socrática, não
abandona o método dialético como proposto por seu mentor, mas o torna algo
mais complexo, basicamente um método de análises seguida de sínteses.
Platão faz uma negação do mundo sensível como algo enganador, e o seu
método dialético tem o objetivo de virar as costas ao conhecimento sensível
do mundo e dirigir o olhar para as formas eternas, puramente racionais, o que
pode ser entendido como a orientação original da alma humana, que anseia
secretamente por essa verdade já vislumbrada, vagamente pressentida, porém
esquecida, coberta por um véu de ignorância. Um aspecto crucial do método
dialético como compreendido por Platão/Sócrates é que ele não é um
procedimento solitário, no caso filosófico, o professor e o aluno são partes
integrantes e indispensáveis do método. O professor convida o aluno a
formular suas crenças na forma de hipóteses e em seguida ou o questiona e o
desafia a negar ou afirmar certas proposições sutilmente ligadas à pergunta
original e/ou extrai as consequências das hipóteses levantadas pelo aluno.
Uma coisa muito curiosa, é que lendo Platão para tentar
compreender melhor o que Jung chama de dialética, certos aspectos que
passariam despercebidos numa leitura de interesse puramente filosófico
saltam aos olhos. Por exemplo, por mais que o método dialético tenha a ver
com o logos, ou seja, a palavra, o discurso, a mente, a racionalidade, existe
uma ligação entre os dois, professor e aluno, que se dá não pela via do logos,
mas sim do Eros, e que permite que o diálogo não descambe simplesmente
em uma polêmica ou agressividade. Mesmo correndo o risco de ser
anacrônico, soa muito como a noção de transferência formulada por Freud e
posteriormente modificada por Jung em virtude de sua noção diferente de um
inconsciente psíquico.
Por mais que eu adorasse me alongar ainda mais nessa remissão a
Platão, o melhor é retornar a Jung, ou meu excesso de zelo erudito pode
transformar meu esforço numa mera placa. O principal é entender que o
caminho dialético não obedece a um caminho de regras fixadas de antemão,
mas segue as peculiaridades próprias do conteúdo investigado, a partir de
uma pergunta ou dificuldade inicial. Muitas pessoas me perguntam se há uma
contradição quando Jung propõe que se abandonem todos os métodos e
técnicas, mas indica o uso de um método para isso, bom, creio que isso
responde a essa dúvida tão frequente. Além disso, é preciso que fique claro
que o método dialético depende dos objetos em questão do percurso
percorrido no trato com eles.
Dito de outra maneira, a dialética é um tipo de raciocínio que visa
compreender concretamente os objetos tendo em conta todo o seu
movimento, mudanças, inter-relações, levando em conta, igualmente, seus
aspectos contraditórios e possíveis oposições para compor uma unidade. A
dialética nunca começa e nem pode começar com uma definição fixa dos
objetos com as quais deseja lidar. Como no diálogo dos antigos filósofos, em
que as afirmações subsequentes dependiam da maneira como a pergunta ou
problema inicial fosse respondida, pois mesmo junguianos não têm como
saber de antemão o que alguém está pensando[1].
Retornando a Jung, é importante notar que um de seus conceitos
mais importantes, símbolo, é um resultado direto da dialética e está
intimamente ligado a ela. Por meio da compreensão de símbolo podemos
adentrar na dialética de Jung no terreno da psicologia e de seu nominalismo
culto. O símbolo, em resumo é uma síntese dialética. Uma neurose é uma
desunião consigo mesmo, de uma maneira elegante, Jung a define como a
existência de duas tendências opostas na consciência, sendo que uma delas é
inconsciente. Eu vou esboçar aqui de maneira esquemática como se pode
entender dialeticamente o símbolo unificador em Jung (vereinigende
Symbol).
Antes de começar, deixe-me fazer um parênteses erudito, nas
obras completas, no Tipos, o termo que aparece em português é símbolo de
união, porém o termo vereinigende no original em alemão pode ser o
particípio presente do verbo vereinigen (unir), assim como o adjetivo
unificador. O substantivo união em alemão é Union ou menos
frequentemente Vereinigung. Quando eu digo em português símbolo de
união, corro o risco entender símbolo em sentido corriqueiro do nosso idioma
e achar que ele não participa dinamicamente do processo, mas que apenas o
representa. Porém, o símbolo unifica nele os opostos de maneira dinâmica,
por isso vou usar a minha tradução símbolo unificador. Malgrado essa
crítica pontual, a tradução das obras completas de Jung é muito boa no geral.
Voltando a vaca fria. Há uma tendência consciente que é a tese,
essa tese é a atitude consciente que tem uma tendência natural à
unilateralidade, pois toda atitude para ser adaptativa precisa de uma direção.
A atitude atua direcionando, selecionando e excluindo, com isso, ao ser
tornar mais adaptada (a consciência é um mecanismo momentâneo de
adaptação) ela vai deixando de lado cada vez mais possibilidades vitais que
são excluídas e formam um “contrapeso” no inconsciente, até que essa
especialização não se conforma mais aos fatos objetivos, parando a
progressão da libido. Essa libido agora desaparece da consciência e reativa
regressivamente os conteúdos inconscientes (princípio energético da
equivalência), agora com essa quantidade extra de energia, se instalam na
consciência e a dividem. Como num cabo de guerra em que os dois
contendores possuem exatamente a mesma força e nenhum dos dois lados
consegue derrotar o outro. Por isso a consciência perde a sua função
adaptativa e sobrevém a estagnação característica da neurose. A
unilateralidade é indispensável à adaptação, o que se perde na neurose é
justamente essa direção da consciência, seu ponto focal.
Assim a consciência passa a ser assombrada por sintomas (a
antítese oprimida), e, ao mesmo tempo, a tese consciente é mantida
teimosamente por uma infinidade de razões que tem enorme importância
prática, mas que não cabem nesse esquema. Paradoxalmente, a neurose traz a
sua própria terapêutica, pois é justamente naquilo que foi negado pela atitude
consciente que está à saída para o dilema neurótico. Porém não adianta
simplesmente se entregar ao sintoma, como os dois têm igual força nada
acontece verdadeiramente. É por isso que Jung denomina o papel do analista
de espelho dialético, assim como no método socrático ele vai questionar o
paciente de maneira crítica acerca de suas posições conscientes, numa espécie
de dialética negativa (como exposto anteriormente), diferente de Sócrates,
não temos o bom e o belo eternos para nos guiarmos e sequer sabemos se eles
existem ou não (devido à posição de agnosticismo), o que temos como guia é
a manifestação sintomática do inconsciente que podemos simultaneamente
criticar e espelhar dialeticamente e apresentá-la como antítese da posição
consciente, tendo em mente a hipótese basilar de que a relação entre
consciência e inconsciente é compensadora.
O símbolo para Jung é um fenômeno natural e espontâneo, que
unifica as duas posições que dividem a consciência em uma terceira via onde
as duas, tese (atitude consciente) e antítese (sintoma inconsciente) continuam
tendo igual valor, porém podem ser unificadas e com isso a energia que
escoou para o inconsciente pode retornar a consciência e esse processo
dinâmico de unificação dialética leva a uma nova adaptação, ou seja, a uma
nova atitude e a uma nova progressão da libido. Infelizmente a função
transcendente, ou dito de outra maneira, o símbolo, não é simplesmente um
produto da técnica, por mais que ele seja essa nova síntese que surge da
análise das duas posições em conflito, mediadas pelo Eros que une os dois:
médico e paciente, ele permanece sendo um produto autônomo da psique
inconsciente, mas que só pode surgir com a colaboração da consciência.
Não é ocioso resaltar, que o esquema que esbocei aqui da
dialética proposta por Jung, do papel de espelho dialético, bem como da
função dinâmica do símbolo e o seu papel na dialética é esquemático e
obviamente incompleto. A vida e a dinâmica desse processo possuem
detalhes que são de suma importância, devil is in detail! Podemos perceber
que há uma enorme sutileza na dialética psicológica de Jung, pois no fundo
se trata, num nível mais superficial, de um diálogo entre o médico e o
paciente, num nível um pouco mais profundo entre o médico e o inconsciente
do paciente em que o paciente dialoga com o seu inconsciente por intermédio
da figura do médico (espelho dialético) e, num nível mais profundo, um
diálogo entre a consciência e o inconsciente do paciente. Obviamente esse
esquema poderia se complicado ainda mais com a adição de outros elementos
(como o inconsciente do médico), mas se eu assim o fizesse, ele perderia o
valor de ser simples.
Quando os sintomas estão superados, e podem ser superados por
uma análise redutiva dos mesmos, surge à possibilidade do desenvolvimento
da personalidade, pois a clínica psicológica não é o lugar apenas de quem
está doente, mas igualmente da pessoa sã, mas que sente a premência de se
desenvolver, não no sentido inicial de se transformar, mas no de tornar-se
quem se é, ou dito de outra forma, surge toda a problemática que tocamos
inicialmente, a individualidade, e que demanda uma postura dialética.
Novamente sublinho, Jung não era nem filósofo, nem platônico, metafísico,
tampouco gnóstico, tudo do que estou falando aqui está no campo
psicológico. É preciso ressaltar que ao se utilizar um procedimento dialético,
você descobre dialeticamente a lógica de articulação desses fenômenos neles
mesmos, sem que seja imposto nada de fora. Creio que isso ficará ainda mais
claro quando passarmos adiante. Passemos ao nominalismo culto de Jung.
No seu livro Tipos Psicológicos, Jung de uma maneira muito
discreta, faz uma afirmação de enorme alcance epistemológico, ele afirma ser
um nominalista culto. Justamente nessa obra, ao discutir longamente o
problema dos universais, numa espécie de caminho em que o problema
adquire mais e mais profundidade psicológica, até chegar a quase uma
resposta em Abelardo com o seu nominalismo relativo – segundo Jung, um
dos motivos de Abelardo não ter dado uma resposta foi o fato de não haver
uma psicologia objetiva – passando por James, o pai da Psicologia norte-
americana que com seu método pragmático quase resolve a questão e, afirma
Jung, mesmo não tendo resolvido o problema dos universais produziu um
método indispensável, até chegar a Nietzsche que resolve a contenda milenar,
mas Jung não nos revela que resposta teria sido essa em seu longo e erudito
texto.
O problema dos universais encontrou basicamente duas respostas
ao longo do tempo, que formaram uma polaridade e uma tensão ao longo da
história, de um lado o realismo de orientação platônica e de outro o
nominalismo à moda aristotélica. Jung, assim como James, compreende o
problema como tendo uma base psicológica a depender da inclinação do
filósofo em questão e utiliza a longa contenda filosófica para exemplificar
seus dois tipos gerais de atitude: introversão e extroversão. Uma atitude é,
de maneira concisa, uma direção apriorística do interesse (libido), mas logo
voltaremos a esse ponto. O que Jung não deixa tão claro no seu texto, é que
ele igualmente oferece uma resposta ao problema dos universais, uma
resposta propriamente psicológica, como veremos. Todavia, o que nos
interessa aqui é compreender o que significa a afirmação de Jung, a de que
ele jamais criou uma teoria, mas sim um nominalismo culto.
