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Título original: " Classical Holl ywoo d Cinema: Narra ti onal P rincipi es and Procedures", em Philip
Rosen, A Film Theory Reader: Na rrative, A pparatus, Ideology (Nova York: Columbia Uni versity Press,
1986), pp. 17-32. Tradução de Fernand o Mascarello.
1
Vladimir Propp, Mo rphology of lhe Folktale (Au stin: Uni versit y of Texas Press, 1968) .
ú Narratividade e estilística cinematográfica
A passagem direta
Es te en sa io reporta·se a material disc utido extensa men te nos ca pítulos 1 a 7 de David Bordwell et ai.,
The C/assical Hollywood Cinema: Film Style and Mode of Production to 1960 (Nova York: Columbia
University Press, 1985). Um pano de fundo mais geral para a di scussão é David Bordwell & Kristin
Thompson, Film Art: an Introduction (Readirtg: Addison-Wesley, 1979).
278
VJeJ be? 4;J..VVcJ
~ ~--e(\1
O cinema clássico lwllywoodiano: normas e princípios n
.
Nessa sua busca, os personagens entram em conflito com1õouulfrflo5-s-pe~:n-,"'õ__:__ __J
ou com circunstâncias externas. A história finaliza com uma vitória ou derrota I
decisivas', a resolução do problema e a clara consecução ou não-consecução ~ .3
dos objetivos. O principal agente causal é, portanto, o personagem, um indi-
víduo distinto dotado de um conjunto evidente e consistente de traços, quali-
dades e comportamentos. Embora o cinema tenha herdado muitas das con-
venções de caracterização do teatro e da literatura, os tipos de personagens do
melodrama e da ficção popular são compostos por motivos, traços e
maneirismos únicos. Paralelamente, o star system tem como uma de suas fun-
ções a criação de um protótipo de personagem básico que é então ajustado às
necessidades particulares de cada papel. O personagem mais" especificado"
é, em geral, o do protagonista, que se toma o principal agente causal, alvo de
qualquer restrição narrativa e principal objeto de identificação do público.
Esses aspectos do syuzhet não surpreendem, embora já exibam importantes
diferenças com relação a outros modos narrativos (por exemplo, a relativa1 P~
ausência de personagens consistentes e orientados para um objetivo preciso ~· ~ J
na narrativa do cinema de arte). '~x,~.j
Entre todos esses modos narrativos, o clássico conforma-se mais clara-
mente à "história canônica", postulada como normal, em nossa cultura, pelos
estudiosos da compreensão da história. Em termos da fábula, a aposta no
personagem como agente de causa e efeito e a definição da ação como a perse-
guição de um objetivo são aspectos salientes do formato canônico. 3 No plano
do syuzhet, o filme clássico respeita o padrão canônico de estabe~ ct()wU}.-
um estado inicial de coisas que é violado e deve ser restabelecido. Na verdade, J.v tv\o..-
os manuais de roteiro hollywoodianos há muito insistem em uma fórmula '\I>Jv ·. . ~
que é resgatada pela análise estrutural mais recente: a trama é composta por ~ ~
um estágio de equilíbrio, sua perturbação, a luta e a eliminação do elemento ~ ~
erturbador. 4 Esse padrão de syuzhet é herança não de algum constructo apon- ~·
do como "romanesco", mas de formas históricas específicas: a peça bem- ~
~
_
i ta, a história de amor popular e, especialmente, o conto do final do século
l~"YVvG-
3
Perry W. Thorndyke, "Cognitive Structures in Comprehension and Mem ory o f Narra tive Discourse",
em Cogn itive Psychologtj, n" 9, 1977, pp. 84-96. Pa ra um exemplo d e aborda gem a um modo na rra tivo
cinematográfi co di stinto, ver m eu a rtigo "Th e Art Cine m a as a Mode of Film Practice", em Film
Criticism, 4 (1), outono de 1979, pp. 56-64.
