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os personagens entram O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos

Segundo Bordwell, podermos estudar a narrativa a partir de três campos: da representação que
considera o mundo da narrativa ou sua diegese. É a “semântica” da narrativa, ou seja, retrato da realidade
ou seu significado mais amplo; da estrutura que diz respeito à maneira como se ajusta as partes para
construir um todo. É o sistema de normas que permite estudar a linguagem do filme, isto é, o grande
sintagmático; do ato que é “o processo dinâmico de uma apresentação de uma historia a um receptor”. É o
processo no qual a ação de selecionar, organizar e editar o material narrativo atinge efeitos de tempo
específico sobre o observador.
O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos
David Bordwell
Podemos considerar como distintos, ao menos provisoriamente, três aspectos da narrativa. A
narrativa pode ser estudada como representação: de que modo se refere ou confere significação a um
mundo ou conjunto de idéias. A isso poderíamos denominar “semântica” da narrativa, de que é exemplo a
maioria dos estudos de caracterização ou do realismo. A narrativa também pode ser estudada como
estrutura: o modo como seus elementos se combinam para criar um todo diferenciado. Um exemplo
dessa abordagem “sintática” é a morfologia dos contos de fada de Vladimir Propp 1. Por fim, podemos
estudar a narrativa como ato: o processo dinâmico de apresentação de uma história a um receptor. Isso
abrangeria considerações sobre origem, função e efeito; o desenvolvimento temporal da informação ou da
ação; e conceitos como o de “narrador”. É o estudo da narração, a “pragmática” dos fenômenos
narrativos. As proposições a seguir têm como objeto a narração no cinema hollywoodiano clássico entre
1917 e 1960, embora não se atenham exclusivamente a esse aspecto. É comum as análises narrativas
focalizarem um aspecto, mas deterem-se também sobre outros quando necessário. Lévi Strauss, por
exemplo, utiliza-se de um conceito de estrutura narrativa com o objetivo de revelar camadas mais
profundas de sentido, ou o que o mito representa: a sintaxe é um instrumento para a revelação da
semântica. Neste ensaio introduzo questões relacionadas à representação (especialmente a representação
denotativa) e estrutura (especialmente estrutura dramatúrgica) com o objetivo de ressaltar como a
narração clássica hollywoodiana constitui uma configuração particular das opções normalizadas para
representar a história e manipular a composição e o estilo. Por ser o resumo de um extenso trabalho de
pesquisa, o artigo terá, infelizmente, um ar ad hoc, podendo-se consultar, ao final, as referências nas quais
se fundamenta2. Relaciono abaixo a nomenclatura pouco usual utilizada:
Fábula: Termo do formalismo russo para os eventos narrativos em seqüência cronológica causal.
(Por vezes traduzido como “história”.) Termo que envolve um constructo do espectador.
Syuzhet: Termo do formalismo russo que designa a apresentação sistêmica dos eventos da fábula
no texto. (Por vezes traduzido como “trama”.)
Narração: Processo de informar o receptor para que este construa a fábula a partir de padrões do
syuzhet e do estilo cinematográfico.
Cognoscibilidade: a dimensão e a amplitude da reivindicação de conhecimento da narração sobre
informações da fábula.
Autoconsciência: o grau de reconhecimento, pela narração, de sua veiculação ao espectador.
Comunicabilidade: a extensão com que a narração retém ou comunica informações sobre a fábula.
Motivação composicional: a justificação da presença de um elemento por sua função de fazer
avançar o syuzhet.
Motivação realista: a justificação da presença de um elemento em virtude de sua conformidade
com a realidade extratextual.
Motivação artística: a justificação da presença de um elemento por sua função de chamar a
atenção sobre si mesmo, como um procedimento diferenciado.
Motivação transtextual: a justificação da presença de um elemento por sua referência à categoria
de textos à qual pertence (por exemplo, pelo apelo a convenções de gênero).

