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O cinema clássico hollywoodiano:


normas e princípios narrativos*
David Bordwell

Podemos considerar como distintos, ao menos provisoriamente, três


aspectos da narrativa. A narrativa pode ser estudada como representação: de
que modo se refere ou confere significação a um mundo ou conjunto de idéias.
A issopoderíamos denominar "semântica" Q.a narrativa, de que é exemplo a
maioria dos estudos de caracterização ou do realismo. A narrativa também
pode ser estudada como estrutura: o modo como seus elementos se combi-
nam para criar um todo diferenciado. Um exemplo dessa abordagem "sintá-
tica" é a morfologia dos contos de fada de Vladimir Propp. 1 Por fim, pode-
mos estudar a narrativa como ato: o processo dinâmico de apresentação de
uma história a um receptor. Isso abrangeria considerações sobre origem, fun-
ção e efeito; o desenvolvimento temporal da informação ou da ação; e concei-
tos como o de "narrador". É o estudo da narração, a "pragmática" dos fenô-
menos narrativos. As proposições a seguir têm como objeto a narração no
cinema hollywoodiano clássico entre 1917 e 1960, embora não se atenham
exclusivamente a esse aspecto. É comum as análises narrativas focalizarem
um aspecto, mas deterem-se também sobre outros quando necessário. Lévi-
Strauss, por exemplo, utiliza-se de um conceito de estrutura narrativa com o
objetivo de revelar camadas mais profundas de sentido, ou o que o mito re-
presenta: a sintaxe é um instrumento para a revelação da semântica. Neste
ensaio introduzo questões relacionadas à representação (especialmente are-
presentação denotativa) e estrutura (especialmente estrutura dramatúrgica)
com o objetivo de ressaltar como a narração clássica hollywoodiana constitui
uma configuração particular das opções normalizadas para representar a his-
tória e manipular a composição e o estilo. Por ser o resumo de um extenso

Título original: " Classical Holl ywoo d Cinema: Narra ti onal P rincipi es and Procedures", em Philip
Rosen, A Film Theory Reader: Na rrative, A pparatus, Ideology (Nova York: Columbia Uni versity Press,
1986), pp. 17-32. Tradução de Fernand o Mascarello.
1
Vladimir Propp, Mo rphology of lhe Folktale (Au stin: Uni versit y of Texas Press, 1968) .
ú Narratividade e estilística cinematográfica

trabalho de pesquisa, o artigo terá, infelizmente, um ar ad hoc, podendo-se


consultar, ao finat as referências nas quais se fundamenta. 2 Relaciono abaixo
a nomenclatura pouco usual utilizada:
• Fábula: Termo do formalismo russo para os eventos narrativos em
seqüência cronológica causal. (Por vezes traduzido como "história".)
Termo que envolve um constructo do espectador.
• Syuzhet: Termo do formalismo russo que designa a apresentação sistê-
mica dos eventos da fábula no texto. (Por vezes traduzido como "trama".)
• Narração: Processo de informar o receptor para que este construa a
fábula a partir de padrões do syuzhet e do estilo cinematográfico.
• Cognoscibilidade: a dimensão e a amplitude da reivindicação de co-
~ ~~ ~[lh_:cimento da narração sobre informações da fábula.
1 • ~ - o grau d e reco nh'
Autoconsc1enc1a: eCimento, pe1a narraçao,
- d e sua
veiculação ao espectador.
• Comunicabilidade: a extensão com que a narração retém ou comu-
nica informações sobre a fábula.
• Motivação com posicional: a justificação da presença de um elemen~~ . - ~ I r.~
por sua função de fazer avançar o syuzhet. f~~ v-9v::rk.f'~ ··-·
• Motivação realista: a justificação da presença de um elemento <:~ \,..,~.~
virtude de sua conformidade com a realidade extratextual. ~w · ·- · ·v-
• Motivação artística: a justificação da presença de um elemento por
sua função de chamar a atenção sobre si mesmo, como um procedi-
mento diferenciado. ~ PJ..-12:, ·
• Motivação transtextual: a justificação da presença de um elemento
por sua referência à categoria de textos à qual pertence (por exemplo,
pelo apelo a convenções de gênero). C~ ~ 3:.!0 i:>s '-/~

A passagem direta

O filme hollywoodiano clássico apresenta indivíduos definidos, empe-


nhados em resolver um problema evidente ou atingir objetivos específicos.