' Euge ne Val e, Th e Technique of Screenplay Wriling (Nova York: Grosse t & Dunlap, 1972), pp. 135-160;
Stephen H ea th, "Film and Sys tem: Terms of Analysis", em Screen, 16 (1), primavera de 1975, pp. 48-50.
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XIX.5 As interações causais entre os personagens são assim, em grande medi-
da, funções desses padrões mais amplos do syuzhet e da fábula.
Na construção clássica da fábula, a causalidade é o princípio unificador
primário. As analogias entre personagens, cenários e situações fazem-se certa-
mente presentes, mas no plano denotativo qualquer paralelismo é subordina-
' do ao movimento de causa e efeito.6 As configurações espaciais são motivadas
li realisticamente (a redação de um jornal deve conter m esas, máquinas de es-
~ crever, telefones) e, principalmente, por necessidade com posicional (a mesa e ~
1) a máquina de escrever s~rão utilizadas para redigir matérias jornalísticas rele- i re"
p vantes, o.s telefones :onstro~rn li~aç~e~ fundarnen.tais entre o.s pe~sonagens). ~
~ A causalidade tarnbern motiva pnne1p1os temporais de organ1zaçao: o syuzhet
~· representa a ordem, freqüência e duração dos eventos da fábula de urna for-
ma que revela as relações causais mais salientes. Esse processo é particular-
mente evidente em um procedimento bem característico da narração clássica
-o prazo final ou "últirrw momento" (deadline). O prazo final/último mo-
~ rnento pode ser medido por calendários (A volta ao mundo em 80 dias- Around
g the World in 80 Days, Michael Anderson e Kevin McClory, 1956), relógios
~ (Matar ou morrer - High Noon, Fred Zinnernan, 1952), estipulação ("Você /
J tem uma semana e nem um minuto a mais"), ou simplesmente por indica- ~
ções de que o tempo está passando (o resgate no último minuto). Que o clí- \V
rnax de um filme clássico seja freqüentemente um prazo final demonstra a ;?!\:
força da estrutura em definir a duração dramática corno o tempo que se gasta
para alcançar ou deixar de alcançar um objetivo.
Geralmente o syuzhet clássico apresenta urna estrutura causal dupla, duas
linhas de enredo: urna que envolve o romance heterossexual (rapaz/moça,
marido/mulher), e outra que envolve urna outra esfera - trabalho, guerra, ~
missão ou busca, relações pessoais. Cada linha possui um objetivo, obstáculos%
e um clímax. Em Wild and Woolly [John Emerson, 1917], o herói Jeff tem dois
objetivos- viver no Oeste selvagem e conquistar Neli, a mulher de seus so-
nhos. A trama pode ser complicada por diversas linhas, tais corno objetivos
5 Ver David Éord well et a/., The Classical Hollywood Cinema: Film Style and Mode of Production to 1960,
cit., ca pítulos 14 e 18.
6 Rick Al tm an sublinha a necessidade d e co nsiderar as co mp araçõ es entre p erson age ns corno o
campo das relações "parad igm ática s" no tex to clássico. É verdade que as ana logias e contras tes de
situação ou de personagem ocorrem em filmes clássicos, mas essas relações são tipicam ente depen-
dentes de relações ca usai s anteriores do ponto de vis ta lógico. Ver Rick Altman, "The Arneri can
Film Musical: Pa radi gmatic Structure and Mediatory Function", em Rick Altrnan (org.), Genre: lhe
Musical (Londres: Rou tl edge & Kegan Paul, 1981), pp. 197-207.
280
O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narratiuos
intervenienÚs (o povo de Bitter Creek quer que Jeff consiga um ramal ferro-
viário para a cidade, e um agente indígena desonesto quer planejar um assalto)
ou múltiplos romances (como em Belezas em revista - Footligh Parade, Lloyd
Bacon, 1933) e Agora seremos fe4izes [Meet Me in St. Louis, Vincente Minnelli,
1944]. Na maioria dos casos, a esfera do romance e a outra esfera de ação são
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distintas, porém interdependentes. A trama pode finalizar uma das linhas antes
da outra, mas é comum as duas coincidirem no clímax: a resolução de uma
deflagra a resolução da outra. Em Jejum de amor [His Girl Friday, Howard Hawks,
1940], a suspensão da pena de Earl Williams precede a,reconciliação de Walter
e Hildy, mas é também a condição para o reacerto do casal.