A passagem direta
O filme hollywoodiano clássico apresenta indivíduos definidos, empenhados em resolver um
problema evidente ou atingir objetivos específicos. Nessa sua busca, os personagens entram em conflito
com outros personagens ou com circunstâncias externas. A história finaliza com uma vitória ou derrota
decisivas, a resolução do problema e a clara consecução ou não-consecução dos objetivos. O principal
agente causal é, portanto, o personagem, um indivíduo distinto dotado de um conjunto evidente e
consistente de traços, qualidades e comportamentos. Embora o cinema tenha herdado muitas das
convenções de caracterização do teatro e da literatura, os tipos de personagens do melodrama e da ficção
popular são compostos por motivos, traços e maneirismos únicos. Paralelamente, o star system tem como
uma de suas funções a criação de um protótipo de personagem básico que é então ajustado às
necessidades particulares de cada papel. O personagem mais “especificado” é, em geral, o do
protagonista, que se torna o principal agente causal, alvo de qualquer restrição narrativa e principal objeto
de identificação do público. Esses aspectos do syuzhet não surpreendem, embora já exibam importantes
diferenças com relação a outros modos narrativos (por exemplo, a relativa ausência de personagens
consistentes e orientados para um objetivo preciso na narrativa do cinema de arte).
Entre todos esses modos narrativos, o clássico conforma-se mais claramente à “história canônica”,
postulada como normal, em nossa cultura, pelos estudiosos da compreensão da história. Em termos da
fábula, a aposta no personagem como agente de causa e efeito e a definição da ação como a perseguição
de um objetivo são aspectos salientes do formato canônico3. No plano do syuzhet, o filme clássico respeita
o padrão canônico de estabelecimento de um estado inicial de coisas que é violado e deve ser
restabelecido. Na verdade, os manuais de roteiro hollywoodianos há muito insistem em uma fórmula que
é resgatada pela análise estrutural mais recente: a trama é composta por um estágio de equilíbrio, sua
perturbação, a luta e a eliminação do elemento perturbador 4. Esse padrão de syuzhet é herança não de
algum constructo apontado como “romanesco”, mas de formas históricas específicas: a peça bem feita, a
história de amor popular e, especialmente, o conto do final do século XIX 5. As interações causais entre os
personagens são assim, em grande medida, funções desses padrões mais amplos do syuzhet e da fábula.
Na construção clássica da fábula, a causalidade é o princípio unificador primário. As analogias
entre personagens, cenários e situações fazem-se certamente presentes, mas no plano denotativo qualquer
paralelismo é subordinado ao movimento de causa e efeito6. As configurações espaciais são motivadas
realisticamente (a redação de um jornal deve conter mesas, máquinas de escrever, telefones) e,
principalmente, por necessidade composicional (a mesa e a máquina de escrever serão utilizadas para
redigir matérias jornalísticas relevantes, os telefones constroem ligações fundamentais entre os
personagens). A causalidade também motiva princípios temporais de organização: o syuzhet representa a
ordem, freqüência e duração dos eventos da fábula de uma forma que revela as relações causais mais
salientes. Esse processo é particularmente evidente em um procedimento bem característico da narração
clássica – o prazo final ou “último momento” (deadline). O prazo final/último momento pode ser medido
por calendários (A volta ao mundo em 80 dias – Around the World in 80 Days, Michael Anderson e
Kevin McClory, 1956), relógios (Matar ou morrer – High Noon, Fred Zinneman, 1952), estipulação
(“Você tem uma semana e nem um minuto a mais”), ou simplesmente por indicações de que o tempo está
passando (o resgate no último minuto). Que o clímax de um filme clássico seja freqüentemente um prazo
final demonstra a força da estrutura em definir a duração dramática como o tempo que se gasta para
alcançar ou deixar de alcançar um objetivo.
Geralmente o syuzhet clássico apresenta uma estrutura causal dupla, duas linhas de enredo: uma
que envolve o romance heterossexual (rapaz/moça, marido/mulher), e outra que envolve uma outra esfera
– trabalho, guerra, missão ou busca, relações pessoais. Cada linha possui um objetivo, obstáculos e um
clímax. Em Wild and Woolly John Emerson, 1917], o herói Jeff tem dois objetivos – viver no Oeste
selvagem e conquistar Nell, a mulher de seus sonhos. A trama pode ser complicada por diversas linhas,
tais como objetivos intervenientes (o povo de Bitter Creek quer que Jeff consiga um ramal ferroviário
para a cidade, e um agente indígena desonesto quer planejar um assalto) ou múltiplos romances (como em
Belezas em revista – Footligh Parade, Lloyd Bacon, 1933) e Agora seremos felizes [Meet Me in St. Louis,
Vincent Minelli, 1944]. Na maioria dos casos, a esfera do romance e a outra esfera de ação são distintas,
porém interdependentes. A trama pode finalizar uma das linhas antes da outra, mas é comum as duas
coincidirem no clímax: a resolução de uma deflagra a resolução da outra. Em Jejum de amor [His Girl
Friday, Howard Hawks, 1940], a suspensão da pena de Earl Williams precede a reconciliação de Walter e
Hildy, mas é também a condição para o reacerto do casal.
O syuzhet é sempre dividido em segmentos. Na época do cinema mudo, o filme hollywoodiano
típico continha entre 9 e 18 seqüências; na do cinema sonoro, entre 14 e 35 (os filmes do pós-guerra
geralmente apresentavam um número maior de seqüências). Grosso modo, existem apenas dois tipos de
segmentos nos filmes hollywoodianos: “resumos” (compreendendo o terceiro, o quarto e o oitavo tipos
sintagmáticos de Metz) e “cenas” (o quinto, o sexto, o sétimo e o oitavo tipos de Metz 7. As cenas na
narração hollywoodiana são claramente demarcadas por meio de critérios neoclássicos – unidade de tem-
po (duração contínua ou consistentemente intermitente), espaço (um local definido) e ação (uma fase
distinta de causa e efeito). E os limites da seqüência são indicados por pontuações padronizadas (fusão,
escurecimento, chicote, pontes sonoras)8. Raymond Bellour assinala que o segmento clássico também
tende a se definir microcosmicamente (por meio de paralelos com outros segmentos de mesma
magnitude)9. Devemos lembrar, ainda, que cada filme estabelece sua própria escala de segmentação. Um
syuzhet que se concentra em um único local ao longo de uma duração dramática limitada (por exemplo, o
filme de “uma noite em uma casa mal-assombrada”) pode criar segmentos por meio de entradas ou saídas
de personagens, adotando uma liaison de scenes teatral. Em um filme que se desenrola durante várias
décadas, e em diversos locais, uma série de fusões de uma pequena ação a outra não criará
necessariamente seqüências distintas.
Um segmento clássico não é uma entidade lacrada. Ele é espacial e temporalmente fechado, mas
causalmente aberto, operando para fazer avançar a progressão causal e abrir novos desenvolvimentos 10. O
padrão desse “momentum para a frente” é bastante codificado. A seqüência montada tende a funcionar
como um resumo transicional, comprimindo um desenvolvimento causal único, mas a cena de
personagens em ação – edifício central da dramaturgia hollywoodiana clássica – é construída de maneira
mais intrincada. Cada cena apresenta etapas distintas. Inicialmente temos a exposição que especifica o
tempo, o lugar e os personagens relevantes – suas posições espaciais e seus estados mentais atuais
(geralmente resultado de cenas anteriores). No meio da cena, os personagens agem no sentido de alcançar
seus objetivos: lutam, fazem escolhas, marcam encontros, determinam prazos, planejam eventos futuros.
No curso de sua ação, a cena clássica prossegue, ou conclui, os desenvolvimentos de causa e efeito
deixados pendentes em cenas anteriores, abrindo, ao mesmo tempo, novas linhas causais para
desenvolvimento futuro. Uma linha de ação, ao menos, deve ser deixada em suspenso para servir de
motivação à próxima cena, que retoma a linha deixada pendente (freqüentemente por meio de um
“gancho de diálogo”). Daí a famosa “linearidade” da construção clássica – aspecto que não é
característico dos filmes soviéticos de montagem (que seguidamente se recusam a demarcar as cenas com
nitidez) ou da narração do cinema de arte (com seu jogo ambíguo entre subjetividade e objetividade).
Um simples exemplo poderia ser uma cena de Assassinos [The Killers, Robert Siodmak, 1946]. O
investigador da companhia de seguros, Riordan, termina de escutar o relato do tenente Lubinsky sobre a
vida pregressa de Ole Anderson. Ao final da cena, Lubinsky conta a Riordan que Ole será enterrado ainda
hoje. Essa causa pendente conduz à cena seguinte, passada no cemitério. Um plano de conjunto
(establishing shot) fornece a contextualização espacial. Enquanto o padre faz a encomendação, Riordan
indaga a Lubinsky sobre a identidade de vários dos presentes. O último deles, um velho solitário, é
identificado como “um antigo desordeiro chamado Charleston”. Fusão para um salão com Charleston e
Riordan em uma mesa bebendo e conversando sobre Ole. Durante a cena do enterro, a linha da
investigação de Lubinsky é concluída e a linha de Charleston é iniciada. No fechamento da cena,
Charleston é deixado em suspenso, mas imediatamente retomado na exposição da cena seguinte. Em
lugar de uma complexa tessitura (como em Rivette) ou uma abrupta ruptura de linhas causais (como em
Antonioni, Godard ou Bresson), o filme hollywoodiano clássico as desenvolve por meio de uma suave e
meticulosa linearidade.
A ligação de linhas causais localizadas deve, ao final, ser encerrada. Como concluir o syuzhet? Há
duas maneiras de compreender o final clássico. Podemos entendê-lo como o coroamento da estrutura, a
conclusão lógica de uma cadeia de eventos, o efeito final da causa inicial. Esse entendimento possui
alguma validade, tendo em vista a construção bem amarrada freqüentemente encontrada nos filmes
hollywoodianos clássicos e os preceitos clássicos de roteirização que a sustentam. As gramáticas, por
exemplo, são sistemáticas em sua condenação às pressões por um final feliz, enfatizando a necessidade de
uma conclusão lógica. Entretanto, uma série de exemplos de soluções de roteiro imotivadas ou
inadequadas sugere uma segunda hipótese: a de que o final clássico não é na verdade tão decisivo do
ponto de vista estrutural, surgindo como um ajuste mais ou menos arbitrário de um mundo desarranjado
no curso dos oitenta minutos precedentes. De acordo com Parker Tyler, Hollywood considera todos os
finais como “puramente formais, convencionais e, geralmente, como uma charada com lógica infantil” 11.
Aqui, mais uma vez, podemos ver a importância da linha da trama que envolve o romance heterossexual.
É significativo que, de cem filmes hollywoodianos escolhidos aleatoriamente, mais de sessenta finalizem
com uma exibição do casal romântico – o clichê de “final feliz”, muitas vezes mostrando um beijo
apaixonado e que muitos dos outros terminem de maneira feliz. Logo, uma norma extrínseca, a
necessidade de resolver a trama de um modo que ofereça “justiça poética”, torna-se uma constante
estrutural, inserida com maior ou menor motivação em seu local apropriado, o epílogo. Em qualquer
narrativa, como assinala Meir Steinberg, sempre que o final da syuzhet é fortemente antecipado pela
convenção, a atenção composicional incide sobre o retardamento do resultado promovido pelas porções
intermediárias. O texto então “justificará o atraso necessário em termos quase miméticos, localizando as
causas para o retardamento no interior do mundo fictício e transformando os segmentes intermediários no
cerne da ação representada”12. Às vezes, porém, a motivação é construída para ser inadequada, e a
discordância entre a causalidade exposta acima e o desenlace feliz torna-se perceptível como uma
dificuldade ideológica. Tal é o caso de filmes como Vive-se uma só vez [You Only Live Once, Fritz Lang,
1937, Suspeita [Suspicion, Alfred Hitchcock, 1941, Um retrato de mulher [The Woman in the Window,
Fritz Lang, 1944] e O homem errado [The Wrong Man, Alfred Hitchcock, 1958]”13. Devemos, pois, estar
preparados tanto para a amarração habilidosa dos finais perdidos, como para a aparição mais ou menos
miraculosa daquilo que Brecht designou como o mensageiro montado da literatura burguesa. “O
mensageiro montado nos assegura uma apreciação realmente livre de perturbações até mesmo das
condições mais intoleráveis, sendo, portanto, uma condição sine qua non para uma literatura cujo sine
qua non é conduzir a lugar nenhum”14.
O final clássico pode ser problemático em outro sentido. Mesmo que dê solução às duas linhas
causais principais, algumas questões relativamente menores podem ainda ficar pendentes. O destino dos
personagens secundários, por exemplo, pode não ser reordenado. Em Jejum de amor, Earl Williams tem a
pena suspensa, a administração corrupta será deposta, e Walter e Hildy se reconciliam, mas nada sabemos
sobre o que sucede a Molly Malloy, que pulara por uma janela a fim de distrair os repórteres. (Sabemos
apenas que ela sobreviveu à queda.) Pode-se argumentar que na resolução do problema central são
esquecidos os assuntos menores, mas essa é uma explicação apenas parcial. O esquecimento é promovido
pelo procedimento de encerrar o filme com um epílogo, uma breve celebração da nova estabilidade
alcançada pelos personagens principais. O epílogo não apenas reforça a tendência a um final feliz, como
também repete os motivos conotativos aparecidos ao longo do filme. Jejum de amor termina com um
breve epílogo de Walter e Hildy telefonando à redação do jornal para anunciar que vão se casar
novamente. Ficam sabendo que acaba de estourar uma greve em Albany e Walter propõe darem uma
passada por lá durante sua lua-de-mel para cobrir o evento. A virada no enredo anuncia uma repetição do
que ocorreu na primeira lua-de-mel e faz recordar que Hildy ia casar-se com Bruce e viver em Albany.
Ao saírem à rua, com Hildy carregando sua mala, Walter lembra que Bruce talvez pudesse hospedá-los. A
clara recorrência desses motivos confere à narração uma vigorosa unidade; quando detalhes como esses
são tão fortemente amarrados, é natural que o destino de Molly Malloy acabe passando despercebido. Em
lugar de “fechamento”, talvez fosse mais adequado falar em “efeito de fechamento”, ou até mesmo, se o
conjunto de questões deixadas pendentes parecer excessivo, de “pseudofechamento”. No plano das
normas extrínsecas, porém, o padrão a ser perseguido permanece o de um epílogo o mais coeren te
possível.
Lugares-comuns como “transparência” e “invisibilidade” não possuem utilidade para a
determinação das propriedades narrativas do filme clássico. De um modo bastante geral, pode-se dizer
que a narração clássica tende a ser onisciente, possuir um alto grau de comunicabilidade e ser apenas
moderadamente autoconsciente. Ou seja, a narração sabe mais que do que qualquer um dos personagens
ou todos eles, esconde relativamente pouco (basicamente, “o que vai acontecer a seguir”) e quase nunca
reconhece que está se dirigindo ao público. Mas essa caracterização deve ser ressalvada em dois aspectos.
Em primeiro lugar, há fatores genéricos que geralmente ocasionam variações nesses preceitos. Um filme
policial será bastante restritivo na divulgação de conhecimento e fortemente supressivo em seu
ocultamento de informações causais. Já um melodrama como Nascida para o mal [In This Our Life, John
Huston, 1942] pode ser ligeiramente mais auto consciente que À beira do abismo [The Big Sleep, Howard
Hawks, 1946], especialmente no tocante ao uso da música e da interpretação. E um musical conterá
momentos codificados de autoconsciência (nas cenas em que os personagens cantam diretamente para o
espectador, por exemplo). Em segundo lugar, a progressão temporal do syuzhet faz com que as
propriedades narrativas experimentem oscilações ao longo do filme, e também estas são codificadas. A
abertura e o final do filme são caracteristicamente as passagens mais oniscientes, autoconscientes e
comunicativas. A seqüência de abertura com os créditos e os planos iniciais em geral exibem traços de
narração aberta. Porém, uma vez iniciada a ação, a narração torna-se mais velada, permitindo que os
personagens em sua interação assumam o controle da transmissão de informações. A atividade narrativa
aberta reaparece, convencionalmente, em determinados momentos: no início e no final de cenas (por
exemplo, planos de conjunto, planos com sinais, movimentos de câmera em torno de objetos
significantes, fusões simbólicas), e no segmento-resumo conhecido como “montagem em seqüência”. No
encerramento do syuzhet, a narração pode mais uma vez reconhecer sua consciência do público (motivos
musicais reaparecem, personagens olham diretamente para a câmera ou fecham uma porta sobre nós), sua
onisciência (por exemplo, a câmera se recolhe para um plano geral) e sua comunicabilidade (agora
sabemos tudo). A narração clássica não é, pois, uniformemente “invisível” em todo tipo de filme, ou ao
longo de todo o filme: as "marcas da enunciação" são por vezes exibidas.
A comunicabilidade da narração clássica é patente na forma como o syuzhet lida com as omissões.
Ao ocorrer um lapso temporal, uma montagem em seqüência ou algumas linhas de diálogo entre os
personagens nos informam. Do mesmo modo, se uma causa é omitida, logo seremos informados de que
está faltando alguma coisa. E as lacunas raramente serão permanentes. Nas palavras de um roteirista: “Ao
princípio do filme, nada sabemos. Então, ao longo da história, acumulam-se informações, até que ao final
estamos sabendo de tudo”15. Esses princípios, no entanto, podem ser mitigados por uma motivação
genérica. Um thriller pode conter uma lacuna (por exemplo, a abertura de Alma em suplício – Mildred
Pierce, Michael Curtiz, 1945), uma fantasia pode deixar uma causa ainda pendente ao final (por exemplo,
Seu milagre de amor – The Enchanted Cottage, John Cromwell, 1945). Nesse sentido, Cidadão Kane
[Citizen Kane, Orson Welles, 1941] pode ser, relativamente, “não-clássico”: a narração fornece a resposta
ao mistério de “Rosebud”, mas os traços centrais do personagem de Kane permanecem parcialmente
indeterminados, sem que nenhuma motivação genérica o justifique.
A construção do tempo pelo syuzhet é determinante na estruturação do grau de abertura da
narração. Quando o syuzhet adota a ordem cronológica e omite períodos de tempo causalmente
desimportantes, a narração torna-se fortemente comunicativa e não-autoconsciente. Por outro lado, em
uma montagem em seqüência, que comprime em poucos segundos o julgamento de um assassinato, uma
campanha política ou os efeitos da Lei Seca, a narração torna-se abertamente onisciente. Um flashback
pode rápida e veladamente preencher uma lacuna causal. Pode-se obter redundância sem violação ao
mundo da fábula quando a narração representa cada evento da história diversas vezes no syuzhet, por
meio de uma encenação inicial e reforços posteriores nos diálogos entre personagens. Os prazos finais
claramente permitem que o syuzhet respeite de forma não-autoconsciente os limites duracionais estipula-
dos pelo mundo da fábula para a sua ação. Sendo necessário sugerir ações repetidas ou habituais, a
seqüência em montagem é mais uma vez eficaz, como observou Sartre ao elogiar tais seqüências em
Cidadão Kane por sua perfeita equivalência ao tempo “freqüentativo”: “Ele fez sua mulher cantar em
cada um dos teatros dos Estados Unidos 16.” Quando o syuzhet utiliza uma manchete de jornal para
preencher intervalos temporais, reconhecemos tanto a onisciência da narração como a sua forma
relativamente dissimulada. (O registro público é menos autoconsciente que um intertítulo “vindo direta-
mente” da narração.) De modo geral, a narração clássica revela sua discrição colocando-se como uma
inteligência editorial que seleciona alguns fragmentos temporais para um tratamento em grande escala (as
cenas), promove o enxugamento de outros e apresenta os demais de um modo enormemente comprimido
(as seqüências em montagem), eliminando, simplesmente, os eventos sem conseqüência. Quando a
duração da fábula é expandida, isso é feito por meio da montagem paralela.
Aspectos narrativos gerais também se manifestam na manipulação do espaço pelo filme. As
pessoas são ajustadas com vistas à obtenção de uma autoconsciência moderada, posicionando-se os
corpos em ângulos relativamente frontais, porém evitando-se os olhares para a câmera (exceto, é claro,
em trechos com ponto de vista ótico). O fato de que nunca uma informação causalmente significativa para
uma cena seja mantida desconhecida é um demonstrativo da comunicabilidade da narração. E ainda mais
importante é a tendência do filme clássico de produzir a onisciência narrativa por meio da onipresença
espacial17. Se a narração procura esconder o seu conhecimento dos efeitos e desenvolvimentos temporais
subseqüentes, não hesita em revelar a sua habilidade para, a todo momento, produzir mudanças de
perspectiva. O corte no interior de uma cena e a montagem em paralelo entre vários locais são indicativos
da onipresença da narração. Em 1935, um crítico afirmava que a câmera é onisciente no sentido de que
“estimula, através da escolha correta de seu objeto e posicionamento, a sensação no receptor de ‘estar
presente à porção mais vital da experiência – no ponto mais vantajoso de percepção’ ao longo de todo o
filme”18. Enquanto os planos-seqüências de Miklos Jancso criam padrões espaciais que recusam a
onipresença, restringindo drasticamente o conhecimento de informações sobre a história pelo espectador,
a onipresença clássica transforma o esquema cognitivo a que denominamos “câmera” em um observador
invisível ideal, liberto das contingências de tempo e espaço, mas discretamente confinado a padrões
codificados, em nome da inteligibilidade da história.
Graças a esse tratamento de tempo e espaço, a narração clássica faz do mundo da fábula um
constructo internamente consistente, sobre o qual a narração parece intervir a partir de fora. A
manipulação da mise-en-scene (comportamento das pessoas, iluminação, cenários, figurinos) cria um
evento pró-fílmico aparentemente independente, que se torna o mundo tangível da história, enquadrado e
registrado a partir do exterior. Esse registro e enquadramento tende a ser tomado como a narração em si,
que pode, por sua vez, ser mais ou menos aberta, mais ou menos “intrusiva” com relação à
homogeneidade proposta do mundo da história. A narração clássica depende, assim, da noção de
“observador invisível”19. Bazin, por exemplo, descreve a cena clássica existindo independentemente da
narração, como que sobre um palco20. A mesma qualidade é designada pela noção de “ocultamento da
produção”: a fábula não parece ter sido construída, mas preexistir à sua representação narrativa. (Isso
também ocorre na esfera da produção: nas grandes produções dos anos 1930 e após, os cenógrafos
construíam maquetes dos cenários para inserir modelos de câmeras, atores e equipamento de iluminação,
de modo a predeterminar os procedimentos de filmagem21.)
A narração do observador invisível é consideravelmente ocultada. Examinarei rapidamente as
razões estilísticas para esse procedimento, mas podemos desde já constatar que a narração clássica
prontamente nos fornece indicações para a construção da temporalidade, da espacialidade e da lógica
(causalidade, paralelismos) da história, sempre de modo a fazer com que os eventos “à frente da câmera”
sejam nossa principal fonte de informações. Por exemplo, é evidente que as narrativas hollywoodianas
são fortemente redundantes. Tal efeito é obtido principalmente por modelos que podem ser imputados ao
mundo da história. Seguindo a taxinomia de Susan Suleiman 22, podemos observar que a narração atribui
os mesmos traços e funções a cada personagem, com base em sua aparência; que diferentes personagens
tecem idêntico comentário interpretativo sobre o mesmo personagem ou situação; e assim por diante. Em
sua maior parte, as informações são reiteradas pelas falas ou pelo comportamento dos personagens.
Reconhecidamente, existe certa redundância entre o comentário narrativo e a ação da fábula representada,
como no caso dos intertítulos de um filme mudo, que transmitem informações cruciais, ou da música não-
diegética que é pleonástica com relação à ação (por exemplo, “Lá vem a noiva”, em Nascida para o mal).
Porém, em geral a narração é construída de modo a fazer com que os personagens e seu com portamento
produzam e reiterem os dados fundamentais da história. Comparativamente, o cinema de montagem
soviético faz um uso muito maior de redundâncias entre o comentário narrativo e a ação da fábula. O
retardamento opera de forma análoga: a construção integral da fábula é adiada especialmente por linhas
intervenientes de ação (por exemplo, subtramas com importância do ponto de vista causal, cenas cômicas
interpoladas, números musicais) e não por digressões narrativas do tipo encontrado na seqüência “Deus e
pátria” de Outubro [Oktiábr, Serguei Eisenstein, 1927]. Da mesma forma, lacunas causais na fábula são,
em geral, assinaladas pela ação de personagens (por exemplo, a descoberta de pistas em filmes policiais).
O espectador se concentra em construir a fábula e não em indagar por que a narração a está representando
dessa maneira particular – uma questão muito mais característica da narração do cinema de arte.
A prioridade conferida à causalidade da fábula e o mundo integral da fábula comprometem a
narração clássica com uma apresentação não-ambígua. Enquanto a narração do cinema de arte pode
promover um apagamento das linhas de separação entre a realidade diegética objetiva, os estados mentais
dos personagens e os comentários narrativos inseridos, o filme clássico nos solicita a supor distinções
bastante claras entre esses estados. Quando o filme clássico limita o conhecimento a um personagem,
como durante a maior parte de À beira do abismo ou Até a vista, querida [Murder My Sweet, Edward
Dmytryk, 1943], mantém-se uma nítida fronteira entre a afiguração subjetiva e a objetiva. É evidente que
a narração pode nos reservar algumas armadilhas, como em Fogueira da paixão [Possesed, Curtis
Bernhardt, 1947], quando um assassinato que parece ser objetivo revela-se subjetivo (uma virada
motivada incidentalmente), mas o artifício é reconhecido imediata e inequivocamente. Nesse sentido, o
flashback clássico é revelador. Sua presença é quase sempre motivada subjetivamente, pois é a lembrança
de um personagem que deflagra a representação encenada de um evento anterior. Mas a amplitude de
conhecimento no segmento em flashback freqüentemente não é idêntica à do personagem que tem a
lembrança. É comum que o flashback mostre mais do que o personagem sabe (por exemplo, cenas em que
ele não está presente). Um exemplo curioso ocorre em A casa das amarguras [Ten North Frederick,
Philip Dunne, 1958]. A maior parte do filme é apresentada como um flashback da filha, mas ao final do
syuzhet, de volta ao presente, ela descobre informações contidas em “seu” flashback! Os flashback
clássicos são caracteristicamente “objetivos”: a memória do personagem é um pretexto para uma
disposição não-cronológica do syuzhet. Da mesma forma, planos opticamente subjetivos são ancorados
em um contexto objetivo. Um autor observa que um plano ponto-de-vista “deve ser motivado e associado
decisivamente a cenas (planos) objetivas que o precederam ou o sucederão 23”. Essa é uma das fontes do
poder do observador invisível: a câmera parece sempre incluir a subjetividade do personagem em uma
objetividade mais ampla e definida.
O estilo clássico
O fato de que o espectador ingênuo considere o estilo do filme hollywoodiano clássico como
invisível ou sem costuras não nos é de grande auxílio crítico. O que ocasiona um auto-ocultamento tão
significativo do estilo clássico? Será difícil responder satisfatoriamente à questão enquanto não
examinarmos a atividade do espectador, mas podemos iniciar pela sugestão de Yuri Tynyanov: “Assinalar
a 'contenção' ou o 'naturalismo' do estilo de um filme ou diretor não implica eliminar o papel do estilo”.
Simplesmente existe uma variedade de estilos que cumprem distintos papéis, de acordo com sua relação
com o desenvolvimento do syuzhet24. Apresento, a seguir, três proposições gerais.
(1) Em seu conjunto, a narração clássica trata a técnica cinematográfica como um veículo para a
transmissão de informações sobre a fábula pelo syuzhet.
Entre todos os modos narrativos, o clássico é o mais preocupado em motivar composicionalmente
o estilo em função dos padrões adotados pelo syuzhet. Consideremos a noção do que hoje denominamos
plano. Durante décadas, a prática hollywoodiana designou o plano como “cena”, combinando assim uma
unidade estilística material a uma unidade dramatúrgica. Na prática de filmagem, o princípio orientador
era o de que toda e qualquer manifestação da técnica fosse colocada a serviço da transmissão de
informações da fábula pelos personagens, fazendo dos corpos e rostos, invariavelmente, os pontos focais
da atenção. Tendo em vista a estrutura causal recorrente da cena clássica (exposição, fechamento de um
fator causal anterior, introdução de novos fatores causais, suspensão de um novo fator), o cineasta pode
utilizar-se das técnicas de forma isomórfica com relação a essa estrutura. A fase de introdução
caracteristicamente envolve um plano que estabelece os personagens no tempo e no espaço. À medida
que os personagens interagem, a cena é segmentada em imagens mais próximas de ação e reação,
enquanto o cenário, a iluminação, a música, a composição e os movimentos de câmera ajudam a acentuar
o processo de formulação de objetivos, de luta e de decisão. A cena geralmente finaliza com uma porção
de espaço – uma reação facial, um objeto significativo – que fornece uma transição para a próxima cena.
Embora seja verdade que o estilo de um filme clássico por vezes se torna “excessivo”,
suplementando decorativamente as exigências denotativas do syuzhet, o uso da técnica deve ser
minimamente motivado pela interação entre os personagens. O “excesso”, tal como o encontramos em
Minnelli ou em Sirk, é com freqüência justificado por convenções genéricas. O mesmo é válido até para
os estilistas mais excêntricos de Hollywood, Busby Berkeley e Josef von Steinberg, cada um dos quais
exigia uma base genérica de motivação (a fantasia musical e o romance exótico, respectivamente) para os
seus experimentos.
(2) Na narração clássica, o estilo caracteristicamente estimula o espectador a construir um tempo e
um espaço da ação da fábula que seja coerente e consistente.
Diversas outras normas narrativas valorizam a desorientação do espectador (ainda que com
diferentes objetivos). Somente a narração clássica privilegia um estilo que persegue a cada momento a