Irei sumarizar da maneira mais breve possível o longo debate
levado a cabo por Jung no Tipos tendo em vista que nosso propósito aqui é o
de compreender a posição de Jung acerca de seu autodeclarado nominalismo
culto. O intuito é que fique claro o que significa essa posição, depois eu irei
traçar algumas consequências dela, bem como relacionar isso ao empirismo
e dialética de Jung, somente ao final vou esboçar a resposta de Jung ao
espinhoso problema dos universais.
Para adiantar as coisas, temos duas inclinações que findam se
convertendo insidiosamente em duas posições unilaterais que não se
reconhecem como confissões subjetivas, mas sim como um pensamento
objetivo acerca das coisas. De um lado a inclinação que vira as costas ao
universo sensível, material, grosseiro e perceptível pela apreensão sensorial e
o vêm como enganoso, voltando-se para o pano de fundo psíquico impessoal,
de onde emanam “formas eternas”, imagens visionárias da fantasia, que
atraem o interesse desse tipo humano, e o fascinam por se imporem de
maneira majestosa e tremenda.
Do outro temos a inclinação para qual o interesse se afasta da
fantasia e suas “formas eternas” e cujo interesse é atraído fatalmente para as
pessoas, as coisas mundanas, materiais, práticas e para os quais os universais
não passam de palavras para descrever generalizações existentes nos objetos,
ou seja, as “formas eternas” não são eternas, tampouco a priori, mas
predicados dos objetos reais e que surgem a partir de sua observação e
generalização. Introversão e extroversão, in a nut shell.
Partindo para o Tipos (livro fundamental, não deixe de ler), Jung
explica que nominalismo é escola que compreende os universais, ou seja,
conceitos genéricos como: a beleza, o bem, o animal, o homem etc., nada
mais do que nomes (nomina). O realismo, por seu turno, afirma a existência
dos universais antes das coisas (ante rem), e que eles existem por si mesmos
como queria Platão (lembre da nossa discussão sobre dialética). O
nominalismo é uma tendência crítica que nega a existência separada e
característica das abstrações e isso se vincula a um certo ceticismo e
dogmatismo. Para o nominalismo a verdade coincide com a realidade
sensorial das coisas e sua individualidade representa o real. O realismo faz o
oposto do nominalismo e transfere o valor da realidade para o abstrato, a
ideia, o universal que ele coloca antes das coisas.
Com isso vemos novamente o que Jung procura demonstrar, pois
para ele o introvertido é abstrativo (se afasta das coisas individuais e dá maior
valor a ideia abstrata) e o extrovertido é empático (anima de vida e
importância os objetos individuais).
Na antiguidade além de Platão e Aristóteles, como representantes
do realismo e do nominalismo, Jung aponta igualmente as escolas Megárica
e Cínica como representantes do nominalismo. Os cínicos, fundados por
Antístenes, eram inimigos ferrenhos do mundo das ideias de Platão, a noção
de um mundo ideal afastava as pessoas e negava sua sexualidade, que surge
como um empecilho para se adentrar de maneira desimpedida no mundo das
ideias, algo que te aprisiona ao mundo sensual e suas armadilhas (uma das
maneiras de chegar ao mundo das ideias era morrer). O lema de sua escola
era o de um retorno à natureza, e fazia uma crítica destruidora e incansável de
todos os valores tradicionais. Um dos famosos cínicos da antiguidade foi
Diógenes, dele vem à expressão cínico (em grego, cachorro), que se
esforçava em demolir tudo o que havia de mais sagrado em seu tempo,
caçoando da antropofagia e do incesto que aparecia nas tragédias.
Jung traduz o espírito megárico com uma anedota de Estilpão que
ao chegar a Atenas e ver a maravilhosa estátua de Palas Atena disse que
aquela não era a filha de Zeus, mas de Fídias, o famoso escultor que a
criara[2]. Com essa anedota vemos como o acento recai nas próprias coisas e
na sua individualidade, em sua história, e relações com outros objetos
concretos e não com abstrações ou ideias distantes da percepção imediata e
que desistoriciza esses objetos e os anula em sua individualidade, guardem
bem isso.
O que existia era a estátua, feita por Fídias. Estilpão ensinava que
os conceitos genéricos não tinham nenhuma realidade e nenhum valor
objetivo. Como na afirmação de Antifão “quem vê objetos compridos não vê
o comprimento com seus olhos, nem pode percebê-lo com seu espírito”.
Isso é o oposto de Platão, em que as ideias (como o comprimento)
que têm valor eterno e imutável. A crítica nominalista, de cínicos e
megáricos, coloca os conceitos genéricos como nomes puramente casuísticos
e descritivos, sem substância e coloca o acento na individualidade!
Jung também alude ao problema da inerência e predicação,
quando falamos em quente ou frio, estamos no referindo a coisas quentes ou
frias, nesse caso, tratam-se de atributos, predicados ou enunciados. O
enunciado se refere a algo percebido e realmente existente. Calor e frio são
conceitos abstraídos de uma pluralidade de fenômenos semelhantes que
ligamos em nosso pensamento a algo concreto. “calor” e “frio” são algo de
real para nós porque “a percepção repercute até abstração”, nesse caso é
difícil separar a abstração de sua objetividade.
Se passarmos de quente e frio para um conceito mais genérico e
abstrato como “temperatura” ainda percebemos o real por mais que tenha
perdido um pouco de sua precisão sensível, mas ainda conserva a qualidade
de representatividade de toda percepção sensível. Tornando as coisas ainda
mais abstratas e falando em “energia” desaparece o seu caráter de realidade e
com ele a qualidade de ser representado – nós podemos representar em nossa
imaginação o calor por meio de coisas físicas como uma xícara quente de
chá, ou um dia normal em Fortaleza, ou o frio por pedras de gelo, mesmo a
temperatura pode ser representada pela imagem sensorial de um termômetro,
energia perde essa possibilidade – aí surge um problema: a energia é
puramente conceitual e abstrata ou é algo “real”? Jung nos dá uma explicação
que nos esclarece justamente sobre o que queremos saber acerca de nosso
problema, ou seja, seu nominalismo culto:
O nominalista culto de nossos dias[3] está convencido de que
“energia” é simples nome, mero “coeficiente” de nosso cálculo
mental; mas, apesar disso, em nossa linguagem diária, tratamos
“energia” como se fosse algo real, causando em nossas cabeças
a maior confusão do ponto de vista epistemológico. (JUNG,
2013, p.43).
Fazendo um rápido parêntese, para aproveitar o exemplo de Jung,
acerca de energia. Em seu livro A Energia Psíquica, ele deixa a sua posição
de nominalista culto, indicada en passant nesse trecho, abundantemente
clara se pudermos conectar as duas obras. Ali, ele afirma textualmente que a
energia não existe objetivamente nos fenômenos, mas que se constitui apenas
como um coeficiente de cálculo intelectual, ela é algo puramente abstrato,
mas uma abstração de quê? Para Jung o conceito de energia é uma abstração
de relações de movimento, daí a sua necessidade de distinguir
conceitualmente dinamismos ou forças do conceito puramente abstrato de
energia. Ela não se encontra nos fenômenos a não ser como potência
(disposições). O que existe na experiência concreta, perceptível são o
movimento e as forças. O conceito abstrato de energia soma as forças e as
disposições, mas ele não passa de um coeficiente de cálculo mental, que
abstrai as relações de movimento. Energia é apenas um nome que indica uma
generalização e abstração que ajuda a traduzir objetivamente a realidade dos
fenômenos psíquicos obervados.
Essa última afirmação pode parecer complicada, mas veja, Marx
era um materialista, mas quando ele cunha o conceito de valor, por exemplo,
ele não está falando de algo que você possa ver ou tocar, mas um conceito
que traduz a realidade observada. Uso o exemplo de Marx para que você,
estimado leitor, veja que mesmo autores materialistas ao tratarem dessa
tradução objetiva da realidade precisam de generalizações, porém, como Jung
aponta no Tipos ao discutir imanência e predicação, abstraímos esses
conceitos de uma pluralidade de casos semelhantes, pois a abstração está
ainda intimamente ligada pela própria origem ao objeto de onde foi extraída.
Na teoria energética de Jung temos um exemplo bem acabado do que ele
compreende por nominalismo culto.
Traduzindo esse exemplo para você, estimado leitor, Jung é um
nominalista culto, pois ele não cria conceitos, mas generalizações a partir de
fatos empíricos, que ele sabe muito bem que não são empíricas, mas que
ajudam a traduzir objetivamente essa realidade observada. Parafraseando o
que ele disse no O Eu e o Inconsciente, o único critério de validez de uma
hipótese em Psicologia Complexa é o seu valor explicativo.
Outro ponto de seu pensamento em que fica patente o seu
nominalismo culto é na sua teoria dos arquétipos. Eu gosto de citar a nota de
rodapé do Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, em que ele diz que não
adianta criticar os arquétipos, pois eles não existem. São exatamente como a
classificação botânica, o que existe e dá um valor de realidade a essa
abstração são o fenômeno empírico da similaridade entre as famílias de
plantas, por isso essa classificação serve para traduzir objetivamente a
realidade dos fenômenos vegetais obervados. Outro dos meus exemplos
favoritos é quando em uma entrevista ao ser questionado sobre as críticas ao
seu conceito de arquétipo, ele disse não ter interesse em arquétipos e usou a
seguinte alegoria: seu interesse era em fatos psíquicos, mas pediu ao repórter
que imaginasse que ele coleciona pedras, e separou as pedras por suas
similaridades em gavetas e para identificar as gavetas ele colocou etiquetas
nelas. Os fatos são as pedras, as etiquetas os arquétipos, seu interesse recai
sobre fatos e não sobre etiquetas.
Em outro texto, ele diz que há uma tendência invencível de
substituir a realidade por palavras, as pessoas lêem sobre estábulos e pensam
saber tudo sobre eles, mas quando pela primeira vez entram em um se
chocam com o fato de ele feder! Arquétipos são generalizações ou predicados
acerca de fatos empíricos similares, são como o termo artrópodes, que
designa um grupo de fenômenos com características análogas e afins. O
problema é que os “junguianos” místicos e/ou racionalistas os utilizam como
se fossem categorias a priori que servem apenas de comparação analógica
para o fenômeno observado, nesse caso se transformam no que James
chamava de resposta verbal, não importa que fenômeno eu digo “olha, esse é
o arquétipo do velho sábio!” e pronto, imediatamente ele é simplesmente
comparado a essa categoria de maneira apriorística, e sua individualidade é
abandonada bem como as condições de sua aparição e suas articulações, ou
seja, o fenômeno é desistoricizado. Usado dessa maneira tosca, perde-se o
nominalismo culto e tem-se uma “teoria” tola de pouca ou nenhuma
utilidade real (até um relógio quebrado está certo ao menos duas vezes ao
dia).
Usado dessa maneira o arquétipo é determinado e determinante.
Ele é determinado como comparação analógica pelo observador, o
“junguiano” independente da individualidade do fenômeno, pois não importa
no que ele difere do “análogo eterno”, mas apenas no que ele é similar e
agora ele passa a ser determinado por essa categoria. Viram? Dessa maneira
temos um uso do arquétipo que é determinado e determinante e que despreza
completamente tanto a individualidade do fenômeno quanto a possibilidade
de traduzi-los objetivamente. Nesse caso temos um realismo tosco, um neo-
platonismo misturado com um psicologismo tonto, em que o arquétipo vira
um princípio universal que rege a articulação dos fenômenos psicológicos.