O syuzhet é sempre dividido em segmentos. Na época do cinema mudo,
o filme hollywoodiano típico continha entre 9 e 18 seqüências; na do cinema
sonoro, entre 14 e 35 (os filmes do pós-guerra geralmente apresentavam um
número maior de seqüências). Grosso modo, existem apenas dois tipos de seg-
mentos nos filmes hollywoodianos: "resumos" (compreendendo o terceiro, o
quarto e o oitavo tipos sintagmáticos de Metz) e "cenas" (o quinto, o sexto, o
sétimo e o oitavo tipos de Metz.f As cenas na narração hollywoodiana são
claramente demarcadas por meio de critérios neoclássicos- unidade de tem-
po (duração contínua ou consistentemente intermitente), espaço (um local
definido) e ação (urna fase distinta de causa e efeito). E os limites da seqüência
são indicados por pontuações padronizadas (fusão, escurecimento, chicote, 3 \jJ(\A.,
pontes sonoras). 8 Raymond Bellour assinala que o segmento clássico também J.d..h
tende a se definir microcosmicamente (por meio de paralelos com outros seg-
mentos de mesma magnitude). 9 Devemos lembrar, ainda, que cada filme es-
tabelece sua própria escala de segmentação. Um syuzhet que se concentra em
um único local ao longo de uma duração dramática limitada (por exemplo, o
filme de "uma noite em uma casa mal-assombrada") pode criar segmentos
por meio de entradas ou saídas de personagens, adotando uma liaison de scenes
teatral. Em um filme que se desenrola durante várias décadas, e em diversos
7
Christian Me tz, " Problems of De notation in the Fiction Films", em Fil m Language, trad. Mi ch ae l
Ta ylor (Nova York: Oxford University Press, 1974), pp. 108-146 [edição em por tug uês: "Problemas
de denotação no filme d e fi cção", em Christi an Me tz, A significação no cinema (São Paulo: Pe rspec-
tiva, 1972)] .
6
Ra ymond Bellour, "The Obv ious and the Cod e", e m Screen, 15 (4), inverno de 1975, pp. 7-8. Ve r
ta mb ém Alan Williams, "Narra ti ve Patterns in ' Only Angels H ave Wings'", em Quarterly Review of
Film Studies, 1 (4), novembro de 1976, pp. 357-372.
' Raymond Bellour, "To Analyse, to Segment", em Rick Altman (org.), Genre. ., cit.
281
Na rrati1> idade e es tilística cin ematográfica
locais, uma série de fusões de uma pequena ação a outra não criará necessa-
riamente seqüências distintas.
Um segmento clássico não é uma entidade lacrada. Ele é espacial e tem-
poralmente fechado, mas carrsalnmrrte al5er operando para fazer avançar a
progressão causal e abrir novos desenvolvimentos. 10 O padrão desse "momentum
para a frente" é bastante codificado. A seqüência montada tende a funcionar
lll Thierry Kuntzel, "The Film-Work II", em Camera Obscu ra, n° 5, 1980, p. 25.
282
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ma~cld;ás:isi~co lwllywoodiano: normas e
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11
Parker Tyler, The Hollywood Hall ucin ation (Nova York: Simon & Schus te r, 1970), p. 177.
283
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~~ ?
12 Meir Sternberg, Expositional Modes and Temporal Ordering in Fiction (Baltimore : Johns Hopkins
University Press, 1978), p. 178 .
13
Ver Richard Dyer, Stars (Lond res: British Film Institute, 1979), p . 65, e David Bordwell, "Happil y
Ever After, Part II", em The Velvet Light Trap, n" 19, 1982, pp. 2-7.