maior clareza denotativa possível. A relação temporal de cada cena com a cena precedente será rápida e
inequivocamente sinalizada (por meio de intertítulos, indicações convencionais, uma linha de diálogo). A
iluminação deve destacar a figura de fundo; a cor deve definir os planos espaciais; a cada plano, o centro
de interesse da história geralmente será centralizado em relação às laterais do quadro. O re gistro de som é
planejado para proporcionar máxima clareza aos diálogos. Os movimentos de câmera são concebidos para
criar um espaço volumoso e inequívoco. “Ao movimentar a grua”, observa Dwan, “geralmente,
consideramos que é uma boa idéia passar ao redor das coisas [...] Sempre percebemos que, ao
movimentar a grua em torno de uma árvore, ela se torna sólida e encorpada, em lugar de plana 25”.
Hollywood emprega sistematicamente a composição ou o movimento de câmera antecipatórios,
reservando espaço no quadro para a ação ou movimento, como preparação à entrada de um outro
personagem. Compare-se a tendência de Godard para fazer o enquadramento completamente subserviente
ao movimento imediato do ator com este comentário de Raoul Walsh: “Só há uma maneira de filmar uma
cena, aquela que mostra ao público o que acontecerá a seguir 26.” A montagem clássica tem como
objetivos fazer com que cada plano seja o resultado lógico de seu antecessor, e reorientar o espectador por
meio de posicionamentos repetidos de câmera. A desorientação temporária é aceitável somente quando
realisticamente motivada. A montagem descontínua, como na seqüência de Slavko Vorkapich durante o
terremoto em San Francisco [Willard Van Dyke, 1936], é motivada pelo caos inerente à ação afigurada.
A desorientação estilística, em resumo, apenas é aceitável quando transmite situações desnorteantes
contidas na história.
(3) O estilo clássico consiste em um número estritamente limitado de dispositivos técnicos
específicos organizados em um paradigma estável e classificados probabilisticamente de acordo com as
demandas do syuzhet.
As convenções estilísticas da narração hollywoodiana, da composição do plano à mixagem do
som, são intuitivamente reconhecidas pela maior parte dos espectadores. A razão disso é que o estilo se
utiliza de um número limitado de dispositivos, sendo estes regulados como opções alternativas de
representação. A iluminação oferece um exemplo bastante simples. Uma cena pode ter uma iluminação
com luz direta ou difusa. Existe a iluminação de três pontos (luz-chave, luz atenuante e contra luz, mais
iluminação de fundo) em oposição à de fonte única. O fotógrafo também tem à sua disposição graus de
difusão variados. No plano teórico, todas as escolhas são possíveis, mas em um contexto específico uma
delas é mais provável que as outras. Numa comédia, é mais provável a iluminação direta; uma rua escura
motivará realisticamente uma iluminação de fonte única; o primeiro plano de uma mulher será mais
difuso do que o de um homem. A “invisibilidade" do estilo clássico hollywoodiano resulta não apenas de
dispositivos estilísticos altamente codificados, mas também de suas funções codificadas no contexto do
filme.
Lembremos, também, os modos de enquadrar a figura humana. Na maioria das vezes, um
personagem será enquadrado entre o plano americano (enquadramento dos joelhos para cima) e o
primeiro plano (enquadramento na altura dos ombros). O ângulo da câmera será reto ou “normal”, no
nível do ombro ou do queixo. É mais raro o enquadramento em plano geral muito aberto ou em
primeiríssimo plano, com uma câmera baixa ou alta. Os pontos de vista “olho de pássaro”, ou desde o
chão, são bastante improváveis, e exigiriam uma motivação composicional própria , ou seguindo
convenções genéricas (por exemplo, um ponto de vista óptico ou a visão de um bailado em um musical).
De todos os sistemas, o mais codificado em regras é o da decupagem clássica. A confiança num
determinado eixo de ação orienta o espectador com relação ao espaço, e a sucessão de cortes mostra
escolhas paradigmáticas claras entre diferentes tipos de raccord.* Estes são balanceados
probabilisticamente: a maior parte das cenas hollywoodianas inicia-se com planos de conjunto, segmenta
o espaço em planos mais próximos, ligados por raccords de olhar e/ou campo/contracampo, e somente
retorna para planos mais afastados se o movimento dos personagens ou a entrada de um novo personagem
exige que se reoriente o espectador. A montagem de uma cena completa sem um plano de conjunto é
improvável; mas aceitável (especialmente quando se utilizam imagens de arquivo ou filmadas em
locação). A edição incoerente da direção dos movimentos, assim como a angulação inconsistente dos
olhares, é menos provável. Falsos raccords facilmente perceptíveis e cortes não-motivados são
expressamente proibidos. Esse aspecto paradigmático faz do estilo clássico, com todas as suas “normas”,
não uma fórmula ou receita, mas um conjunto historicamente determinado de alternativas mais ou menos
prováveis27.
Esses três fatores contribuem com boa parte da explicação de por que o estilo hollywoodiano
passa relativamente despercebido. Cada filme individual recombina normas familiares em padrões
previsíveis, conforme as exigências do syuzhet. O espectador raramente terá dificuldades para
compreender os elementos de estilo porque estará orientado no tempo e no espaço, e porque as figuras
estilísticas serão interpretáveis à luz do paradigma.
Com respeito à relação entre syuzhet e estilo, pode-se dizer que o filme individual é caracterizado
pela obediência a um conjunto de normas extrínsecas, que regulam tanto a construção do syuzhet como a
padronização estilística. O cinema clássico não encoraja os filmes a cultivarem normas intrínsecas
idiossincráticas; o estilo e o syuzhet raramente adquirem uma condição de proeminência. As principais
inovações de um filme ocorrem no nível da fábula, ou seja, são “novas histórias”. Claro, as normas do
syuzhet e os elementos estilísticos se modificaram ao longo do tempo. Mas os princípios fundamentais de
construção do syuzhet (priorização da causalidade, orientação do protagonista por objetivos, prazos finais,
etc.) mantêm-se em vigor desde 1917. A estabilidade e a unidade da narração hollywoodiana são na ver-
dade duas das razões para denominá-la clássica, ao menos no sentido de que o classicismo, em qualquer
arte, sempre se caracterizou pela obediência a normas extrínsecas28.
A lógica da espectatorialidade clássica
A estabilidade dos processos do syuzhet e das configurações estilísticas não nos deve levar a tratar
o espectador clássico como um material passivo à mercê de uma máquina totalizante. O espectador
realiza operações cognitivas específicas que não são menos ativas pelo fato de serem habituais e
familiares. A fábula hollywoodiana é o produto de uma série particular de schematas, hipóteses e
inferências particulares.
Quando o espectador vai a um filme clássico, vai muito bem preparado. Provavelmente, a forma
básica do syuzhet e da fábula será a da história canônica, da atividade de um indivíduo (o protagonista)
voltada à consecução de objetivos e causalmente determinada. O espectador conhece os personagens e as
funções de estilo mais prováveis. Possui internalizadas as normas cênicas de exposição, de
desenvolvimento da linha causal anterior, etc. Conhece ainda as formas pertinentes de motivação do que é
apresentado. A motivação “realística”, no modo clássico, consiste em estabelecer conexões reconhecidas
como plausíveis pelo senso comum. (“Um homem como esse iria naturalmente...”) A motivação
composicional, por sua vez, consiste em realçar as associações importantes de causa e efeito. Já as formas
mais importantes de motivação transtextual são o reconhecimento da persona de um astro de filme para
filme e o reconhecimento de convenções genéricas. A motivação genérica, como vimos, tem um efeito
particularmente forte sobre as normas narrativas. Por fim, a motivação artística – tomar um elemento
como presente em função de si mesmo – não é desconhecida do filme clássico. Um momento de
espetáculo ou de virtuose técnica, um número musical interpolado ou um interlúdio cômico: neles o
cinema hollywoodiano abre-se, de vez em quando, à possibilidade da completa auto-absorção. Esses
momentos podem ser altamente reflexivos, “desnudando o procedimento” do trabalho da narração, como
quando, em Anjos da Broadway [Angels Over Broadway, Ben Hecht, 1941], um dramaturgo pobretão
reflete, “nosso atual problema de enredo é dinheiro”.
Com base nesses esquemas, o espectador constrói hipóteses. Estas tendem a ser prováveis (são
validadas em diversos pontos), fortemente exclusivas (formuladas como alternativas excludentes) e
voltadas para a produção de suspense (postulando um resultado futuro). Em Roaring Timber [Phil Rosen,
1937], um proprietário de terras entra em um saloon onde está sentado o nosso herói. O fazendeiro
procura por um capataz durão. Hipótese: ele oferecerá o emprego ao herói. Essa hipótese é provável,
voltada para o futuro e exclusiva (ou o homem oferecerá o trabalho ao nosso herói, ou não oferecerá). O
espectador é auxiliado na formulação dessa hipótese por diversos processos. A repetição reafirma os
dados sobre os quais a hipótese deve se fundar. “Apresente todo e qualquer fato relevante três vezes”,
sugere a roteirista Frances Marion, “porque o filme não será compreendido se o público não perceber as
premissas em que ele se baseia” 29. A exposição da ação pretérita da fábula será em geral localizada nas
cenas iniciais do syuzhet, provendo uma base sólida para a formulação de hipóteses. Exceto em um filme
de suspense, a exposição não faz soar alarmes nem trabalha ativamente para nos induzir em erro: o que
prevalece é o efeito de enfatizar sua primazia. Os personagens são apresentados em seu comportamento
típico, e o star-system opera para reafirmar essas primeiras impressões. (“No exato momento em que
enxerga Walter Pidgeon em um filme, você já sabe que ele será incapaz de fazer algo mal ou mesqui-
nho”30.) O procedimento do prazo final ou “último minuto” solicita ao espectador que construa hipóteses
voltadas para o futuro, no formato do tudo ou nada: ou o protagonista alcançará o seu objetivo a tempo,
ou não o alcançará. E, se a informação for discretamente “plantada” logo cedo, as hipóteses serão mais
prováveis ao tomar por certo o material prenunciativo colocado de modo “insignificante”.
Esse processo ocorre igualmente no plano estilístico. O espectador constrói o tempo e o espaço da
fábula de acordo com schematas, pistas e quadros de hipóteses. As normas hollywoodianas extrínsecas,
com seus procedimentos fixos e sua organização paradigmática, oferecem ao espectador expectativas
predeterminadas que são balizadas a partir de pistas concretas veiculadas pelo filme. Para compreender o
espaço de uma cena, o espectador não necessita reproduzir cada um dos diversos elementos espaciais,
mas apenas elaborar um mapa relacional grosseiro dos principais fatores dramáticos. Assim, um corte
fora de continuidade pode facilmente ser ignorado porque os processos cognitivos do espectador
classificam as pistas de acordo com sua pertinência para a construção da cadeia causal da fábula. Nesse
sentido, uma modificação no personagem que fala, no posicionamento da câmera e na expressão facial é
mais relevante que, por exemplo, uma pequena mudança na posição das mãos 31. O mesmo é válido para
as descontinuidades temporais.
O que é raro no filme clássico, portanto, é o “corredor do logro” (crooked corridor) de Henry
James: o uso da narração para levar-nos a conclusões incorretas 32. A conduta de evitar a desorientação,
que vimos ser operante no estilo clássico, mantém-se ativa de um modo mais amplo. As hipóteses “de
suspense” voltadas para o futuro são mais importantes do que as “de curiosidade” voltadas para o
passado, e a surpresa é menos importante que ambas. Imagine se, em Roaring Timber, o fazendeiro
houvesse entrado no saloon procurando por um capataz durão, oferecesse o emprego ao nosso herói e este
respondesse de um modo que revelasse que não era durão. Na verdade, um dos objetivos da previsão e da
repetição é justamente evitar surpresas. É claro que, se todas as hipóteses fossem sempre confirmadas
imediatamente, o espectador perderia o interesse em pouco tempo. Vários fatores intervêm para tornar
complexo o processo. Na maior parte das vezes, os schemata são por definição protótipos, estruturas e
normas abstratas, e nunca especificam todas as propriedades do texto. Muitas das hipóteses de longo
prazo devem aguardar para serem confirmadas. Os procedimentos de retardamento, exibindo um forte
grau de imprevisibilidade, podem introduzir objetos que requerem atenção imediata, e também adiar a
satisfação da expectativa mais geral. O efeito de “primazia” pode ser contraposto pelo que os psicólogos
denominam efeito de “recentidade”, que restringe, e até mesmo nega, a impressão original produzida por
um personagem ou situação. Além disso, a estrutura da cena hollywoodiana, que se encerra quase sempre
com um problema não resolvido, permite que uma hipótese calcada sobre eventos preserve o seu interesse
na passagem para a próxima seqüência. Por fim, não podemos subestimar o papel da agilidade do ritmo
no filme clássico. Vários realizadores já chamaram a atenção para a necessidade de desenvolver a ação
tão rapidamente que o público não tenha tempo de refletir – ou de entediar-se. É tarefa da narração
clássica convidar à formulação de hipóteses altamente prováveis e exclusivas e então confirmá-las,
mantendo ao mesmo tempo a diversidade no desenvolvimento concreto da ação.
O sistema clássico não é simplório. Devemos lembrar que, em condições normais de exibição, o
nível de compreensão do espectador é absolutamente controlado. A construção de hipóteses prováveis,
exclusivas e orientadas para o suspense é uma maneira de ajustar a dramaturgia às exigências da situação
de fruição. O espectador não necessita reportar-se às seqüências mais antigas do filme, porque suas
expectativas estão direcionadas para o futuro. A exposição preliminar rapidamente estabelece os
schemata, e a natureza “tudo ou nada” da maioria das hipóteses possibilita uma assimilação imediata das
informações. A redundância mantém a atenção sobre o problema atual, ainda que uma sutil ausência de
redundâncias possa permitir a ocorrência de pequenas surpresas posteriormente. No conjunto, a narração
clássica administra o ritmo de fruição do filme solicitando ao espectador que elabore o syuzhet e o sistema
estilístico de uma única forma: construindo uma fábula denotativa, unívoca e integral.
Implicações e perspectivas
Em razão de sua centralidade no comércio cinematográfico internacional, o cinema hollywoodiano
exerceu forte influência sobre a maioria dos outros cinemas nacionais. Após 1917, as formas de
realização cinematográfica dominantes no exterior foram profundamente afetadas pelos modelos narra-
tivos utilizados pelos estúdios americanos. Ainda assim, o cinema hollywoodiano não deve ser
identificado com o classicismo tout court. O “classicismo” italiano dos anos 1930 ou o polonês dos anos
1950 podem mobilizar normas narrativas bastante distintas. (Por exemplo, o final feliz parece ser mais
característico de Hollywood do que de outros classicismos.) Mas, na maior parte desses cinemas, os
princípios e funções da narração clássica podem ser considerados congruentes com os aqui esboçados.
Um grupo de pesquisadores parisienses chegou a conclusões semelhantes, ainda que preliminares, sobre
os filmes franceses dos anos 1930 33. E Noel Burch demonstrou que, no cinema alemão, um domínio do
estilo clássico é exibido já em 1922, com Dr. Mabuse, o jogador [Dr. Mabuse, der Spieler, Fritz Lang] 34.
Enquanto modo narrativo, o classicismo corresponde claramente à idéia do “filme normal” na maioria dos
países consumidores de cinema do mundo.
As muitas variantes do classicismo tornam bastante difícil qualquer tentativa de periodização mais
global. Mesmo a história das normas hollywoodianas é notoriamente complexa para ser delineada com
precisão. Isso em parte se deve ao fato de que os períodos mais significativos da história dos estúdios ou
da tecnologia não coincidem necessariamente com mudanças nos processos estilísticos ou do syuzhet. Em
termos gerais, poderíamos periodizar a narração hollywoodiana clássica em três diferentes níveis. Com
relação às normas, poderíamos identificar modificações no interior dos paradigmas narrativos clássicos,
de acordo com as opções privilegiadas a cada período. Seria preciso procurar não apenas pelas inovações,
mas pela normatização, pelos padrões da prática majoritária ou mais habitual. A conexão de cenas por
fusão é possível, porém rara, no cinema mudo, embora seja a transição privilegiada entre 1929 e o final
dos anos 1950. No plano dos sistemas narrativos, poderíamos estudar os princípios que constituem a
causalidade, o tempo e o espaço da narração. A continuidade espacial no interior de uma cena pode ser
obtida escolhendo-se entre diversas técnicas funcionalmente equivalentes, mas tal continuidade baseia-se
em princípios mais amplos, como a imposição da linha de 180 0 ou eixo de ação, e modificações nesse
postulado podem ser detectadas ao longo de toda a história do cinema. Poderíamos ainda estudar as
oscilações das propriedades narrativas mais abstratas ao longo do tempo. Por exemplo, a narração no
cinema mudo americano no período 1920-1923 tende a ser mais autoconsciente do que ao final dos anos
1920, principalmente em razão de um uso maior dos intertítulos expositivos. Da mesma forma,
recorrentes normas supressivas surgem em muitos dos filmes associados ao conjunto conhecido como
film noir. Posso aqui apenas sugerir múltiplas possibilidades, pois seguimos aguardando uma história
meticulosa da narração e do estilo clássicos.
Para onde, finalmente, essas colocações levam dois importantes horizontes teóricos: o da autoria e
o da ideologia? Neste espaço, apenas respostas esquemáticas podem ser sugeridas. Parece evidente que a
obra de um autor pode ser identificada por seus princípios e padrões narrativos característicos. Os filmes
de Hitchcock e de Fuller são mais autoconscientes do que, por exemplo, os de Hawks e os de Preminger.
Além disso, podemos associar opções estilísticas consistentes a assinaturas de diretores: a preferência de
Ophuls pelos longos movimentos de câmera mais do que pelo corte, o uso de primeiros planos por
Lubitsch. O mais importante é o fato de que qualquer abordagem autoral diferenciada da narração
permanece caracteristicamente nos limites do clássico, criando normas extrínsecas que se conformam às
intrínsecas ou as ampliam. A diferença autoral em Hollywood dramatiza, pois, o alcance e os limites do
paradigma clássico. Quanto à significância ideológica da narração clássica, todos os princípios e normas
aqui considerados podem ser analisados a esse respeito. O herói voltado a um objetivo, o apelo a
princípios de unidade e realismo, as funções da coerência espacial e temporal, a centralidade do
observador invisível, a arbitrariedade do fechamento – cada uma dessas normas possui traços de
processos sócio-históricos de produção e recepção. A predominância da iluminação de três pontos apela a
concepções canonizadas de beleza e glamour; o tratamento do romance heterossexual associa o
classicismo hollywoodiano a concepções dominantes das relações sexuais. O sistema de 180 0 não apenas
exibe os traços de um sistema de produção em busca de rapidez e economia, mas também dá continuidade
a uma tradição de representação espacial em operação desde o teatro grego. Cada filme tra balha com – ou
com e contra – protocolos ideológicos e econômicos.
O mais importante, porém, é que mesmo nesse cinema mais comum o espectador constrói a forma
e o sentido de acordo com um processo de conhecimento, memória e inferência. Por mais rotineira e
"transparente" que tenha se tornado a fruição do filme clássico, ela continuará sendo uma ativida de. E
qualquer cinema alternativo, ou de oposição, se utilizará da narração para suscitar tipos distintos de
atividade.
As três proposições gerais com relação ao estilo clássico presentes neste último. São elas:
1 – “Em seu conjunto, a narração clássica trata a técnica cinematográfica como um veículo para a
transmissão sobre a fábula pelo syuzhet.” (BORDWELL, 2005, p. 291) Lembrando que aqui podemos
entender, para simplificar, fábula como história e syuzhet como trama. Ou seja, as manifestações da
técnica cinematográfica devem estar a favor das informações da história transmitidas pelos personagens.
2 – “Na narração clássica, o estilo caracteristicamente estimula o espectador a construir um tempo e um
espaço da ação da fábula que seja coerente e consistente.” (BORDWELL, 2005, p. 292) Portanto, as
relações espaço-temporais entre os planos e as cenas serão mais claras possível.
3 – “O estilo clássico consiste em um número estritamente limitado de dispositivos técnicos
específicos organizados em um paradigma estável e classificados probabilisticamente de acordo com as
demandas do syuzhet.” (BORDWELL, 2005, p. 293) Desta maneira é possível encontrar abrigo no
repertório da maior parte do público. E sobre isso Bordwell complementa, “A ‘invisibilidade’ do estilo
clássico hollywoodiano resulta não apenas de dispositivos estilísticos altamente codificados, mas também
de suas funções codificadas no contexto do filme.” (BORDWELL, 2005, p. 293)
1 David Bordwell, assim como outros autores norte-americanos, usam o termo syuzhet para
designar o que chamamos de trama e utiliza fábula no lugar de história. Tais opções estão fundamentadas
na origem linguística de alguns desses autores.
Sugere três características a se analisar nos programas narrativos: a cognoscibilidade,a
autoconsciência e a comunicatividade
A cognoscibilidade, que equivale aproximadamente à idéia narratológica de“focalização”, ou foco
narrativo, concerne ao alcance e à profundidade do conhecimento apresentado pela narração
cinematográfica. Alcance diz respeito ao quanto a narrativa é ou não restrita a um personagem: em filmes,
diferentemente da literatura, quase nunca há restrição integral do conhecimento apresentado àquilo que
um único personagem sabe. Em melodramas, é costume mostrar eventos e informações relacionadas a
diferentes personagens,em diversos locais. Filmes de detetive são mais restritos, mas mesmo neles há
algumas discrepâncias entre o que o detetive sabe e o que é informado ao espectador – quando ele está de
costas para alguma ameaça, por exemplo. Além do alcance, pode-se analisar a profundidade do
conhecimento apresentado: alguns filmes expõem angústias internas e pensamentos dos personagens,
enquanto outros mostram apenas as suas reações externas.A segunda característica, chamada de
“autoconsciência”, refere-se ao grau de ostentação do filme quanto ao fato de que se dirige a um público.
Monólogos em off, música extradiegética, sincronia de ritmo entre montagem e música, comentários do
personagem para câmera, planos-aéreos e câmeras-lentas são recursos extremamente ostentados, mas até
as técnicas mais sutis endereçam o espectador em algum grau. Mesmo os posicionamentos tradicionais
dos atores em cenas de diálogo não reproduzem, como demonstrou Bordwell em Figures Traced in Light
103 , o comportamento normal de pessoas conversando. São, em vez disso, construídos para que o
spectador tenha uma visibilidade adequada da ação.
A terceira e última característica, denominada comunicatividade, designa atendência da narração
de comunicar ou de suprimir o que ela saberia, de acordo com oparâmetro da cognoscibilidade. Em outras
palavras, baixa e alta comunicatividade dizemrespeito ao quanto as estratégias narrativas escondem,
deliberada e abertamente, asinformações que, de praxe, seriam oferecidas.
Bordwell delineia, segundo os parâmetros neoformalista, as principais inclinaçõesda chamada
“narração clássica” 112. Um dos princípios organizadores mais tradicionais é oforte direcionamento da
trama e do estilo para a produção paulatina, no espectador, de umconhecimento adequado e integral sobre
a estória: o deslocamento do início ao fim do filmetende a ser uma trajetória em direção a informações
cada vez mais completas113. Assim, esse tipo de narração volta-se para um alto grau de cognoscibilidade,
mostrando mais do que oprotagonista poderia saber, e de comunicatividade, omitindo pouco e
pontualmente as informações importantes. Esses princípios podem ser vistos em ação nas técnicas
aplicadaspelo modo clássico às lacunas: hiatos temporais são sinalizados por diálogos,
relógios,calendários, intertítulos, pela montagem em “resumo” 114 e outros recursos. Lacunas
causaistendem a ser ostentadas e dificilmente são definitivas, sendo preenchidas mais cedo ou
maistarde.Quanto à “autoconsciência”, a chamada “montagem invisível” do cinema clássicoda era dos
estúdios é considerada como suprimida, deixando para momentos pontuais como oinício e o fim dos
filmes a exibição do seu próprio endereçamento a uma platéia. Já o estilohollywoodiano contemporâneo é
muito mais ostensivo.
Matrix é particularmenteautoconsciente, com as seqüências bullet-time e as transições entre
cenas que são feitas com“ travellings ” que adentram telefones e computadores.O autor propõe que, para
o fim de criar progressivamente conhecimentosnarrativos adequados no espectador, há dispositivos
narrativos que constituem normascentrais do modo clássico 115: O primeiro consiste na criação de
personagens com características e objetivosclaros. A construção dos protagonistas e antagonistas apóia-se
no star system – maisespecificamente, nos protótipos de personagens ligados aos astros que os
interpretam. A taispersonagens são atribuídos objetivos específicos, em geral delineados clara e
antecipadamentepara o espectador. O principal motor da linha narrativa que permeia o filme consiste nos
esforços dos personagens para atingir tais metas, passando por diferentes circunstâncias eobstáculos. O
segundo dispositivo é o plantio antecipado de condições e causas paraacontecimentos posteriores: por
exemplo, os objetos que serão fundamentais na resolução deum conflito ou problema. Um tipo específico
é a “causa pendente”117: uma ação, apresentadano final de uma seqüência, é deixada temporariamente
não-resolvida, para que seja retomadaem momentos ulteriores. A obediência a esta norma é uma das
razões da forte impressão decausalidade que é típica nos filmes de Hollywood, refletida na idéia
recorrente de “narrativalinear”. Os passes que permitirão a Ilsa Lund fugir do país são apresentados no
filme antesmesmo da personagem, em Casablanca. A “força”, poder misterioso que permitirá a
LukeSkywalker acertar o improvável tiro que destrói a Estrela da Morte, é reiteradamente exposta,antes
de resolver o clímax do filme.O terceiro recurso clássico delineado é a marcação de compromissos
eestabelecimento de prazos determinados (deadlines): são postuladas condições e contagensregressivas
que constringem os resultados possíveis das ações dos personagens, de modo a forçar conclusões
inequívocas, bem ou mal-sucedidas, da luta dos personagens pela realizaçãode seus objetivos. Estes são
os meios mais comuns de subordinar as características temporaisdo filme (ordem, duração e freqüência)
ao princípio de causalidade narrativa. A ameaça dossoldados nazistas em Casablanca , a possibilidade de
captura dos rebeldes pelo Império em Guerra nas estrelas e a queda do relâmpago que pode recarregar a
máquina do tempo em Devolta para o futuro são exemplos de deadlines que organizam a narrativa.Essas
normas não regem simplesmente a existência de dispositivos isolados: essesrecursos são interdependentes
e sistematizados dentro de estratégias clássicas de construçãonarrativa.Uma delas é a postulação de duas
linhas causais entrelaçadas. Filmes típicos docinema industrial estabelecem pelo menos duas progressões
narrativas: uma que normalmentetrata de um enlace amoroso (geralmente heterossexual) e outra de outro
tipo, como trabalho,missão, guerra e outras relações pessoais. Geralmente, um filme possui uma linha
principal euma linha subordinada. Em Guerra nas estrelas há, além da luta contra o Império, a
disputaentre Luke e Han Solo pela princesa Léia. Em De volta para o futuro , Marty tem de consertaros
acontecimentos do passado, fazendo o namoro de seus pais acontecer, e dar um jeito devoltar a 1985. Em O
fabuloso destino de Amélie Poulain 118 , a protagonista se esforça, atravésde pequenos estratagemas,
para proporcionar mais felicidade à vida dos outros e paraconquistar o rapaz amado.Outras duas
estratégias da narração clássica tratam das divisões que estruturam earticulam as etapas do
desenvolvimento narrativo para a constituição da totalidade da obra.Analisar-se-á, primeiramente, a
macroestrutura dramática, ou seja, como a narrativa ésubdividida em segmentos temporais equilibrados.
Filmes com narração clássica,especialmente os hollywoodianos, costumam distribuir as reviravoltas em
momentos mais ou menos eqüidistantes, procurando-se manter um “ritmo” confortável e evitar que a
atenção daplatéia diminua por falta de mudanças.Em seguida, será examinada a microsegmentação
narrativa, ou seja, a construçãodas seqüências individuais que movimentam a linha narrativa. A narrativa
cinematográficaclássica emprega com abundância um tipo particular de seqüência, chamado de “cena”,
cujaestrutura será examinada. As cenas, por sua vez, articulam uma estratégia de estilofundamental no
modo clássico de cinema: o sistema de continuidade.
Narração e o filme de ficção
Três abordagens com relação à narrativa:
• Como representação: considerando o mundo da narrativa ou diegese; seu retrato da realidade ou
seu significado mais amplo.
• Como estrutura: modos de combinar partes para construir um todo; segmentação e “gramática”
ou linguagem do filme, isto é, o grande sintagmático.
• Como processo: “a atividade de selecionar, organizar, e editar material narrativo de modo a
alcançar efeitos de tempo específicos sobre um observador”. (p. xi)
Do formalismo ao cognitivo
Formalismo russo (1920) e a Escola de Praga (Jan Mukorovski)
Conceitos importantes: Syuzhet, fabula, motivação, retardo, paralelismo.
Definindo a especificidade da função estética enquanto reconhecendo a importância da convenção
social do que a cultura define como uma obra de arte.
Recusando colocar fronteiras arbitrarias entre teoria, história e critica.
Do formalismo ao cognitivo
Para uma poética histórica do filme
• Conceitos poéticos relacionados
- À estrutura do trabalho de arte
- À relação do observador com a obra de arte
- Às funções mais amplas da obra de arte
• Conceitos históricos examinando
- Mudanças nas normas e nas convenções da narração
- Como o contexto social modela a forma e a função da obra de arte.