Es te en sa io reporta·se a material disc utido extensa men te nos ca pítulos 1 a 7 de David Bordwell et ai.,
The C/assical Hollywood Cinema: Film Style and Mode of Production to 1960 (Nova York: Columbia
University Press, 1985). Um pano de fundo mais geral para a di scussão é David Bordwell & Kristin
Thompson, Film Art: an Introduction (Readirtg: Addison-Wesley, 1979).

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VJeJ be? 4;J..VVcJ

~ ~--e(\1
O cinema clássico lwllywoodiano: normas e princípios n
.
Nessa sua busca, os personagens entram em conflito com1õouulfrflo5-s-pe~:n-,"'õ__:__ __J
ou com circunstâncias externas. A história finaliza com uma vitória ou derrota I
decisivas', a resolução do problema e a clara consecução ou não-consecução ~ .3
dos objetivos. O principal agente causal é, portanto, o personagem, um indi-
víduo distinto dotado de um conjunto evidente e consistente de traços, quali-
dades e comportamentos. Embora o cinema tenha herdado muitas das con-
venções de caracterização do teatro e da literatura, os tipos de personagens do
melodrama e da ficção popular são compostos por motivos, traços e
maneirismos únicos. Paralelamente, o star system tem como uma de suas fun-
ções a criação de um protótipo de personagem básico que é então ajustado às
necessidades particulares de cada papel. O personagem mais" especificado"
é, em geral, o do protagonista, que se toma o principal agente causal, alvo de
qualquer restrição narrativa e principal objeto de identificação do público.
Esses aspectos do syuzhet não surpreendem, embora já exibam importantes
diferenças com relação a outros modos narrativos (por exemplo, a relativa1 P~
ausência de personagens consistentes e orientados para um objetivo preciso ~· ~ J
na narrativa do cinema de arte). '~x,~.j
Entre todos esses modos narrativos, o clássico conforma-se mais clara-
mente à "história canônica", postulada como normal, em nossa cultura, pelos
estudiosos da compreensão da história. Em termos da fábula, a aposta no
personagem como agente de causa e efeito e a definição da ação como a perse-
guição de um objetivo são aspectos salientes do formato canônico. 3 No plano
do syuzhet, o filme clássico respeita o padrão canônico de estabe~ ct()wU}.-
um estado inicial de coisas que é violado e deve ser restabelecido. Na verdade, J.v tv\o..-
os manuais de roteiro hollywoodianos há muito insistem em uma fórmula '\I>Jv ·. . ~
que é resgatada pela análise estrutural mais recente: a trama é composta por ~ ~
um estágio de equilíbrio, sua perturbação, a luta e a eliminação do elemento ~ ~
erturbador. 4 Esse padrão de syuzhet é herança não de algum constructo apon- ~·
do como "romanesco", mas de formas históricas específicas: a peça bem- ~
~
_
i ta, a história de amor popular e, especialmente, o conto do final do século

l~"YVvG-
3
Perry W. Thorndyke, "Cognitive Structures in Comprehension and Mem ory o f Narra tive Discourse",
em Cogn itive Psychologtj, n" 9, 1977, pp. 84-96. Pa ra um exemplo d e aborda gem a um modo na rra tivo
cinematográfi co di stinto, ver m eu a rtigo "Th e Art Cine m a as a Mode of Film Practice", em Film
Criticism, 4 (1), outono de 1979, pp. 56-64.
' Euge ne Val e, Th e Technique of Screenplay Wriling (Nova York: Grosse t & Dunlap, 1972), pp. 135-160;
Stephen H ea th, "Film and Sys tem: Terms of Analysis", em Screen, 16 (1), primavera de 1975, pp. 48-50.

