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DAVID BORDWELL

http://literaturacinema.wikispaces.com/file/view/Narra
%C3%A7%C3%A3o.ppt#258,4,Slide 4

David Bordwe ll, o historiad or d e cine ma, autor e b log g e r,


e m uma sala d e e d iação
 Trê s ab ord ag e ns com re la ção à
narrativa:
• Como re p re se nta ção: consid e rand o o mund o d a
narrativa ou d ie g e se ; se u re trato d a re alid ad e
ou se u sig nificad o mais amp lo.
• Como e strutura: mod os d e comb inar p arte s p ara
construir um tod o; se g me nta ção e “g ramática”
ou ling uag e m d o filme , isto é , o g rand e
sintag m ático.
• Como p roce sso:“a ativid ad e d e se le cionar,
org anizar, e e d itar mate rial narrativo d e mod o a
alcançar e fe itos d e te mp o e sp e cíficos sob re um
ob se rvad or ” (p . xi)

 Formalismo Russo (1920s) e a Escola d e


Prag a (Jan Mukorovsky)
 Conce itos imp ortante s: syuzhet, fáb ula,
motiva ção, re tard o, p arale lismo.
 De finind o a e sp e cificid ad e d a função
e sté tica e nq uanto re conhe ce nd o a
imp ortância d a conve nção social no q ue
a cultura d e fine como uma ob ra d e arte .
 Re cusand o colocar fronte iras arb itr árias
e ntre te oria, história e crítica.
 Para uma poética histórica do film e
• Conce itos p oé ticos re lacionad os
 À e strutura d o trab alho d e arte
 À re lação d o ob se rvad or com a ob ra d e arte
 Às funçõe s mais amp las d a ob ra d e arte
• Conce itos históricos e xaminand o
 Mud anças nas normas e nas conve n çõe s d a narração
 Como o conte xto social mod e la a form a e a fun ção d a
ob ra d e arte .

• A te oria mim é tica toma se u mod e lo d o ato d e


visão: um ob je to d e p e rce p ção é ap re se ntad o
aos olhos d o ob se rvad or.
• Bord we ll mostra q ue a trad ição mimé tica no
cine ma se re alizou no se ntid o d e constituir uma
unid ad e d e visão d o filme q ue e le chama d e
ob se rvad or invisíve l (um filme re p re se nta
e ve ntos d e uma história p or uma visão, um
p onto d e vista d e uma te ste munha invis íve l).
 Para Bord we ll as te orias d a e nuncia ção
q ue re m e stud ar a sub je tivid ad e na
ling uag e m faze nd o analog ias d o filme com o
romance d o sé culo XIX:
• A e nunciação p arte d a d icotomia e ntre e nunciad o /
e nunciação e história / d iscurso.
 O e nunciad o é o d ito, a p rop osição; a e nunciação re fe re -
se ao ato d e d ize r e nvolve nd o se u conte xto, constitu íd o
d e um locutor e re ce p tor;
 a história é a p róp ria narrativa; e o d iscurso é o q ue trás
as marcas d e sua e nunciação p ois é se m p re o e nunciad o
no conte xto d a e nunciação.

 Parte Dois: Poé tica Te órica


• Syuzhe t e Estilo
• Ve nd o o filme como um p roce sso d inâmico
cog nitivo-p e rce p tivo
• Como os fatore s d e e sp a ço e te mp o d o filme são
org anizad os como narra ção.
 Parte Trê s: Poé tica De scritiva
• Narração Clássica (Hollywood , 1917-1960)
• Narração d o filme d e arte (Europ e u p ós-g ue rra)
• Narração histórica-mate rialista (Film e sovié tico
d os anos 20 d o sé culo XX)
• Narração Paramé trica (casos lim itad os a film e s
Europ e us d o p ós-g ue rra)
• Mais o e xe mp lo d e God ard como e stilo misto ou
híb rid o

 Protocolos d e comp re e nsão d a narrativa, ou


schem ata, atravé s d os q uais e xp e ctad ore s são
g uiad os p e lo filme a construir uma história
b ase ad a e m p roce sso infe re ncial.
• Sche m ata protótipo: id e ntificand o atore s, a çõe s,locais,
e tc., d e acord o com a norma ap licad a.
• Sche m ata m ode lo: um sche me d e narrativa me stra q ue
incorp ora e xp e ctativas conce rne nte s ao mod o como
e ve ntos d e ve riam se r classificad os e como as p arte s
d e ve riam se r re lacionad as com o p rog re sso d o tod o
• Sche m ata proce d im e ntal: p rotocolos dinâmicos atravé s
d os q uais e xp e ctad ore s p rocuram p re e nche r
informa çõe s ause nte s d o mod e lo. Uma b usca p or
motiva çõe s e re la çõe s ap rop riad as d e causalid ad e s,
te mp o e e sp a ço.
Siste mas: Syuzhe t Fáb ula

Narração

Estilo
Exce ssos

 No filme d e ficção, a narração é o processo


atravé s d o qual a tram a e o estilo inte rage m
d and o pistas e canalizand o a construção d a
fáb ula p elo e spectad or. Portanto, é ap e nas
q uand o a trama org aniza as informa çõe s d a
fáb ula q ue o filme narra. A narra ção
tamb é m inclui p roce ssos e stilísticos. Se ria
p ossíve l, claro, tratar a narra ção some nte
como uma q ue stão d a re lação
trama/ fáb ula.. (p . 53)
 A fáb ula (história) incorp ora a a ção como uma
corre nte d e e ve ntos cronológ icos d e causa e e fe ito
ocorre nd o d e ntro d e uma ce rta d ura ção e camp o
e sp acial d ad os.
• Um p ad rão d e construção me ntal q ue os e xp e ctad ore s
criam atravé s d e um p roce sso d e assunção e infe rê ncia
b ase ad o e m sche m ata p rotótip o, mod e lo e p roced ime ntal..
 O syuzhe t ou e nre d o é a org aniza ção e ap re se nta ção
re al d a fáb ula p e lo filme .
 Estilo nome ia o uso siste m ático d e re cursos
cine máticos e m um filme .
 Exce sso, ou o “te rce iro sig nificad o”: aq ue le s
e le me ntos q ue d e ve m ficar for a d a p e rce p ção d o
e xp e ctad or, p orq ue não se e nq uad ram na narrativa
ou nos p ad rõe s d o e stilo.

 Uma d as d istinçõe s mais imp ortante s p ara a


Narratolog ia (ramo d a se miótica) é
e ntre fáb ula e syuzhe t (trama). Essa
d istinção, já ap re se ntad a p or Aristóte le s, e ,
mais d e talhad ame nte , p e los Formalistas
Russos, p od e se r fe ita nos se g uinte s te rmos:
a história q ue é re p re se ntad a (fáb ula); e o
mod o d e re p re se ntação, d e construção,
d e ssa história (trama) – p . 49.
 O construto imag inário q ue nós criamos,
p rog re ssivame nte e re troativame nte ...
(...) Mais e sp e cificame nte , a fáb ula
incorp ora a a ção como uma cad e ia d e
e ve ntos cronológ ica, d e causa e e fe ito,
ocorre nd o numa d ura ção e num camp o
e sp acial e stab e le cid os (p . 49)

 O arranjo p rop riame nte d ito e a


ap re se ntação d a fáb ula no filme . (...) É
um construto mais ab strato, o p ad rão d a
história re p rod uzid o como uma
re contag e m minuciosa d o filme (p . 50)
 Log icame nte , o p ad rão d a trama é
ind e p e nd e nte d o me io; os me smos
p ad rõe s d a trama p od e m se r
incorp orad os e m um romance , e m uma
p e ça, ou e m um filme (p . 50)
 Em um filme narrativo e sse s d ois
siste mas coe xiste m. Ele s p od e m
coe xistir p orque trama e e stilo tratam
asp e ctos d ife re nte s d o p roce sso
fe nome nal. A trama mate rializa o filme
como um p roce sso “d ramático”; o e stilo
mate rializa o filme como um p roce sso
“té cnico” (p . 50)

 Trê s p rincíp ios b ásicos:


• Lóg ica narrativa;
• Te mp o:
 ord e m,
 d uração
 fre q uê ncia;
• Esp aço.
 Normas intrínse ca d e fine m um p ad rão d e
coe rê ncia e stab e le cid o p e lo p r óp rio
siste ma d e filme s ind ivid uais.
 Normas e xtrínse cas re fe re m -se a p ad rõe s
d e coe rê ncia re le vante s p ara g rand e s
g rup os d e filme s.
 A cod ificação d e normas e xtrínse cas
p od e m, com o te mp o, le var à inaug uração
d e um mod o narrativo: um conjunto
historicame nte d istinto d e normas d e
construção e comp re e nsão narrativas.

 Narração clássica (Cine m a de Hollywood


1916 aos d ias de hoje ).
 Narração Dialé tica-m aterialista (Film e s
sovié ticos p ós-re volucionários d os anos 20
d o sé culo XX).
 Narração p aram é trica caracte rística d a
e xp e rime ntação formal d e cine astas como
Alain Re snais e Rob e rt Bre sson.
• Uma única e strutura d e te rmina a lógica
comp osicional d a te xtura local a uma forma
comp le ta.
 Cine m a de Arte (ap rox. 1957-1969).
M odo Conhe c i- Auto- Com uni Narrador Autor
m e nto c ons c i- c aç ão
ê nc ia
Clássico Oniscie nte Mod e rad a Alta Invisíve l Ap ag ad o
Cine ma d e Re strito Alta Baixa Em Pre se nte
Arte p rime iro
p lano
Histórico- Oniscie nte Alta Muito Em Pre se nte
mate rialista alta p rime iro
p lano /
Did ático
Param é trico Oniscie nte Alta Baixa Em Pre se nte
p rime iro
p lano
God d ard Misto Muito alta Mista Manife sto Pre se nte

 Conhecim ento: na me d id a e m q ue a
narração re ivind ica uma varie d ad e e
p rofund id ad e d e informa çõe s d a fáb ula.
 Auto-consciê ncia: o grau em que a
narração reconhece que se dirige ao
e xpe ctador.
 Com unicação: na m e dida e m que a
narração re té m ou com unica inform açõe s
da fábula.
 Causalid ad e ce ntrad a no p e rsonag e m
 De p e nd ê ncia d a “história canônica ”:
 Causalid ad e é o p rincíp io p rimord ial d e
unificação
• Estrutura causal d up la: d uas linhas d e e nre d o
(romance e a ção) cad a uma com ob je tivos,
ob stáculos e climax.
 Pad rão d e e nre d o org anizad o p or
se g me ntos
 O “e fe ito-fe chame nto”

 O Estilo é motivad o comp osicionalme nte


como uma função d o p ad rão d o syuzhe t: a
té cnica d o filme é um ve ículo p ara a
transmissão p e lo syuzhe t d a informação d a
fáb ula.
 Esforça-se p ara o m áximo d e clare za
d e notativa.
 Altame nte cod ificad a; ou se ja, usa um
núme ro limitad o d e d isp ositivos té cnicos e
e ste s d isp ositivos op e ram d e acord o
com p arâme tros rig orosos.
 Influê ncia d a m úsica avant-garde d o p ós-
g ue rra e urop e u , o nouve au rom an, e o
e struturalismo.
• Transg re ssão d e valore s e a ne ce ssid ad e d e cad a
ob ra d e arte construir um siste ma único.
• Uma única e strutura d e te rmina a lóg ica d a
comp osição d a te xtura local á forma total.
• Comp one nte s te xtuais formam uma ord e m q ue é
coe re nte d e acord o com p rincíp ios intrínse co.
• Formas te xtuais tratad as como fe nôme no e sp acial
• Forma fe nome nal d o te xto te nd e a se r vista como
uma d istrib uição d e p e rmuta d e um se t invisíve l.