14
Bertolt Brecht, apud Ralph Ma nheim & John Wille tt (orgs.), Collected Plays, vo l. li (Nova York:
Vintage, 1977), p. 331.
284
virada no enredo anuncia uma repetição do que ocorreu na primeira lua-de-
mel e faz recordar que Hildy ia casar-se com Bruce e viver em Albany. Ao
saírem à rua, com Hildy carregando sua mala, Walter lembra que Bruce talvez
pudesse hospedá-los. A clara recorrência desses motivos confere à narração
uma vigorosa unidade; quando detalhes como esses são tão fortemente amar-
rados, é natural que o destino de Molly Malloy acabe passando despercebido.
Em lugar de "fechamento", talvez fosse mais adequado falar em "efeito de
fechamento", ou até mesmo, se o conjunto de questões deixadas pendentes
parecer excessivo, de "pseudofechamento". No plano das normas extrínsecas,
porém, o padrão a ser perseguido permanece o de um epílogo o mais coeren-
te possível.
Lugares-comuns como "transparência" e "invisibilidade" não possuem
utilidade para a determinação das propriedades narrativas do filme clássico.
De um modo bastante geral, pode-se dizer que a narração clássica tende a ser
onisciente, p'i)ssuir um alto grau de cornunicabilidade e ser apenas moderada-
mente autoconsciente. Ou seja, a narração sabe mais que do que qualquer
um dos personagens ou todos eles, esconde relativamente pouco (basicamen-
te "o que vai acontecer a seguir") e quase nunca reconhece que está se dirigin-
do ao público. Mas essa caracterização deve ser ressalvada em dois aspectos.
Em primeiro lugar, há fatores genéricos que geralmente ocasionam variações
nesses preceitos. Um filme policial será bastante restritivo na divulgação de
conhecimento e fortemente supressivo em seu ocultamento de informações
causais. Já um melodrama como Nascida para o mal [In This Our Life, John
Huston, 1942] pode ser ligeiramente mais autoconsciente que À beira do abis-
mo [The Big Sleep, Howard Hawks, 1946], especialmente no tocante ao uso
da música e da interpretação. E um musical conterá momentos codificados
de autoconsciência (nas cenas em que os personagens cantam diretamente
para o espectador, por exemplo). Em segundo lugar, a progressão temporal
em geral exibem traços de narração aberta. Porém, uma vez iniciada a ação, a
narração toma-se mais velada, permitindo que os personagens em sua interação
assumam o controle da transmissão de informações. A atividade narrativa aberta
reaparece, convencionalmente, em determinados momentos: no início e no
285
-
Na rrat ividade e estilística cinem rograpca
final de cenas (por exemplo, planos de conjunto, planos com sinais, rnovi7
rnentos de câmera em tomo de objetos significantes, fusões simbólicas), e no
segmento-resumo conhecido corno "montagem em seqüência". No encerra-
J ;nento do syuzhet, a narração pode mais urna vez reconhecer sua consciência
--j't: do público (motivos musicais reaparecem, personagens olham diretamente
para a câmera ou fecham urna porta sobre nós), sua onisciência (por exemplo,
a câmera se recolhe para um plano geral) e sua cornunicabilidade (agora sabe-
mos tudo). Anarração clássica não é, pois, uniformemente "invisível" em todo
tipo de filme, ou ao longo de todo o filme: as "marcas da enunciação" são por
vezes exibidas. M> M'AQ,CPrS bt::. tMJf\O"A. cro
A cornunicabilidade da narração clássica é pat ente na forma corno o syuzhet
lida com as omissões. Ao ocorrer um lapso temporal, urna montagem em se-
qüência ou algumas linhas de diálogo entre os personagens nos informam. Do
mesmo modo, se urna causa é omitida, logo seremos informados de que está
faltando alguma coisa. - as lcrcanasrar te-serã Nas palavras
de um roteirista: "Ao princípio do filme, nada sabemos. Então, ao longo da
história, acumulam-se informações, até que ao final estamos sabendo de tudo." 15
Esses princípios, no entanto, podem ser mitigados por urna motivação genéri-
ca. Um thriller pode conter urna lacuna (por exemplo, a abertura de Alma em
suplício - Mildred Pierce, Michael Curtiz, 1945), urna fantasia pode deixar
urna causa ainda pendente ao final (por exemplo, Seu milagre de amor - The
Enchanted Cottage, John Crornwell, 1945). Nesse sentido, Cidadão Kane [Citizen
Kane, Orson Welles, 1941] pode ser, relativamente, "não-clássico" : a narração
fornece a resposta ao mistério de "Rosebud", mas os traços centrais do persona-
gem de Kane permanecem parcialmente indeterminados, sem que nenhuma
motivação genérica o justifique.