Dessa posição, uma dialética que busca a lógica de articulação desses
fenômenos neles mesmos é inviável, e o que resta é terapia por sugestão, e
isso com sorte! Se vocês prestarem um pouco de atenção, verão que
basicamente o que os “junguianos” fazem é esse jogo de determinar os
fenômenos usando “arquétipos”, algo que não possui nenhum valor
pragmático. Nesse sentido tolo, usado tão frequentemente pela trupe do circo
“junguiano” as arquétipos se convertem em uma definição fixa dos objetos
com as quais deseja lidar, o que é um erro, porque inútil clinicamente, por ser
um psicologismo, uma postura neo-platônica tonta, impedir qualquer uso da
dialética e não ser científico.
O nominalista culto não substitui a realidade por palavras, ele
traduz objetivamente a realidade por palavras (nomes), que ele sabe muito
bem que são atributos, predicados ou enunciados dos fatos objetivos. Além
disso, sabe que mesmo que esses nomes tenham um valor explicativo eles
não são entidades reais e nem tampouco surgem antes dos fenômenos ou
podem servir como respostas verbais, ou uma definição fixa dos objetos. Pelo
contrário, eles nos aproximam ainda mais dos fenômenos e geram mais
trabalho, são conceptual shortcuts. Nenhum desses conceitos surge do
pesquisador, ou existem apenas na sua cabeça, eles são hauridos dos
fenômenos, por isso Jung chama seus conceitos de “conceitos
experimentais”. Para o nominalista culto seus conceitos não regem a
articulação dos fenômenos, nem tampouco limitam artificialmente o campo
da observação empírica.
O nominalismo culto de Jung é igualmente indispensável ao se
pensar seu empirismo e pragmatismo, mas logo chegaremos a esse ponto.
Vamos retornar a sua discussão no Tipos. Jung relativiza a posição
nominalista pura, ou dogmática, ao afirmar que os conceitos genéricos
(comprimento, temperatura, quente, frio, amor etc.) deixam de ser meros
nomes quando designam as semelhanças ou conformidades entre as coisas.
Como essas conformidades existem, o conceito genérico corresponde a
algum tipo de realidade objetiva. Ele contém tanta realidade quanto à
descrição exata de uma coisa.
Passando ao princípio da inerência, toda a discussão até agora foi
sobre predicação, temos de compreender que o princípio da inerência
consiste em que não se pode afirmar de um sujeito muitos predicados, ou até
nenhum que dele divirjam. Só são aceitos como válidos os predicados que
são idênticos ao sujeito. A fragilidade dessa posição reside no fato de que
simples afirmações de identidade nada dizem (como quente é quente) e que
uma afirmação de identidade nada tem a ver com a coisa: a palavra “capim”
nada tem a ver com a coisa “capim” – tanto é que cada idioma tem uma
palavra diferente para designar a mesma coisa. O princípio da inerência, no
fundo, fetichiza a palavra, as toma como mágicas, pois admite ingenuamente
que a palavra coincide com a coisa. Isso relativiza a posição da crítica
nominalista contra o realismo, pois,
Quando, pois o nominalista diz ao realista “você está sonhando
– você pensa estar lidando com coisas, mas está lutando, o
tempo todo, contra quimeras verbais”, o realista pode
responder ao nominalista com as mesmas palavras; pois este
último também não está lidando com coisas em si, mas com
palavras que colocou no lugar das coisas. Mesmo que use uma
palavra especial para cada coisa individual, são apenas
palavras e não a coisa propriamente dita. (JUNG, 2013, p.47).
Por esse motivo Jung não é simplesmente um nominalista, mas
sim um nominalista culto, pois, como veremos, o avanço da Psicologia
objetiva nos livra pouco a pouco da concretização e da velha mágica das
palavras, que ingenuamente pressupõe que a palavra coincide com a coisa.
Retomando o exemplo da energia, Jung afirma jocosamente que mesmo que a
energia seja comprovadamente um mero conceito verbal, ela é tão real “que a
Companhia de Eletricidade paga dividendos aos acionistas”. O que dá a
“energia”, que é comprovadamente um mero conceito verbal, seu caráter de
realidade? O fato de que o nome “energia” designa simplesmente a
conformidade dos fenômenos de força, essa conformidade não pode ser
negada e dá sobejas provas de sua existência, logo, na medida em que uma
coisa é real e uma palavra a designa convencionalmente esta coisa, a palavra
adquire uma “significação real”. Na medida em que a conformidade de coisas
é real, o conceito genérico que designa essa conformidade adquire uma
“significação real”; que não é maior e nem menor do que o da palavra que
designa a coisa individual. O deslocamento de valor de um lado para o outro
vai depender das inclinações individuais e da psicologia contemporânea.
Uma inclinação introvertida vai valorizar a realidade da palavra que designa a
conformidade, enquanto uma inclinação extrovertida vai preferir a
observação da pluralidade de fenômenos individuais e vai entender os
conceitos como meras abstrações e não fatos. Uma psicologia contemporânea
de caráter materialista vai se inclinar aos fatos em sua concretude e
individualidade, enquanto uma psicologia em sentido espiritual vai preferir a
realidade das palavras em detrimento dos fatos objetivos.
De maneira muito sintética, essa é a resposta de Jung ao velho
problema dos universais, obviamente essa resposta é um pouco mais
complicada do que esbocei acima, mas fugiria ao escopo desse texto atacar o
problema de maneira mais pormenorizada. O que convém salientar é que,
mesmo diante do fascínio imorredouro que os “junguianos” têm com a
introversão, quando Jung assume um nominalismo culto e uma postura
empírica e pragmática, ele se atém uma posição científica extrovertida, com
o porém de não ser unilateralmente extrovertida e reconhecer a validade
relativa das duas posições, entretanto, enquanto cientista sua postura é
extrovertida. Para usar a curiosa expressão de James, Jung seria um cientista
tough-minded, ou seja, um empirista e não um racionalista. Isso fica mais
claro com uma alegoria usada por James para diferenciar o racionalista do
empirista, o empirista é como uma abelha que precisa ir as flores recolher o
pólen para fazer o mel, enquanto o racionalista é uma aranha que produz a
teia a partir de si mesma. Jung, nessa alegoria, é uma abelha, ou seja, um
empirista.
Se Jung tivesse de fato criado uma teoria, ele não poderia ser um
empirista, seria um racionalista. A sua admissão de um nominalismo culto
é indispensável para se compreender a sua posição como empirista e
pragmático, bem como todas essas coisas se conectam a sua dialética.
Passemos então, estimado leitor, ao empirismo de Jung bem como a sua
postura pragmática.
No caso da empiria de Jung, ele faz um uso particular desse
termo, que pouco tem a ver com os empiristas clássicos ingleses, ou dito de
outra maneira, ele possui uma definição regional de empiria. Essa definição
tem estreita relação com seu agnosticismo e dualismo bem como de sua
noção de ciência, e pretendo indicar com clareza essas conexões.
Jung, diferente de Freud, era um dualista. O que isso significa em
termos epistemológicos? Vamos fazer uma rápida remissão a Freud para
compreender Jung por contraste. Freud era um monista, ou seja, para ele não
existia uma dimensão psíquica em separado do corpo que demandasse um
método próprio, como queriam os historiadores Droysen e depois Dilthey.
Assim como seus mestres du Bois-Reymond e Ernst Brücke, Freud era um
fisicalista para quem apenas forças físico-químicas atuavam no corpo e a
atividade cerebral (mental para quem imagina uma divisão) deveria ser
explicada por forças de atração e repulsão e reduzidas a atividades físicas.
Sendo assim, não existindo uma dualidade entre mente e corpo, ou alma e
corpo, eu preciso apenas de um tipo de método e não dois como queria
Dilthey. Para Dilthey devido a patente diferença entre as ciências do espírito
ou morais como a história e as ciências naturais como a biologia, fazia-se
necessário a existência de dois métodos diferentes um para as ciências
naturais que seria explicativo e um outro para as ciências do espírito que seria
um método hermenêutico. Freud rejeita completamente essa distinção e para
ele ciência natural é simplesmente sinônimo de ciência. Freud nega a
dualidade de métodos científicos enquanto Jung a internaliza.
Para Jung existe uma diferença qualitativa entre a psique e o
corpo, porém ele não hipostasia (concretiza) essa diferença a ponto de pensar
na alma em separado do corpo à moda platônica, mas de uma alma que existe
na dependência de um corpo e vice-versa, como defendia Aristóteles. Em seu
A Prática da Psicoterapia, Jung afirma que a primeira antinomia com que
deparamos ao entrar no estudo científico da Psicologia é que “a psique
depende do corpo e o corpo depende da psique”. Não temos qualquer
evidência da existência de uma psique sem um corpo, e um corpo sem psique
é um corpo morto. Veja, estimado leitor, que se trata de um paradoxo, há uma
ligação misteriosa entre o corpo e a psique, da qual nada sabemos, e uma
interdependência.
Jung se esforçou para demonstrar em toda a sua obra que a psique
não é simplesmente um epifenômeno de causas materiais, ou seja, algo de
“saboroso” no cérebro, mas um fenômeno com dignidade própria. Em seu A
Energia Psíquica, ele afirma,
Em meu modo de ver, a relação psicofísica é um problema
distinto, que talvez venha a ser resolvido algum dia. Enquanto
isto, a psicologia não pode deter-se diante desta dificuldade,
mas pode considerar a psique como um sistema relativamente
fechado. É preciso, portanto, romper com a concepção
"psicofísica" que me parece insustentável, pois seu ponto de
vista epifenomenológico é ainda um resquício de uma herança
do velho materialismo científico. Na opinião de LASSWITZ,
VON GROT e outros, os fenômenos da consciência não teriam
nenhuma relação funcional recíproca, pois constituiriam
apenas (!) "manifestações, expressões e indícios de relações
funcionais mais profundas". As relações causais dos
acontecimentos psíquicos entre si, que podemos observar a
qualquer momento, contradizem o ponto de vista
epifenomenológico que possui uma semelhança fatal com a
concepção materialista segundo a qual a psique é uma secreção
do cérebro, tal como a bílis, que é uma secreção do fígado.
Uma psicologia para a qual o fato psíquico é um epifenômeno
melhor faria se se denominasse fisiologia do cérebro,
contentando-se com o magro resultado que uma tal psicologia
oferece. O fato psíquico merece ser considerado como um
fenômeno em si, pois não há motivo nenhum para concebê-lo
como um mero epifenômeno, embora esteja ligado à função
cerebral, do mesmo modo como não se pode considerar a vida
como um epifenômeno da química do carbono. (JUNG, 2002
p.7).
Creio que a longa citação é bastante elucidativa, logo, diferente
de Freud, Jung acata um dualismo, ou seja, a psique não pode ser
considerada mero epifenômeno de causas materiais, mas um fenômeno por
ela mesma como pode ficar demonstrado pelas relações causais dos
acontecimentos psíquicos entre si, bem como por suas relações funcionais
recíprocas. Sendo um fenômeno não apenas com dignidade própria, mas
qualidades e características próprias, ela demanda um método diverso
daquele utilizado pelas ciências que estudam a matéria. Todavia, Jung
internaliza a querela metodológica, ao afirmar que a sua psicologia possui um
lado de ciência da natureza: o seu método empírico descritivo; e um lado de
hermenêutico. Obviamente esse é apenas o primeiro passo para desvendar a
noção Junguiana de ciência, mas é um passo importante.