 Siste ma e stilístico cria uma p ad rão d istinto


d as d e mand as d o siste ma syuzhe t.
 Sig nificad o d e re p re se nta ção é
sub ord inad o ao p e rfil d e uma ord e m d e
p e rce p ção p ura.
 Ap e nas p oucos p arâme tros são d e stacad os
e variam d urante o filme .
 Uma unid ad e inte rna forte : uma p romine nte
norma intrínse ca com re ite raçõe s
p ad ronizad as..
• As op çõe s “ascé ticas” e “e scassas”
 Te nd ê ncia a trab alhar com formas
aud itivas.
 Foco no p rotag onista: p e rsong e ns
ob se rvam e m ve z d e ag ir como ag e nte s
causais
 Lig ação d e e ve ntos e lip tico e / ou e p is ód ico.
 Enre d os b ase ad os e m “situaçõe s limite s”
le vand o a crise s e xiste nciais e
transformaçõe s nos p rincip ais p e rsonag e ns.
 Um “re alismo e xp re ssivo” constrói o
e sp aço: sonhos, me m órias, fantasias q ue
motivam narrativas amb ig uas e
“sub je tivas”.
 Narração re strita.
 Alto g rau d e auto-consciê ncia e stilística.

Narraç ão Clás s ic a Narraç ão do Cine m a de


Arte
Único Protag onista Protag onistas únicos e
múltip los
Guiad o p e lo d e se jo Ob je tivo único
Construíd a no conflito Histórias d e situaçõe s lim ite s
Corre nte line ar d e causa e Ep isód ico e e líp tico
e fe ito
Motivação clara e comp le ta Motivação amb íg ua ou
ob scura
Narração oniscie nte Narração re strita
Forte se nso d e fe chame nto Final ab e rto
 Uma ve rossimilhança sub je tiva ou
e xp re ssiva e m sintonia com o
“p e rsonag e m e xib ição”
• A ê nfase nas re alid ad e s inte riore s ou
p sicológ icas.
 Enre d os d e finid os p or “histórias d e
situaçõe s limite s”:
• A situação causal le va a um e p isód io no q ual o
p rotag onista d o filme d e arte e nfre nta uma crise
d e sig nificad o e xiste ncial.

 C aracte rísticas narrativas d o p rotag onista d o filme d e


arte .
• Falta d e tr aços e ob je tivos d e finid os.
• Motivação causal é re tirad a ou d e sconhe cid a, e nfatizand o
açõe s insig nificante s e inte rvalos.
• Os clássicos conflitos d o p rotag onista: o p rotag onista d o
filme d e arte movime nta-se p assivame nte , traçand o um
itine rário d e situaçõe s sociais.
• Pre ocup ad o me nos com ação d o q ue com re ação, o cine ma
d e arte ap re se nta e fe itos p sicológ icos e m b usca d e suas
causas.
• Os p e rsonag e ns re tard am os movim e ntos á fre nte d o
e nre d o re contand o histórias, fantasias, e sonhos.
Fre q ue nte me nte le vam a d isjun çõe s te mp orais, tais como
flashb acks.
 Caracte rísticas narrativas d o p rotag onista d o
filme d e arte – cont.
• Conve nçõe s d o re alismo e xp re ssivo mold am a
re p re se nta ção e sp acial:
• Filmag e m d o p onto d e vista óp tico, flash d e mold uras
d e um e ve nto vislumb rad o ou le mb rad o, pad rõe s d e
e d ição d e scontínuos associad os ao te mp o inte rior ou
p sicológico, mod ula çõe s d e luz, cor e som, são
motivad os pe la p sicolog ia d e p e rsonag e m.
• O filme d e arte re string e o p onto d e vista narrativo
d e um único p rotag onista ou p ode m d ivid i-lo e ntre
vários p rotagonistas.
• Aume nta a e xp re ssivid ad e d a sub je tivid ad e , mas
tamb é m faz a narra ção ince rta.

 Filme s d e arte te nd e m a narra ção


altame nte auto-conscie nte .
• O e sp e ctad or olha p ara os mome ntos e m q ue a
narração p od e inte rromp e r o p rog re sso d o
e nre d o e chamar a ate nção p ara si p or me io d e
flore ios e stilísticos.

 O narrad or imp lícito não é mais invisíve l,


mas chama ate nção sob re si me smo.
 Ce nas p od e m te rminar in m e dias re s (no me io d os
aconte cime ntos).
 São criad as lacunas q ue não são e xp licáve is ​p e la p sicolog ia d o
p e rsonag e m.
 O e nre d o é re tard ad o p e la omissão ou p e lo e xe ce sso d e
informaçõe s.
 Associaçõe s conotativas e simb ólicas sub stitue m a lóg ica d e causa
e e fe ito.
 A e xp osição é d e morad a e larg ame nte d istrib uid a durante o filme .
 Disjunçõe s na ord e m te mp oral tais como flashb acks and forwards.
• Te m o e fe ito d e oste nta çã o ta nto a e xte nsã o d o conhe cim e nto d a n a rra tiva com o
sua re la tiva incom unica b ilid a d e (conta nd o um p ouco e nq ua nto e sco nd e nd o
m uito).
 Em suma, “a construção d a narração se torna o ob je to d a h íp ote se
d o e xp e ctad or: como e stá se nd o contad a a história? Por q ue contar
a história d aq ue la mane ira?” (p . 210).

http://literaturacinema.wikispaces.com/file/view/Narra
%C3%A7%C3%A3o.ppt#256,1,Slide 1

http://literaturacinema.wikispaces.com/file/view/Narra
%C3%A7%C3%A3o.ppt#306,21,Slide 21

A Caverna de Platão e o Cinema Clássico


por Claudia Bavagnoli*

Introdução

Este trabalho aborda a relação entre o mito da caverna de Platão e o cinema clássico
americano. São desenvolvidos os seguintes assuntos: o valor do mito em si, a comparação
de seu mecanismo com o do cinema, os métodos do cinema clássico e seu tipo de
abordagem, a identificação do homem na caverna e do espectador no cinema clássico, as
divergências entre o homem na caverna e no cinema clássico.

O mito da caverna

No Livro VII de A República, Platão relata o diálogo de Sócrates e Glauco sobre a condição
humana em torno da oposição instrução vs. ignorância.
Sócrates descreve o percurso que o homem deve fazer para, a partir do mundo sensível,
formado pelas imagens e aparências - cópias do mundo das Idéias, atingir esse segundo, o
mundo inteligível, formado pelas Idéias eternas. A ascensão é obtida por intermédio da
razão: pela busca de conhecimento, da Justiça, da Verdade e do Belo se atinge o Bem, fonte
de toda luz.
Sócrates expõe esses pensamentos através do mito alegórico da caverna (1) .
Num primeiro momento relata a situação na qual o homem se encontra no mundo.

Agora imagina a maneira como segue o estado da nossas


natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina
homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com
uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a
infância, de pernas e pescoço acorrentados, de modo que não
podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois
as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes
de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás
deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada
ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está
construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os
apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das
quais exibem as suas maravilhas.
Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que
transportam objetos de toda espécie, que o transpõem:
estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda
espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores,
uns falam e outros seguem em silêncio.

E se a parede do fundo da prisão provocasse eco, sempre que


um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra
que passasse diante deles? (Platão, 2000, 225-6)

Sócrates identifica a vida do homem sem acesso à educação, e portanto ignorante, com a
vida do prisioneiro da caverna que acredita e se satisfaz com as sombras, as ilusões e
aparências. Os dois vivem no escuro, conformados com o mínimo de luz-conhecimento que
recebem.

A caverna a partir do séc. XX

Pensando o mecanismo ilustrativo utilizado no mito a partir do mundo moderno, pode-se


aproximá-lo ao mecanismo cinematográfico.
Durante o desenvolvimento do cinema, desde 1895 (quando foi oficialmente inaugurado em
Paris com os irmãos Lumière) até a contemporaneidade, diversos pensadores abordam tal
aspecto:

- L. Irigary (apud Machado 1997, 31) fala em "montagem cinematográfica" a propósito da


projeção de Platão;
- Baudry (1991, 395) escreve "A disposição dos diferentes elementos - projetor, "sala
escura", tela - além de reproduzir de um modo bastante impressionante a mise en scène da
caverna...", e em outro discurso: "o mito da caverna é o texto de um significante de desejo
que atormenta a invenção e a história do cinema" (apud Machado 1997, 34);
- L. Garcia dos Santos (apud Machado 1997, 31) comenta a "transformação da alegoria da
caverna" "num grande dispositivo teatral ou cinematográfico";
- A. Machado (1997, 28) relata que "primeira sessão de cinema nos moldes que conhecemos
hoje, ou seja, numa sala pública de projeções,... teve lugar na imaginação de Platão ... como
a "alegoria da caverna."

Analisando cada um desses mecanismos propostos, a identificação é evidenciada:

- Mito da caverna: a fogueira, localizada numa colina, ilumina as estátuas de homens e


animais que são transportadas ao decorrer de um muro, projetando apenas as sombras dos
objetos na parede de uma caverna escura, através da única abertura à luz que possui; a voz
dos carregadores ecoa dentro da caverna.
- Cinema: o cinematógrafo, colocado a certa altura ao fundo da sala escura, através da
passagem de luz, projeta imagens fictícias (onde atores interpretam determinados papéis)
em uma tela localizada na parede oposta; a projeção pode ser acompanhada por diálogos
entre os atores (cinema falado), ou acompanhado por música condizente com a situação
(cinema mudo).

Nos dois mecanismos há uma luz artificial (resultante da manipulação do meio pelo homem)
localizada ao fundo e à determinada altura da cena, projetando, num quarto escuro, imagens
de simulacros, acompanhadas por sons.

Os homens que assistem às projeções na caverna e no cinema, os espectadores, também


possuem comportamento e disposição física similares. Para traçar esse paralelo, alguns
aspectos do cinema precisam ser considerados.

Cinema Clássico Americano

Por mais de um século filmes são realizados em diferentes culturas e com diferentes
propósitos. Diversas escolas e gêneros apareceram durante a história do cinema, mas foi o
chamado Cinema Clássico Americano o responsável pela formação da indústria
cinematográfica.
Com a I Guerra Mundial (1914 - 1918) a produção cinematográfica européia foi abalada.
Hollywood começava a despontar com seus grandes estúdios e realizadores (Griffith) e, em
1919, chega à liderança do mercado mundial. Hollywood, com um novo sistema de
produção, trabalha os filmes numa escala industrial para serem distribuídos e exibidos
mundialmente: cria o sistema de empréstimo de filmes (anteriormente pertenciam a quem
os comprasse e os projetasse), e cria a padronização da película (35mm) e dos filmes
(criação de gêneros: fórmulas próprias e cultivo de público cativo).
Atualmente a indústria cinematográfica americana ocupa um dos primeiros lugares no
ranking da economia dos Estados Unidos.

Narrativa clássica e espectador

As técnicas da narrativa cinematográfica clássica são subordinadas à clareza, transparência,


homogeneidade, linearidade- técnicas que dão ao filme verossimilhança, aproximando o
personagem do espectador.