Parte Um
Críticas a teorias miméticas e diegéticas da narração
• A teoria mimética toma seu modelo do ato de visão: um objeto de percepção é apresentado aos
olhos do observador.
• Bordwell mostra que a tradição mimética no cinema se realizou no sentido de constituir uma
unidade de visão do filme que ele chama de observador invisível (um filme representa eventos de uma
história por uma visão, um ponto de vista de uma testemunha invisível).
Para Bordwell as teorias da enunciação querem estudar a subjetividade na linguagem fazendo
analogias do filme com o romance do século XIX:
• A enunciação parte da dicotomia entre enunciado/enunciação e história/discurso.
- O enunciado é o dito, a proposição; a enunciação refere-se ao ato de dizer envolvendo seu
contexto, constituído de um locutor e receptor;
- a história é a própria narrativa; e o discurso é o que trás as marcas de sua enunciação pois é
sempre o enunciado no contexto da enunciação.

Narração e o filme de ficção


Parte Dois: Poética Teórica
• Syuzhet e Estilo
• Vendo o filme como um processo dinâmico cognitivo-perceptivo
• Como os fatores de espaço e tempo do filme são organizados como narração.

Parte Três: Poética Descritiva


• Narração Clássica (Hollywood, 1917-1960)
• Narração do filme de arte (Europeu pós-guerra)
• Narração histórica-materialista (Filme soviético dos anos 20 do século XX)
• Narração Paramétrica (casos limitados a filmes Europeus do pós-guerra)
• Mais o exemplo de Godard como estilo misto ou híbrido
O processo de compreensão narrativa
Protocolos de compreensão da narrativa, ou schemata, através dos quais expectadores são guiados
pelo filme a construir uma história baseada em processo inferencial.
• Schemata protótipo: identificando atores, ações, locais, etc., de acordo com a norma aplicada.
• Schemata modelo: um scheme de narrativa mestra que incorpora expectativas concernentes ao
modo como eventos deveriam ser classificados e como as partes deveriam ser relacionadas com o
progresso do todo
• Schemata procedimental: protocolos dinâmicos através dos quais expectadores procuram
preencher informações ausentes do modelo. Uma busca por motivações e relações apropriadas de
causalidades, tempo e espaço.

Fabula, Syuzhet e Stylo

Narração
No filme de ficção, a narração é o processo através do qual a trama e o estilo interagem dando
pistas e canalizando a construção da fábula pelo espectador . Portanto, é apenas quando a trama organiza
as informações da fábula que o filme narra. A narração também inclui processos estilísticos. Seria possível,
claro, tratar a narração somente como uma questão da relação trama/fábula. (p. 53)
A fábula (história) incorpora a ação como uma corrente de eventos cronológicos de causa e efeito
ocorrendo dentro de uma certa duração e campo espacial dados.
• Um padrão de construção mental que os expectadores criam através de um processo de assunção
e inferência baseado em schemata protótipo, modelo e procedimental
- O syuzhet ou enredo é a organização e apresentação real da fábula pelo filme.
- Estilo nomeia o uso sistemático de recursos cinemáticos em um filme.
- Excesso, ou o “terceiro significado”: aqueles elementos que devem ficar for a da percepção do
expectador, porque não se enquadram na narrativa ou nos padrões do estilo.
Distinção entre syuthet e fabula
Uma das distinções mais importantes para a Narratologia (ramo da semiótica) é entre fábula e
syuzhet (trama). Essa distinção, já apresentada por Aristóteles, e, mais detalhadamente, pelos Formalistas
Russos, pode ser feita nos seguintes termos: a história que é representada (fábula); e o modo de
representação, de construção, dessa história (trama) – p. 49.

Fabula
O construto imaginário que nós criamos, progressivamente e retroativamente... (...) Mais
especificamente, a fábula incorpora a ação como uma cadeia de eventos cronológica, de causa e efeito,
ocorrendo numa duração e num campo espacial estabelecidos (p. 49)
Trama ou Syuzhet
O arranjo propriamente dito e a apresentação da fábula no filme. (...) É um construto mais
abstrato, o padrão da história reproduzido como uma recontagem minuciosa do filme (p. 50)
Logicamente, o padrão da trama é independente do meio; os mesmos padrões da trama podem ser
incorporado sem um romance, em uma peça, ou em um filme (p. 50)
Syuzhet e o estilo
Em um filme narrativo esses dois sistemas coexistem. Eles podem coexistir porque trama e
estilo tratam aspectos diferentes do processo fenomenal. A trama materializa o filme como um
processo “dramático”; o estilo materializa o filme como um processo “técnico” (p. 50)
Relação entre fabula e trama na narrativa
Três princípios básicos:
• Lógica narrativa;
• Tempo: Ordem, duração, frequencia;
• Espaço.
Modos e normas
Normas intrínseca definem um padrão de coerência estabelecido pelo próprio sistema de filmes
individuais.
Normas extrínsecas referem-se a padrões de coerência relevantes para grandes grupos de filmes.
A codificação de normas extrínsecas podem, com o tempo, levar à inauguração de um modo
narrativo: um conjunto historicamente distinto de normas de construção e compreensão narrativas.

Modos Históricos de Narração


• Narração clássica (Cinema de Hollywood 1916 aos dias de hoje).
• Narração Dialética-materialista (Filmes soviéticos pós-revolucionários dos anos 20 do século
XX).
• Narração paramétrica característica da experimentação formal de cineastas como Alain Resnais e
Robert Bresson.
• Uma única estrutura determina a lógica composicional da textura local a uma forma completa.
• Cinema de Arte (aprox. 1957-1969).
Modos de narração
Modo Conhecimento Autoconsciência Comunicação Narrador Autor
Clássico Onisciente Moderada Alta Invisível Apagado
Cinema de arte Restrito Alta Baixa Em primeiro Presente
plano
Histórico- Onisciente Alta Muito Alta Em primeiro Presente
materialista plano/Didático
Paramétrico Onisciente Alta Baixa Em primeiro Presente
plano
Godard Métrico Muito Alta Mista Manifesto Presente

Modos de narração
• Conhecimento: na medida em que a narração reivindica uma variedade e profundidade de
informações da fábula.
• Autoconsciência: o grau em que a narração reconhece que se dirige ao expectador.
• Comunicação: na medida em que a narração retém ou comunica informações da fábula.

Clássico padrão Syuzhet


• Causalidade centrada no personagem
• Dependência da “história canônica”:
- Causalidade é o princípio primordial de unificação - Estrutura causal dupla: duas linhas de
enredo (romance e ação) cada uma com objetivos, obstáculos e clímax.
• Padrão de enredo organizado por segmentos
• O “efeito-fechamento”
Estilo clássico
• O Estilo é motivado composicionalmente como uma função do padrão do syuzhet: a técnica do
filme é um veículo para a transmissão pelo syuzhet da informação da fábula.
• Esforça-se para o máximo de clareza denotativa.
• Altamente codificada; ou seja, usa um número limitado de dispositivos técnicos e estes
dispositivos operam de acordo com parâmetros rigorosos.
Modo paramétrico
• Influência da música avant-garde do pós-guerra europeu , o nouveau roman , e o estruturalismo.
• Transgressão de valores e a necessidade de cada obra de arte construir um sistema único.
• Uma única estrutura determina a lógica da composição da textura local á forma total.
• Componentes textuais formam uma ordem que é coerente de acordo com princípios intrínseco.
• Formas textuais tratadas como fenômeno espacial
• Forma fenomenal do texto tende a ser vista como uma distribuição de permuta de um set
invisível.
Estilo paramétrico
• Sistema estilístico cria um padrão distinto das demandas do sistema syuzhet.
• Significado de representação é subordinado ao perfil de uma ordem de percepção pura.
• Apenas poucos parâmetros são destacados e variam durante o filme.
Uma unidade interna forte: uma prominente norma intrínseca com reiterações padronizadas.
- As opções “ascéticas” e “escassas”
• Tendência a trabalhar com formas auditivas.

Narração do cinema arte


• Foco no protagonista: personagens observam em vez de agir como agentes causais
• Ligação de eventos eliptico e /ou episódico.
• Enredos baseados em “situações limites” levando a crises existenciais e transformações nos
principais personagens.
• Um “realismo expressivo” constrói o espaço: sonhos, memórias, fantasias que motivam
narrativas ambíguas e “subjetivas”.
• Narração restrita.
• Alto grau de auto-consciência estilística.

Narração clássica X Narração do cinema arte

Narração clássica Narração do cinema arte


Único protagonista Protagonistas únicos e múltiplos
Guiado pelo desejo Objetivo único
Construída no conflito Histórias de situações limites
Corrente linear de causa e efeito Episódico e elíptico
Motivação clara e completa Motivação obliqua e obscura
Narração onisciente Narração restrita

Verossimilhança expressiva no cinema de arte


• Uma verossimilhança subjetiva ou expressiva em sintonia com o “personagem exibição”
- A ênfase nas realidades interiores ou psicológicas.
• Enredos definidos por “histórias de situações limites”:
- A situação causal leva a um episódio no qual o protagonista do filme de arte enfrenta uma crise
de significado existencial
• Características narrativas do protagonista do filme de arte.
• Falta de traços e objetivos definidos.
• Motivação causal é retirada ou desconhecida, enfatizando ações insignificantes e intervalos.
• Os clássicos conflitos do protagonista: o protagonista do filme de arte movimenta-se
passivamente, traçando um itinerário de situações sociais.
• Preocupado menos com ação do que com reação, o cinema de arte apresenta efeitos psicológicos
em busca de suas causas.
• Os personagens retardam os movimentos á frente do enredo recontando histórias, fantasias, e
sonhos. Frequentemente levam a disjunções temporais, tais como flashbacks.
• Convenções do realismo expressivo moldam a representação espacial:
• Filmagem do ponto de vista óptico, flash de molduras de um evento vislumbrado ou lembrado,
padrões de edição descontínuos associados ao tempo interior ou psicológico, modulações de luz, cor e
som, são motivados pela psicologia de personagem.
• O filme de arte restringe o ponto de vista narrativo de um único protagonista ou podem dividi-lo
entre vários protagonistas.
• Aumenta a expressividade da subjetividade, mas também faz a narração incerta.
Comentário
Filmes de arte tendem a narração altamente auto-consciente.
• O espectador olha para os momentos em que a narração pode interromper o progresso do enredo
e chamar a atenção para si por meio de floreios estilísticos.
• O narrado implícito não é mais visível, mas chama atenção sobre si mesmo
• Cenas podem terminar in medias res (no meio dos acontecimentos).
São criadas lacunas que não são explicáveis pela psicologia do personagem.
• O enredo é retardado pela omissão ou pelo excesso de informações.
• Associações conotativas e simbólicas substituem a lógica de causa e efeito.
• A exposição é demorada e largamente distribuída durante o filme.
• Disjunções na ordem temporal tais como flashbacks and forwards
• Tem o efeito de ostentação tanto a extensão do conhecimento da narrativa como sua relativa
incomunicabilidade (contando um pouco enquanto escondendo muito).
Em suma, “a construção da narração se torna o objeto da hipótese do expectador: como está sendo
contada a história? Por que contar a história daquela maneira?” (p. 210).

A Caverna de Platão e o Cinema Clássico


Introdução
Este trabalho aborda a relação entre o mito da caverna de Platão e o cinema clássico americano.
São desenvolvidos os seguintes assuntos: o valor do mito em si, a comparação de seu mecanismo com o
do cinema, os métodos do cinema clássico e seu tipo de abordagem, a identificação do homem na caverna
e do espectador no cinema clássico, as divergências entre o homem na caverna e no cinema clássico.

O mito da caverna
No Livro VII de A República, Platão relata o diálogo de Sócrates e Glauco sobre a condição
humana em torno da oposição instrução vs. ignorância. Sócrates descreve o percurso que o homem deve
fazer para, a partir do mundo sensível, formado pelas imagens e aparências - cópias do mundo das Idéias,
atingir esse segundo, o mundo inteligível, formado pelas Idéias eternas. A ascensão é obtida por
intermédio da razão: pela busca de conhecimento, da Justiça, da Verdade e do Belo se atinge o Bem, fonte
de toda luz. Sócrates expõe esses pensamentos através do mito alegórico da caverna (1) .
Num primeiro momento relata a situação na qual o homem se encontra no mundo.
Agora imagina a maneira como segue o estado das nossas natureza relativamente à instrução e à
ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à
luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentados, de modo que não podem
mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz
chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os
prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um
pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima
das quais exibem as suas maravilhas. Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que
transportam objetos de toda espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira
e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em
silêncio. E se a parede do fundo da prisão provocasse eco, sempre que um dos transportadores falasse,
não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles? (Platão, 2000, 225-6)
Sócrates identifica a vida do homem sem acesso à educação, e portanto ignorante, com a vida do
prisioneiro da caverna que acredita e se satisfaz com as sombras, as ilusões e aparências. Os dois vivem
no escuro, conformados com o mínimo de luz-conhecimento que recebem.