A construção do tempo pelo syuzhet é determinante na estruturação do
grau de abertura da narração. Quando o syuzhet adota a ordem cronológica e
omite períodos de tempo causalmente desirnportantes, a narração toma-se
orternente comunicativa e não-autoconsciente. Por outro lado, em urna rnon-
#tagern em seqüência, que comprime em poucos segundos o julgamento de
um assassinato, urna campanha política ou os efeitos da Lei 3'eca, a narração
toma-se abertamente onisciente. Um Jlashback pode rápida e veladarnente
preencher urna lacuna causal. Pode-se obter redundância sem violação ao
15
Eugene Vale, The Teclmique of Screenplay Writing, cit., p. 81.
286
O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narraliuos
" Jean-Paul Sartre, "Quand H ollywood veut fair e penser ", em L'Écran Français, nº 5, 3 d e agosto d e
1945, p. 3.
17
Tomo emprestado o termo usad o por Seymour Chatman em Story and Discou rse: Narra tive Struct ure
in Fiction and Film (Ithaca: Cornell University Press, 1978), p. 103.
287
Narratividade e es tilís tica cinema tográfica
~~~~-'-'--'-'-'-'-LU.o..ii 1 8
Enquanto os planos-seqüências de
Miklos Jancso criam padrões espaciais que recusam a onipresença, restringin-
do drasticamente o conhecimento de informações sobre a história pelo espec-
tador, a onipresença clássica transforma o esquema cognitivo a que denomi-
namos "câmera" em u erva or llberto das contingências
de tempo e espaço, mas discretamente confinado a padrões codificados, em
nome da inteligibilidade da história.
Graças a esse tratamento de tempo e espaço, a narração clássica faz do
mundo da fábula um constructo internamente consistente, sobre o qual a nar-
ração parece intervir a partir de fora. A manipulação da mise-en-scene (compor-
tamento das pessoas, iluminação, cenários, figurinos) cria um evento pró-fílmico
aparentemente independente, que se toma o mundo tangível da história, en-
quadrado e registrado a partir do exterior. Esse registro e enquadramento tende
a ser tomado como a narração em si, que pode, por sua vez, ser mais ou menos
aberta, mais ou menos "intrusiva" com relação à homogeneidade proposta do
mundo da história. A narração clássica depende, assim, da noção de "observa--;/:::
dor invisível". 19 Bazin, por exemplo, descreve a cena clássica existindo inde-
pendentemente da narração, como que sobre um palco. 20 A mesma qualidade
é designada pela noção de "ocultamento da produção" : a fábula não parece ter
sido construída, mas preexistir à sua representação narrativa. (Isso também ocor-
re na esfera da produção: nas grandes produções dos anos 1930 e após, os cenó-
grafos construíam maquetes dos cenários para inserir modelos de câmeras, ato-
res e equipamento de iluminação, de modo a predeterminar os procedimentos
de filmagem.)21
A narração do observador invisível é consideravelmente ocultada. Exa-
minarei rapidamente as razões estilísticas para esse procedimento, mas pode-
18
A. Lindsley Lan e, "The Camera 's Omniscient Eye", em American Cinema tographer, 16 (3), março d e
1953, p. 95.