... o modelo hollywoodiano com suas opções individualistas (o


personagem principal, a estrela), seus objetivos puramente
espetaculares e comerciais, seu modo de narrativa alienante (o
espectador, arrebatado pelos aspectos pseudológicos e afetivos
da narrativa, não tem a possibilidade de refletir ou assumir um
distanciamento crítico com relação à visão do mundo que lhe é
apresentada). (Vanoye e Goliot- Lété, 1994, pp.28-29)

A narrativa clássica apresenta coerência e impacto dramático, fazendo com que o espectador
seja capturado pelo filme.

Hollywood inventou uma arte que não observa o princípio da


composição contida em si mesma e que, não apenas elimina a
distância entre o espectador e a obra de arte, mas
deliberadamente cria a ilusão, no espectador, de que ele está
no interior da ação reproduzida no espaço ficcional do filme.
(Balaz 1970: 50)

O espectador encontra-se num quarto escuro, isolado do mundo exterior: a única presença é
a audiovisual- marcada pelo filme e pela resposta dos espectadores a ele através de
manifestações programadas- esperadas. A projeção subjetiva do espectador no filme
possibilita sua identificação com o personagem principal. O espaço da exibição, observa
Machado (1997:45), é o cenário ideal para a realização artificial de uma regressão; o
espectador está num estado para- hipnótico, determinado pelas condições ambientais e pela
técnica desse tipo de narrativa.
Inserido na ação do filme o espectador se realiza. Descarrega o peso do dia a dia, aliviando
as próprias paixões, através das situações vividas pelos atores (canalizando seus desejos e
frustrações). Vive um fenômeno primeiramente enunciado por Aristóteles em relação ao
efeito provocado pelas tragédias gregas: a catarse, isto é, "suscitando o terror e a piedade,
chega à purificação de tais afetos" (Aristóteles,1449 b). Sai da sessão de cinema satisfeito e
apaziguado, pronto para retomar sua vida cotidiana.

Espectador na caverna e no cinema

O espectador, assim como o prisioneiro acorrentado na caverna de Platão, realiza-se através


de falsas vivências, através de projeções simulacrais.

Na caverna de Platão, como na sala de exibição, os prisioneiros


estão imobilizados por uma paralisia imposta (no primeiro
caso) ou voluntária (no segundo caso). A esse estado de
inibição motora se acrescenta outro, de confusão intelectual,
que os faz tomarem as sombras dos objetos projetados na tela-
parede pela própria "realidade". Em outras palavras, esses
fantasmas de luz que atormentam a gruta escura e que
constituem os únicos estímulos percebidos pelos espectadores
durante a projeção são vividos por estes últimos com a
intensidade de um fato real, como se tivessem existência
afetiva. (Machado 1997: 45)

A condição determinada por Sócrates aos acorrentados - submissão à falta de luz, à


ignorância - pode então ser comparada à condição dos espectadores que sublimam seus
sentimentos através de ilusões, de supostas realidades.

Disparidades

Até o momento, a relação desenvolvida entre os dois espaços demonstrou semelhanças


entre os seus interiores: a espacialidade e o comportamento presente em cada ambiente foi
discutido e relacionado, tendo como base a descrição da caverna no mito alegórico e o
advento do cinema clássico. A similaridade deu-se através dos ambientes em si, mas a
finalidade pela qual são propostos não foi abordada.
No mito alegórico, o homem aparece involuntariamente aprisionado durante toda sua
vivência. Ele mantém uma postura passiva dentro da caverna escura, é prisioneiro e nem
sequer tem ciência de sua condição. Mas Platão não se limita a essa situação: ele liberta um
dos prisioneiros e o leva ao mundo iluminado pelo Sol. O homem não consegue, de imediato,
encarar tal estrela: primeiro observa as sombras, passa aos reflexos dos objetos na água,
aos próprios objetos, aos corpos celestes que iluminam a noite e, por último, consegue olhar
o Sol, que governa o mundo sensível. Esse caminho que se aprende vagarosamente é
comparado à ascensão da alma ao mundo inteligível, onde a Idéia do Bem é soberana- que
engendrou a luz e o soberano da luz no mundo visível. Essa ascensão é realizada com o
aprendizado das ciências, elas preparam o espírito para a abstração, sendo as Idéias as
abstrações supremas.
A saída da caverna pode ser entendida como um nascimento- é a conquista da luz (2) .
E a luz nada mais é do que a presença do Sol. A saída da caverna é o ponto de partida para
a ascensão.
O cinema clássico, por sua vez, já não possui esse fim. Como já foi mencionado, ele leva o
espectador à sublimação, à catarse. O espectador, ao sair do cinema, não encontra as luzes
reveladoras, ele julga tê-las encontrado durante o filme, do qual sai purificado e apaziguado-
a sua vida continua a mesma.

O retorno às trevas também diverge nos dois casos.


Enquanto o ex-prisioneiro visa libertar os outros homens, para apresentar-lhes a luz do
conhecimento, por mais perigoso que possa ser desmascarar aquela realidade, o espectador
retorna aos filmes para continuar com o jogo projeção-identificação.

Conclusões

O comportamento do espectador talvez não pudesse ser diferente. A vida contemporânea -


marcada por uma sociedade predominantemente massificada, por trabalho mecanizado, e
pelo constante desafio de permanecer no mercado - necessita de sensações e de emoções
que façam o homem voltar a se sentir humano, deixar o estado "máquina" e retornar ao
estado "indivíduo". E isso o cinema clássico realiza com total habilidade: ele acorda o homem
para uma vida mundana, mas sensível.
Contudo, talvez as situações comparadas sejam contrárias quanto aos fins: na caverna, a luz
exterior é almejada visando o abandono do mundo sensível em prol do inteligível; no
cinema, a luz interior é procurada com o intuito de satisfazer a condição humana em relação
às emoções que nem sempre são sentidas no dia a dia. Mas os mecanismos utilizados são
semelhantes e extraem o homem de uma certa ignorância, confrontando-o com outra
realidade.

Referência Bibliográficas:

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XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro,


Paz e Terra, 1977.

http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/3096879

O estudo da narrativa sempre foi alvo de diversas discussões, conceitos e opiniões


diferentes. Em um meio tão contraditório e nebuloso, este trabalho tentou resgatar nas
formas não-narrativas, uma definição da narrativa. Para isso, nos baseamos na obra
Análise Estrutural da Narrativa - pesquisas semiológicas, organizada por Roland
Barthes, datada de 1971, caracterizada por ser uma espécie de coletânea que aborda
como tema principal a narrativa e os elementos que a acompanham ou interferem na sua
significação de alguma maneira.

No entanto, trabalharemos especificamente, com o último texto da obra, denominado de


Fronteiras da Narrativa, escrito por Gérard Genette da Faculdade de Letras e Ciência
Humanas de Paris e autor de diversas obras sobre o tema em questão.

A relevância do tema pode ser explicitado através das palavras de Barthes (1971),
quando levanta o aspecto de que são inumeráveis as narrativas no mundo. Segundo o
autor, vivemos rodeados pelas narrativas, que podem ser encontradas no mito, na fábula,
no conto, no romance, na pintura, no cinema, nas histórias em quadrinhos, etc.. A
narrativa está sempre presente em todos os tempos e lugares, ou seja, está entre os
homens, não importando classe ou cultura.

Após uma concisa revisão de literatura, seguindo os passos de G. Genette, escolhemos


como objeto de pesquisa e análise o romance Agosto, de Rubem Fonseca, a fim de
discorrer uma análise de conteúdo de um capítulo da obra, a partir de categorias pré -
estabelecidas, oriundas do texto de Genette.

A escolha de um romance para ser analisado deu-se pela importância deste gênero
através dos séculos. De acordo com Schüler (1989) o romance nasceu como testemunha
do declínio da Idade Média, trazendo consigo a ``consciência da transformação''. Coube
ao romance, desde o começo, retratar os conflitos individuais e a vida cotidiana,
opondo-se a noções medievais latinas, que não admitiam a contaminação de lealdade e
traição, amplamente praticadas pelo romance, destaca Schüler.

Com o passar dos anos o romance, antes privilégio de nobres e burgueses, chegou à
população menos favorecida, graças ao desenvolvimento da imprensa escrita,
conquistando um admirável público por intermédio do romance-folhetim, que era
oferecido em séries diárias pelos jornais. Schüler acredita que, devido a esta expansão, o
mercado necessitou a produção temática de romances, e assim surgem os romances
históricos, sociais, realistas, psicológicos, etc.. A narrativa romanesca começa a ter o
empenho de apanhar e interpretar a realidade.

Agosto, de Rubem Fonseca, espelha muitas das características do romance descritas


anteriormente. Esta obra trata-se de uma mescla de romance histórico, pois aborda um
dos mais importantes fatos políticos brasileiros -o suicídio do presidente Getúlio Vargas
- com um romance psicológico, já que os personagens são intimamente abertos para o
leitor que vai conhecendo seus pensamentos, suas angústias, isto é, o leitor é imergido
no íntimo dos personagens a cada página.

Sendo assim, este estudo pretende, tomando como base os conceitos levantados por G.
Genette, desvendar estas categorias descritas por este autor, no terceiro capítulo de
Agosto (em anexo). É pertinente destacar que, se tratando de uma pesquisa qualitativa,
com utilização de análise de conteúdo, as escolhas foram feitas, buscando suprir as
necessidades do pesquisador em relação à aplicação do pensamento de G. Genette.

Fundamentação teórica
Narrativa - Um conceito em mutação
É necessário lembrar que os conceitos que serão descritos posteriormente, estão
baseados no artigo Fronteiras da Narrativa, escrito por Gérard Genette pertencente à
obra, organizada por Roland Barthes, intitulada Análise Estrutural da Narrativa -
pesquisas semiológicas (1971).

O autor inicia ressaltando um conceito generalista de narrativa, que por convenção, no


domínio da expressão literária, podemos definir como representação de um
acontecimento, real ou fictício, por meio da linguagem, mais particularmente da
linguagem escrita.

Mas definir positivamente a narrativa é acreditar na idéia ou no sentimento de que a


narrativa não é nada mais natural do que contar uma história ou arrumar um conjunto de
ações em um mito, um conto, uma epopéia, um romance.

A literatura foi evoluindo e teve como conseqüência, entre outras coisas, chamar
atenção para o seu aspecto singular, artificial e problemático do ato narrativo. Genette
busca reconhecer certos modos negativos da narrativa, a considerar os principais jogos
de oposições por meio dos quais a narrativa se define e se constitui em face das diversas
formas da não-narrativa.

Diegesis e mimesis
O autor busca o primeiro exemplo de oposição descrita na Poética de Aristóteles que,
segundo Nunes (1995), é a mais recuada e duradoura matriz da teoria da literatura. Para
o filósofo, a narrativa (diegesis) é um dos modos de imitação, enquanto a representação
poética (mimesis) é a representação direta dos acontecimentos, que ocorre por
intermédio das falas e ações dos atores perante um público.

A partir desta distinção entre poesia narrativa e poesia dramática, que já havia sido
citada por Platão no 3º livro da República, com 2 diferenças. Por um lado Sócrates nega
ali à narrativa a qualidade (para ele é um defeito) da imitação, e por outro lado ele toma
em consideração aspectos de representação direta, que são os diálogos que podem
comportar um poema não dramático como os de Homero.
Platão fala a respeito do domínio da lexis, que de acordo com o pensador é a maneira de
dizer, em oposição a logos, que designa o que é dito. Podemos dividir a lexis,
teoricamente, em imitação propriamente dita, que seria a mimesis e a simples narrativa,
denominada de diegesis.