A caverna a partir do séc. XX


Pensando o mecanismo ilustrativo utilizado no mito a partir do mundo moderno, pode-se
aproximá-lo ao mecanismo cinematográfico. Durante o desenvolvimento do cinema, desde 1895 (quando
foi oficialmente inaugurado em Paris com os irmãos Lumière) até a contemporaneidade, diversos
pensadores abordam tal aspecto:
- L. Irigary (apud Machado 1997, 31) fala em "montagem cinematográfica" a propósito da
projeção de Platão;
- Baudry (1991, 395) escreve "A disposição dos diferentes elementos - projetor, "sala escura", tela
- além de reproduzir de um modo bastante impressionante a mise en scène da caverna...", e em outro
discurso: "o mito da caverna é o texto de um significante de desejo que atormenta a invenção e a história
do cinema" (apud Machado 1997, 34);
- L. Garcia dos Santos (apud Machado 1997, 31) comenta a "transformação da alegoria da
caverna" "num grande dispositivo teatral ou cinematográfico";
- A. Machado (1997, 28) relata que "primeira sessão de cinema nos moldes que conhecemos hoje,
ou seja, numa sala pública de projeções,... teve lugar na imaginação de Platão ... como a "alegoria da
caverna."
Analisando cada um desses mecanismos propostos, a identificação é evidenciada:
- Mito da caverna: a fogueira, localizada numa colina, ilumina as estátuas de homens e animais
que são transportadas ao decorrer de um muro, projetando apenas as sombras dos objetos na parede de
uma caverna escura, através da única abertura à luz que possui; a voz dos carregadores ecoa dentro da
caverna.
- Cinema: o cinematógrafo, colocado a certa altura ao fundo da sala escura, através da passagem
de luz, projeta imagens fictícias (onde atores interpretam determinados papéis) em uma tela localizada na
parede oposta; a projeção pode ser acompanhada por diálogos entre os atores (cinema falado), ou
acompanhado por música condizente com a situação (cinema mudo).
Nos dois mecanismos há uma luz artificial (resultante da manipulação do meio pelo homem)
localizada ao fundo e à determinada altura da cena, projetando, num quarto escuro, imagens de
simulacros, acompanhadas por sons.
Os homens que assistem às projeções na caverna e no cinema, os espectadores, também possuem
comportamento e disposição física similares. Para traçar esse paralelo, alguns aspectos do cinema
precisam ser considerados.
Cinema Clássico Americano
Por mais de um século filmes são realizados em diferentes culturas e com diferentes propósitos.
Diversas escolas e gêneros apareceram durante a história do cinema, mas foi o chamado Cinema Clássico
Americano o responsável pela formação da indústria cinematográfica. Com a I Guerra Mundial (1914 -
1918) a produção cinematográfica européia foi abalada. Hollywood começava a despontar com seus
grandes estúdios e realizadores (Griffith) e, em 1919, chega à liderança do mercado mundial. Hollywood,
com um novo sistema de produção, trabalha os filmes numa escala industrial para serem distribuídos e
exibidos mundialmente: cria o sistema de empréstimo de filmes (anteriormente pertenciam a quem os
comprasse e os projetasse), e cria a padronização da película (35mm) e dos filmes (criação de gêneros:
fórmulas próprias e cultivo de público cativo).
Atualmente a indústria cinematográfica americana ocupa um dos primeiros lugares no ranking da
economia dos Estados Unidos.
Narrativa clássica e espectador
As técnicas da narrativa cinematográfica clássica são subordinadas à clareza, transparência,
homogeneidade, linearidade- técnicas que dão ao filme verossimilhança, aproximando o personagem do
espectador.
... o modelo hollywoodiano com suas opções individualistas (o personagem principal, a estrela),
seus objetivos puramente espetaculares e comerciais, seu modo de narrativa alienante (o espectador,
arrebatado pelos aspectos pseudológicos e afetivos da narrativa, não tem a possibilidade de refletir ou
assumir um distanciamento crítico com relação à visão do mundo que lhe é apresentada). (Vanoye e
Goliot- Lété, 1994, pp.28-29)
A narrativa clássica apresenta coerência e impacto dramático, fazendo com que o espectador seja
capturado pelo filme.
Hollywood inventou uma arte que não observa o princípio da composição contida em si mesma e
que, não apenas elimina a distância entre o espectador e a obra de arte, mas deliberadamente cria a ilusão,
no espectador, de que ele está no interior da ação reproduzida no espaço ficcional do filme. (Balaz 1970:
50)
O espectador encontra-se num quarto escuro, isolado do mundo exterior: a única presença é a
audiovisual- marcada pelo filme e pela resposta dos espectadores a ele através de manifestações
programadas- esperadas. A projeção subjetiva do espectador no filme possibilita sua identificação com o
personagem principal. O espaço da exibição, observa Machado (1997:45), é o cenário ideal para a
realização artificial de uma regressão; o espectador está num estado para- hipnótico, determinado pelas
condições ambientais e pela técnica desse tipo de narrativa. Inserido na ação do filme o espectador se
realiza. Descarrega o peso do dia a dia, aliviando as próprias paixões, através das situações vividas pelos
atores (canalizando seus desejos e frustrações). Vive um fenômeno primeiramente enunciado por
Aristóteles em relação ao efeito provocado pelas tragédias gregas: a catarse, isto é, "suscitando o terror e
a piedade, chega à purificação de tais afetos" (Aristóteles,1449 b). Sai da sessão de cinema satisfeito e
apaziguado, pronto para retomar sua vida cotidiana.
Espectador na caverna e no cinema
O espectador, assim como o prisioneiro acorrentado na caverna de Platão, realiza-se através de
falsas vivências, através de projeções simulacrais.
Na caverna de Platão, como na sala de exibição, os prisioneiros estão imobilizados por uma
paralisia imposta (no primeiro caso) ou voluntária (no segundo caso). A esse estado de inibição motora se
acrescenta outro, de confusão intelectual, que os faz tomarem as sombras dos objetos projetados na tela-
parede pela própria "realidade". Em outras palavras, esses fantasmas de luz que atormentam a gruta
escura e que constituem os únicos estímulos percebidos pelos espectadores durante a projeção são vividos
por estes últimos com a intensidade de um fato real, como se tivessem existência afetiva. (Machado 1997:
45)
A condição determinada por Sócrates aos acorrentados - submissão à falta de luz, à ignorância -
pode então ser comparada à condição dos espectadores que sublimam seus sentimentos através de ilusões,
de supostas realidades.
Disparidades
Até o momento, a relação desenvolvida entre os dois espaços demonstrou semelhanças entre os
seus interiores: a espacialidade e o comportamento presente em cada ambiente foi discutido e relacionado,
tendo como base a descrição da caverna no mito alegórico e o advento do cinema clássico. A similaridade
deu-se através dos ambientes em si, mas a finalidade pela qual são propostos não foi abordada.
No mito alegórico, o homem aparece involuntariamente aprisionado durante toda sua vivência. Ele
mantém uma postura passiva dentro da caverna escura, é prisioneiro e nem sequer tem ciência de sua
condição. Mas Platão não se limita a essa situação: ele liberta um dos prisioneiros e o leva ao mundo
iluminado pelo Sol. O homem não consegue, de imediato, encarar tal estrela: primeiro observa as
sombras, passa aos reflexos dos objetos na água, aos próprios objetos, aos corpos celestes que iluminam a
noite e, por último, consegue olhar o Sol, que governa o mundo sensível. Esse caminho que se aprende
vagarosamente é comparado à ascensão da alma ao mundo inteligível, onde a Idéia do Bem é soberana-
que engendrou a luz e o soberano da luz no mundo visível. Essa ascensão é realizada com o aprendizado
das ciências, elas preparam o espírito para a abstração, sendo as Idéias as abstrações supremas.
A saída da caverna pode ser entendida como um nascimento- é a conquista da luz(2) .
E a luz nada mais é do que a presença do Sol. A saída da caverna é o ponto de partida para a ascensão.
O cinema clássico, por sua vez, já não possui esse fim. Como já foi mencionado, ele leva o espectador à
sublimação, à catarse. O espectador, ao sair do cinema, não encontra as luzes reveladoras, ele julga tê-las
encontrado durante o filme, do qual sai purificado e apaziguado- a sua vida continua a mesma.
O retorno às trevas também diverge nos dois casos. Enquanto o ex-prisioneiro visa libertar os
outros homens, para apresentar-lhes a luz do conhecimento, por mais perigoso que possa ser desmascarar
aquela realidade, o espectador retorna aos filmes para continuar com o jogo projeção-identificação.

Conclusões

O comportamento do espectador talvez não pudesse ser diferente. A vida contemporânea -


marcada por uma sociedade predominantemente massificada, por trabalho mecanizado, e pelo constante
desafio de permanecer no mercado - necessita de sensações e de emoções que façam o homem voltar a se
sentir humano, deixar o estado "máquina" e retornar ao estado "indivíduo". E isso o cinema clássico
realiza com total habilidade: ele acorda o homem para uma vida mundana, mas sensível.
Contudo, talvez as situações comparadas sejam contrárias quanto aos fins: na caverna, a luz
exterior é almejada visando o abandono do mundo sensível em prol do inteligível; no cinema, a luz
interior é procurada com o intuito de satisfazer a condição humana em relação às emoções que nem
sempre são sentidas no dia a dia. Mas os mecanismos utilizados são semelhantes e extraem o homem de
uma certa ignorância, confrontando-o com outra realidade.
http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/3096879