" A explicitação mai s cla ra da noção de "observador invisível" é encontrad a em V. I. Pudovkin, Film
Technique (Nova York: Grave, 1960), pp. 67-71.
20 André Bazin, What Is Cinema7, trad . Hu gh Gray (Be rkeley: Uni versity of California Press, 1966), p.
288
----.:TD-n=-------~{mas e prin
~--------------~
mos desde já constatar que a narração clássica prontamente nos fornece indi-
cações para a construção da temporalidade, da espacialidade e da lógica (cau-
salidade, paralelismos) da história, sempre de modo a fazer com que seven
289
Narrafiz,idade e estilística cinematográfica
O estilo clássico
23 Herb Ligh tman, "The Su bjec tive Ca me ra", em American Cinematographer, 27 (2), feve reiro de 1946,
pp. 46, 66-67.
290
O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos
29 1
Na rrat iuidade e estilística cinematog ráfica
von Stemberg, cada um dos quais exigia uma base genérica de motivação (a
fantasia musical e o romance exótico, respectivamente) para os seus experi-
292
O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narraliZ>os
(3) o.
Optamos pela utili zação do termo raccord (em francês), presente em outros tex tos sob re o assunto
em português, em lugar do termo matches (no orig inal), para desi gnar especificame ~nmas de
o ag.~ p.ci.as..ae es ~asaleeünentp,rlê cQ.DJi,J,w.i.d,ad.e..&sAAço-tem poral na narrativa clássica . Falso
raccord designa procedimentos es tilís ticos que evide nciam a quebra dessas convenções (jump cu!
no original). (N. do 0 .)
293
Na rratividade e estilística cinem atográfica
27
Por serem as norma s apenas g uias qu e classificam, probabilis ticamente, as o pções, nã o deve mos
nos apressar em expor as " transgressões" ao estilo clássico. Por exemplo, Peter Lehman aponta que
o enquadramento subjetivo do olhar d os personagens para a câmera em O médico e o monstro [Dr.
Jekyll and Mr. Hyde, Roub en Mamoulian, 1932] " está certamente em d esacord o com o paradig ma
hollywoodia no habitu a l" . No entanto, os planos de ponto d e vis ta óptico n ão são proibidos p e los
protocolos clássicos; são apenas m enos pro váve is que outra s opções. Da mesma forma, Lehman
assinala uma descontinuidade quando, no film e, Dr. Jeky ll sai de um pl ano de conjunto e supostam en-
te se vira de costas: há um corte para Ivy olhando para a câme ra e joga ndo sobre ela uma peça de
meia. Com relação a isso, gos taria de suge rir três coisas. Em pr ime iro lugar, as indi cações são
ambíguas com respeito a se Dr. Jekyll d e fato vira-se de costas; ele poderia ainda es tar olh ando para
fora d o quadro. Um pl ano posterior, que mostra seu pé virad o na direção de Ivy quando a peça de
meia ca i no chão à sua frente, reforça essa hipótese espacial. Em segundo lugar, a brincadeira com
o padrão do ponto d e v ista não é dife rente d o jogo com o es paço em Lubitsch e outros dire tores
clássicos mais inovadores. Por fim, é preciso le mbrar que O médico e o monstro inicia-se com um
longo travelling a partir do ponto de vis ta óp tico do Dr. Jeky ll, antes d e se rm os apresen tad os ao
personagem . A subj e tividade óp tica cons titui, portanto, uma importante pa rte d a norma intrínseca do
fi lme . Pode-se argumentar que o olhar d e Ivy em direção a um ambiva lente olho fora-de -campo
amplifica a norma narra tiva d o filme. Ver Peter Lehman, "Looking at Ivy Looking at Us Looking at
Her: the Camera and the Garter", em Wide Angle, 5 (3), 1983, pp. 59-63.
O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narratiuos
=~==~~-in' -
o classicismo, em qualquer arte, sempre se caracterizou pela obediência a
normas extrínsecas. 28
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