Platão diz que, tudo que o poeta narra falando em seu próprio nome, sem procurar fazer
crer que é um outro que fala, se trata de uma simples narrativa. Para exemplificar,
Platão usa o canto I da Ilíada, quando Homero fala a propósito de Crisés: ``ele tinha
vindo às belas naves dos Aqueus, para reaver sua filha, trazendo um imenso resgate e
segurando, sobre o seu bastão de ouro, as fitas do arqueiro Apolo; e ele suplicava a
todos os Aqueus, mas sobretudo aos dois filhos de Ateu, bons estrategistas''.

Já a imitação consiste no fato de Homero fazer falar o próprio Crisés, segundo o


filósofo, falar fingindo ser o próprio Crisés e ``esforçando-se para nos dar na medida do
possível a ilusão de que não é Homero que fala, mas sim o velho sacerdote Apolo''
(Platão apud in Genette, 1971). Platão diz que Homero poderia ter seguido sua história
sob a forma puramente narrativa, narrando as palavras de Crisés, ao invés de reproduzi-
las, dando um estilo indireto e prosa.

Há uma divisão teórica oposta no interior da dicção poética, a dos modos puros e
heterogêneos da narrativa e da imitação, que conduz e funda uma classificação própria
dos gêneros, que compreende os dois modos puros: o narrativo, representado pelo
teatro, mais um modo misto, ou mais precisamente, alternado, que é o da epopéia, como
exemplo a Ilíada.

Aristóteles, por sua vez, possui uma classificação diferente, que reduz toda a poesia à
imitação, distinguindo somente dois modos imitativos. O direto, que Platão nomeia de
imitação, e o narrativo, que Aristóteles denomina como Platão de diegesis.

Aristóteles identifica o gênero dramático como um modo imitativo, o define pelas


condições cênicas da representação dramática, sem levar em consideração seu caráter
misto. Já o gênero épico se identifica ao modo narrativo puro.

A representação dramática pode justificar-se pelo fato de que a obra épica, permanece
essencialmente narrativa, visto que os diálogos são enquadrados e conduzidos pelas
partes narrativas que constituem, no sentido próprio, o fundo, a trama do seu discurso.
Não importa a parte material dos diálogos ou discursos em estilo direto, mesmo que esta
parte se sobreponha a da narrativa.

Genette afirma que, Aristóteles reconhece em Homero esta superioridade sobre os


outros poetas épicos. Pois ele intervêm o menos possível em seu poema, colocando em
cena, na maior parte das vezes, personagens caracterizados, conforme o papel do poeta,
que é imitar o máximo possível.

Aristóteles reconhece o caráter imitativo implícito dos diálogos Homéricos e portanto o


caráter misto da dicção épica, narrativa em seu fundo, mas dramática em sua extensão.

As duas classificações, tanto a de Platão quanto a de Aristóteles, concordam que existe


uma oposição do dramático e do narrativo, sendo o dramático considerado mais
imitativo que o segundo. Os dois filósofos acreditam que a narrativa é um modo
enfraquecido, atenuado da representação literária.

Genette destaca a importância de levantar um fator que nenhum dos dois filósofos se
preocupou, mas que pode restituir à narrativa todo seu valor e importância. A imitação
direta, como funciona em cena, consiste em gestos e falas. Enquanto gestos, ela
evidencia, representa ações, mas escapa do plano lingüístico, onde é exercida a
atividade específica do poeta. Porém, constituída por falas, discursos emitidos por
personagens, a parte da imitação se resume a isto, em uma obra literária.

A narrativa mista para Platão, quer dizer o modo de relação mais corrente e mais
universal, ``imita'', alternativamente, sobre o mesmo tom, uma matéria não verbal que
deve efetivamente representar o melhor que puder, e uma matéria verbal que se
representa por si mesma, e que se contenta, na maioria das vezes, em citar.

Genette acredita que, em uma narrativa histórica, fiel, o historiador-narrador deve ser
muito sensível à mudança de regime, quando passa do esforço narrativo na relação dos
atos realizados à transcrição mecânica das falas pronunciadas. Mas quando se trata de
uma narrativa parcial ou completamente fictícia, o trabalho da ficção se exerce
igualmente sobre os conteúdos verbais e não verbais, tem por efeito mascarar a
diferença que separa os dois tipos de imitação. Um está em frase direta, enquanto o
outro faz intervir um sistema mais complexo.

Para imaginar fatos e falas procedemos de uma mesma operação mental, porém dizer
esses atos e dizer estas falas, constituem duas operações verbais muito diferentes. Só a
primeira constitui uma verdadeira operação, um ato de dicção no sentido platônico,
comportando uma série de transposições e equivalências, e uma série de escolhas
inevitáveis entre os homens da história a serem retidos e os elementos a serem
abandonados, entre os diversos pontos de vistas possíveis, etc.. Todas as operações
evidentemente ausentes, quando um poeta ou historiador se limita a transcrever o
discurso.

Pode-se contestar esta diferença entre o ato de representação mental (logos) e o ato de
representação verbal (lexis). Porém, Genette diz que estaremos contestando a própria
teoria da imitação, que atribui à ficção poética a denominação de um simulacro da
realidade, transcendente ao discurso que o institui.

Quanto ao acontecimento histórico, este é exterior ao discurso do historiador ou à


paisagem representada no quadro. Teoria que não faz diferença entre ficção e
representação, faz com que o objeto da ficção se reduza por ela a um real fingido e que
espera ser representado.

``A noção mesmo de imitação sobre o plano da lexis é uma pura miragem, que vai
desaparecendo à medida que nos aproximamos dela, a linguagem só pode imitar
perfeitamente a linguagem, ou mais precisamente, o discurso só pode imitar
perfeitamente um discurso idêntico; em resumo, a imitação direta é, exatamente uma
tautologia''. (Genette apud in Barthes 1971: 261)

Genette conclui que, o narrativo é o único modo empregado pela literatura enquanto
representação, equivalente verbal de acontecimentos não verbais e também de
acontecimentos verbais, a não ser que ele se apague, neste último caso, diante de uma
citação direta da qual se anula toda a função representativa.

``A representação literária, a mimesis dos antigos, não é a narrativa mais os discursos:
é a narrativa, e somente a narrativa. Platão oporia mimesis a diegesis como uma
imitação perfeita a uma imitação imperfeita; mas a imitação perfeita não é mais uma
imitação, é a coisa mesmo, e finalmente a única imitação é a imperfeita. Mimesis é
diegesis.'' (Genette apud in Barthes, 1971: 262)

Narração e descrição
Partindo do pressuposto de que a representação literária se confunde com a narrativa
(sentido lato), Genette levanta indagações que não foram abordadas por Platão e
Aristóteles. O autor defende que toda a narrativa comporta com efeito, porém em
proporções diferentes de um lado representações de ações e de acontecimentos, que
constituem a narração propriamente dita, de outro lado representações de objetos e
personagens, que são o fato daquilo que se denomina descrição.

A oposição entre narração e descrição é um dos traços maiores da nossa consciência


literária. A descrição nunca teve uma existência muito ativa antes do séc. XIX, quando a
introdução de longas passagens descritas em romances, que são tipicamente narrativos,
colocasse em evidência os recursos e as exigências deste procedimento.

A despreocupação em distinguir descrição e narração, é indicada claramente pelo


emprego do termo comum diegesis, graças ao status literário, muito desigual dos dois
tipos de representação.

É possível, em princípio, concebermos textos puramente descritivos, visando a


representação de objetos em sua única existência espacial, fora de qualquer
acontecimento e de dimensão temporal. Realizar uma descrição pura de qualquer
elemento narrativo é mais fácil do que o inverso, pois a mais sóbria designação dos
elementos e circunstâncias de um processo pode passar por um esboço de descrição.

Pode-se dizer que a descrição é mais indispensável do que a narração, uma vez que é
mais fácil descrever sem narrar do que narrar sem descrever, pois os objetos podem
existir sem movimento, mas não há movimento sem objetos.

Genette explica que a natureza da relação entre descrição e narração em textos literários,
segue da seguinte maneira: a descrição poderia ser concebida independentemente da
narração, mas de fato nunca se encontrará em um estado livre. A narração por sua vez,
não pode existir sem a descrição, mas esta dependência não a impede de representar o
primeiro papel, fazendo com que a descrição seja uma escrava sempre necessária, mas
submissa, jamais sendo emancipada.

Em gêneros narrativos, como a epopéia, o conto, a novela, o romance, em que a


descrição geralmente ocupa um lugar muito grande, e mesmo materialmente maior, é
vista como um simples auxiliar da narrativa. Não existem, gêneros descritivos, e
imagina-se mal uma obra em que a narrativa se comportaria como auxiliar da descrição.
O estudo das relações entre o narrativo e o descritivo reduz-se a considerar as funções
diegéticas da descrição, isto é, o papel representado pelas paisagens, ou os aspectos
descritivos na economia geral da narrativa.

A fim de detalhar este estudo sobre a descrição, Genette utiliza-se da tradição literária
clássica para abordar duas de suas funções relativas distintas. A primeira, é de certa
forma decorativa. A retórica tradicional classifica a descrição como um ornamento do
discurso: a descrição longa e detalhada, aparece aqui como uma pausa, uma recreação
na narrativa, puramente estética.

A segunda grande função da descrição, a mais manifestada hoje, que se impôs com
Balzac, na tradição do gênero romanesco, é de ordem simultaneamente explicativa e
simbólica, como os retratos físicos, as descrições de roupas e móveis tendem, em
Balzac, e seus sucessores realistas, revelar, e ao mesmo tempo justificam a psicologia
dos personagens, dos quais são simultaneamente: signo, causa e efeito.

Com a evolução das formas narrativas, a descrição ornamental foi substituída pela
descrição significativa, tendendo assim a reforçar a dominação do narrativo, fazendo
com que a descrição perdesse, sem nenhuma dúvida, em autonomia o que ganhou em
importância dramática.

As diferenças que separam a descrição e a narração são diferenças de conteúdo, e não


tem existência semiológica.

``A narração liga-se a acontecimentos ou ações, considerados como processos puros e


por isso põe acento sobre o aspecto temporal e dramático da narrativa; a descrição ao
contrário, uma vez que se demora sobre objetos e seres considerados em sua
simultaneidade, e encara os processos como espetáculos, parece suspender o curso do
tempo e contribui para espalhar a narrativa no espaço.'' (Genette apud in Barthes 1971:
265)

Estes dois tipos de discursos exprimem duas atitudes antitéticas diante do mundo e da
existência, uma mais ativa, e outra mais contemplativa, consequentemente, mais
poética. Mas referindo-se a representação, narrar um acontecimento e descrever um
objeto são duas operações semelhantes, que utilizam os mesmos recursos de linguagem.

A diferença mais significativa seria talvez o fato de que a narração traz no seu discurso
a sucessão temporal, igualmente como dos acontecimentos, enquanto que a descrição
deve modular no sucessivo a representação de objetos simultâneos e justapostos no
espaço. Para Genette (1971:266), ``a linguagem narrativa se distinguiria assim por uma
espécie de coincidência temporal do seu objeto, do qual a linguagem descritiva seria ao
contrário irremediavelmente privada''.