O estudo da narrativa sempre foi alvo de diversas discussões, conceitos e opiniões diferentes. Em
um meio tão contraditório e nebuloso, este trabalho tentou resgatar nas formas não-narrativas, uma
definição da narrativa. Para isso, nos baseamos na obra Análise Estrutural da Narrativa - pesquisas
semiológicas, organizada por Roland Barthes, datada de 1971, caracterizada por ser uma espécie de
coletânea que aborda como tema principal a narrativa e os elementos que a acompanham ou interferem na
sua significação de alguma maneira.
No entanto, trabalharemos especificamente, com o último texto da obra, denominado de
Fronteiras da Narrativa, escrito por Gérard Genette da Faculdade de Letras e Ciência Humanas de Paris e
autor de diversas obras sobre o tema em questão.
A relevância do tema pode ser explicitado através das palavras de Barthes (1971), quando levanta
o aspecto de que são inumeráveis as narrativas no mundo. Segundo o autor, vivemos rodeados pelas
narrativas, que podem ser encontradas no mito, na fábula, no conto, no romance, na pintura, no cinema,
nas histórias em quadrinhos, etc.. A narrativa está sempre presente em todos os tempos e lugares, ou seja,
está entre os homens, não importando classe ou cultura.
Após uma concisa revisão de literatura, seguindo os passos de G. Genette, escolhemos como
objeto de pesquisa e análise o romance Agosto, de Rubem Fonseca, a fim de discorrer uma análise de
conteúdo de um capítulo da obra, a partir de categorias pré - estabelecidas, oriundas do texto de Genette.
A escolha de um romance para ser analisado deu-se pela importância deste gênero através dos
séculos. De acordo com Schüler (1989) o romance nasceu como testemunha do declínio da Idade Média,
trazendo consigo a ``consciência da transformação''. Coube ao romance, desde o começo, retratar os
conflitos individuais e a vida cotidiana, opondo-se a noções medievais latinas, que não admitiam a
contaminação de lealdade e traição, amplamente praticadas pelo romance, destaca Schüler.
Com o passar dos anos o romance, antes privilégio de nobres e burgueses, chegou à população
menos favorecida, graças ao desenvolvimento da imprensa escrita, conquistando um admirável público
por intermédio do romance-folhetim, que era oferecido em séries diárias pelos jornais. Schüler acredita
que, devido a esta expansão, o mercado necessitou a produção temática de romances, e assim surgem os
romances históricos, sociais, realistas, psicológicos, etc.. A narrativa romanesca começa a ter o empenho
de apanhar e interpretar a realidade.
Agosto, de Rubem Fonseca, espelha muitas das características do romance descritas anteriormente.
Esta obra trata-se de uma mescla de romance histórico, pois aborda um dos mais importantes fatos
políticos brasileiros -o suicídio do presidente Getúlio Vargas - com um romance psicológico, já que os
personagens são intimamente abertos para o leitor que vai conhecendo seus pensamentos, suas angústias,
isto é, o leitor é imergido no íntimo dos personagens a cada página.
Sendo assim, este estudo pretende, tomando como base os conceitos levantados por G. Genette,
desvendar estas categorias descritas por este autor, no terceiro capítulo de Agosto (em anexo). É
pertinente destacar que, se tratando de uma pesquisa qualitativa, com utilização de análise de conteúdo, as
escolhas foram feitas, buscando suprir as necessidades do pesquisador em relação à aplicação do
pensamento de G. Genette.
Fundamentação teórica
Narrativa - Um conceito em mutação
É necessário lembrar que os conceitos que serão descritos posteriormente, estão baseados no
artigo Fronteiras da Narrativa, escrito por Gérard Genette pertencente à obra, organizada por Roland
Barthes, intitulada Análise Estrutural da Narrativa - pesquisas semiológicas (1971).
O autor inicia ressaltando um conceito generalista de narrativa, que por convenção, no domínio da
expressão literária, podemos definir como representação de um acontecimento, real ou fictício, por meio
da linguagem, mais particularmente da linguagem escrita.
Mas definir positivamente a narrativa é acreditar na idéia ou no sentimento de que a narrativa não
é nada mais natural do que contar uma história ou arrumar um conjunto de ações em um mito, um conto,
uma epopéia, um romance.
A literatura foi evoluindo e teve como conseqüência, entre outras coisas, chamar atenção para o
seu aspecto singular, artificial e problemático do ato narrativo. Genette busca reconhecer certos modos
negativos da narrativa, a considerar os principais jogos de oposições por meio dos quais a narrativa se
define e se constitui em face das diversas formas da não-narrativa.
Diegesis e mimesis
O autor busca o primeiro exemplo de oposição descrita na Poética de Aristóteles que, segundo
Nunes (1995), é a mais recuada e duradoura matriz da teoria da literatura. Para o filósofo, a narrativa
(diegesis) é um dos modos de imitação, enquanto a representação poética (mimesis) é a representação
direta dos acontecimentos, que ocorre por intermédio das falas e ações dos atores perante um público.
A partir desta distinção entre poesia narrativa e poesia dramática, que já havia sido citada por
Platão no 3º livro da República, com 2 diferenças. Por um lado Sócrates nega ali à narrativa a qualidade
(para ele é um defeito) da imitação, e por outro lado ele toma em consideração aspectos de representação
direta, que são os diálogos que podem comportar um poema não dramático como os de Homero.
Platão fala a respeito do domínio da lexis, que de acordo com o pensador é a maneira de dizer, em
oposição a logos, que designa o que é dito. Podemos dividir a lexis, teoricamente, em imitação
propriamente dita, que seria a mimesis e a simples narrativa, denominada de diegesis.
Platão diz que, tudo que o poeta narra falando em seu próprio nome, sem procurar fazer crer que é
um outro que fala, se trata de uma simples narrativa. Para exemplificar, Platão usa o canto I da Ilíada,
quando Homero fala a propósito de Crisés: ``ele tinha vindo às belas naves dos Aqueus, para reaver sua
filha, trazendo um imenso resgate e segurando, sobre o seu bastão de ouro, as fitas do arqueiro Apolo; e
ele suplicava a todos os Aqueus, mas sobretudo aos dois filhos de Ateu, bons estrategistas''.
Já a imitação consiste no fato de Homero fazer falar o próprio Crisés, segundo o filósofo, falar
fingindo ser o próprio Crisés e ``esforçando-se para nos dar na medida do possível a ilusão de que não é
Homero que fala, mas sim o velho sacerdote Apolo'' (Platão apud in Genette, 1971). Platão diz que
Homero poderia ter seguido sua história sob a forma puramente narrativa, narrando as palavras de Crisés,
ao invés de reproduzi-las, dando um estilo indireto e prosa.
Há uma divisão teórica oposta no interior da dicção poética, a dos modos puros e heterogêneos da
narrativa e da imitação, que conduz e funda uma classificação própria dos gêneros, que compreende os
dois modos puros: o narrativo, representado pelo teatro, mais um modo misto, ou mais precisamente,
alternado, que é o da epopéia, como exemplo a Ilíada.
Aristóteles, por sua vez, possui uma classificação diferente, que reduz toda a poesia à imitação,
distinguindo somente dois modos imitativos. O direto, que Platão nomeia de imitação, e o narrativo, que
Aristóteles denomina como Platão de diegesis.
Aristóteles identifica o gênero dramático como um modo imitativo, o define pelas condições
cênicas da representação dramática, sem levar em consideração seu caráter misto. Já o gênero épico se
identifica ao modo narrativo puro.
A representação dramática pode justificar-se pelo fato de que a obra épica, permanece
essencialmente narrativa, visto que os diálogos são enquadrados e conduzidos pelas partes narrativas que
constituem, no sentido próprio, o fundo, a trama do seu discurso. Não importa a parte material dos
diálogos ou discursos em estilo direto, mesmo que esta parte se sobreponha a da narrativa.
Genette afirma que, Aristóteles reconhece em Homero esta superioridade sobre os outros poetas
épicos. Pois ele intervêm o menos possível em seu poema, colocando em cena, na maior parte das vezes,
personagens caracterizados, conforme o papel do poeta, que é imitar o máximo possível.
Aristóteles reconhece o caráter imitativo implícito dos diálogos Homéricos e portanto o caráter
misto da dicção épica, narrativa em seu fundo, mas dramática em sua extensão.
As duas classificações, tanto a de Platão quanto a de Aristóteles, concordam que existe uma
oposição do dramático e do narrativo, sendo o dramático considerado mais imitativo que o segundo. Os
dois filósofos acreditam que a narrativa é um modo enfraquecido, atenuado da representação literária.
Genette destaca a importância de levantar um fator que nenhum dos dois filósofos se preocupou,
mas que pode restituir à narrativa todo seu valor e importância. A imitação direta, como funciona em
cena, consiste em gestos e falas. Enquanto gestos, ela evidencia, representa ações, mas escapa do plano
lingüístico, onde é exercida a atividade específica do poeta. Porém, constituída por falas, discursos
emitidos por personagens, a parte da imitação se resume a isto, em uma obra literária.
A narrativa mista para Platão, quer dizer o modo de relação mais corrente e mais universal,
``imita'', alternativamente, sobre o mesmo tom, uma matéria não verbal que deve efetivamente representar
o melhor que puder, e uma matéria verbal que se representa por si mesma, e que se contenta, na maioria
das vezes, em citar.
Genette acredita que, em uma narrativa histórica, fiel, o historiador-narrador deve ser muito
sensível à mudança de regime, quando passa do esforço narrativo na relação dos atos realizados à
transcrição mecânica das falas pronunciadas. Mas quando se trata de uma narrativa parcial ou
completamente fictícia, o trabalho da ficção se exerce igualmente sobre os conteúdos verbais e não
verbais, tem por efeito mascarar a diferença que separa os dois tipos de imitação. Um está em frase direta,
enquanto o outro faz intervir um sistema mais complexo.
Para imaginar fatos e falas procedemos de uma mesma operação mental, porém dizer esses atos e
dizer estas falas, constituem duas operações verbais muito diferentes. Só a primeira constitui uma
verdadeira operação, um ato de dicção no sentido platônico, comportando uma série de transposições e
equivalências, e uma série de escolhas inevitáveis entre os homens da história a serem retidos e os
elementos a serem abandonados, entre os diversos pontos de vistas possíveis, etc.. Todas as operações
evidentemente ausentes, quando um poeta ou historiador se limita a transcrever o discurso.
Pode-se contestar esta diferença entre o ato de representação mental (logos) e o ato de
representação verbal (lexis). Porém, Genette diz que estaremos contestando a própria teoria da imitação,
que atribui à ficção poética a denominação de um simulacro da realidade, transcendente ao discurso que o
institui.
Quanto ao acontecimento histórico, este é exterior ao discurso do historiador ou à paisagem
representada no quadro. Teoria que não faz diferença entre ficção e representação, faz com que o objeto
da ficção se reduza por ela a um real fingido e que espera ser representado.
“A noção mesmo de imitação sobre o plano da lexis é uma pura miragem, que vai desaparecendo à
medida que nos aproximamos dela, a linguagem só pode imitar perfeitamente a linguagem, ou mais
precisamente, o discurso só pode imitar perfeitamente um discurso idêntico; em resumo, a imitação direta
é, exatamente uma tautologia”. (Genette apud in Barthes 1971: 261)
Genette conclui que, o narrativo é o único modo empregado pela literatura enquanto
representação, equivalente verbal de acontecimentos não verbais e também de acontecimentos verbais, a
não ser que ele se apague, neste último caso, diante de uma citação direta da qual se anula toda a função
representativa.
“A representação literária, a mimesis dos antigos, não é a narrativa mais os discursos: é a
narrativa, e somente a narrativa. Platão oporia mimesis a diegesis como uma imitação perfeita a uma
imitação imperfeita; mas a imitação perfeita não é mais uma imitação, é a coisa mesmo, e finalmente a
única imitação é a imperfeita. Mimesis é diegesis.” (Genette apud in Barthes, 1971: 262)
Narração e descrição
Partindo do pressuposto de que a representação literária se confunde com a narrativa (sentido
lato), Genette levanta indagações que não foram abordadas por Platão e Aristóteles. O autor defende que
toda a narrativa comporta com efeito, porém em proporções diferentes de um lado representações de
ações e de acontecimentos, que constituem a narração propriamente dita, de outro lado representações de
objetos e personagens, que são o fato daquilo que se denomina descrição.
A oposição entre narração e descrição é um dos traços maiores da nossa consciência literária. A
descrição nunca teve uma existência muito ativa antes do séc. XIX, quando a introdução de longas
passagens descritas em romances, que são tipicamente narrativos, colocasse em evidência os recursos e as
exigências deste procedimento.
A despreocupação em distinguir descrição e narração, é indicada claramente pelo emprego do
termo comum diegesis, graças ao status literário, muito desigual dos dois tipos de representação.
É possível, em princípio, concebermos textos puramente descritivos, visando a representação de
objetos em sua única existência espacial, fora de qualquer acontecimento e de dimensão temporal.
Realizar uma descrição pura de qualquer elemento narrativo é mais fácil do que o inverso, pois a mais
sóbria designação dos elementos e circunstâncias de um processo pode passar por um esboço de
descrição.
Pode-se dizer que a descrição é mais indispensável do que a narração, uma vez que é mais fácil
descrever sem narrar do que narrar sem descrever, pois os objetos podem existir sem movimento, mas não
há movimento sem objetos.
Genette explica que a natureza da relação entre descrição e narração em textos literários, segue da
seguinte maneira: a descrição poderia ser concebida independentemente da narração, mas de fato nunca se
encontrará em um estado livre. A narração por sua vez, não pode existir sem a descrição, mas esta
dependência não a impede de representar o primeiro papel, fazendo com que a descrição seja uma escrava
sempre necessária, mas submissa, jamais sendo emancipada.
Em gêneros narrativos, como a epopéia, o conto, a novela, o romance, em que a descrição
geralmente ocupa um lugar muito grande, e mesmo materialmente maior, é vista como um simples
auxiliar da narrativa. Não existem, gêneros descritivos, e imagina-se mal uma obra em que a narrativa se
comportaria como auxiliar da descrição.
O estudo das relações entre o narrativo e o descritivo reduz-se a considerar as funções diegéticas
da descrição, isto é, o papel representado pelas paisagens, ou os aspectos descritivos na economia geral da
narrativa.
A fim de detalhar este estudo sobre a descrição, Genette utiliza-se da tradição literária clássica
para abordar duas de suas funções relativas distintas. A primeira, é de certa forma decorativa. A retórica
tradicional classifica a descrição como um ornamento do discurso: a descrição longa e detalhada, aparece
aqui como uma pausa, uma recreação na narrativa, puramente estética.
A segunda grande função da descrição, a mais manifestada hoje, que se impôs com Balzac, na
tradição do gênero romanesco, é de ordem simultaneamente explicativa e simbólica, como os retratos
físicos, as descrições de roupas e móveis tendem, em Balzac, e seus sucessores realistas, revelar, e ao
mesmo tempo justificam a psicologia dos personagens, dos quais são simultaneamente: signo, causa e
efeito.
Com a evolução das formas narrativas, a descrição ornamental foi substituída pela descrição
significativa, tendendo assim a reforçar a dominação do narrativo, fazendo com que a descrição perdesse,
sem nenhuma dúvida, em autonomia o que ganhou em importância dramática.
As diferenças que separam a descrição e a narração são diferenças de conteúdo, e não tem
existência semiológica.
``A narração liga-se a acontecimentos ou ações, considerados como processos puros e por isso põe
acento sobre o aspecto temporal e dramático da narrativa; a descrição ao contrário, uma vez que se
demora sobre objetos e seres considerados em sua simultaneidade, e encara os processos como
espetáculos, parece suspender o curso do tempo e contribui para espalhar a narrativa no espaço.'' (Genette
apud in Barthes 1971: 265)
Estes dois tipos de discursos exprimem duas atitudes antitéticas diante do mundo e da existência,
uma mais ativa, e outra mais contemplativa, consequentemente, mais poética. Mas referindo-se a
representação, narrar um acontecimento e descrever um objeto são duas operações semelhantes, que
utilizam os mesmos recursos de linguagem.
A diferença mais significativa seria talvez o fato de que a narração traz no seu discurso a sucessão
temporal, igualmente como dos acontecimentos, enquanto que a descrição deve modular no sucessivo a
representação de objetos simultâneos e justapostos no espaço. Para Genette (1971:266), ``a linguagem
narrativa se distinguiria assim por uma espécie de coincidência temporal do seu objeto, do qual a
linguagem descritiva seria ao contrário irremediavelmente privada''.
Porém esta oposição perde muito de sua força na literatura escrita, onde nada impede o leitor de
voltar atrás e de considerar o texto, em sua simultaneidade espacial. O autor revela que, por outro lado,
nenhuma narração, nem mesmo da reportagem radiofônica, não é rigorosamente sincrônica ao
acontecimento que relata, e a variedade das relações que podem guardar o tempo da história e o da
narrativa acaba de reduzir a especificidade da representação narrativa.
``Enquanto modo de representação literária, a descrição não se distingue nitidamente da narração,
nem pela autonomia de seus fins, nem pela originalidade de seus meios, para que seja necessário romper a
unidade narrativo-descritiva (a dominante narrativa), que Platão e Aristóteles designaram narrativa.''
(Genette apud in Barthes 1971: 266)
Caso a descrição marque uma fronteira da narrativa, esta será uma fronteira interior que reunirá
sem prejuízo, na noção de narrativa, todas as formas de representação literária, e considerar-se-à a
descrição não como um dos seus modos (o que implicaria uma especificidade de linguagem) porém,
como um dos seus aspectos.
Narrativa e discurso
Retornando a Platão e Aristóteles, que nas suas obras República e a Poética, onde reduziram o
campo da literatura ao domínio particular da literatura representativa: poiesis = mimesis. Genette pretende
desenhar uma última fronteira da narrativa, que poderia ser a mais importante e a mais significativa,
considerando tudo o que se encontrava excluído do poético. Trata-se da poesia lírica, satírica e didática,
utilizando-se de alguns nomes que um grego do século V ou IV deveria conhecer, são eles: Píndaro,
Alceu, Safo, Arquíloco e Hesíodo.
O que Arquíloco, Safo e Píndaro possuem em comum, é que suas obras não consistem em
imitação, por narrativa ou representação cênica, de uma ação real ou fingida, exterior à pessoa e à palavra
do poeta, mas simplesmente em um discurso mantido por ele diretamente em seu próprio nome.
Genette exemplifica, contando que Píndaro cantava méritos ao vencedor olímpico, Arquíloco
invectivava seus inimigos políticos, Hesíodo dava conselho aos agricultores, Empédocles ou Parmênides
falavam da teoria do universo. O elemento comum nestes autores é que neles não há nenhuma
representação, nem ficção, simplesmente uma fala que se investe diretamente no discurso da obra.
A expressão direta escapou à reflexão da Poética, enquanto negligencia a função representativa da
poesia. Surgem assim duas divisões, segundo a importância sensivelmente igual ao conjunto do que
chamamos hoje literatura.
Genette adota a divisão proposta por Emile Benveniste entre narrativa (história) e discurso, com a
diferença que Benviste engloba na categoria do discurso tudo que Aristóteles chamava de imitação
indireta, que consiste ao menos na sua parte verbal, em discurso emprestado pelo poeta ou narrador a um
dos seus personagens.
Benveniste destaca que certas formas gramaticais como o pronome ``eu'' e sua referência implícita
o ``tu'', os indicadores pronominais, certos demonstrativos ou adverbiais (como aqui, agora, ontem, hoje,
amanhã) e, certos tempos do verbo, como o presente, passado composto ou futuro, se encontram
reservados ao discurso enquanto que a narrativa em sua forma estrita é marcada pelo emprego exclusivo
da terceira pessoa e de formas como o airoso (passado simples) e o mais-que-perfeito.
Não importa o idioma, todas estas diferenças servem para criar uma oposição entre a objetividade
da narrativa e a subjetividade do discurso. Porém Benveniste acredita que, é preciso lembrar que se trata
de uma ``objetividade e de uma ``subjetividade'' definida por critérios de ordem propriamente lingüística:
é subjetivo o discurso onde se marca, explicitamente ou não, a presença (ou a referência a) eu, mas este
eu não se define de nenhum modo com a pessoa mantém o discurso. Do mesmo modo que o presente, que
é o tempo por excelência do modo discursivo, não se define como o momento em que o discurso é
enunciado, sem emprego marcado, para a autora ``a coincidência do acontecimento descrito com a
instância do discurso que o descreve''.
Já a objetividade da narrativa se define pela ausência de toda referência ao narrador: O narrador
omite-se, os acontecimentos são colocados e se produzem à medida que aparecem no horizonte da
história. É como se os acontecimentos narrassem a si mesmos''.
Porém é preciso acrescentar que as essências da narrativa e do discurso, quase nunca se encontram
em estado puro em nenhum texto. Em muitos casos, há uma proporção de narrativa no discurso e uma
certa dose de discurso na narrativa.
Assim, se esgota a simetria, pois tudo que se passa com os dois tipos de expressão se encontram
muito diferentemente afetados pela contaminação, pela inserção de elementos narrativos no plano do
discurso não basta para emancipá-lo, pois estes elementos permanecem com maior freqüência ligados à
referência do locutor, que fica implicitamente presente no último plano, e que pode intervir de novo a
cada instante sem que este retorno seja considerado uma ``intrusão''.
Ao contrário de ser normal haver elementos da narrativa em um discurso, é visto como infração a
intervenção de elementos discursivos no interior de uma narrativa. Para Genette (apud in Barthes, 1971:
272)
``A narrativa inserida no discurso se transforma em elemento do discurso, o discurso inserido na
narrativa, permanece discurso e forma uma espécie de quisto muito fácil de reconhecer e localizar. A
pureza da narrativa, dir-se-ia, é mais fácil de preservar do que a do discurso.''
O romance como alternativa na relação discurso X narrativa
Genette diz que uma das atividades deste estudo, poderia ser o de repertoriar e classificar os meios
pelos quais a literatura narrativa (particularmente a romanesca) tem tentado organizar de uma maneira
aceitável, no interior de sua própria léxis, as relações estreitas e delicadas que se encontram as exigências
da narrativa e as necessidades do discurso. Porém, o autor admite que o romance nunca conseguiu
solucionar o problema dessa relação.
Houveram diversas tentativas, durante séculos diferentes, de resolver esta discussão. Na época
clássica, por exemplo, o autor-narrador assumia o seu próprio discurso, intervinha na narrativa com uma
indiscrição marcada, interpelando o seu leitor no tom da conversação familiar.
Vê-se também ao contrário nesta mesma época, o autor transfere todas as suas responsabilidade do
discurso a um personagem principal que falará, isto é, narrará e comentará ao mesmo tempo os
acontecimentos em primeira pessoa.
Outra alternativa foi repartir o discurso entre os diversos atores, seja sob a forma de cartas, como
fez freqüentemente o romance do séc., ou ainda de uma maneira mais ágil e sutil de um Joyce ou de um
Faulkner, fazendo sucessivamente a narrativa ser assumida pelo discurso interior dos seus principais
personagens.
O único momento de equilíbrio entre discurso e narrativa, sem escrúpulo e ostentação foi no séc.
XIX, a idade clássica da narração objetiva, com Balzac e Tolstoi.
De acordo com Genette, Hammett ou Hemingway tentaram conduzir a narrativa ao seu mais alto
grau de pureza. Para isto foi preciso excluir a exposição dos motivos psicológicos, sempre difícil de
apresentar sem recurso a considerações gerais de natureza discursiva, as qualificações implicando numa
apreciação pessoal do narrador, as ligações lógicas, etc; até reduzir a dicção romanesca a essa sucessão de
frases curtas, sem articulações.
O que se interpretou com freqüência como uma aplicação à literatura das teorias behavioristas era
talvez somente o efeito de uma sensibilidade aguda a certas incompatibilidades da linguagem. Todas
essas características da escritura romanesca contemporânea ganhariam, sem dúvida, se analisadas sob este
ponto de vista, além da tendência atual, manifestada em Sollers ou um Thibaudeau, por fazer desaparecer
a narrativa no discurso presente do escritor no ato de escrever, no que Foucault chama ``o discurso ligado
ao ato de escrever, contemporâneo de seu desenvolvimento e encerrado nele''.
Tudo se passa como se a literatura tivesse esgotado ou ultrapassado os recursos de seu modo
representativo, e pretendesse refletir sobre o murmúrio indefinido de seu próprio discurso.
Genette (apud in Bathes 1971: 274) acredita que talvez o romance, após a poesia, consiga sair da
idade da representação.
``Talvez a narrativa, na singularidade negativa que acabamos de reconhecer, seja já para nós,
como a arte para Hegel, uma coisa do passado, que é preciso considerar às pressas em sua retirada, antes
que tenha desertado completamente nosso horizonte.''
(…)
As categorias resultantes do artigo fronteiras da narrativa de G. Genette
O artigo de Genette sofreu uma acurada análise a partir de um processo de estabelecimento de
relações entre os conceitos discorridos ao longo do seu texto. Podemos dizer que, através de uma ``leitura
flutuante''2 e de posse dos elementos globais abordados por Genette, organizaram-se categorias
comparativas que irão permitir a análise do nosso objeto de estudo, que serão apresentadas logo após, por
intermédio de quadros comparativos:
Quadro Comparativo I
Diegesis Mimesis
Modo de imitação, representação poética Modo de imitação, é a representação direta dos
acontecimentos por atores falando ou agindo
perante o público
Denominada de simples narrativa por Platão, o Denominada por Platão de imitação propriamente
autor fala em seu próprio nome, sem procurar fazer dita, o autor fala através do personagem
crer que é outro que fala

Quadro Comparativo II
Narração Descrição
Mistura representações de ações e acontecimentos Representação de objetos e personagens
Prima pela ação, pelo movimento dos objetos Representação de objetos em uma única existência
espacial, fora de qualquer dimensão temporal.
Existem gêneros narrativos (como o conto, o é sempre um simples auxiliar da narrativa, pois não
romance, etc..), onde a descrição ocupa um lugar existem gêneros descritivos, porém é responsável
muito grande. pela dramaticidade
Considerada um processo puro, considera o É estético, uma pausa, uma recreação na narrativa,
aspecto temporal sem preocupação com o tempo, mas com a ordem
explicativa e simbólica

Quadro Comparativo III

Narrativa Discurso
História Tudo o que Aristóteles chamava de imitação
indireta3
Emprego exclusivo da terceira pessoa e dos verbos Caracterizado pelo pronome ?eu?, sua referência
em passado simples e no passado mais-que- ao ? tu?, indicadores pronominais, certos
perfeito demonstrativos ou adverbiais, e os tempos de
verbos no presente, passado composto ou futuro
Objetividade - ausência ao narrador Subjetividade - presença ou referência ao eu
É um modo particular, definido por um certo É um modo natural de linguagem, o mais aberto e
número de exclusões e condições restritivas universal.
A narrativa não pode discorrer sobre si mesma O discurso pode narrar sem cessar o discurso
A análise de conteúdo de Agosto de acordo com as categorias de G. Genette
Elegemos algumas categorias extraídas do artigo de Genette, que foram organizadas em forma de
quadros comparativos, a fim de facilitar a análise do objeto em questão.
As categorias elencadas foram:
1- Diegesis e Mimesis;
2- Narração e Descrição;
3- Narrativa e Discurso.
Para estruturarmos a análise foi feita a escolha do terceiro capítulo do romance Agosto4, que
servirá como corpus da pesquisa, para a partir daí, referendarmos com extratos deste capítulo, os
conceitos descritos acima, seguindo os princípios de G. Genette.
1- Diegesis e Mimesis
Exemplos de diegesis:
Depois que desligou o comissário lembrou-se que tinha um encontro com seu Emílio, o maestro,
às cinco e meia. Como tinha tempo, pois era muito cedo, o comissário decidiu homenagear seu Emílio
ouvindo La Traviata. (p.43)
Comentário: Há uma representação verbal do ato de Mattos, um dos protagonistas do romance.
Procurar entender as coisas levava-o sempre a um frustrante círculo vicioso. (p. 48)
Comentário: O autor (narrador) fala por ele mesmo, ele não quer fazer ser acreditado ser o
personagem.
Exemplos de mimesis:
`` Eu também não gosto de fuçar a vida sexual de ninguém. Mas o senador deve ser desse tipo de
michê que gosta de contar vantagens para as garotas na cama, tomando champanhe. Muitas vezes
conseguimos informações úteis.'' (p. 45)
Comentário: percebemos que o discurso de Rubem Fonseca se mistura ao do personagem Rosalvo,
um agente de polícia.
``...Sabe quantos anos tinha Verdi quando compôs esta obra-prima, quando a história da ópera
virou de cabeça para baixo, ou para cima, com o Falstaff? Oitenta anos, a minha idade menino. Mas no
Brasil qualquer coisa de oitenta anos tem que ser destruída, jogada no lixo. É por isso que antigamente
todos os grandes cantores vinham ao Brasil e agora ninguém mais vem aqui, nem um Del Monaco, nem
mesmo um Pinza, que não sabe ler uma nota de música, ninguém!'' (p. 53)
Comentário: Este trecho foi retirado de um diálogo do maestro Emílio com Mattos. O autor fala,
através do personagem.
2- Narração e Descrição
Exemplos de narrações:
Numa pequena oficina de consertos de automóveis, o mecênico Cosme, durante uma briga, dera
um golpe com uma chave de cruz na cabeça de um sujeito que deixara o carro para reparos, matando-o.
(p. 46)
Comentário: Há uma representação de ação e acontecimentos, com partes descritivas.
Entrou na confeitaria e sentou-se, de frente para aporto. Faltavam dez minutos para as cinco. Por
alguns instantes pensou em ir embora. Por que ficar ali para rever a mulher que o havia desprezado? O
que Alice estava querendo dele? Ajuda? Ele não queria desforrar-se dela deixando de ajudá-la, o vingar-
se ajudando-o, o que seria ainda mais mesquinho. Ficou olhando os desenhos art-nouveau na parede. ( p.
49)
Comentário: O tempo aparece como elemento importante dentro desta narração, mas aparece
novamente a descrição.
Exemplos de descrições:
Cosme seria um tipo lombrosiano com estigmas físicos de criminalidade como fonte fugidia, a
proeminência dos zigomas, a agudeza do ângulo facial, o prognatismo, a plagiocefalia. (p. 47)
Comentário: Nesta frase é feito um retrato físico do personagem, causando dramaticidade, no
entanto não há uma referência temporal, e sim uma ordem explicativa e simbólica.
O velho já o esperava ao lado da estátua de Chopin. Usava, como sempre, chapéu panamá e
gravata borboleta, mas o chapéu estava amassado e o terno era de caroá. O colarinho sujo. A bengala de
castão de prata, que segurava na mão, em vez de torná-lo elegante, como antes, dava-lha agora uma
aparência frágil e enferma. (p. 51)
Comentário: A ação não é representada, não há nenhum acontecimento nem uma dimensão
temporal.
3- Narrativa e Discurso
Exemplos de narrativas:
Mattos parou ao lado de um dos leões que flaqueavam a escadaria do Palácio Monroe. Virou-se
para olhar o imponente edifício São Borja, que ficava bem em frente, do outro lado da avenida Rio
Branco. Os senadores haviam escolhido um lugar muito conveniente para as suas folganças. (p. 48)
Comentário: Compreendemos o trecho acima mesmo sem sabermos quem fala, não há presença de
um discurso, é usada a objetividade.
O mecânico, um homem franzino, de vinte e dois anos, ficara com um enorme hematoma sob a
vista esquerda. A oficina dele e do pai, um português que na ocasião da briga estava ausente, no laranjal
que a família tinha em Noiva Iguaçu. (p. 46)
Comentário: a narrativa pode ser sinônimo de contar uma história, com objetividade, utilizando os
verbos no presente, passado simples e no passada mais-que-perfeito.
Exemplos de discursos:
``Não o vejo a muito tempo... Na última vez, matei aula para ir me encontrar com ele em frente à
estátua do Chopin... Era ali que os claqueurs se reuniam... Naquele dia íamos combinar a claque do
Parsifal...'' (p. 50)
Comentário: Alguém fala, sua situação no ato mesmo de falar é foco das significações mais
importantes. O discurso depende de determinações essências para ser compreendido, e isto ocorre quando
sabemos a situação em que a frase foi construída.
``Acho que vou deixar para outro dia...Não estou sabendo como dizer o que quero dizer...Você se
encontra comigo novamente? Amanhã? Amanhã terei mais coragem...'' (p. 51)
Comentário: O discurso foi emprestado a um dos personagens( parte verbal), além de conter
subjetividade, e uso de verbos no presente, passado composto e futuro.
Considerações finais
Esta pesquisa buscou cruzar a definição de narrativa, juntamente com seus elementos
constituintes, com a aplicação dos conceitos, descriminados por G. Genette, no romance Agosto de
Rubem Fonseca. O motivo de escolha desta obra pode tentar ser justificada através das inquietações e
curiosidades a respeito da narrativa deste autor brasileiro, que possui um talento especial para vasculhar e
desenvolver o imaginário dos seus leitores.
Então agregamos os conhecimentos narrativos de Genette ao estilo diferenciado de Rubem
Fonseca, para desenvolvermos a tarefa de desempenhar uma análise da narrativa. Para surpresa, notamos
que a narrativa está longe de ser um gênero puro. Seguidamente são encontrados traços do discurso, da
descrição, nas suas entrelinhas, com o intuito de dar mais dramaticidade, seja para o conto, para a
epopéia, para o romance, etc..
A literatura é um objeto de estudo, dos mais ricos e estimulantes, talvez por tratar com as nossas
operações mentais de compreensão e assimilação, quando lemos uma obra. Cria-se uma nova atmosfera, a
atmosfera da fantasia, da ficção, que nos remete a lugares que nunca havíamos imaginado.
Por isso, não pretendemos ser categóricos e taxativos durante a exposição dos dados, por estarmos
analisando algo muito complexo e discutivo por várias correntes de autores, sejam eles medievais ou
contemporâneos. Pois a preocupação com a narrativa literária é um assunto em pauta desde a sábia época
onde Platão e Aristóteles discutiam o grau de imitação da narrativa.
A partir dos filófosos surgiram inúmeros estudiosos, todos com a mesma finalidade de entender a
narrativa, porém o estudo fica cada vez mais complexo e desgastante, pois a produção literária se expande
e muda de característica, dependendo do autor que a concebe.
Ao final deste estudo que teve como objeto Agosto, percebemos a importância de cada frase, de
cada elemento dentro da narrativa, que colabora para sentirmos este efeito mágico e envolvente no
momento em que lemos um livro. É uma experiência vivenciada, que reconfigura o mundo real a partir da
ficção.
``Contando histórias, os homens articulam sua experiência do tempo, orientam-se no caos das
modalidades de desenvolvimento, demarcando com intrigase desenlaces o curso muito conplicado das
ações reais dos homens. Desse modo, o homem narrador torna inteligível para si mesmo a inconstância
as coisas humanas, que tantos sábios, pertencendo a culturas diversas, opuseram à ordem imultável dos
astros'' (Ricoeur apud in Nunes 1995)