Lembrem-se da antinomia descrita a pouco, se imagino que a
psique é uma secreção cerebral como a bílis é uma secreção do fígado eu fico
apenas com “a psique depende do corpo”. Tendo isso sido esclarecido,
podemos passar ao empirismo de Jung sem maiores delongas.
Talvez não seja ocioso esclarecer o que seja a filosofia empírica,
ao menos em linhas gerais, para evitar que as duas coisas se confundam. De
uma maneira sucinta, podemos afirmar que o empirismo é a doutrina que
aponta a origem de nossos conhecimentos na experiência sensorial, ou seja,
nossos conhecimentos são todos a posteriori, tende a negar qualquer tipo de
inatismo, e assume que nascemos como uma “folha em branco” a ser
marcada pela experiência. Todos os nossos conceitos, nessa perspectiva são
generalizações a partir de dados indutivos, ou estatísticas. Opõe-se
fortemente ao racionalismo, doutrina que busca a verdade em proposições
lógicas, dedutivas, universais e a priori. Contrariamente ao empirista, o
racionalista acredita que a nossa razão pode compreender verdades
puramente racionais sem a mediação dos sentidos.
Há uma piada que ajuda a compreender essa diferença, uma
instituição científica criou um concurso para premiar o cientista que
apresentasse a melhor descrição do camelo. Dois cientistas se apresentaram:
um inglês e outro alemão. O inglês zarpou num navio, com uma grande
comitiva e viajou até o norte da África e iniciou uma longa jornada pelo
deserto, com dezenas de carregadores e guias, procurando por todo o tipo de
camelos, criadores de camelo, vendedores de camelo, e depois de um ano de
intensas viagens e buscas apresentou ao comitê julgador uma imensa massa
documental onde narrava tudo o que vira e ouvira em sua longa e laboriosa
jornada. O alemão, vendo aquilo, apenas voltou para a sua casa e ali
permaneceu por um ano inteiro, sozinho, sem ver viva alma. Depois de
transcorrido esse ano, ele saiu de lá com uma obra em doze volumes
intitulada A Descrição do Camelo a Partir do Eu. Obviamente, o inglês é o
empirista e o alemão o racionalista, o primeiro a abelha o segundo a aranha.
Num primeiro momento, pode parecer estranho que Jung seja o
inglês em nossa curiosa historieta, e não o alemão, mas devemos nos recordar
de que ele não é nem um e nem o outro, ele é um suíço. Teríamos que ter
uma outra piada, em que um inglês, um alemão e um suíço entram num bar...
No final aparece um judeu brasileiro para explicar o que diabos o suíço
estava falando. Mas, voltando a vaca fria, o principal é compreender que Jung
não vai propor uma empiria ingênua, e como a empiria está
fundamentalmente ligada a noção de percepção, podemos começar por esse
ponto para entender o que torna a sua concepção algo único.
Jung nos fala, no Tipos, de funções da consciência, ao todo temos
quatro funções, duas são judicativas pensamento/sentimento e duas são
perceptivas sensação/intuição. A sensação é a função que está ligada
diretamente a percepção sensorial propriamente dita, e a capacidade de
perceber o mundo objetivo e ser realista, porém a percepção não se limita a
sensação, a intuição é igualmente um tipo de percepção, mas é uma
percepção via inconsciente. A intuição é uma atitude orientada para a
percepção de conteúdos inconscientes que ocupa a libido (o interesse)
imediatamente de todos os elementos que emergem do inconsciente e os
associa a materiais paralelos, fazendo com que estes cheguem com maior
clareza e evidência à consciência. Para Jung, a percepção é a soma da
intuição com a sensação.
Tanto é que os seus “conceitos empíricos” também são
denominados de “conceitos intuitivos”, o que coloca intuitivo como um
sinônimo de empírico. Voltando um pouco a ideia de ciência de Jung, um
dos requisitos para poder pensar uma Psicologia científica, era a existência de
uma psique objetiva, ou seja, que não pudesse ser reduzida ao arbítrio, a
criação volitiva, ou a mera subjetividade. Uma psique objetiva é o mesmo
que uma psique impessoal, ou, termo que me desagrada, coletiva. Voltemos à
definição que dei a pouco de intuição, como uma atitude orientada a
percepção de conteúdos inconsciente. Nesse caso, temos que a intuição
percebe quando surgem espontaneamente, de uma maneira independente da
vontade, certos conteúdos do inconsciente, esses conteúdos (imagens)
possuem esse caráter de objetividade, eles não são idênticos ao eu. Logo, tais
conteúdos não foram inventados pela consciência à moda racionalista, mas
são percepções. Diferente de criações racionalistas, essas imagens percebidas
pela intuição tem a característica de serem irracionais.
Quando Jung ao analisar fantasias masculinas na clínica
individual, nos sonhos de seus pacientes, nos seus próprios conteúdos, na arte
e na mitologia, esses conteúdos percebidos intuitivamente, são um material
empírico. A partir do que essas fantasias possuem de análogo e afim, Jung
cria uma categoria descritiva chama anima, que descreve e traduz numa
generalização a conformidade desses fenômenos da fantasia. Essa
generalização, esse nome ou conceito, anima não explica os fenômenos que
descreve, porém uma das coisas que essas imagens psíquicas possuem em
comum é uma função comum. Anima enquanto uma generalização traduz
objetivamente a realidade dos fenômenos psíquicos obervados na psique
masculina inconsciente.
Obviamente, qualquer empirista já estaria de cabelo em pé e dedo
em riste protestando, pois uma descrição tão estapafúrdia jamais poderia
receber o nome de empiria. Como Jung os responderia? Na verdade a
resposta de Jung é tão simples quanto elegante, e diz respeito à psicologia da
percepção.
Junto do processo físico da percepção temos um processo
psíquico da apercepção. Esse processo psíquico é a tradução e transformação
dos estímulos sensoriais em complicadas imagens psíquicas. Assim, quando
olho para a capa azul escura do Tipos Psicológicos eu não percebo
sensorialmente o azul, o livro absorve todas as frequências de luz e reflete
apenas a frequência que no meu psiquismo será transformada na cor azul.
Logo, quando olho para o livro eu não tenho um acesso imediato à
materialidade do livro, essa materialidade nela mesma é um fenômeno
desconhecido, mas eu percebo a imagem psíquica do livro. É muito similar
ao esquema kantiano da estética transcendental. No fundo, para Jung a
matéria é algo simbólico e desconhecido, tão simbólico e desconhecido
quanto o espírito inconsciente. Vivemos entre duas grandes obscuridades, o
mundo inconsciente e o mundo material, é por esse motivo que Jung
denomina o materialismo de “metafísica da matéria”. Não temos um acesso
imediato ao mundo material, esse mundo é mediado por imagens psíquicas,
logo só vivemos imediatamente num mundo de imagens psíquicas. Em certo
sentido, a psique é a própria realidade.
Por essa lógica, a Psicologia pode certamente se considerar
empírica. Isso nos traz de volta ao conceito de ciência para Jung, pois a
partir dessa perspectiva da sua empiria é preciso complicá-lo, para entender
em maior profundidade a empiria em Jung. Para compreender melhor essa
complicação, devemos retornar ao Tipos. Logo no primeiro capítulo Jung faz
algumas distinções importantes, especialmente para o longo e erudito
percurso histórico que ele faz pelo pensamento antigo e medieval, diz ele que
a Psicologia objetiva (científica) é algo recente, mas que sempre existiu
Psicologia, no sentido de uma psicologia subjetiva, quanto menor a
psicologia objetiva, maior a psicologia subjetiva que se insinua no
pensamento dos autores. Além disso, ele afirma,
[...] há muitas pessoas que ainda acreditam na possibilidade de
se escrever uma psicologia ex cathedra, mas a maioria de nós
está convencida de que uma psicologia objetiva deve
fundamentar-se sobretudo na observação e na experiência.
Essa fundamentação seria o ideal, se fosse possível. O ideal e
objetivo da ciência não consiste em dar uma descrição, a mais
exata possível, dos fatos – a ciência não pode competir com a
câmara fotográfica ou com o gravador de som – mas em
estabelecer a lei que nada mais é do que uma expressão
abreviada de processos múltiplos que, no entanto mantêm uma
certa unidade. Esse objetivo se sobrepõe, por intermédio da
concepção, ao puramente empírico, mas será sempre, apesar de
sua validade geral e comprovada, um produto da constelação
psicológica subjetiva do pesquisador. Na elaboração de teorias
e conceitos científicos há muita coisa de sorte pessoal. Há
também uma equação pessoal psicológica e não apenas
psicofísica. (JUNG, 2002, P.23,24).
A primeira parte dessa afirmação de Jung já deve estar
suficientemente clara, mas por via das dúvidas irei explicá-la. Uma
“psicologia ex cathedra” seria algo como se o Alemão da piada do camelo se
trancasse em casa por um ano e saísse de lá com uma obra em doze volumes
chamada Descrição da Psicologia do Eu a partir do Eu Transcendental, ou
alguma bobagem racionalista similar. Jung advoga que uma psicologia
objetiva deve se basear na observação e na experiência, porém não aceita
ingenuamente essas duas categorias. O que não é possível são uma
observação e experiências puras, pois há tanto uma equação pessoal
psicofísica (que já discutimos) quanto uma equação pessoal psicológica.
Ele nega a possibilidade de uma ciência em sentido positivista,
que pressupõe uma objetividade por parte do observador, além de uma
completa objetivação dos fatos observados. Ao invés desse tipo de
observação positivista, ingênua e no fundo impossível ele propõe que se
busque “estabelecer a lei que nada mais é do que uma expressão abreviada de
processos múltiplos que, no entanto mantêm uma certa unidade”. Podemos
dizer a mesma coisa da maneira que fiz anteriormente, ao falar do
nominalismo culto e da dialética, essa lei (expressão abreviada dos
processos múltiplos) poder ser entendida como nomes que descrevem
fenômenos análogos; uma tradução objetiva dos fenômenos observados;
predicados dos objetos reais e que surgem a partir de sua observação e
generalização; um nome que indica uma generalização e abstração que ajuda
a traduzir objetivamente a realidade dos fenômenos psíquicos observados;
uma designação da conformidade dos fenômenos psíquicos; e algo de que lhe
falei apenas de passagem, da função exercida por esses fenômenos.
Então Jung nos fala de uma equação pessoal e de uma equação
psicofísica, já que tratamos da segunda, vamos à discussão levada a cabo por
Jung acerca da primeira, o que vai tornar o nosso quadro tanto da empiria
quanto de sua noção de ciência mais completo e matizado. Diferente da
maioria dos empiristas que imaginam um sujeito relativamente passivo aos
fatos objetivos, simplesmente absorvidos por ele em sua objetividade, Jung
supõe (com toda razão) que o efeito dessa equação pessoal já começa na
observação, pois “vemos aquilo que melhor podemos ver a partir de nós
mesmos”, ele ainda completa na mesma passagem “desconfio do princípio da
‘pura observação’”. Jung, ao mesmo tempo em que ressalta a sua definição
de empiria, ainda faz um ataque as grandes teorias gerais, mas de que
maneira?