Porém esta oposição perde muito de sua força na literatura escrita, onde nada impede o
leitor de voltar atrás e de considerar o texto, em sua simultaneidade espacial. O autor
revela que, por outro lado, nenhuma narração, nem mesmo da reportagem radiofônica,
não é rigorosamente sincrônica ao acontecimento que relata, e a variedade das relações
que podem guardar o tempo da história e o da narrativa acaba de reduzir a
especificidade da representação narrativa.
``Enquanto modo de representação literária, a descrição não se distingue nitidamente
da narração, nem pela autonomia de seus fins, nem pela originalidade de seus meios,
para que seja necessário romper a unidade narrativo-descritiva (a dominante
narrativa), que Platão e Aristóteles designaram narrativa.'' (Genette apud in Barthes
1971: 266)

Caso a descrição marque uma fronteira da narrativa, esta será uma fronteira interior que
reunirá sem prejuízo, na noção de narrativa, todas as formas de representação literária, e
considerar-se-à a descrição não como um dos seus modos (o que implicaria uma
especificidade de linguagem) porém, como um dos seus aspectos.

Narrativa e discurso
Retornando a Platão e Aristóteles, que nas suas obras República e a Poética, onde
reduziram o campo da literatura ao domínio particular da literatura representativa:
poiesis = mimesis. Genette pretende desenhar uma última fronteira da narrativa, que
poderia ser a mais importante e a mais significativa, considerando tudo o que se
encontrava excluído do poético. Trata-se da poesia lírica, satírica e didática, utilizando-
se de alguns nomes que um grego do século V ou IV deveria conhecer, são eles:
Píndaro, Alceu, Safo, Arquíloco e Hesíodo.

O que Arquíloco, Safo e Píndaro possuem em comum, é que suas obras não consistem
em imitação, por narrativa ou representação cênica, de uma ação real ou fingida,
exterior à pessoa e à palavra do poeta, mas simplesmente em um discurso mantido por
ele diretamente em seu próprio nome.

Genette exemplifica, contando que Píndaro cantava méritos ao vencedor olímpico,


Arquíloco invectivava seus inimigos políticos, Hesíodo dava conselho aos agricultores,
Empédocles ou Parmênides falavam da teoria do universo. O elemento comum nestes
autores é que neles não há nenhuma representação, nem ficção, simplesmente uma fala
que se investe diretamente no discurso da obra.

A expressão direta escapou à reflexão da Poética, enquanto negligencia a função


representativa da poesia. Surgem assim duas divisões, segundo a importância
sensivelmente igual ao conjunto do que chamamos hoje literatura.

Genette adota a divisão proposta por Emile Benveniste entre narrativa (história) e
discurso, com a diferença que Benviste engloba na categoria do discurso tudo que
Aristóteles chamava de imitação indireta, que consiste ao menos na sua parte verbal, em
discurso emprestado pelo poeta ou narrador a um dos seus personagens.

Benveniste destaca que certas formas gramaticais como o pronome ``eu'' e sua
referência implícita o ``tu'', os indicadores pronominais, certos demonstrativos ou
adverbiais (como aqui, agora, ontem, hoje, amanhã) e, certos tempos do verbo, como o
presente, passado composto ou futuro, se encontram reservados ao discurso enquanto
que a narrativa em sua forma estrita é marcada pelo emprego exclusivo da terceira
pessoa e de formas como o airoso (passado simples) e o mais-que-perfeito.

Não importa o idioma, todas estas diferenças servem para criar uma oposição entre a
objetividade da narrativa e a subjetividade do discurso. Porém Benveniste acredita que,
é preciso lembrar que se trata de uma ``objetividade e de uma ``subjetividade'' definida
por critérios de ordem propriamente lingüística: é subjetivo o discurso onde se marca,
explicitamente ou não, a presença (ou a referência a) eu, mas este eu não se define de
nenhum modo com a pessoa mantém o discurso. Do mesmo modo que o presente, que é
o tempo por excelência do modo discursivo, não se define como o momento em que o
discurso é enunciado, sem emprego marcado, para a autora ``a coincidência do
acontecimento descrito com a instância do discurso que o descreve''.

Já a objetividade da narrativa se define pela ausência de toda referência ao narrador: O


narrador omite-se, os acontecimentos são colocados e se produzem à medida que
aparecem no horizonte da história. É como se os acontecimentos narrassem a si
mesmos''.

Porém é preciso acrescentar que as essências da narrativa e do discurso, quase nunca se


encontram em estado puro em nenhum texto. Em muitos casos, há uma proporção de
narrativa no discurso e uma certa dose de discurso na narrativa.

Assim, se esgota a simetria, pois tudo que se passa com os dois tipos de expressão se
encontram muito diferentemente afetados pela contaminação, pela inserção de
elementos narrativos no plano do discurso não basta para emancipá-lo, pois estes
elementos permanecem com maior freqüência ligados à referência do locutor, que fica
implicitamente presente no último plano, e que pode intervir de novo a cada instante
sem que este retorno seja considerado uma ``intrusão''.

Ao contrário de ser normal haver elementos da narrativa em um discurso, é visto como


infração a intervenção de elementos discursivos no interior de uma narrativa. Para
Genette (apud in Barthes, 1971: 272)

``A narrativa inserida no discurso se transforma em elemento do discurso, o discurso


inserido na narrativa, permanece discurso e forma uma espécie de quisto muito fácil de
reconhecer e localizar. A pureza da narrativa, dir-se-ia, é mais fácil de preservar do
que a do discurso.''

O romance como alternativa na relação discurso X


narrativa
Genette diz que uma das atividades deste estudo, poderia ser o de repertoriar e
classificar os meios pelos quais a literatura narrativa (particularmente a romanesca) tem
tentado organizar de uma maneira aceitável, no interior de sua própria léxis, as relações
estreitas e delicadas que se encontram as exigências da narrativa e as necessidades do
discurso. Porém, o autor admite que o romance nunca conseguiu solucionar o problema
dessa relação.

Houveram diversas tentativas, durante séculos diferentes, de resolver esta discussão. Na


época clássica, por exemplo, o autor-narrador assumia o seu próprio discurso, intervinha
na narrativa com uma indiscrição marcada, interpelando o seu leitor no tom da
conversação familiar.
Vê-se também ao contrário nesta mesma época, o autor transfere todas as suas
responsabilidade do discurso a um personagem principal que falará, isto é, narrará e
comentará ao mesmo tempo os acontecimentos em primeira pessoa.

Outra alternativa foi repartir o discurso entre os diversos atores, seja sob a forma de
cartas, como fez freqüentemente o romance do séc., ou ainda de uma maneira mais ágil
e sutil de um Joyce ou de um Faulkner, fazendo sucessivamente a narrativa ser
assumida pelo discurso interior dos seus principais personagens.

O único momento de equilíbrio entre discurso e narrativa, sem escrúpulo e ostentação


foi no séc. XIX, a idade clássica da narração objetiva, com Balzac e Tolstoi.

De acordo com Genette, Hammett ou Hemingway tentaram conduzir a narrativa ao seu


mais alto grau de pureza. Para isto foi preciso excluir a exposição dos motivos
psicológicos, sempre difícil de apresentar sem recurso a considerações gerais de
natureza discursiva, as qualificações implicando numa apreciação pessoal do narrador,
as ligações lógicas, etc; até reduzir a dicção romanesca a essa sucessão de frases curtas,
sem articulações.

O que se interpretou com freqüência como uma aplicação à literatura das teorias
behavioristas era talvez somente o efeito de uma sensibilidade aguda a certas
incompatibilidades da linguagem. Todas essas características da escritura romanesca
contemporânea ganhariam, sem dúvida, se analisadas sob este ponto de vista, além da
tendência atual, manifestada em Sollers ou um Thibaudeau, por fazer desaparecer a
narrativa no discurso presente do escritor no ato de escrever, no que Foucault chama ``o
discurso ligado ao ato de escrever, contemporâneo de seu desenvolvimento e encerrado
nele''.

Tudo se passa como se a literatura tivesse esgotado ou ultrapassado os recursos de seu


modo representativo, e pretendesse refletir sobre o murmúrio indefinido de seu próprio
discurso.

Genette (apud in Bathes 1971: 274) acredita que talvez o romance, após a poesia,
consiga sair da idade da representação.

``Talvez a narrativa, na singularidade negativa que acabamos de reconhecer, seja já


para nós, como a arte para Hegel, uma coisa do passado, que é preciso considerar às
pressas em sua retirada, antes que tenha desertado completamente nosso horizonte.''

A literatura de Rubem Fonseca e o seu


romance Agosto
Após uma breve incursão através dos pressupostos levantados por Genette, iremos
abordar o nosso objeto de estudo que se encontra no romance Agosto de Rubem
Fonseca. A fim de compreendermos um pouco melhor o estilo literário do autor, é
relevante para o nosso estudo conhecermos algumas características do autor e da
temática das suas obras.
Breve perfil da obra de Rubem Fonseca
Rubem Fonseca começou a se destacar em 1963, com um pequeno volume de contos
intitulados Os prisioneiros. O autor sempre buscou preservar sua intimidade, afastando-
se de entrevistadores, não comentava suas obras por mais escandalizadas que fossem ou
criticadas. Seus romances e contos abordam temas como: assassinatos, assaltos, roubos,
tráfico de drogas, corrupção policial, violência e sexualidade.

Em Agosto, obra publicada em 1990, o autor segue as suas características primordiais,


de acordo com Gil (1991) seu virtuosismo está quando ele se transforma em narrador de
histórias, problematizando uma ``verdade'' ficcional. Fonseca faz com que exista uma
coerência entre o real e a ficção.

Gil (1991) ressalta que o conteúdo, juntamente com os pressupostos histórico-culturais,


são fundamentais para dar sentido à composição dos romances de Rubem Fonseca.
Podemos dizer que existe nos textos de Rubem Fonseca, uma sincronia entre o tempo
histórico e o tempo ficcional. Gil afirma que há uma gradativa inserção do país na esfera
do capitalismo industrial de consumo e massa, presente na obra do autor.

No que envolve seus personagens, há sempre uma identificação destes com a realidade
social na qual estão inseridos. Gil (1991:162) exemplifica esta característica:

``Rubem Fonseca se ordena e toma a direção primeiro no sentido da impossibilidade de


os personagens estabelecerem relações substantivas com a realidade social ( e s
relações pessoais totalmente degradadas ou são vontades e desejos de vivenciar
experiências desse mundo que, agora, já se tornaram inacessíveis).''

Além do desmoronamento de todas as relações pessoais entre os seus personagens, o


autor os cria em uma esfera antagônica. Segundo Silva (1980), eles podem ser tanto um
burguês quanto um marginal, e também um ser que sofre de um acossamento
psicológico. Silva prossegue, descrevendo que os personagens ferem e matam, mas
sofrem com isto uma eterna angústia, são lúcidos, mas encontram-se sempre
desesperados.

Por fim, Rubem Fonseca é caracterizado por ser um escritor bem dotado e de ter um
raro poder de observação do seu meio. Segundo Afrânio Coutinho (apud in Silva 1980),
este é um requisito básico para um escritor, para transpor à letra artística mediante o seu
imaginário e seu estilo.