HISTÓRIA DO CINEMA
Um breve olhar
As origens do cinema
Qualquer marco cronológico que se elega como inaugural para o nascimento do cinema será
sempre arbitrário, pois o desejo e a procura do cinema são tão velhos quanto a civilização de que somos
filhos. Segundo Arlindo Machado, as histórias do cinema pecam porque são em geral escritas por grupos
(ou por indivíduos sob sua influência) interessados em promover aspectos sociopolíticos particulares;
tornando-se ou história de sua positividade técnica ou a história das teorias científicas da percepção e dos
aparelhos destinados a operar a análise/síntese do movimento, cegas entretanto a toda uma acumulação
subterrânea, uma vontade milenar de intervir no imaginário.
Assim, o que a sociedade reprimiu na própria história do cinema, ou seja, o mundo dos sonhos, do
fantasmagórico, a emergência do imaginário e o que ele tem de excêntrico e desejante, tudo isso, enfim,
que constitui o motor mesmo do movimento invisível que conduz ao cinema; fica reprimido na grande
maioria dos discursos históricos sobre o cinema.
A história técnica do cinema, ou seja, a história de sua produtividade industrial, pouco tem a
oferecer a uma compreensão ampla do nascimento e do desenvolvimento do cinema. As pessoas que
contribuíram de alguma forma para o sucesso disso que acabou sendo batizado de "cinematógrafo" eram,
em sua maioria, curioso, bricoleurs, ilusionistas profissionais e oportunistas em busca de um bom
negócio. Paradoxalmente, os poucos homens de ciência que por aí se aventuraram caminhavam na
direção oposta de sua materialização. Ao mesmo tempo, esses mesmos homens vão também inspirar
menos o espetáculo cinematográfico do que a arte moderna: os futuristas, como se sabe, utilizaram a
cronofotografia para cantar as belezas do movimento e da velocidade.
Por outro lado, porém, ilusionistas como Reynaud e Méliès e industriais ansiosos por tirar proveito
comercial da "fotografia animada", como Edison e Lumière, estavam mais interessados no estágio da
síntese efeturada pelo projetor, pois era somente aí que se podia criar uma nova modalidade de
espetáculo, capaz de penetrar funda na alma do espectador, mexer com os seus fantasmas e interpretá-lo
como "sujeito". Nem é preciso dizer que foi essa a posição que prevaleceu entre o público, esse público
inicialmente maravilhado com a simples possiblidade de "duplicação" do mundo visível pela máquina ( o
modelo de Lumière) e logo em seguida deslumbrado com o universo que se abria aos seus olhos em
termos de evasão para o onírico e o desconhecido ( o modelo de Méliès) que durante todo o século XIX
fascinaram multidões em estranhas salas escuras conhecidas por nomes exóticos como Phantasmagoria,
Lampascope, Panorama, Betamiorama, Cyclorama, Cosmorama, Giorama, Typorama etc, nas quais se
praticavam projeções de sombras chinesas e até mesmo fotografias, fossem elas animadas ou não. O que
atraía essas massas às salas escuras não era qualquer promessa de conhecimento, mas a possibilidade de
realizar nelas alguma espécie de regressão, de reconciliar-se com os fantasmas interiores e de colocar em
operação a máquina do imaginário.
O que se pode afirmar com certa segurança é que o cinema foi "inventado" na base do método
empírico de tentativa e erro, tendo sido necessários ajustes ao longo de pelo menos duas décadas de
história, seja regulando a velocidade de projeção ou a quantidade de fotogramas por segundo, ou ainda a
quantidade de projeções de cada fotograma na tela, de modo que nem o movimento resultasse "quebrado"
aos olhos do espectador, nem o intervalo vazio, perceptível.
O cinema trabalha com uma ilusão de movimento, pois o que ele faz é congelar instantes, mesmo
que bastante próximos, já que o movimetno é o que se dá entre esses instantes congelados, e é isso
justamente que o cinema não mostra. Assim, a ilusão cinematográfica opera com um movimento abstrato,
uniforme e impessoal. No limite, o cinema sugere que o movimento poda ser constituído de instantes
estáticos. Hoje diríamos que o olho, via de regra, não distingue entre um movimento diretamente
percebido e um movimento aparente, artificial ou mecanicamente produzido, mesmo porque não se pode
pressupor a artificialidade dos resultados com base na artificialidade dos meios, acrescentando ainda que
o cinema nos oferece imediatamente um "imagem-movimento", uma imagem em que os elementos
variáveis interferem uns nos outros e cujo recorte temporal congelado pelo obturador é já um "corte
móvel".
A questão levantada por Arlindo Machado, não é decidir se o movimento que o cinema manipula
é verdadeiro ou falso para sua compreensão como fenômeno cultural , mas avaliar o que ocorre quando
um movimento "natural" é decomposto em instantes sucessivos para ser depois recomposto na sala
escura. Que espécie de metamorfose atravessa o material entre esses dois momentos, convertendo a
realidade estilhaçada em fantasmas que retornam para atormentar os vivos? Se a percepção do movimento
é a síntese que se dá no espírito e não no mecanismo do olho, o cinema deve ser entendido também como
um processo psíquico, um dispositivo projetivo que se completa na máquina interior.
Dess perspectiva, não existe uma história do cinema que começa, por exemplo, em 1895, mas uma
história das imagens em movimento projetadas em sala escura, que remonta a meados do século XVII,
com a generalização dos espetáculos de lanterna mágica. O cinema, tal como o entendemos hoje, não
seria senão uma etapa dessa longa história. Os intelectuais do século XIX supunham que o cinema
seguiria a fotografia na sua função de "registro" documental, mas foi que aconteceu foi o contrário. O
novo sistema de expressão, assim que ganhou forma industrial, impôs-se esmagadoramente como
território das manhas do imaginário, mantendo-se fiel aos seus ancestrais mágicos pré-industriais.
As primeiras projeções e suas leituras
O cinema que se constitui a partir do cinematógrafo de LeRoy, Edison, Paul, Skladanowsky e dos
Lumière, reunia várias modalidades de espetáculos derivadas das formas populares de cultura, como o
circo, o carnaval, a magia e a prestidigitação, a pantomima, a feira de atrações e aberrações etc, formando
um mundo paralelo ao da cultura oficial, que se baseia no princípio do riso e do prazer corporal; é um
mundo "invertido", que possibilita permutações constantes entre o elevado e o baixo, o sagrado e o
profano, o nobre e o plebeu, o masculino e o feminino. A essas formas de expressão típicas das camadas
mais desfavorecidas da população Bakhtin dá o nome de realismo grotesco: elas compreendem um
sistema de imagens em que o princípio material e corporal (comer, beber, defecar, fornicar) comanda o
espetáculo e em que abundam os gestos e as expressões grosseiras.
No início, os filmes foram exibidos como curiosidades ou peças de entreato nos intervalos de
apresentações ao vivo em circos, feiras ou carroças. Essa forma de difusão permaneceria viva em zonas
suburbanas ou rurais, em pequenas cidades do interior e em países economicamente atrasados até os anos
60. Nos grandes centros urbanos dos países industrializados, porém, a exibição de filmes muito cedo se
concentrou em casas de espetáculos de variedades, nas quais de podia também comer, beber e dançar,
conhecidas como music-halls na Inglaterra, café-concerts na França e vaudevilles ou smoking concerts
nos Estados Unidos.
O cinema era então uma das atrações entre as outras tantas oferecidas pelos vaudevilles, mas
nunca uma atração exclusiva, nem mesmo a principal. A própria duração dos filmes (de alguns segundos
e não mais do que cinco minutos) impedia que se pensasse em sessões exclusivas de cinema nos
primeiros anos de cinematógrafo. O preço cobrado pelo ingresso não podia funcionar como mecanismo
de seleção do público, pois era ainda muito baixo e coincida de ser o mesmo dos vaudevilles. Nos
primeiros dez anos de comércio do cinema não se havia ainda desenvolvido um conjunto de técnicas e
procedimentos de linguagem apropriados para a elaboração de uma narrativa visual que fosse
suficientemente autônoma a ponto de se poder dispensar a "explicação" de um apresentador.
O público dessas casas era constituído principalmente pelas camadas proletárias dos cinturões
industriais, os imigrantes constituíam o público principal das salas de exibição, pois o desconhecimento
da língua inglesa interditava o teatro e outras formas de espetáculos baseadas predominantemente na
palavra a essas multidões originárias a maior parte delas da Europa Central. Malgrado constituir um
sistema predominantemente proletário, que se distinguia nitidamente das formas "elevadas" de cultura da
burguesia e da classe média, esse primeiro cinema não refletia necessariamente as aspirações da camada
mais politizada da classe operária do século XIX, a camada organizada em partidos e sindicatos.
No período que vai de 1895 (data das primeiras exibições públicas do cinematógrafo dos Lumière)
até meados da primeira década do século seguinte, os filmes que se faziam compreendiam registros dos
próprios números de vaudeville, ou então gags de comicidade popular, contos de fadas, pornografia e
prestidigitação. Os catálogos dos produtores da época classificavam os filmes produzidos como
"paisagens", "notícias", "tomadas de vaudeville", "incidentes", "quadros mágicos", "teasers"(eufemismo
para designar a pornografia) etc.
Assim , o cinema dos primórdios ia buscar nos espetáculos populares não apenas inspiração e os
modelos de representação, mas até mesmo os seus figurantes: basta lembrar que a equipe que trabalhou
no célebre Voyage dans la lune (1902), de Méliès, era constiutída por acróbatas do Folies Bergère,
cantoras de vaudeville e dançarinas do Théâtre du Châtelet. E no que diz respeito mais propriamente ao
conteúdo, os primeiros filmes não só davam exemplos abundantes de cinismo e perversão, como ainda
ridicularizavam a autoridade, invertendo os valores morais. O grande herói do período, reverenciado por
um número incontável de pequenos filmes, é o tramp (vagabundo, andarilho), de que Chaplin seria uma
espécie de reencarnação, quase 20 anos depois, com seu personagem Carlitos.
Nos music-halls e café-concerts, era bastante comum um gênero de filmes conhecido como
tableaux vivants(ou poses plastiques, dependendo do local), que mostrava basicamente mulheres em
maiôs colantes ou em trajes sumários, congeladas em gestos provocantes. A reação, entretanto, contra-
atacava com todo furor. Uma onda de moralidade levou o governo americano, na virada do século, a
proibir a maior parte das películas destinadas aos quinetoscópios.
Nos Estados Unidos, particularmente, onde a guerra ao cinematógrafo chegou a um nível
insuportável, os industriais que investiam no setor e a pequena burguesia, que realizava os filmes na
condição de fotógrafos, cenógrafos, roteiristas e diretores, sentiram que o cinema precisava mudar. Esses
homens todos perceberam rapidamente que a condição necessária para o pleno desenvolvimento
comercial do cinema estava na criação de um novo público, um público que incorporasse também a classe
média e os segmentos da burguesia. Essa nova platéia não apenas era mais sólida em termos econômicos,
podendo portanto suportar um crescimento industrial, como também estava agraciada com um tempo de
lazer infinitamente maior do que o dos trabalhadores imigrantes.
A busca de um novo público leva ao desenvolvimento de uma nova linguagem e os realizadores
vão buscar no romance e no teatro o modelo capaz de conferir legitimidade ao cinema. Com tal modelo,
impõe-se a narrativa e a linearidade no cinema praticado a partir de então. Prova disso é que o diretor
David W.Griffith levou à tela nada menos do que um pelotão de escritores como Shakespeare, Dickens,
Eliot, Cooper, Henry et, pois era preciso dar legitimidade ao cinema, superar a reação e os preconceitos
das classes mais ilustradas, aplacar a ira dos conservadores e moralistas e sobretudo inscrever o cinema
no universo das belas-artes.
O primeiro gênero "elevado" a ser tentado pelo cinema foi o chamado film d’art, cujo modelo e
rubrica foram dados pela França.. O gênero nasceu em 1908, com a estréia em Paris do primeiro filme da
companhia Films d’Art - L’assassinat du duc de Guise. Esse gênero de filme deixava claro que o cinema
não tinha ainda conseguido se impor como forma dramática autônoma no sentido erudito do termo, e da
eloqüência de outras formas expressivas(sobretudo o teatro), as quais eram apenas transplantadas na sala
escura. David W.Griffth, com seus dramas psicológicos de fundo moral, realizados no período em que
esteve a serviço da Biograph, apontaria para a direção de maior sucesso.
Conforma avançava a primeira década do século, as fantasias, os delírios, as extravagâncias dos
primeiros filmes entram em declínio e são aos poucos substituídos por um outro tipo de espetáculo, mais
doméstico, preocupado com a verossimilhança dos eventos, seriamente empenhado em se converter no
espelho do mundo para refletir a vida num nível superior de contemplação. O naturalismo começa a se
impor então como uma espécie de ideologia da representação, a fábula legitimada pela mimese.
Não se trata de dizer que os vícios e os delírios do cinema do cinema anterior desaparecem para
dar lugar à fábula transparente de fundo moral. Eles continuam a freqüentar a tela, porém, agora
enquadrados numa perspectiva salvacionista: é preciso representar o mal, já que a mimese implica um
compromisso com as aparências, ou como disse o próprio Griffth "é preciso mostrar a face escura do
pecado para fazer brilhar a face iluminada da virtude". O cinema trabalha com um componente erótico e
perverso em relação ao qual mesmo o sermão protestante acaba funcionando como um estímulo, embora
pelo avesso. Há um pecado original que atrela o cinema ao prazer do olhar, ao voyerismo sádico; para
redimir-se desse pecado, a geração de Griffth opera a ascese, transforma a encenação do mal em escola da
temperança.