Explicando sucintamente, na própria observação a nossa atitude
filtra a realidade, pois a vemos a partir de nossa equação pessoal. Por
exemplo, um tipo pensamento que atua na clínica terá a sua atenção voltada
para o discurso consciente e racional, tendo muita facilidade de observar,
compreender e acompanhar esse discurso que é o foco luminoso de sua
atenção enquanto as demais coisas estão nas sombras. Um tipo sensação terá
um foco naquilo de irracional que acontece espontaneamente, independente
do controle volitivo, o paciente diz que está tudo bem, mas lhe salta uma veia
na testa e seu maxilar fica travado por um segundo (uma manifestação de
seus afetos em seu corpo que ele talvez nem perceba) o analista nesse caso
terá uma atitude voltada para perceber (selecionar) esses fatos tão peculiares.
Como nossa atitude seleciona, direciona e exclui, ela já age no momento da
observação.
Além disso, essa equação pessoal aparece com ainda mais força
quando temos de expor o que se observou, sem falar na concepção e
abstração do material observado. Isso leva a uma necessidade de adequação
do observado ao seu objeto, ou seja, de uma atitude capaz de perceber os
fenômenos a que se dispôs a observar. Quando temos uma descrição e
concepção que de fato corresponde aos fatos objetivos, prova a validade da
concepção desde que ela não pretenda uma validade geral, mas somente para
aquela área do objeto que está sendo observada. Essa passagem nos lembra a
crítica que Jung faz a Freud, a da generalização indevida das suas
observações clínicas acerca do papel da sexualidade, bem como o julgamento
a partir de material psicopatológico que Freud faz da obra de arte, a tal ponto
que Jung chega a afirmar que se pode dizer da concepção de Freud que ou o
sintoma é uma obra de arte ou a obra de arte é um sintoma. Jung jamais disse
que a teoria de Freud era uma falsidade, mas que representava uma verdade
parcial, como veremos isso tem muito a ver com o pragmatismo de James.
Nessa passagem, vê-se resguardada a individualidade dos objetos observados,
bem como a generalização indevida ou a “criação” de teorias.
Jung vai ainda mais adiante, pois sua Psicologia leva em conta a
existência de um fator irracional, existencial, inalienável, o inconsciente. É
impossível ser objetivo, assim como é impossível numa observação se
concentrar apenas nos objetos, o sujeito da observação também deve estar em
questão. Assim como nas escrituras cristã, é mais fácil vermos o cisco no
olho do nosso irmão do que a trave em nosso olho, porém é justamente graças
à trave que conseguimos ver o cisco. Só enxergamos no psiquismo de outras
pessoas o que existe em nosso próprio psiquismo, em virtude do fenômeno da
projeção/identidade. Devido a isso, se não conhecemos a nossa equação
pessoal, vamos supor que todos os ciscos são traves, ou seja, vamos esperar
encontrar em todos a validade universal de nosso próprio inconsciente, além
de sermos incapazes de reconhecer a individualidade alheia.
Logo, não podemos observar o psiquismo tranquilamente de um
ponto de vista arquimediano externo, isso não existe, a Psicologia não é uma
ciência acerca do psíquico, mas no psíquico. Isso leva a uma profunda
consideração epistemológica, metodológica e ética. Essa constatação da
posição peculiar da Psicologia enquanto ciência engendra o abandono do
método da Psicanálise (associação livre e atenção flutuante), por um método
por amplificação. Quando em Psicologia se utiliza o método empírico, se
está refletindo o psíquico no psíquico e a concepção não é simplesmente uma
reconstrução da observação em outro meio. Todo processo psíquico, na
medida em que pode ser observado já constitui em si uma concepção
inequívoca e suficientemente positiva, o processo de reconstrução, ou
generalização, ou abstração mesmo a simples descrição não passa de uma
variante dessa concepção. A variação, nesse caso se constitui em uma
amplificação (amplificar é alargar um tema por meio da junção de
numerosas versões análogas). Se a reconstrução da visão não for exatamente
uma variação (ampliação), ela será uma tentativa de compensação (melhora,
censura etc) ou polêmica (crítica do mesmo) e, nesses casos, será uma
eliminação do processo que deve ser reconstruído. Esse é o pano de fundo da
afirmação de Jung de que “o sonho é a sua própria interpretação”, visto o
sonho já ser uma concepção inequívoca e suficientemente positiva.
Percebemos, dessa maneira, que a empiria em Jung é tão útil à
compreensão quanto ao conhecimento, ela está presente tanto na empreitada
científica (a Psicologia Complexa) quanto na empreitada metodológica (a
Psicologia Analítica). O processo de observação dos fenômenos é possível
em Psicologia, pois existe uma psique objetiva, porém ele é mediado por uma
equação psicofísica e por uma equação pessoal (subjetiva), e adquire
contornos especiais pelo fato de o processo de conhecimento e explicação, ou
seja, aquilo que se sobrepõe, por intermédio da concepção, ao puramente empírico,
se dar no mesmo meio e exigir um método de amplificação. A Psicologia é uma
ciência no psíquico, pois vivemos imediatamente num mundo de imagens psíquicas, a
única realidade imediata é a psique, tudo o mais é mediado pelo psíquico.
Obviamente, esse é um resumo esquemático ao qual faltam detalhes, mas que tem por
objetivo mostrar a sistematicidade do pensamento de Jung e as importantes conexões
que existem em sua obra, mas que não são imediatamente evidentes. Passemos agora
ao pragmatismo.
Já tratei do forte viés pragmático de Jung em outros de meus livros, por
isso vou começar por um ângulo que não explorei ainda, tratando da noção de verdade
no pragmatismo. Há dois momentos da obra, em especial em que Jung utiliza o
termo verdade de uma maneira muito significativa, e por isso vou começar pela
definição de verdade do próprio Jung e compará-la a de James. Em sua obra,
Civilização em Transição, Jung faz a seguinte afirmação acerca da verdade,
Quando se ouve alguém falar de um problema cultural ou de
um problema humano, nunca se deve esquecer de perguntar
quem está falando. Pois, quanto mais geral o problema, tanto
mais “introduzirá secretamente” sua psicologia pessoal na
descrição. Isto poderá levar a distorções imperdoáveis e a
falsas conclusões, com sérias consequências. Mas, por outro
lado, o próprio fato de um problema geral envolver e assumir a
personalidade inteira é garantia de que quem fala dele também
o tenha vivenciado ou experimentado pessoalmente. Na
segunda hipótese, ele nos apresenta o problema sob um ponto
de vista pessoal, mostrando-nos portanto uma verdade, ao
passo que o primeiro manipula o problema com tendências
pessoais e o deforma, sob o pretexto de lhe dar uma forma
objetiva. O resultado será simplesmente uma imagem ilusória
sem qualquer base verdadeira. (JUNG, 2007, p.77, grifo meu).
A primeira parte da citação ecoa diretamente o que acabamos de
ver em nossa discussão do Tipos, como, por exemplo, quando Jung nos diz
“O fato de a observação e a interpretação subjetivas concordarem com os
fatos objetivos prova a verdade da concepção apenas na medida em que esta
última não pretenda ser válida em geral, mas tão somente para aquela área do
objeto que está sendo considerada”. Mas vamos a James e a verdade no
pragmatismo.
William James, em sua conferência Pragmatism’s Conception of
Truth, começa de uma maneira extremamente simples, com uma definição de
verdade que todos concordam, de que a verdade seria uma propriedade de
certas de nossas ideias que significa sua “concordância” com a “realidade”. A
confusão se inicia apenas quando levantamos a questão pertinente ao que
queremos dizer precisamente com “concordância” e “realidade”, quando a
realidade é tomada como algo para nossas ideias concordarem.
Para responder a essas duas perguntas, James parte da nossa
concepção comum de que uma ideia verdadeira deve copiar a realidade, e que
ideias verdadeiras das coisas sensíveis de fato as copiam. Ele oferece um
exercício de imaginação, no caso de alguém olhando para um relógio de
parede, feche os olhos e faça uma imagem mental dele e você terá talvez uma
imagem do seu mostrador, mas a não ser que você seja um relojoeiro essa
imagem dificilmente será uma cópia do objeto sensível, mas acaba passando
como verdade, pois não se choca de forma alguma com a realidade. Todavia,
quando falamos da “função de marcar o tempo do relógio” ou da
“elasticidade de suas molas” dificilmente se percebe o que suas ideias estão
copiando.
Nesse ponto surge o problema, quando nossas ideias não podem
definitivamente copiar seu objeto, o que a concordância com aquele objeto
significa? Idealistas podem dizer que essa ideia é verdadeira caso seja o que
D’us deseja que pensemos sobre esse assunto, ou que a verdade em nossas
ideias na proporção em que elas se aproximam de serem cópias da maneira de
pensar do Absoluto.
O grande pressuposto dos intelectualistas é que verdade significa
essencialmente uma relação inerte e estática. Quando você consegue a sua
ideia correta sobre alguma coisa esse é o fim da linha. Você possui a verdade,
você sabe e nada mais precisa se seguir a esse clímax do seu destino racional.
Epistemologicamente você está em um equilíbrio estável.
O pragmatismo ao pensar em verdade vai se fazer as seguintes
perguntas “digamos que uma ideia seja verdadeira, que diferença concreta vai
fazer o fato dela ser verdadeira na vida real? Como essa verdade será
compreendida? Que experiências serão diferentes para aqueles que acreditam
nessa verdade se ela for falsa? Qual, em resumo, é o valor da verdade (truth
cash value) em termos experimentais?
Assim, o pragmatismo responde a essas questões da seguinte
forma: ideias verdadeiras são aquelas que podemos assimilar, validar,
corroborar e verificar. Ideias falsas são aquelas que não podemos. Essa é a
diferença prática de ter ideias verdadeiras, o que é o significado de verdade
para o pragmatismo, ou seja, a tese defendida pelo pragmatismo é que a
verdade de uma ideia não é uma propriedade estagnada nela. Verdade
acontece a uma ideia. Ela se torna verdadeira, é tornada verdadeira pelos
eventos. Sua veracidade é um evento, um processo. Ou seja, o processo de
verificação e validação de uma ideia.
Para James, o quê verificação e validação significam? Elas vão
significar certas consequências práticas da ideia a ser verificada e validada.
Elas no conduzem por meio de ações e outras ideias que elas instigam em
direção a outras partes da experiência que nós sentimos ainda em acordo com
a ideia original. As conexões e transições vêm a nós ponto a ponto como
sendo progressivas, harmoniosas e satisfatórias. Possuir alguma verdade é o
mesmo que possuir um inestimável instrumento de ação. Possuir a verdade
não é um fim em si mesmo, é apenas a preliminar em direção a outras
satisfações vitais.
Devemos nos recordar, que o valor prático de ideias verdadeiras
depende da importância prática de seus objetos, e seus objetos não são
importantes todo o tempo. Sempre que uma verdade extra se torna
praticamente relevante saindo da prateleira das ideias para o trabalho no
mundo, nossa crença nela se torna ativa. James analisa e problematiza a
seguinte frase “é útil porque é verdade” ou “é verdade porque é útil”, as duas
significam pragmaticamente a mesma coisa, que uma ideia que é atingida
pode ser verificada. Verdade é qualquer ideia que dê início ao processo de
verificação, útil é o nome para a sua função na experiência. Assim, James no
fala,
Quando um momento em nossa experiência, de qualquer tipo,
nos inspira com um pensamento que é verdadeiro, isso
significa que cedo ou tarde nós mergulhamos nos particulares
da experiência guiados por esse pensamento e fazemos
conexões vantajosas com eles (JAMES, 1948 ,p.162, tradução
minha).