`` Os livros de Rubem Fonseca são obra de arte literária no melhor sentido, seja pela
sua língua vivaz e franca, seja pelo uso de todos os recursos técnicos da arte ficcional
moderna, seja pela segura e arguta visão dos costumes sociais contemporâneos.''
(Coutinho, apud in Silva 1980:168)

Agosto e suas características


Agosto foi publicado em 1990 e caracteriza-se principalmente por se tratar de uma
narrativa de cunho policial, de contar com um grande número de personagens que
possuem ligações entre si, além do clima de mistério e investigação presente do início
ao final da obra.

Para uma maior aproximação com o romance, julgamos necessário uma breve sinopse
de Agosto. A história se resume no assassinato de um empresário ocorrido na
madrugada de 1 de agosto de 1954, no quarto de um luxuoso duplex no Rio de Janeiro.
A pouco quilômetros dali o tenente Gregório Fortunato, chefe da Guarda pessoal do
Presidente Getúlio Vargas, começa a arquitetar outro crime: o atentado ao jornalista
Carlos Lacerda, que terminaria vinte dias depois, na maior tragédia política do Brasil. O
personagem central da trama é um delegado de Polícia chamado Mattos, muito
depressivo e incorruptível, atormentado por uma úlcera gástrica e duas namoradas.
Mattos sai obsessivamente atrás de provas para solucionar os dois crimes - o assassinato
de Carlos Lacerda e do empresário-, sendo que os dois crimes possuíam um fato
incomum: o principal suspeito era um homem negro.

Neste romance podemos identificar alguns pontos levantados por Silva (1980) quando
ele caracteriza a obra do autor como a condenação de instituições, a vitória dos
bandidos, a violência urbana e o uso de uma linguagem vulgar utilizada, visando o lado
trágico das metrópoles, além de servir para o autor manifestar todo o seu repúdio
perante a realidade da qual se ocupa.

Silva continua, destacando que a obra literária de Rubem Fonseca é realista, pois se
concentra em temas extraídos de grandes concentrações urbanas e violentas - no caso de
Agosto, já que a história se passa no Rio de Janeiro.

Neste romance Rubem Fonseca funde texto e contexto, apresentando um diagnóstico da


sociedade em que vive. A trama dos personagens se funde com um momento de grande
importância para o Brasil, é o autor aproveitando-se da realidade, do seu testemunho,
transformando-o em uma forma literária. ``A literatura não é espelho, escritor não é
fotógrafo. Ao invés de reproduzir, sua obra transfigura, revela'' (Silva, 1980: 14).

O pensamento de Gérard Genette como


aporte teórico para a análise de conteúdo
no caso Agosto
Retornaremos novamente à fundamentação teórica baseada em Gérard Genette, que irá
nortear a análise do objeto escolhido, partindo dos conceitos considerados mais
relevantes dentro da exposição feita pelo autor, no seu artigo Fronteiras da Narrativa.

É importante ressaltar que a escolha destes conceitos se deu através da utilização da


técnica de análise de conteúdo de acordo com Laurence Bardin (1977), que une o
contexto direto prolongado da investigação com o objeto pesquisado. Os pressupostos
de Bardin buscam na pesquisa qualitativa e através da análise de conteúdo, uma visão
precisa, mas ao mesmo tempo flexível, por acreditar que ``a compreensão exata do
sentido é capital'' (1977:115)
As categorias resultantes do artigo fronteiras da
narrativa de G. Genette
O artigo de Genette sofreu uma acurada análise a partir de um processo de
estabelecimento de relações entre os conceitos discorridos ao longo do seu texto.
Podemos dizer que, através de uma ``leitura flutuante''2 e de posse dos elementos
globais abordados por Genette, organizaram-se categorias comparativas que irão
permitir a análise do nosso objeto de estudo, que serão apresentadas logo após, por
intermédio de quadros comparativos:

Quadro Comparativo I

Diegesis Mimesis
modo de imitação, modo de imitação, é a
representação poética representação direta
dos acontecimentos
por atores falando ou
agindo perante o
público
denominada de Denominada por
simples narrativa por Platão de imitação
Platão, o autor fala propriamente dita, o
em seu próprio nome, autor fala através do
sem procurar fazer personagem
crer que é outro que
fala

Quadro Comparativo II

Narração Descrição
mistura Representação de
representações de objetos e personagens
ações e
acontecimentos
Prima pela ação, pelo Representação de
movimento dos objetos em uma única
objetos existência espacial,
fora de qualquer
dimensão temporal.
Existem gêneros é sempre um simples
narrativos (como o auxiliar da narrativa,
conto, o romance, pois não existem
etc..), onde a gêneros descritivos,
descrição ocupa um porém é responsável
lugar muito grande. pela dramaticidade
considerada um é estético, uma pausa,
processo puro, uma recreação na
considera o aspecto narrativa, sem
temporal preocupação com o
tempo, mas com a
ordem explicativa e
simbólica

Quadro Comparativo III

Narrativa Discurso
história tudo o que
Aristóteles chamava
de imitação indireta3
emprego exclusivo Caracterizado pelo
da terceira pessoa e pronome ?eu?, sua
dos verbos em referência ao ?tu?,
passado simples e no indicadores
passado mais-que- pronominais, certos
perfeito demonstrativos ou
adverbiais, e os
tempos de verbos no
presente, passado
composto ou futuro
objetividade - subjetividade -
ausência ao narrador presença ou
referência ao eu
é um modo é um modo natural
particular, definido de linguagem, o mais
por um certo número aberto e universal.
de exclusões e
condições restritivas
a narrativa não pode o discurso pode
discorrer sobre si narrar sem cessar o
mesma discurso
A análise de conteúdo de Agosto de
acordo com as categorias de G. Genette
Elegemos algumas categorias extraídas do artigo de Genette, que foram organizadas em
forma de quadros comparativos, a fim de facilitar a análise do objeto em questão.

As categorias elencadas foram:

1- Diegesis e Mimesis;

2- Narração e Descrição;

3- Narrativa e Discurso.

Para estruturarmos a análise foi feita a escolha do terceiro capítulo do romance Agosto4,
que servirá como corpus da pesquisa, para a partir daí, referendarmos com extratos
deste capítulo, os conceitos descritos acima, seguindo os princípios de G. Genette.

1- Diegesis e Mimesis

Exemplos de diegesis:

Depois que desligou o comissário lembrou-se que tinha um encontro com seu Emílio, o
maestro, às cinco e meia. Como tinha tempo, pois era muito cedo, o comissário decidiu
homenagear seu Emílio ouvindo La Traviata. (p.43)

Comentário: Há uma representação verbal do ato de Mattos, um dos protagonistas do


romance.

Procurar entender as coisas levava-o sempre a um frustrante círculo vicioso. (p. 48)

Comentário: O autor (narrador) fala por ele mesmo, ele não quer fazer ser acreditado
ser o personagem.

Exemplos de mimesis:

`` Eu também não gosto de fuçar a vida sexual de ninguém. Mas o senador deve ser
desse tipo de michê que gosta de contar vantagens para as garotas na cama, tomando
champanhe. Muitas vezes conseguimos informações úteis.'' (p. 45)

Comentário: percebemos que o discurso de Rubem Fonseca se mistura ao do


personagem Rosalvo, um agente de polícia.

``...Sabe quantos anos tinha Verdi quando compôs esta obra-prima, quando a história
da ópera virou de cabeça para baixo, ou para cima, com o Falstaff? Oitenta anos, a
minha idade menino. Mas no Brasil qualquer coisa de oitenta anos tem que ser
destruída, jogada no lixo. É por isso que antigamente todos os grandes cantores vinham
ao Brasil e agora ninguém mais vem aqui, nem um Del Monaco, nem mesmo um Pinza,
que não sabe ler uma nota de música, ninguém!'' (p. 53)

Comentário: Este trecho foi retirado de um diálogo do maestro Emílio com Mattos. O
autor fala, através do personagem.

2- Narração e Descrição

Exemplos de narrações:

Numa pequena oficina de consertos de automóveis, o mecênico Cosme, durante uma


briga, dera um golpe com uma chave de cruz na cabeça de um sujeito que deixara o
carro para reparos, matando-o. (p. 46)

Comentário: Há uma representação de ação e acontecimentos, com partes descritivas.

Entrou na confeitaria e sentou-se, de frente para aporto. Faltavam dez minutos para as
cinco. Por alguns instantes pensou em ir embora. Por que ficar ali para rever a mulher
que o havia desprezado? O que Alice estava querendo dele? Ajuda? Ele não queria
desforrar-se dela deixando de ajudá-la, o vingar-se ajudando-o, o que seria ainda mais
mesquinho. Ficou olhando os desenhos art-nouveau na parede. ( p. 49)

Comentário: O tempo aparece como elemento importante dentro desta narração, mas
aparece novamente a descrição.

Exemplos de descrições:

Cosme seria um tipo lombrosiano com estigmas físicos de criminalidade como fonte
fugidia, a proeminência dos zigomas, a agudeza do ângulo facial, o prognatismo, a
plagiocefalia. (p. 47)

Comentário: Nesta frase é feito um retrato físico do personagem, causando


dramaticidade, no entanto não há uma referência temporal, e sim uma ordem explicativa
e simbólica.

O velho já o esperava ao lado da estátua de Chopin. Usava, como sempre, chapéu


panamá e gravata borboleta, mas o chapéu estava amassado e o terno era de caroá. O
colarinho sujo. A bengala de castão de prata, que segurava na mão, em vez de torná-lo
elegante, como antes, dava-lha agora uma aparência frágil e enferma. (p. 51)

Comentário: A ação não é representada, não há nenhum acontecimento nem uma


dimensão temporal.

3- Narrativa e Discurso

Exemplos de narrativas:

Mattos parou ao lado de um dos leões que flaqueavam a escadaria do Palácio Monroe.
Virou-se para olhar o imponente edifício São Borja, que ficava bem em frente, do outro
lado da avenida Rio Branco. Os senadores haviam escolhido um lugar muito
conveniente para as suas folganças. (p. 48)

Comentário: Compreendemos o trecho acima mesmo sem sabermos quem fala, não há
presença de um discurso, é usada a objetividade.

O mecânico, um homem franzino, de vinte e dois anos, ficara com um enorme


hematoma sob a vista esquerda. A oficina dele e do pai, um português que na ocasião
da briga estava ausente, no laranjal que a família tinha em Noiva Iguaçu. (p. 46)

Comentário: a narrativa pode ser sinônimo de contar uma história, com objetividade,
utilizando os verbos no presente, passado simples e no passada mais-que-perfeito.

Exemplos de discursos:

``Não o vejo a muito tempo... Na última vez, matei aula para ir me encontrar com ele
em frente à estátua do Chopin... Era ali que os claqueurs se reuniam... Naquele dia
íamos combinar a claque do Parsifal...'' (p. 50)

Comentário: Alguém fala, sua situação no ato mesmo de falar é foco das significações
mais importantes. O discurso depende de determinações essências para ser
compreendido, e isto ocorre quando sabemos a situação em que a frase foi construída.

``Acho que vou deixar para outro dia...Não estou sabendo como dizer o que quero
dizer...Você se encontra comigo novamente? Amanhã? Amanhã terei mais coragem...''
(p. 51)

Comentário: O discurso foi emprestado a um dos personagens( parte verbal), além de


conter subjetividade, e uso de verbos no presente, passado composto e futuro.

Considerações finais
Esta pesquisa buscou cruzar a definição de narrativa, juntamente com seus elementos
constituintes, com a aplicação dos conceitos, descriminados por G. Genette, no romance
Agosto de Rubem Fonseca. O motivo de escolha desta obra pode tentar ser justificada
através das inquietações e curiosidades a respeito da narrativa deste autor brasileiro, que
possui um talento especial para vasculhar e desenvolver o imaginário dos seus leitores.