1.1. Como o cinema aprendeu a contar uma história através de imagens (ou
Seqüencialidade e linearização do significante icônico)
O desafio que se apresentou ao cinema, quando ele passou a contar histórias, estava
em fazer com que a leitura da tela se concentrasse no fundamental para o entendimento
da trama, ou seja, como dirigir a atenção para os pontos de interesse na narrativa, em meio à
profusão de elementos nos quadros. A dificuldade dessa percepção pelo espectador típico da
época, o burguês das metrópoles do nascente século XX, remonta ao predomínio da
tradição oral, o modelo linearizado da escrita, uma coisa de cada vez, numa sucessão e
encadeamento cronológico. Mais do que a seqüência diegética 4 presente na literatura, os
planos cinematográficos deveriam demonstrar pelo suporte predominantemente imagético as
causas e efeitos das ações, de maneira lógica e o mais naturalmente possível. Esses fatores
levaram à descoberta da linearização narrativa pelos cineastas. Foram vários as retomadas
e avanços no processo de construção da linguagem cinematográfica, linguagem essa
definida por Martin5 como .um meio de conduzir um relato e de veicular idéias. ou .sistema de
signos destinados à comunicação.. Martin aponta Griffith e Eisenstein como os principais
realizadores dessa evolução, notadamente pelo aperfeiçoamento da montagem, o mais
específico dos procedimentos expressivos do cinema. O autor faz também uma clara e
preciosa exposição sobre a questão do cinema como arte:
... a curta vida do cinema produziu suficientes obras primas para que se possa afirmar que o cinema é uma arte, uma
arte que conquistou seus meios de expressão específicos e libertou-se plenamente da influência de outras artes (em
particular do teatro) para fazer desabrochar suas possibilidades próprias com toda a autonomia. A bem dizer, o cinema
foi uma arte desde suas origens. Isso é evidente na obra de Méliès, para quem o cinema foi o meio, com recursos
prodigiosamente ilimitados, de prosseguir suas experiências de ilusionismo e prestidigitação do Teatro Robert-Houdin:
existe arte desde que haja criação original (mesmo instintiva) a partir de elementos primários não específicos, e Méliès,
enquanto inventor do espetáculo cinematográfico, tem direito ao título de criador da sétima arte. 6

A respeito da questão da linearização da história, Machado aponta como


fundamental o entendimento de plano como um fragmento de uma ação que contém
unicamente um dado essencial, de maneira que o espectador tenha seu olhar direcionado para o
que interessa e não disperso em uma profusão de elementos e personagens em ações
simultâneas no mesmo quadro. Os planos, como unidades de sentido, passam a ser relacionados
hierárquica e estrategicamente ao longo da frase fílmica (a cena), da série sintagmática, de
acordo com a intenção enunciadora de privilegiar um ou outro detalhe.7
Ainda segundo Machado, ao plano geral hegemônico foram inseridos planos
próximos para mostrar detalhes significativos da ação, cortes e movimentos de
aproximação ou afastamento da câmera e a sucessão temporal para tornar inteligíveis as relações
de causa e efeito, ação e reação. Dá-se aí, conclui Machado 8, o afastamento do plano teatral, de
enquadramento único, para planos com diferentes graus de aproximação e pontos-de-vista, como
em algumas cenas do filme Mary Jane.s mishap (1903), do pioneiro George A. Smith, em
que planos bastante aproximados permitiam ver o .bigode. que a mão suja de graxa imprimia
no rosto do personagem ao tentar limpá-lo e suas piscadelas em direção à câmera para
interpelar o espectador. Machado prossegue nos mostrando que como nas obras posteriores de
Griffith, mestre da montagem paralela, também o clássico Life of an american fireman (1903),
de Porter, apresenta seqüências em que cenas são tomadas em diferentes pontos de vista, interna e
externamente, porém com vários erros de continuidade que tornam a história inverossímil.
Porter, um .adepto das convenções da cena teatral . frontalidade, unicidade e constância do
ponto-de-vista . não poderia imaginar que uma mesma cena pudesse se desenrolar
alternativamente sob duas perspectivas diferentes., ou como diz Burch, citado por
Machado, .introduzir na continuidade da ação a descontinuidade do ponto de vista .9, mesmo
porque tecnicamente seria impossível, visto que .as regras do raccord10, da orientação dos planos
sucessivos e do campo/contracampo ainda não haviam sido produzidas.11.
O autor afirma12 que nos filmes de Porter a ação retrocede e avança numa
simultaneidade sem continuidade. A busca de soluções para essas relações de
contigüidade espacial e temporal demandou experimentos que atravessaram a década, tanto
que o período biograph de Griffith, compreendido entre os anos 1908 e 1913, apresenta
ainda produções sintetizadas em três cenas, tal como os atos teatrais. O cineasta, já
nesse período, introduziu inovações como o .plano americano. e tomadas em planos muito
mais próximos. Com tais recursos, Griffith leva a profundidade da narrativa literária às
telas, como observa Machado:
Ele trouxe para o cinema a solução do plano americano, que permitia focalizar o conjunto da cena, mas já

tomando o ator com maior intimidade, de modo a destacar a sua face, as expressões mais íntimas e os gestos menores. (...)
É instrutivo observar que o plano aproximado aparece com maior ênfase na obra de Griffith justamente nos filmes
dramáticos e .intimistas., pois a caracterização de estados psicológicos semelhantes àqueles que se podia ler nos
romances exigia que se pudesse observar os protagonistas de perto, isolar uma face transtornada de dor, tornar visível
uma mão que se contorce num gesto nervoso. 13

Segundo Machado, numa fase posterior, com Intolerance e The birth of a nation (1911), a
montagem em paralelo, no padrão a-b-a-b de edição, se tornaria clássica. As tomadas e os
deslocamentos de câmera em pontos-de-vista diferenciados dentro de uma mesma cena, o uso de
close-ups14 e planos contrapostos em campo e contracampo dão acabamento à linearização
narrativa empreendida por Griffith. Temos então a evolução do filme fundado no quadro fixo e
teatral para o filme linearizado e dramatizado, com uma capacidade de controle do fluxo
narrativo tão rico quanto a literária, mas com peculiaridades que configuram uma
linguagem própria nascente. Com a montagem alternada, através da multiplicação da matriz
a-b-a-b, Griffith introduz no cinema .uma instância narradora que manipula o tempo e o
espaço por uma implicação dentro da trama., bastante próxima da narrativa literária que
caminhará, afinal, para o desenvolvimento de um modelo narrativo próprio do cinema,
sobretudo no que se refere a introdução da técnica do suspense emotivo, apoiada pela
introdução de cortes estratégicos e domínio do campo/contracampo. 15 Essas evoluções são
tratadas com bastante clareza por Machado:
O cinema já havia então aprendido com a literatura e com o teatro a alinhavar duas ações simultâneas, mas
permanecia ainda o desafio de associar com continuidade dois fragmentos sucessivos de uma mesma ação, ou seja, de
produzir isso que nós chamamos hoje de continuidade trajetorial, exatamente o contrário do artifício da montagem
paralela. De fato, enquanto a alternação de duas ou mais ações já era conhecida e praticada tanto no teatro como na literatura
(Eisenstein afirma que Griffith aprendeu com Charles Dickens a editar em paralelo), a construção de uma série
sintagmática com base em fragmentos de uma mesma ação em um mesmo espaço não encontra antecedentes na história
dos meios narrativos, nem mesmo na tradição da lanterna mágica.
(...)
Os filmes de Griffith vão mesmo beneficiar-se do acréscimo de dinamismo resultante dos cortes praticados em plena
duração da ação. Mais do que isso: Griffith vai aprender a dar ritmo à ação, abreviando a duração dos planos

progressivamente, à medida que se aproxima o fim. Enfim, as ações paralelas ainda vão permitir ao cinema descobrir o
papel fundante da montagem como articuladora de sentidos.16
O autor defende que a montagem alternada se transformará num .poderoso modelo
conceitual, que permitia engendrar comparações e construir idéias visuais., em filmes .em que o
cineasta coloca em alternância riqueza e pobreza, privação e desperdício, antecipando em
mais de cinco anos a revolução de Intolerance e abrindo caminho para a proposta do cinema
conceitual de Eisenstein, nos anos 20..17
Com a montagem alternada de ações paralelas se transformando gradativamente em
campo/contracampo, as cenas podem se apresentar mais interiorizadas e o ponto de vista do
personagem, segundo Machado18, passa a ser o elemento básico da decupagem 19 da ação, da
amarração dos planos entre si, da coerência espaço-temporal e dos esquemas de identificação do
espectador. Numa fase mais madura, Griffith vai se preocupar em dissimular a fragmentação
resultante do processo de montagem em paralelo em busca de maior verossimilhança, questão
essa ampliada e estudada por cineastas da Hollywood dos anos 20 e traduzidas em
preocupações como .a quebra do eixo da câmera, a inversão dos movimentos, o corte com quebra
da continuidade da ação ou da direção dos olhares etc.. Os experimentos de Griffith resultaram
num dialogismo com o espectador, como expõe Machado:
Na verdade, foi a partir de The drunkard.s reformation20 que Griffith começou a tomar consciência da ligação
lógica que existe entre os pontos de vista específicos de cada uma dessas três entidades: a câmera, o personagem e o
espectador. Logo em seguida, ele se dá conta também do poder autônomo que tem a câmera de fixar livremente o
ângulo de tomada, a distância, a duração e a escala de planos mais conveniente para implicar o espectador na trama que se
desenrola na tela. Assim, os afetos, os processos de identificação, os saberes e as ignorâncias do espectador em relação à
história e aos personagens passam a ser trabalhados pelo narrador com vistas em resultados mais ou menos
calculados, de modo a produzir uma presença dinâmica do espectador na cena. Jogando com o que o espectador

sabe ou não sabe sobre o que se passa na história e também com o que o personagem sabe ou não sabe, pode-se
controlar os afetos dos espectadores e o modo como reagirão aos fatos encenados. 21
(...)
O narrador seria, portanto, aquela entidade invisível . embora em Griffith ela possa até ser visível, por excesso

de ênfase . que organiza a matéria fílmica e lhe dá uma forma de apresentação ao espectador. Por meio da hábil seleção das
durações, dos campos e dos ângulos de visão, o narrador torna possível ao espectador, num certo sentido, .entrar. no
universo diegético e circular dentro dele como um observador privilegiado, que vê sem ser visto. O narrador perfura as
paredes para mostrar ao espectador o que acontece lá dentro... Essa sensação de onividência produzida por essa espécie
de .deus. interno à narrativa constitui a célebre ubiqüidade que marca a experiência do espectador no cinema clássico. 22

Chegamos aqui a um importante instrumento de análise neste nosso trabalho . a teoria do


foco narrativo, do ponto-de-vista, do processo de enunciação, da tipologia do narrador, do quem
e como conta a história. Como estaremos nos servindo dele para analisar as
especificidades no discurso televisivo, nos aproximaremos a seguir dos aspectos da teoria da
narrativa literária . a estrutura fornecida pelos estudos da diegese, da enunciação e do enunciado.
Esse mergulho no modo do cinema contar uma história privilegia e enfatiza o plano de
enunciação, o foco narrativo, ficando a diegese e o plano do enunciado para uma abordagem
incidental, uma visão panorâmica e de conjunto necessária à contextualização das teorias.
1.2 Elementos da narrativa no cinema
Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos
entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a
narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela
mistura ordenada de todas essas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na
história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomina, na pintura, no vitral, no cinema, nas histórias em
quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disso, sob essas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os
tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades... internacional, trans-histórica, transcultural, a narrativa está aí, como
a vida.23

A imagem figurativa em movimento é a expressão cinematográfica por excelência; é


essa imagem altamente analógica que permite o reconhecimento do que nos é apresentado
na tela. Ao nos mostrar algo de maneira que o reconheçamos, essa representação traz
elementos pára-visuais . o mostrar já desenvolve um discurso, uma descrição desse objeto e,
dependendo da maneira que for mostrado, desencadeia um conceito, um posicionamento a
respeito desse objeto. Como resume Aumont 24, .qualquer objeto já é um discurso em si. e .chama
a narração, mesmo embrionária..
Podemos perceber o quanto indissociáveis se apresentam os elementos imagético e verbal
em um discurso. Isso nos parece mesmo natural e tão primordial quanto a produção de
imagens mentais pelo ouvinte ou leitor de qualquer narrativa, que ilustra a matéria narrada
colocando para funcionar sua fábrica de imagens incorpóreas, oníricas, seu .cineminha. interno.
No cinema, nossa .fábrica de sonhos. artificial, a palavra e a imagem figurativa em movimento
são amalgamadas de tal maneira que o resultado parece-nos bastante natural, muito
próximo daquele do nosso processo interno de complementar visualmente uma história que
nos é contada. Vemos projetados na tela sonhos já sonhados ou em devir, mas que, de
qualquer maneira, poderiam ser nossos.
Aumont25 observa que para o cinema alcançar o mesmo estatuto de nobreza
reservados, no final do século XIX e início do século XX, ao teatro e ao romance, teve que se
servir da análise estrutural literária. A literatura ofereceu ao cinema a estrutura da narrativa
ficcional, em que qualquer história ....pode reduzir ao encaminhamento de um estado inicial a
um estado terminal e pode ser esquematizada por uma série de transformações que se
encadeiam, através de sucessões do tipo: erro a cometer . erro cometido . fato a punir .
processo punitivo . fato punido . benefício realizado..... É esse encontro entre o contar a narrativa
e a imagem em movimento que dá ao cinema o status de arte; a .invenção sem futuro. . como,
segundo Aumont26, Lumière se referia ao cinema ., ao se habilitar para contar histórias, dá
um salto qualitativo e é inserido no mundo das artes nobres, sob o domínio, então, da tríade
literatura, teatro e pintura. É assim, narrativo e representativo, que o cinema se desenvolve
e se impõe como a 7ª arte e são essas as características que atualmente predominam.
Entendida a representatividade no filme cinematográfico como a possibilidade de o
espectador reconhecer na imagem o objeto e as relações espaciais e temporais, vemos, mesmo
no cinema narrativo, representativo e industrial, que a linguagem cinematográfica utiliza
recursos não-representativos para significar, como .os escurecimentos e aberturas, a
panorâmica corrida, os .jogos estéticos. de cor e de composição. 27. O cinema experimental,
não-narrativo, recorre, eventualmente, a traços do filme narrativo. Aumont aponta algumas
análises fílmicas que exemplificam esse diálogo entre o narrativo e o experimental:
Muitas análises fílmicas recentes ressaltaram em Lang, Hitchcock e Eisenstein momentos que escapam
esporadicamente à narração e à representação. É desse modo que é possível encontrar .filmes de cintilação. (ou .flicker
film., que jogam com a extrema brevidade de aparecimento das imagens fora do preto e com a oposição .imagem muito
branca . imagem muito escura.) em Fritz Lang (os finais de Quando desceram as trevas, 1943, e de Almas
perversas, 1945), nos filmes policiais noirs em pleno período clássico. 28

Aumont considera que .cinema e narrativa não caminham sem interações. 29, apesar
do narrativo cinematográfico apresentar alguns aspectos próprios e pertinentes, distintos
daqueles utilizados pelo teatro e pelo romance, ou seja, que apresenta aspectos que configuram o
cinema como o ambiente lingüístico ideal para contar a história de maneira plena. O campo
da narratologia, afirma Aumont, é bem mais amplo, abrangente e completo do que a narrativa
cinematográfica em si, assim como em relação a quaisquer outras formas narrativas derivadas
dessa matriz narrativa maior.
1.2.1 . Diegese, enunciado
O cinema utiliza a estrutura narrativa desenvolvida dentro do campo literário, que
apresenta o universo diegético subdividido em plano da enunciação . que trata da narração
da história ., e plano do enunciado . que abarca o conteúdo, a fábula, a história.
Encontramos em Aumont uma definição abrangente de diegese, que bem situa sua posição
nuclear, e sua distinção de história:
A diegese é, portanto, em primeiro lugar, a história compreendida como pseudomundo, como universo
fictício, cujos elementos se combinam para formar uma globalidade. A partir de então, é preciso compreendê-la como o
significado último da narrativa: é a ficção no momento em que não apenas ela se concretiza, mas também se torna una. Sua
acepção é, portanto, mais ampla do que a de história, que ela acaba englobando: é também tudo o que a história evoca
ou provoca para o espectador. Por isso, é possível falar de universo diegético, que compreende tanto a série das
ações, seu suposto contexto (seja ele geográfico, histórico ou social), quanto o ambiente de sentimentos e de motivações nos
quais elas surgem. (...) Esse universo diegético tem um estatuto ambíguo: é, ao mesmo tempo, o que gera a história e aquilo
sobre o que ela se apóia, aquilo ao que ela remete (é por isso que dizemos que a diegese é "mais ampla" do que a
história). Qualquer história particular cria seu próprio universo diegético, mas, ao contrário, o universo diegético
(delimitado e criado pelas histórias anteriores - como é o caso em um gênero) ajuda a constituição e a compreensão da
história.30

Do universo diegético participam três elementos principais e constitutivos do


processo da comunicação humana . emissor, mensagem e receptor. Essas partes
pertencem, num texto artístico, ao todo da enunciação, isto é, o plano ficcional é
composto pela tríade enunciador (personagem narrador), mensagem (o enunciado, a
história) e enunciatário (o narratário, personagem receptor do enunciado). Externamente à
diegese está o plano físico, real, onde ocorre a produção do texto ficcional. Enquanto no .mundo
da fantasia. a mensagem é composta pelo narrador, enunciado e narratário, no .mundo real. a
tríade é formada pelos elementos emissor (o autor), a mensagem (a enunciação, a diegese,
constituída por narrador, enunciado e narratário) e receptor (o leitor). 31 Esquematicamente,
pode-se assim representar: Emissor (autor) . Mensagem (emissor, mensagem e receptor) .
Receptor (leitor)
O plano do enunciado engloba os níveis fabular, atorial e descritivo, ou seja, a
história, os personagens e as relações temporais e espaciais. Essa abordagem interna do texto
literário se deve ao trabalho pioneiro do formalista russo Vladimir Propp, que equipara a
narrativa a um organismo vivo e dela estuda, individualiza e classifica as partes
constituintes. As funções das personagens podem, segundo Aumont, ser analisadas seguindo
os modelos estruturais de Vladimir Propp ou Algirdas Greimas, que, segundo D´Onofrio,
reelabora o revolucionário trabalho de Propp, em Morfolofia do Conto, publicado em
1928, que .preocupado em descobrir a estrutura elementar da significação e as categorias
sêmicas subjacentes ao entrecho da narrativa, interpreta as funções de Propp do ponto de
vista do eixo paradigmático e acrônico ou campo de seleção.32.

(…)

4 Refere-se a diegese . a história, a fábula, o conjunto dos acontecimentos presentes num texto ficcional ., palavra grega que
tem sido utilizada com a grafia original em livros didáticos e artigos acadêmicos em língua portuguesa. Como diegese consta
inclusive do Dicionário Universal da Língua Portuguesa, versão on line (vide bibliografia), a palavra e suas derivações são
utilizadas neste trabalho sem grifo.
5 MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica, pp. 16-17.
6 Ibid., p.15.
7 MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas, 2002, p.105.
8 MACHADO, 2002, p. 103.
9 BURCH, Nöel apud MACHADO, 2002, p. 106.
10 Trata-se das técnicas da continuidade entre cenas, de maneira a tornar a representação verossímil.
11 MACHADO, 2002, p. 106.
12 Ibid., p. 110.
13 MACHADO, 2002, p. 110.
14 Close-up, ou apenas close, é o termo em inglês para primeiro plano, enquadramento cinematográfico que enfatiza um
detalhe, como o rosto de uma pessoa. A forma reduzida close é mais utilizada no campo da comunicação.
15 MACHADO, 2002, p. 140.
16 MACHADO, 2002, p. 142.
17 Ibid., pp. 142-143.
18 Ibid., p. 146.
19 Decupagem é o conjunto de determinações que o diretor faz para a gravação das cenas, como os planos, os
ângulos, posições e lentes de câmera, movimentação de atores, número de tomadas, duração da cena, luzes, sons e
tantos outros recursos cinematográficos; enfim, é a planificação da filmagem.
20 Um dos filmes com maior função moralizante de Griffith, produzido em 1909.
21 MACHADO, 2002, p. 147.
22 MACHADO, 2002, p. 146.
23 BARTHES, Roland apud D.ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto: prolegômenos e teoria da narrativa, p. 53.

24AUMONT, Jacques...et al. A estética do filme, 1995, p. 90.


25 Ibid., pp. 90-91.
26 Ibid., p. 91.
27 AUMONT, 1995, p. 92.
28 Ibid., p. 92-93.
29 Ibid., p. 96.
30 AUMONT, 1995, pp. 114-115.
31 D.ONOFRIO, op. cit., pp. 55-56.

Sorvete de banana
Ingredientes:
 2 bananas maduras
 1 colher de cacau em pó sem açúcar

Modo de Fazer:
Congelar bananas maduras com casca lavada embrulhadas em papel manteiga, deixando 1 noite ou
4h, congelar bem. Retirar a casca e picar a banana congelada. Bater no liquidificador no pulsar,
com o cacau. Consumir imediatamente. Não dá para utilizar muitas bananas ponha até 4 por vez e
se sobrar jogue fora porque oxida se guardar. Fica muito bom com manga, mamão e goiaba.

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