Quando Jung, no seu livro Psicologia do Inconsciente, analisa um
mesmo caso de neurose por meio do quadro conceitual freudiano e depois
adleriano, ele está exercitando a noção pragmática de verdade que esbocei
aqui, pois usa essas ideias para mergulhar nos particulares e chegar a
conexões vantajosas, bem como procura verificar e validar as verdades
anunciadas por seus antecessores, num processo dinâmico e não numa
estagnação epistemológica. Além disso, ao perceber a validade parcial de
cada um deles, ele simplesmente percebe pragmaticamente que a
importância prática dos objetos a que essas ideias se referem não é constante.
Diferente de Freud e Adler, Jung se relaciona de uma maneira dinâmica e
processual com a verdade. Além disso, quando Freud declara a verdade da
sexualidade como um dogma, ele se lança numa posição de equilíbrio estável,
que é uma postura racionalista e não empírica, em que estar de posse da
verdade é um fim em si mesmo.
Não fosse isso o bastante, James afiança em What Pragmatism
Means, que não existe a “Verdade”, em maiúscula, para o racionalista o
universo surge como uma espécie de enigma em que a chave que desvenda o
enigma deve ser procurada na forma de alguma palavra iluminada ou
portadora de poder. Uma busca pelo princípio do universo (sexualidade, por
exemplo), e quem o possui, está de posse do próprio universo, seja esse
princípio ou palavra de poder: “d’us”, “matéria”, “energia”, “absoluto” etc.
você pode descansar quando o tem, pois chegou ao fim de sua aventura
metafísica.
Mas se você segue o método pragmático, nenhuma dessas
palavras de poder vai fechar os seus olhos, cada uma dessas palavras precisa
demonstrar seu valor prático (practical cash-value) – exatamente o que Jung
fez no exemplo anterior – elas são menos uma solução e mais um programa
para mais trabalho, e principalmente como uma indicação de maneiras de
modificar as realidades existentes. Nesse sentido, teorias são instrumentos,
não respostas a enigmas, em que podemos descansar. Não existe “A
Verdade” no singular, mas sim verdades operacionais no plural, que são
atalhos conceituais, nos aproximam dos fatos particulares e geram mais
trabalho. De acordo com James, o método pragmático,
Concorda com o nominalismo, por exemplo, em sempre
apelar para os particulares, com o utilitarismo em sua
ênfase nos aspectos práticos; com o positivismo em seu
desdém por soluções verbais e abstrações metafísicas.
(JAMES, 1948, p.145, tradução minha).
Logo, meu amigo, minha amiga, Junguiano, sempre que você
escutar alguém falando algo acerca de Psicologia Complexa, ou usando a
terminologia cunhada por Jung, como no exemplo que eu já usei de dizer
qual o arquétipo de alguma situação particular, subsumindo o particular por
uma generalização, é preciso que você se pergunte: que diferença concreta na
vida real isso vai fazer? Como isso será compreendido? Que experiências
serão diferentes para aqueles que acreditarem nisso se tratar-se de algo falso?
Qual é o valor disso em termos experimentais? Como a realidade pode ser
mudada com isso? Como qualquer pessoa inteligente pode ver por si mesma,
a esmagadora maioria dos discursos que surgem no circo junguiano não é
capaz de resistir a esse teste tão simples. Em geral, os “junguianos” estão
sempre debatendo questões ociosas e sem nenhum valor prático...
Termino essa seção com a outra frase de Jung em que ele falou
sobre a verdade, em seu livro O Segredo da Flor de Ouro,
O homem instintivamente reconhece que toda grande verdade
é simples. Aquele cujo instinto está atrofiado, imagina, por
isso, que ela se encontre em simplificações baratas e
trivialidades, ou, por outro lado, em razão de seu
desapontamento, incorre no erro oposto de imaginar a verdade
como algo infinitamente complicado e obscuro. (JUNG,1998,
p.18).
Nessa frase, Jung poderia estar descrevendo muitos de seus atuais
leitores, de um lado os Hillmanianos com o seu racionalismo de quinta
categoria, falando coisas complicadas como se fossem filósofos ou
metafísicos, completamente apartados da realidade num diletantismo
intelectual sem qualquer valor prático, fazendo o que Nietzsche acusava os
poetas de fazerem “turvar as águas para parecerem mais profundos”, quando
na verdade não passam de poças d’água. Do outro as trivialidade e
banalidades dos “junguianos” místicos, com suas simplificações baratas e
trivialidades. O pensamento de Jung, em sua essência, é simples, direto e
prático. Passemos agora ao agnosticismo.
Agora, estimado leitor, será preciso falar um pouco de Kant.
Certa feita, Jung se referiu a Kant como “o meu filósofo”, provavelmente, ao
lado de James, a mais poderosa influência no pensamento de Jung. Eu preciso
sempre resistir à tentação de me alongar em demasia ao tratar dos filósofos
(como Platão ou James), provavelmente dos autores citados por mim nesse
texto, Kant é o de leitura mais difícil. Sempre conto aos meus alunos sobre
como comecei a lê-lo. Iniciei pelo Prolegômenos a Toda Metafísica Futura,
um texto que ele escreveu a guisa de introdução a sua Crítica da Razão Pura,
mas que acabou sendo muito mais complicado do que essa obra. Eu sempre
fui inteligente, e estava acostumado a ler coisas difíceis, mas eu não entendia
absolutamente nada do maldito livro! Era como se repentinamente eu tivesse
ficado burro e essa foi uma sensação desesperadora, que me fez ter triplicado
afinco para compreender Kant, ainda assim, passei alguns meses debruçado
sobre o livro sem compreender nada...
Vou tentar ser o mais claro e conciso que puder, Kant era um
aluno do racionalismo dogmático de Leibniz (que escrevia em francês, apesar
de falar alemão), o sistema do racionalismo dogmático deita raízes no mundo
germânico graças à tradução feita por Christian Wolff, que praticamente cria
o léxico filosófico para a língua alemã. Kant desperta de seu “sonho
dogmático” ao ler o filósofo escocês David Hume, que era um cético e
atacava a noção de uma causalidade, bem como apontava problemas no
método indutivo usado pelas ciências. Kant compreende que as críticas de
Hume precisavam de uma resposta, além disso, está convencido do poder da
ciência graças aos fantásticos avanços na física com Isaac Newton. Kant, de
fato, se tornou um autor extremamente importante para os cientistas e
filósofos da ciência, e talvez o exemplo mais famoso dessa influência seja
Emil du Bois-Reymond.
Em 1872, o fisiologista du Bois-Reymond publicou seu famoso
escrito Über die Grenzen des Naturerkennens (Sobre os Limites do
Conhecimento da Natureza, em tradução livre), posteriormente, ele volta a
atacar esses pontos em seu famoso discurso denominado Ignoramus et
Ignorabimus (ignoramos e ignoraremos) proferido em 1880 diante da
Academia Prussiana de Ciência, pois ele indicava com clareza, a partir de
Kant, os limites da ciência, como, por exemplo: a natureza última da matéria
e da força, a origem do movimento, a origem das sensações simples etc. Para
ele, com base em Kant, essas eram questões transcendentes, ou seja,
metafísicas, logo impossíveis. Havia aqui uma posição clara dos cientistas
prussianos e de língua germânica em geral, de uma negação da metafísica e
do uso de uma causalidade transcendente. Essa posição foi batizada de
agnostiscismo. Emil du Bois-Reymond, assim como a maioria de seus
colegas, era um materialista e determinista empedernido, obviamente esse
não é o caso de Jung. Vamos compreender melhor como essa posição surge a
partir de Kant.
Kant faz uma crítica da razão pura, mas qual o sentido de crítica
em Kant? De maneira sintética, crítica é não dizer mais do que se sabe. Kant
faz uma crítica a toda metafísica, invertendo a direção do conhecimento. Os
conhecimentos metafísicos são transcendentes, tentam compreender
realidades transcendentes, como o Absoluto ou o infinito que estão fora do
sujeito, mas para efetuar a sua crítica ele propõe uma revolução copernicana
em Filosofia, que muda a posição do sujeito do conhecimento. Antes, havia
um conhecimento fora do sujeito e objetivo, transcendente, que ele podia
acessar por meio da razão. Kant coloca o sujeito numa posição ativa e faz
uma crítica transcendental, ou seja, ele pretende descobrir a maneira como
conhecemos. Em sua crítica ele descobre que o sujeito é ativo no processo de
conhecer, é um dos primeiros a propor um construtivismo, pois todo
conhecimento é construção. Dessa maneira, ele vai propor um conceito limite
e negativo, a coisa em si (das Ding na sich), que mesmo sendo desconhecida
precisa existir do contrário o restante das coisas não faz sentido. Eu tenho
esse objeto desconhecido e ele é percebido em mim por meio de intuições do
sujeito e categorias a priori presentes nesse mesmo sujeito que formam em
mim uma imagem dessa coisa desconhecida, mas metade disso sou eu. Esse
objeto, a coisa em si, permanece desconhecido, Kant chama isso de numeno,
mas eu tenho acesso a um fenômeno, que é como essa coisa aparece para
mim. Eu jamais posso dizer o que seja das Ding na sich enquanto tal, apenas
como ele me aparece mediado por esse quadro categorial. Kant explica isso
em detalhes tanto em sua estética transcendental quanto em sua analítica
transcendental. Na sua analítica, ele coloca a razão na posição de uma
espécie de claraboia, que nos propõe as questões mais importantes, porém
impossíveis em virtude da maneira mesma que nós somos capazes de
entender.
Uma das questões metafísicas é o problema da existência de
D’us, que teve respostas em Aristóteles, santo Anselmo, Tomás de Aquino,
Descartes etc. Para Kant, não há resposta possível, pois tanto afirmar sua
existência quanto negar sua existência são afirmações que extrapolam as
nossas possibilidades de conhecer. Nenhuma questão metafísica possui
resposta, pois somos estruturalmente incapazes de conhecer essas realidades
por elas mesmas. Jung adota um rígido agnosticismo kantiano, rejeitando
qualquer pretensão à metafísica. Ao invés de metafísica, ele se apoia na sua
ideia de realidade psíquica. Fazendo afirmações exclusivamente no campo
psicológico. Alguns anos antes de falecer, Jung concedeu uma série de
entrevistas filmadas ao professor norte-americano Richard I. Evans, e nessas
entrevistas ele faz uma afirmação que corrobora sua posição de agnosticismo
“todos os que dizem sou um místico não passam de idiotas. Eles não
compreendem, simplesmente, a primeira palavra de Psicologia”.