Então agregamos os conhecimentos narrativos de Genette ao estilo diferenciado de


Rubem Fonseca, para desenvolvermos a tarefa de desempenhar uma análise da
narrativa. Para surpresa, notamos que a narrativa está longe de ser um gênero puro.
Seguidamente são encontrados traços do discurso, da descrição, nas suas entrelinhas,
com o intuito de dar mais dramaticidade, seja para o conto, para a epopéia, para o
romance, etc..

A literatura é um objeto de estudo, dos mais ricos e estimulantes, talvez por tratar com
as nossas operações mentais de compreensão e assimilação, quando lemos uma obra.
Cria-se uma nova atmosfera, a atmosfera da fantasia, da ficção, que nos remete a
lugares que nunca havíamos imaginado.
Por isso, não pretendemos ser categóricos e taxativos durante a exposição dos dados,
por estarmos analisando algo muito complexo e discutivo por várias correntes de
autores, sejam eles medievais ou contemporâneos. Pois a preocupação com a narrativa
literária é um assunto em pauta desde a sábia época onde Platão e Aristóteles discutiam
o grau de imitação da narrativa.

A partir dos filófosos surgiram inúmeros estudiosos, todos com a mesma finalidade de
entender a narrativa, porém o estudo fica cada vez mais complexo e desgastante, pois a
produção literária se expande e muda de característica, dependendo do autor que a
concebe.

Ao final deste estudo que teve como objeto Agosto, percebemos a importância de cada
frase, de cada elemento dentro da narrativa, que colabora para sentirmos este efeito
mágico e envolvente no momento em que lemos um livro. É uma experiência
vivenciada, que reconfigura o mundo real a partir da ficção.

``Contando histórias, os homens articulam sua experiência do tempo, orientam-se no


caos das modalidades de desenvolvimento, demarcando com intrigase desenlaces o
curso muito conplicado das ações reais dos homens. Desse modo, o homem narrador
torna inteligível para si mesmo a inconstância as coisas humanas, que tantos sábios,
pertencendo a culturas diversas, opuseram à ordem imultável dos astros'' (Ricoeur
apud in Nunes 1995)

Referências bibliográficas
 BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. São Paulo, Martins Fontes, 1977.
 BARTHES, Roland (org.). Análise Estrutural da Narrativa - pesquisas
semiológicas. Editora Vozes Ltda, Rio de janeiro, 1971.
 FONSECA, Rubem. Agosto. Editora Schwarcz Ltda, São Paulo, 1991.
 GENETTE, Gérard. ``Fronterias da Narrativa''. IN. Análise Estrutural da
Narrativa - pesquisas semiológicas (255-274), (org.
 BARTHES, Roland), Editora Vozes Ltda, Rio de Janeiro, 1971.
 GIL, Fernando Cerisara. A poética da destrutividade: texto e contexto em Rubem
Fonseca. Dissertação de Mestrado, do Pós-Graduação de Letras da UFRGS,
1991.
 NUNES, Benedito. O Tempo da Narrativa. Editora Ática, São Paulo, 1995.
 SCHÜLER, Donaldo. Teoria do Romance. Editora Ática, São Paulo, 1989.
 SILVA, Deonísio da. O palimpsesto de Rubem Fonseca: violência e erotismo
em Feliz Ano Novo. Dissertação de Mestrado, do curso de Pós-Graduação de
Letras da UFRGS, 1980.

HISTÓRIA DO CINEMA
Um breve olhar
por Carla Miucci **
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As origens do cinema
Qualquer marco cronológico que se elega como inaugural para o nascimento do cinema será sempre
arbitrário, pois o desejo e a procura do cinema são tão velhos quanto a civilização de que somos filhos.
Segundo Arlindo Machado, as histórias do cinema pecam porque são em geral escritas por grupos (ou por
indivíduos sob sua influência) interessados em promover aspectos sociopolíticos particulares; tornando-se
ou história de sua positividade técnica ou a história das teorias científicas da percepção e dos aparelhos
destinados a operar a análise/síntese do movimento, cegas entretanto a toda uma acumulação
subterrânea, uma vontade milenar de intervir no imaginário.

Assim, o que a sociedade reprimiu na própria história do cinema, ou seja, o mundo dos sonhos, do
fantasmagórico, a emergência do imaginário e o que ele tem de excêntrico e desejante, tudo isso, enfim,
que constitui o motor mesmo do movimento invisível que conduz ao cinema; fica reprimido na grande
maioria dos discursos históricos sobre o cinema.

A história técnica do cinema, ou seja, a história de sua produtividade industrial, pouco tem a oferecer a
uma compreensão ampla do nascimento e do desenvolvimento do cinema. As pessoas que contribuíram
de alguma forma para o sucesso disso que acabou sendo batizado de "cinematógrafo" eram, em sua
maioria, curioso, bricoleurs, ilusionistas profissionais e oportunistas em busca de um bom negócio.
Paradoxalmente, os poucos homens de ciência que por aí se aventuraram caminhavam na direção oposta
de sua materialização. Ao mesmo tempo, esses mesmos homens vão também inspirar menos o
espetáculo cinematográfico do que a arte moderna: os futuristas, como se sabe, utilizaram a
cronofotografia para cantar as belezas do movimento e da velocidade.

Por outro lado, porém, ilusionistas como Reynaud e Méliès e industriais ansiosos por tirar proveito
comercial da "fotografia animada", como Edison e Lumière, estavam mais interessados no estágio da
síntese efeturada pelo projetor, pois era somente aí que se podia criar uma nova modalidade de
espetáculo, capaz de penetrar funda na alma do espectador, mexer com os seus fantasmas e interpretá-lo
como "sujeito". Nem é preciso dizer que foi essa a posição que prevaleceu entre o público, esse público
inicialmente maravilhado com a simples possiblidade de "duplicação" do mundo visível pela máquina ( o
modelo de Lumière) e logo em seguida deslumbrado com o universo que se abria aos seus olhos em
termos de evasão para o onírico e o desconhecido ( o modelo de Méliès) que durante todo o século XIX
fascinaram multidões em estranhas salas escuras conhecidas por nomes exóticos como Phantasmagoria,
Lampascope, Panorama, Betamiorama, Cyclorama, Cosmorama, Giorama, Typorama etc, nas quais se
praticavam projeções de sombras chinesas e até mesmo fotografias, fossem elas animadas ou não. O
que atraía essas massas às salas escuras não era qualquer promessa de conhecimento, mas a
possibilidade de realizar nelas alguma espécie de regressão, de reconciliar-se com os fantasmas
interiores e de colocar em operação a máquina do imaginário.

O que se pode afirmar com certa segurança é que o cinema foi "inventado" na base do método empírico
de tentativa e erro, tendo sido necessários ajustes ao longo de pelo menos duas décadas de história, seja
regulando a velocidade de projeção ou a quantidade de fotogramas por segundo, ou ainda a quantidade
de projeções de cada fotograma na tela, de modo que nem o movimento resultasse "quebrado" aos olhos
do espectador, nem o intervalo vazio, perceptível.

O cinema trabalha com uma ilusão de movimento, pois o que ele faz é congelar instantes, mesmo que
bastante próximos, já que o movimetno é o que se dá entre esses instantes congelados, e é isso
justamente que o cinema não mostra. Assim, a ilusão cinematográfica opera com um movimento abstrato,
uniforme e impessoal. No limite, o cinema sugere que o movimento poda ser constituído de instantes
estáticos. Hoje diríamos que o olho, via de regra, não distingue entre um movimento diretamente
percebido e um movimento aparente, artificial ou mecanicamente produzido, mesmo porque não se pode
pressupor a artificialidade dos resultados com base na artificialidade dos meios, acrescentando ainda que
o cinema nos oferece imediatamente um "imagem-movimento", uma imagem em que os elementos
variáveis interferem uns nos outros e cujo recorte temporal congelado pelo obturador é já um "corte
móvel".

A questão levantada por Arlindo Machado, não é decidir se o movimento que o cinema manipula é
verdadeiro ou falso para sua compreensão como fenômeno cultural , mas avaliar o que ocorre quando um
movimento "natural" é decomposto em instantes sucessivos para ser depois recomposto na sala escura.
Que espécie de metamorfose atravessa o material entre esses dois momentos, convertendo a realidade
estilhaçada em fantasmas que retornam para atormentar os vivos? Se a percepção do movimento é a
síntese que se dá no espírito e não no mecanismo do olho, o cinema deve ser entendido também como
um processo psíquico, um dispositivo projetivo que se completa na máquina interior.

Dess perspectiva, não existe uma história do cinema que começa, por exemplo, em 1895, mas uma
história das imagens em movimento projetadas em sala escura, que remonta a meados do século XVII,
com a generalização dos espetáculos de lanterna mágica. O cinema, tal como o entendemos hoje, não
seria senão uma etapa dessa longa história. Os intelectuais do século XIX supunham que o cinema
seguiria a fotografia na sua função de "registro" documental, mas foi que aconteceu foi o contrário. O novo
sistema de expressão, assim que ganhou forma industrial, impôs-se esmagadoramente como território
das manhas do imaginário, mantendo-se fiel aos seus ancestrais mágicos pré-industriais.

As primeiras projeções e suas leituras


O cinema que se constitui a partir do cinematógrafo de LeRoy, Edison, Paul, Skladanowsky e dos
Lumière, reunia várias modalidades de espetáculos derivadas das formas populares de cultura, como o
circo, o carnaval, a magia e a prestidigitação, a pantomima, a feira de atrações e aberrações etc,
formando um mundo paralelo ao da cultura oficial, que se baseia no princípio do riso e do prazer corporal;
é um mundo "invertido", que possibilita permutações constantes entre o elevado e o baixo, o sagrado e o
profano, o nobre e o plebeu, o masculino e o feminino. A essas formas de expressão típicas das camadas
mais desfavorecidas da população Bakhtin dá o nome de realismo grotesco: elas compreendem um
sistema de imagens em que o princípio material e corporal (comer, beber, defecar, fornicar) comanda o
espetáculo e em que abundam os gestos e as expressões grosseiras.

No início, os filmes foram exibidos como curiosidades ou peças de entreato nos intervalos de
apresentações ao vivo em circos, feiras ou carroças. Essa forma de difusão permaneceria viva em zonas
suburbanas ou rurais, em pequenas cidades do interior e em países economicamente atrasados até os
anos 60. Nos grandes centros urbanos dos países industrializados, porém, a exibição de filmes muito
cedo se concentrou em casas de espetáculos de variedades, nas quais de podia também comer, beber e
dançar, conhecidas como music-halls na Inglaterra, café-concerts na França e vaudevilles ou smoking
concerts nos Estados Unidos.

O cinema era então uma das atrações entre as outras tantas oferecidas pelos vaudevilles, mas nunca
uma atração exclusiva, nem mesmo a principal. A própria duração dos filmes (de alguns segundos e não
mais do que cinco minutos) impedia que se pensasse em sessões exclusivas de cinema nos primeiros
anos de cinematógrafo. O preço cobrado pelo ingresso não podia funcionar como mecanismo de seleção
do público, pois era ainda muito baixo e coincida de ser o mesmo dos vaudevilles. Nos primeiros dez anos
de comércio do cinema não se havia ainda desenvolvido um conjunto de técnicas e procedimentos de
linguagem apropriados para a elaboração de uma narrativa visual que fosse suficientemente autônoma a
ponto de se poder dispensar a "explicação" de um apresentador.

O público dessas casas era constituído principalmente pelas camadas proletárias dos cinturões
industriais, os imigrantes constituíam o público principal das salas de exibição, pois o desconhecimento da
língua inglesa interditava o teatro e outras formas de espetáculos baseadas predominantemente na
palavra a essas multidões originárias a maior parte delas da Europa Central. Malgrado constituir um
sistema predominantemente proletário, que se distinguia nitidamente das formas "elevadas" de cultura da
burguesia e da classe média, esse primeiro cinema não refletia necessariamente as aspirações da
camada mais politizada da classe operária do século XIX, a camada organizada em partidos e sindicatos.

No período que vai de 1895 (data das primeiras exibições públicas do cinematógrafo dos Lumière) até
meados da primeira década do século seguinte, os filmes que se faziam compreendiam registros dos
próprios números de vaudeville, ou então gags de comicidade popular, contos de fadas, pornografia e
prestidigitação. Os catálogos dos produtores da época classificavam os filmes produzidos como
"paisagens", "notícias", "tomadas de vaudeville", "incidentes", "quadros mágicos", "teasers"(eufemismo
para designar a pornografia) etc.

Assim , o cinema dos primórdios ia buscar nos espetáculos populares não apenas inspiração e os
modelos de representação, mas até mesmo os seus figurantes: basta lembrar que a equipe que trabalhou
no célebre Voyage dans la lune (1902), de Méliès, era constiutída por acróbatas do Folies Bergère,
cantoras de vaudeville e dançarinas do Théâtre du Châtelet. E no que diz respeito mais propriamente ao
conteúdo, os primeiros filmes não só davam exemplos abundantes de cinismo e perversão, como ainda
ridicularizavam a autoridade, invertendo os valores morais. O grande herói do período, reverenciado por
um número incontável de pequenos filmes, é o tramp (vagabundo, andarilho), de que Chaplin seria uma
espécie de reencarnação, quase 20 anos depois, com seu personagem Carlitos.

Nos music-halls e café-concerts, era bastante comum um gênero de filmes conhecido como tableaux
vivants(ou poses plastiques, dependendo do local), que mostrava basicamente mulheres em maiôs
colantes ou em trajes sumários, congeladas em gestos provocantes. A reação, entretanto, contra-atacava
com todo furor. Uma onda de moralidade levou o governo americano, na virada do século, a proibir a
maior parte das películas destinadas aos quinetoscópios.

Nos Estados Unidos, particularmente, onde a guerra ao cinematógrafo chegou a um nível insuportável, os
industriais que investiam no setor e a pequena burguesia, que realizava os filmes na condição de
fotógrafos, cenógrafos, roteiristas e diretores, sentiram que o cinema precisava mudar. Esses homens
todos perceberam rapidamente que a condição necessária para o pleno desenvolvimento comercial do
cinema estava na criação de um novo público, um público que incorporasse também a classe média e os
segmentos da burguesia. Essa nova platéia não apenas era mais sólida em termos econômicos, podendo
portanto suportar um crescimento industrial, como também estava agraciada com um tempo de lazer
infinitamente maior do que o dos trabalhadores imigrantes.

A busca de um novo público leva ao desenvolvimento de uma nova linguagem e os realizadores vão
buscar no romance e no teatro o modelo capaz de conferir legitimidade ao cinema. Com tal modelo,
impõe-se a narrativa e a linearidade no cinema praticado a partir de então. Prova disso é que o diretor
David W.Griffith levou à tela nada menos do que um pelotão de escritores como Shakespeare, Dickens,
Eliot, Cooper, Henry et, pois era preciso dar legitimidade ao cinema, superar a reação e os preconceitos
das classes mais ilustradas, aplacar a ira dos conservadores e moralistas e sobretudo inscrever o cinema
no universo das belas-artes.

O primeiro gênero "elevado" a ser tentado pelo cinema foi o chamado film d’art, cujo modelo e rubrica
foram dados pela França.. O gênero nasceu em 1908, com a estréia em Paris do primeiro filme da
companhia Films d’Art - L’assassinat du duc de Guise. Esse gênero de filme deixava claro que o cinema
não tinha ainda conseguido se impor como forma dramática autônoma no sentido erudito do termo, e da
eloqüência de outras formas expressivas(sobretudo o teatro), as quais eram apenas transplantadas na
sala escura. David W.Griffth, com seus dramas psicológicos de fundo moral, realizados no período em
que esteve a serviço da Biograph, apontaria para a direção de maior sucesso.

Conforma avançava a primeira década do século, as fantasias, os delírios, as extravagâncias dos


primeiros filmes entram em declínio e são aos poucos substituídos por um outro tipo de espetáculo, mais
doméstico, preocupado com a verossimilhança dos eventos, seriamente empenhado em se converter no
espelho do mundo para refletir a vida num nível superior de contemplação. O naturalismo começa a se
impor então como uma espécie de ideologia da representação, a fábula legitimada pela mimese.

Não se trata de dizer que os vícios e os delírios do cinema do cinema anterior desaparecem para dar
lugar à fábula transparente de fundo moral. Eles continuam a freqüentar a tela, porém, agora
enquadrados numa perspectiva salvacionista: é preciso representar o mal, já que a mimese implica um
compromisso com as aparências, ou como disse o próprio Griffth "é preciso mostrar a face escura do
pecado para fazer brilhar a face iluminada da virtude". O cinema trabalha com um componente erótico e
perverso em relação ao qual mesmo o sermão protestante acaba funcionando como um estímulo, embora
pelo avesso. Há um pecado original que atrela o cinema ao prazer do olhar, ao voyerismo sádico; para
redimir-se desse pecado, a geração de Griffth opera a ascese, transforma a encenação do mal em escola
da temperança.

Bibliografia recomendada:

MACHADO, Arlindo – Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas/SP:Papirus, 1997.


SABADIN, Celso – Vocês ainda não ouviram nada. A barulhenta história do
cinema mudo.São Paulo: Lemos Editorial, 1997.
COSTA, Flavia Cesarino. O primeiro cinema. São Paulo: Scritta, 1995.
XAVIER, Ismail – O Discurso Cinematográfico: A Opacidade e a Transparência. Paz e Terra: RJ, 1977.
* Este texto foi baseado no livro de Arlindo Machado – Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas/SP:
Papirus, 1997.
** Carla Miucci Ferraresi é produtora e pesquisadora de documentários; é bacharel em História e Ciências
Sociais, e doutoranda em História Social (FFLCH/USP).

Podemos dizer que o Neo-realismo italiano teria sido uma das primeiras
afirmações de um cinema nacional. Intimamente correlacionado à situação do país e à
realidade de seu povo (recém saído da Segunda Guerra Mundial), o cinema italiano
passou a preocupação com a fidelidade idéia de vida real. Ao mostrar uma Itália
degredada pela guerra, o Neo-realismo, com seus personagens envolvidos em conflitos
desesperadores, aponta para um real bem mais próximo do vivido, seja na temática, na
forma ou na relação que o filme mantém com o público. Para isso, os cineastas saem
dos estúdios e vão filmar nas ruas. Era o desejo de trocar o “grande herói” americano
pelo homem simples e comum das vilas italianas, que, aqui, assume a função de ator. Aí
a vocação popular que se inicia neste período.
As filmagens em cenários reais/naturais, os atores não profissionais, a montagem
simples e o orçamento reduzido fez o Neo-realismo ganhar muitos entusiastas e
defensores, como André Bazin, que até exagera ao comentar o filme Ladrões de
Bicicleta, de Vittorio de Sica (1948): Não há mais atores, não há mais história, não há
mais encenação, isto é, finalmente, na ilusão estética perfeita da realidade, não há mais
cinema.
Entre as principais obras do movimento temos Roma Cidade aberta e Paisá - de
Roberto Rossellini (1944 e 1946 respectivamente); Ladrões de bicicleta e Umberto D. -
de Vittorio de Sica (1948 e 1952 respectivamente). Além de Rosselini e De Sica,
devemos citar Frederico Fellini e Pier Paolo Pasolini.
Efetivamente o que diferenciou o Neo-realismo foi a visão crítica, o
engajamento político em defesa das liberdades civis e a denúncia das injustiças sociais.
Entretanto, é na nova onda francesa que iremos observar grandes revoluções estéticas.
Nouvelle Vague francesa
Um dos grandes marcos iniciais deste movimento francês foi o Festival de
Cannes, em 1959. Nele, cineastas como Jean Luc Godard e François Trouffaut
começam a se consagrar. A princípio, o termo Nouvelle Vague referia-se aos novos
cineastas franceses que, sem muitos recursos financeiros, mostravam em suas obras o
desejo de transgressão aos padrões do cinema comercial. Inicialmente, essa nova
geração veio a utilizar o espaço da revista Cahiers du Cinema para discutir e apontar
possíveis caminhos para a Sétima Arte. Logo em seguida, o movimento ganha força e
também passa a ficar conhecido nas telas do cinema.
Entre as bases do movimento encontramos a teoria autoral, desenvolvida por
Truffalt, a partir de 1954. Através dela, o filme, assim como a música ou a poesia, seria
parte do próprio autor (diretor), ou seja, a representação de suas idéias ou ainda sua
forma de ver o mundo. Os adeptos da nova onda francesa promoveram inovações que
vão da estética Às técnicas de realização. A busca era por uma linguagem fora dos
processos de encenação convencionais impostos pela tradição clássica americana.
Com uma gramática fílmica muito mais flexível, a câmera (menor e de manuseio
mais fácil) sai do tripé e anda junto do personagem. Começamos a evidenciar uma
maior utilização do plano-seqüência, que além de diminuir o número de cortes, faz com
que o espectador realize uma leitura mais livre e autônoma da cena. O excesso
proposital de alguns movimentos como zoom, travellings e a própria imagem tremida da
câmera na mão se mostram presenças constantes na promoção dessa ruptura com o
passado.
(...) Antes de tudo, trata-se de gente que não tem medo, que não experimenta
qualquer receio diante da técnica, que no passado tanto amedrontava. Um pessoal que
não teme, de forma alguma, conversar com os produtores.7
Nessa forma de cinema pessoal e espontâneo, a filmagem era baseada na
improvisação e numa séria restrição à utilização dos estúdios e sua artificialidade. A
vida cotidiana na modernidade passa a ser retratada pela visão do cineasta de forma
complexa, fluida e com todas suas crises e dramas. Nesse contexto, o herói e os
personagens planos (acabados) desaparecem para dar lugar a personagens bem mais
humanos, com qualidades e, principalmente, imperfeições.
Além disso, a montagem também era uma grande aliada no processo de
desagregação da continuidade fílmica e da própria quebra da narrativa. A aproximação
da realidade leva o espectador a ter que questionar o cinema e assumir uma posição
diante do filme, além de o impulsionar a refletir sobre aspectos da sua própria vida a
partir de um novo ponto de vista. Sem o escapismo do cinema de entretenimento o
público assiste a uma arte mais madura e reflexiva. (...) Se nossos filmes chocam, não
fluem, não procuram simplesmente oferecer um momento agradável, é que tentam ser
um conjunto de coisa fortes, importantes, que precisam ser ditas urgentemente.8
Entre as obras que marcaram época, poderíamos destacar Acossado – de Jean
Luc Godard (1960) e Fahrenheit – de François Truffaut (1966).

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