Em seu livro Psicologia e Religião, Jung afirma que para que
uma ideia seja verdadeira basta ela existir. Em outro de seus livros, A
Natureza da Psique, assevera que a ideia da existência de D’us é uma ideia
real, bem como a ideia da inexistência de D’us. Ambas são ideias reais e
perfeitamente legítimas, especialmente, porque enquanto médico ele não
pode fazer qualquer afirmação de cunho metafísico, e o que importa
pragmaticamente, é saber as consequências práticas que essas ideias têm na
vida do paciente, e que função exercem em seu psiquismo. Quando Jung fala
em D’us em sua vasta obra, ele não está falando de um ens metafísico
realmente existente, mas da imagem psíquica daquilo que é a maior
quantidade de libido, daquilo que se afigura como o mais importante e vital,
da imago dei. E mesmo que esse ser exista, ele só seria percebido
psicologicamente, enquanto uma imago psíquica, assim como em Kant, nós
jamais o veríamos como ele realmente é fora de nós, apenas como ele se
manifesta enquanto fenômeno para nós. Tudo o que Jung fala em sua vasta
obra está dentro dessas fronteiras do agnosticismo e da sua noção de
realidade psíquica. Jung traduz essa noção com a definição elegante de que
“tudo o que age, que atua é real”, uma definição extremamente pragmática.
Bom, estimado leitor, se você é um desses que defende com
unhas e dentes que Jung era um místico, ao menos agora você sabe a opinião
do próprio Jung acerca de gente como você... Infelizmente um número
enorme de pessoas continua agindo como idiota, e pior, são levados a sério!
A perspectiva kantiana de Jung previne qualquer desvio ao misticismo ou a
metafísica, no entanto, e talvez isso cause a enorme confusão, enquanto
expressões simbólicas, ou simplesmente fenômenos psíquicos, foram
estudados por Jung, obviamente por um viés psicológico utilizando seu
método comparativo, junte isso a uma pitada de má fé e temos a corriqueira
interpretação de que ele era místico...
Vamos à parte final desse escrito, falar de funcionalismo e
estruturalismo. William James foi um dos autores que mais poderosamente
influiu no pensamento de Jung, especialmente em seu método, e ele era um
funcionalista que se opôs em sua época a posição estruturalista em
Psicologia. Essas são posições epistemológicas antagônicas e precisamos
primeiro explicar ambas. Nessa parte final deste ensaio, vamos entender as
duas posições epistemológicas, em seguida exemplificar isso com o debate
entre a posição funcionalista de William James e o estruturalismo de
Edward Bradford Titchener, e por fim veremos como Jung se posiciona em
seu pensamento com relação a essas duas possibilidades epistemológicas,
utilizando variados exemplos de sua Psicologia Complexa.
Comecemos pela posição de James, o funcionalismo. O professor
Adone Agnolin, da USP, em seu livro História das Religiões, ao falar de
outro antropólogo Malinowski, explica de maneira sucinta o funcionalismo
em termos de antropologia como “[...] o interesse do estudioso polonês é
fazer emergir exclusivamente, neste âmbito, as relações que uma cultura (ou
uma civilização) tece entre as partes determinadas de que é constituída e das
quais se serve, e sem as quais deixaria de ser tal”. Malinowski utiliza uma
alegoria interessante para justificar o seu funcionalismo em Antropologia: as
diferentes partes da sociedade são como as diferentes partes de um organismo
vivo, ela só é capaz de existir como tal em virtude da maneira como as suas
partes interagem, dessa maneira, a perspectiva do autor de Os Argonautas do
Pacífico Ocidental, examina o significado dos fenômenos culturais, sua
função naquela sociedade particular e suas interconexões com as demais
partes desse organismo. É interessante notar, que Jung ao se referir aos seus
complexos funcionais (anima/animus, sombra, persona etc.) utiliza para
defini-los a curiosa expressão de que são “órgãos do psiquismo”.
Em linhas gerais, saindo da Antropologia e nos encaminhando
para a Psicologia, o funcionalismo defende que em termos da nossa
constituição psíquica, as suas partes constituintes como nossos: sentimentos,
atenção, memória etc.; são melhor compreendidas e explicadas não por sua
constituição interna, tomada isoladamente num pensamento atomista, mas
sim em virtude do papel que desempenha no todo, no sistema de que faz
parte, e nas suas interconexões vivas com as demais partes constitutivas do
psiquismo.
Passando ao estruturalismo, ele foi proposto na linguística por
Saussure, não se preocupa com a origem da linguagem, e faz uma distinção
entre la langue, que é um conjunto de convenções adotadas para permitir o
exercido da língua entre os indivíduos, e la parole que é o próprio exercício
da linguagem. O objeto de estudo da linguística estrutural é o sistema de
signos, proveniente da determinação mútua da cadeia sonora do significante e
da cadeia conceitual do significado. Esse sistema é a estrutura. É importante
ressaltar algumas características do estruturalismo como pensado por
Saussure. De uma maneira geral, o estruturalismo atua sem qualquer
consideração pela História, ele difere da posição formalista por se negar a
fazer uma distinção ou oposição entre o concreto e o abstrato, e privilegiar
este no lugar daquele. A estrutura não é um conteúdo distinto das coisas, mas
sim, o próprio conteúdo, pois é uma organização lógica que se caracteriza por
ser uma propriedade do real.
Podemos descrever o estruturalismo como um método de análise
que utiliza estruturas como modelos explicativos. Quando eu penso de
maneira estruturalista, estou mais interessado nas relações do que nos
objetos individuais, esses objetos passam a ser definidos pelo conjunto de
relações que estabelecem com a estrutura do que pelas qualidades possuídas
por eles isoladamente. Uma estrutura é compreendida como um padrão ou
uma forma, que podem ser entendida em dois níveis, tanto como realidades
empíricas (uma propriedade do real), quanto como modelos, representações
ou princípios organizadores dos objetos reais. Na segunda forma de
entendimento, trata-se de algo lógico e sincrônico, ou seja, fora do tempo e
apartado das realidades históricas individuais.
Passemos ao nosso exemplo, a querela entre William James e
Edward Bradford Titchener. Comecemos, estimado leitor, por Titchener. Em
geral, ao se falar da psicologia de Wundt, é comum que uma boa parte dos
autores apontem Titchener como o principal representante dessa escola nos
Estados Unidos, porém ele se tornou uma espécie de caricatura do seu
mestre, com uma posição muito mais rígida, inflexível e restrita. Para ele não
havia nenhum outro método além da introspecção rigidamente controlada, e
qualquer tentativa de fazer uma psicologia aplicada, fora dos moldes
experimentais de Wundt, ou da maneira que ele o interpretava, era
considerada não científica. Ele ignorou completamente a etnopsicologia de
Wundt, ou a psicologia comparada entre outras contribuições de seu
professor. Ele assumiu para si apenas um aspecto da psicologia de Wundt: o
estudo da sensação por meio da introspecção, e o transformou em seu
estruturalismo. Por muito tempo, Titchener dominou completamente a
psicologia nos Estados Unidos, mas seu sistema redundou em um enorme
fracasso, sendo considerado completamente ultrapassado, quando muito, uma
curiosidade histórica.
De acordo com David Hotersall, o estruturalismo de Titchener,
baseado na ideia que ele fazia da obra de Wundt, era o estudo da mente
humana normal, adulta. A Psicologia era por ele definida como a ciência da
mente e estava voltada para uma mente generalizada, e não para a mente
individual. A mente, em sua concepção não seguia o modelo interno,
considerado infrutífero. Não adiantava explicar o pensamento como uma
atividade da mente, pois isso não explicaria nada e ainda restaria explicar as
ações do modelo mental. A Psicologia, como ciência da mente, possuía uma
tarefa com três desdobramentos: analisar a soma total dos processos mentais,
identificar seus elementos e mostrar como eles funcionam juntos; descobrir
as leis que determinam as conexões entre esses elementos; estuda
detalhadamente as correlações da mente e do sistema nervoso. Todos esses
objetivos eram buscados utilizando-se exclusivamente o método da
introspecção treinada. Titchener dedicou a maior parte de sua carreira ao
primeiro dos desdobramentos: determinar os elementos que formam a
estrutura da mente, dissecar a consciência, e reduzir a consciência a seus
elementos mais simples. Sua abordagem se opunha frontalmente ao
funcionalismo de nomes como Dewey e Angell. Para estudar a estrutura da
mente, segundo ele, seria preciso começar com descrições cuidadosas de seu
objeto, os processos mentais deveriam ser observados e descritos em termos
de fatos observados.
Saltam aos olhos o “atomismo” e reducionismo de Titchener, bem
como o seu interesse quase que exclusivo pela generalização, em detrimento
da mente individual, bem como seu completo desinteresse pela mente
infantil, a psicologia comparada ou a psicopatologia. Mas nos importa mais
definir a sua posição como um estruturalista, que em contraste com James
fica ainda mais ressaltada.
William James foi o primeiro a utilizar os termos funcionalismo
e estruturalismo para referir-se a mente humana, ele o fez em 1890 ao
publicar seu famoso e ainda extremamente relevante, apesar de pouco lido no
Brasil, Principles of Psychology. James igualmente formulou um ataque
frontal a posição de Titchener – que muito o aborreceu – no ensaio Some
Omissions of Introspective Psychology. Segundo ele, Wundt/Titchener
presumiram que a consciência era uma síntese de elementos básicos e
buscavam isoladamente esses elementos, mas essa era uma abordagem
restritiva e estéril. Como se uma casa fosse à síntese da aglutinação de tijolos,
e por isso, para estudar a casa vai-se estudar tijolos, porém, como asseverou
Poincaré, uma casa é um amontoado de pedras, mas um amontoado de pedras
não é uma casa. James propôs uma abordagem diferente, estudar mais como a
mente funciona do que a sua estrutura. Estudar as funções da consciência e
analisar suas características. Segundo David Hotersall, para James a
característica mais importante da consciência é que ela permite a nossa
adaptação ao ambiente. Outras características importantes da consciência
como compreendidas por ele eram que ela sempre é pessoal, a consciência é
individual; ela é como um fluxo contínuo, está sempre se modificando, ela
não é partida em pedaços e nem pode ser partida experimentalmente; ela é
seletiva pois o mundo apresenta uma enorme confusão de estímulos, ao
analisar essa confusão a consciência é seletiva. Em virtude dessas
características, James acreditava que a tentativa do estruturalismo de
desenvolver leis e princípios gerais da consciência, bem como descobrir seus
elementos constitutivos estava fadada ao fracasso.
Creio que ao expor essas duas posições antagônicas, fica realçada
a diferença entre ambas, bem como suas peculiaridades. Existem muitos tipos
de funcionalismo e estruturalismo, Jung encontra em seu pensamento um
ponto de equilíbrio dinâmico entre essas duas posições antagônicas, o que faz
enorme sentido a se pensar que uma de suas proposições fundamentais é a de
que a psique só pode ser apreendida por meio de antinomias, visto o seu
caráter desesperadoramente paradoxal. O estruturalismo de Titchener tem
pouco à ver com a posição de Jung, mas vemos nele algumas das importantes
características, como a sua tendência a se afastar dos particulares em favor do
geral e de, cum grano salis, desistoricizar seu objeto.
É evidente que o pensamento de Jung acerca da consciência
assimila todos os princípios da Psicologia de James, apesar de colocá-los sob
o prisma particular da Psicologia Complexa, ou seja, esses elementos são
todos incorporados, mas são visto pelas lentes de uma organização dos
elementos do psiquismo em complexos, uma relação com o inconsciente e
uma perspectiva energética e tipológica. É bastante evidente o viés
funcionalista de Jung, vou expor de maneira panorâmica e, caso você deseje
maiores detalhes, sugiro a leitura do meu livro Psicologia Junguiana: Uma
Introdução.
Como eu disse, o funcionalismo de Jung é uma das poucas coisas
evidentes em seu pensamento. Quando ele se refere a Anima, a chama de um
complexo funcional, e não tem qualquer interesse em nos indicar o que seja
de fato a Anima (com a notável exceção do conceito de energia, todas as
formulações de Jung são conceitos limite e negativos), ele descreve em linhas
gerais as características comuns ao fenômeno com o interesse de delinear um
grupo fenomenológico, mas o aspecto mais importante a ser frisado por ele é
o papel desempenhado por ela enquanto “órgão do psiquismo” o de função de
relação entre a consciência é o inconsciente e, caso personificada, ocorre uma
extraversão desse complexo e ele vai se postar projetivamente entre a
consciência e os objetos causando muita confusão. O mesmo se dá com o
Animus, que tem a função de diferenciação entre a consciência feminina e o
inconsciente. Ao tratar da consciência, Jung se apressa em afirmar que a
natureza da consciência, seus limites, são um mistério insondável, sabemos
apenas como ela funciona. Novamente, a função da consciência é ser um
órgão de adaptação, um fenômeno momentâneo de adaptação, que podemos
descrever e compreender em seu funcionamento, mas que não podemos
apreender totalmente. Assim como James, Jung entendia a consciência como
um fluxo, o complexo do eu é, na realidade, uma ficção, como ele afirma no
seu O Homem e Seus Símbolos o eu é “altamente compósito e variado”, em
outro de seus textos ele o compara a uma faca em que seu dono já trocou
umas três vezes o cabo e duas a lâmina, mas ainda assim a chama de “a
minha faca”. Tudo em Jung deve ser compreendido em relação, pois não
interessa uma postura “atomista” como a de Titchener, mas sim
funcionalista, como a de James. Quando Jung fala do inconsciente, a sua
hipótese basilar é igualmente funcionalista, pois ele coloca os dois em
relação e aponta que esse relacionamento é compensatório, ou seja, jamais é
estático ou estagnado, mas sim dinâmico, num fluxo constante de influências
mútuas. Mesmo a sua tipologia é funcional e dinâmica e não caracteriológica
como alguns podem pensar. Ele vai descrever a consciência pela
predominância relativa de uma ou mais funções e o inconsciente terá em
relevo a função oposta, pois elas formam pares antagônicos,
pensamento/sentimento e intuição/sensação, pois o seu funcionamento é tão
oposto que estabelecem uma relação de opressão uma sobre a outra, quanto
mais intenso o funcionamento de uma mais reprimida a outra será.
Jung se dá até mesmo ao trabalho de, no final do seu Tipos,
definir “função” como um de seus conceitos.
Por função psicológica entendo certa forma psíquica de
atividade que, em princípio permanece idêntica sob
condições diversas. Sob o ponto de vista energético, a
função é uma forma de manifestação da libido que sob
condições diversas, permanece, em princípio, idêntica a
si mesma; seria como a força física que pode ser
considerada, de certo modo, a forma de manifestação da
energia física. (JUNG, 2013, p.451).
Como se pode ver, a noção de função de Jung está sob o prisma
de sua concepção de energia, algo absolutamente central em seu pensamento,
o fio invisível que liga cada uma de suas noções. Tratar disso aqui, no
entanto, seria atentar como o esforço de simplicidade desse ensaio.
Porém, estimado leitor, os Arquétipos podem muito bem ser
compreendido como princípios organizadores do psiquismo, ou seja, como
uma estrutura. Jung deixa isso bem claro ao comparar a sua noção de
Arquétipo ao líquido mãe dos cristais em seu A Natureza da Psique.
Acontece que o processo de cristalização se dá a partir de um líquido, e
quando o cristal se forma, caso não existam impedimentos, suas formas se
mantém fixas, trata-se de um cristal justamente por possuir um arranjo de
átomos regular. Jung define os Arquétipos como formas a priori da
percepção e da apercepção, eles garantem a existência de um comportamento
humano típico, ou seja, que existe dentro de determinados parâmetros ou
princípios. Existe uma regularidade no comportamento humano, na maneira
como apercebemos e percebemos o mundo, e na forma como a nossa fantasia
se organiza. Como Jung pode sustentar essa contradição tão patente? Kant, ao
propor o seu quadro categorial e a distinção entre numeno e fenômeno
chegou a uma posição intermédia entre o racionalismo e o empirismo,
conferido validade relativa a ambos, por isso ele criou tanto um racionalismo
crítico quanto um empirismo crítico.
Acontece que a estrutura proposta por Jung não existe, no plano
psicológico os complexos se comportam funcionalmente e podem e devem
ser explicados dessa maneira, porém a sua regularidade parece sugerir uma
estrutura a priori, um princípio organizativo, que, porém, não é um fenômeno
psíquico. Talvez Kant bastasse para se entender essa antinomia, mas como
esse é um escrito que se propõe a ser simples, não se deve abusar de Kant.
Por isso eu vou propor uma alegoria com Platão. Eu não estou dizendo que
Jung era Platônico, ou metafísico, não é nada disso, é apenas um recurso para
que você compreenda melhor.
Existia na filosofia grega duas posições antagônicas e
irreconciliáveis que foram conciliadas por Platão: Heráclito e Parmênides,
mobilismo e imobilismo. Para Heráclito, era impossível conhecer qualquer
coisa devido as suas mudanças constantes, o movimento impedia o
conhecimento. Por outro lado, para Parmênides o movimento era apenas
aparente, as coisas na verdade eram imóveis, logo era possível conhecer.
Platão dividiu o mundo em dois, abaixo da lua temos a realidade de
Heráclito, em que de fato tudo é aparência e não é possível conhecer a
verdade, porém, acima da lua, o universo é imóvel e eterno, constante e
supremamente real e dali emana o conhecimento verdadeiro. Jung ao falar de
Arquétipos propõe uma instância psicóide, ou seja, apenas similar ao
psíquico e não propriamente psíquica, ali estão Arquétipo/Instinto como uma
hipótese para explicar a regularidade dos fenômenos psicológicos,
infinitamente variados e dos quais temos que nos contentar em compreender
apenas a maneira como funcionam. Assim como Platão, metaforicamente
falando, temos dois mundos: o psicológico que deve ser compreendido de
maneira funcionalista e o psicóide estruturalista. Obviamente essa alegoria
possui limites, e deve ser compreendida cum maximo grano salis, pois a ela
faltam detalhes cruciais, mas creio que como recurso explicativo, e apenas
nessa função, ela é útil.
Chego ao final desse escrito modesto sabendo que se trata
obviamente de um torso inacabado. Cada um dos temas que abordei aqui
renderia alguns artigos ou livros, espero que o meu esforço aqui os inspirem a
escrever. Almejo ter podido enunciar aqui uma verdade, pois esse é um
problema que me afeta, que vivencio e experimento pessoalmente. Em
nenhum momento, tentei esconder quem eu sou com o intuito de afetar uma
objetividade e insidiosamente inocular a minha psicologia subjetiva no texto,
pelo contrário, minhas posições estão todas claramente expostas sem
qualquer pudor, o problema aqui abordado, como afiançou Jung em seu
Civilização em Transição, é apresentado sob uma perspectiva pessoal,
mostrando uma verdade, mas jamais “A verdade”.
O problema é que “pessoal” se tornou sinônimo de subjetivo e
falso em ciência, enquanto em Jung possui um valor completamente distinto
desse de senso comum, no pessoal, no individual reside à possibilidade de
uma verdade. Em todo o texto, creio eu, transparece a minha alegria em
estudar Jung e o meu profundo e imorredouro entusiasmo. Faz vinte anos que
o estudo todos os dias, e ainda me sinto empolgado! Por outro lado, fica
evidente o meu desgosto com o estado de coisas do meio “junguiano”, mas
acredito sinceramente, que aqueles que compartilham de minha empolgação
com Jung devem se sentir da mesma forma.
Precisamos lembrar sempre que quando alguém está falando da
Psicologia Complexa, que o único critério de validez de uma hipótese é o
valor explicativo. Precisamos procurar o se truth cash value, devemos nos
indagar: que diferença concreta vai fazer o fato dessa afirmação ser
verdadeira na vida real? Como essa verdade será compreendida? Que
experiências serão diferentes para aqueles que acreditam nessa verdade se ela
for falsa? Qual, em resumo, é o valor da verdade (truth cash value) em
termos experimentais? Sem isso, o fabuloso pensamento de Jung é convertido
apenas em conversa fiada e pedantismo, e isso me irrita e entristece. Já
deveria ser evidente, mas nesse escrito eu estou esperando a burrice, então é
melhor explicar, não me interessa ter a palavra final sobre Jung ou ser
dogmático, é preciso e útil que existem posições antagônicas a minha. O que
eu desejo é justamente que elas não sejam posições “circenses”. Eu
sinceramente acredito no lema do racionalismo de Popper, uma discussão só
pode ser racional se eu partir do pressuposto de que “pode ser que eu esteja
errado, e pode ser que você esteja certo”, além disso, o valor de verdade no
pragmatismo não é estático, mas dinâmico. Por mais que eu seja crítico da
idiotice que grassa na “psicologia analítica”, eu não sou o detentor da
verdade, se o fosse, teria pulado a cerca que eu me esforcei tanto para
construir aqui.
Se vocês se sentem como eu, por favor, vamos dar um basta nessa
idiotice toda, não combatendo diretamente os idiotas, isso só os fortalece,
mas produzindo coisas sérias e dentro do espírito da obra de Jung, tratando
seus pacientes com o rigor metodológico que Jung nos legou, se esforçando
genuinamente para compreender a sua vasta obra e, acima de tudo,
compreender essa obra com humildade! Fujam do pedantismo ridículo dos
Hillmanianos, Jung era um gênio, mesmo com todo esse estudo que fiz e que
tomou metade da minha vida e toda a minha vida adulta, estou longe de
compreendê-lo. Jung é o proverbial gigante em cujas costas subimos para ver
mais longe! Creio que humildade para compreender isso, e coragem para se
contrapor a idiotice e pedantismo são os meus mais sinceros votos aos meus
leitores.
Heráclito Aragão Pinheiro, Fortaleza, 27/04/2020
Referências bibliográficas
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Hothersall, D. (2006), História da Psicologia. São Paulo: McGraw-Hill.
Jung, C. G. (1964), O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.

[1] Essa é uma piada que costumo fazer com meus alunos, pois como existem muitos
“junguianos” metidos a gurus ou místicos, eu digo que existem “poderes junguianos”,
e vou dizendo quais os poderes de cada aluno – um dos meus alunos tinha o “poder”
de alterar as probabilidades de todos os sorteios que eu fizesse, ele ganhou todos esses
sorteios de brindes em minhas aulas ou palestras em que esteve presente. Em geral,
para reforçar a piada, eram sempre poderes relativamente inúteis como esse (ele, ao
menos, ganhou alguns livros), justamente para realçar a inutilidade dos falsos poderes
místicos dos gurus “junguianos”.
[2] Para tornar a anedota ainda mais interessante, convém salientar que a filha de
Fídias de fato foi a modelo para a estátua, assim ela é a filha de Fídias duas vezes, por
ter sido esculpida por ele e por representar objetivamente a sua filha que lhe serviu de
modelo.
[3] Para mim é bem claro que ele está fazendo uma referência a si mesmo nessa
passagem. Particularmente não conheço nenhum outro autor que se intitule
“nominalista culto”.

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