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XIX.5 As interações causais entre os personagens são assim, em grande medi-
da, funções desses padrões mais amplos do syuzhet e da fábula.
Na construção clássica da fábula, a causalidade é o princípio unificador
primário. As analogias entre personagens, cenários e situações fazem-se certa-
mente presentes, mas no plano denotativo qualquer paralelismo é subordina-
' do ao movimento de causa e efeito.6 As configurações espaciais são motivadas
li realisticamente (a redação de um jornal deve conter m esas, máquinas de es-
~ crever, telefones) e, principalmente, por necessidade com posicional (a mesa e ~
1) a máquina de escrever s~rão utilizadas para redigir matérias jornalísticas rele- i re"
p vantes, o.s telefones :onstro~rn li~aç~e~ fundarnen.tais entre o.s pe~sonagens). ~
~ A causalidade tarnbern motiva pnne1p1os temporais de organ1zaçao: o syuzhet
~· representa a ordem, freqüência e duração dos eventos da fábula de urna for-
ma que revela as relações causais mais salientes. Esse processo é particular-
mente evidente em um procedimento bem característico da narração clássica
-o prazo final ou "últirrw momento" (deadline). O prazo final/último mo-
~ rnento pode ser medido por calendários (A volta ao mundo em 80 dias- Around
g the World in 80 Days, Michael Anderson e Kevin McClory, 1956), relógios
~ (Matar ou morrer - High Noon, Fred Zinnernan, 1952), estipulação ("Você /
J tem uma semana e nem um minuto a mais"), ou simplesmente por indica- ~
ções de que o tempo está passando (o resgate no último minuto). Que o clí- \V
rnax de um filme clássico seja freqüentemente um prazo final demonstra a ;?!\:
força da estrutura em definir a duração dramática corno o tempo que se gasta
para alcançar ou deixar de alcançar um objetivo.
Geralmente o syuzhet clássico apresenta urna estrutura causal dupla, duas
linhas de enredo: urna que envolve o romance heterossexual (rapaz/moça,
marido/mulher), e outra que envolve urna outra esfera - trabalho, guerra, ~
missão ou busca, relações pessoais. Cada linha possui um objetivo, obstáculos%
e um clímax. Em Wild and Woolly [John Emerson, 1917], o herói Jeff tem dois
objetivos- viver no Oeste selvagem e conquistar Neli, a mulher de seus so-
nhos. A trama pode ser complicada por diversas linhas, tais corno objetivos
5 Ver David Éord well et a/., The Classical Hollywood Cinema: Film Style and Mode of Production to 1960,
cit., ca pítulos 14 e 18.
6 Rick Al tm an sublinha a necessidade d e co nsiderar as co mp araçõ es entre p erson age ns corno o
campo das relações "parad igm ática s" no tex to clássico. É verdade que as ana logias e contras tes de
situação ou de personagem ocorrem em filmes clássicos, mas essas relações são tipicam ente depen-
dentes de relações ca usai s anteriores do ponto de vis ta lógico. Ver Rick Altman, "The Arneri can
Film Musical: Pa radi gmatic Structure and Mediatory Function", em Rick Altrnan (org.), Genre: lhe
Musical (Londres: Rou tl edge & Kegan Paul, 1981), pp. 197-207.

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O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narratiuos

intervenienÚs (o povo de Bitter Creek quer que Jeff consiga um ramal ferro-
viário para a cidade, e um agente indígena desonesto quer planejar um assalto)
ou múltiplos romances (como em Belezas em revista - Footligh Parade, Lloyd
Bacon, 1933) e Agora seremos fe4izes [Meet Me in St. Louis, Vincente Minnelli,
1944]. Na maioria dos casos, a esfera do romance e a outra esfera de ação são
;l{
distintas, porém interdependentes. A trama pode finalizar uma das linhas antes
da outra, mas é comum as duas coincidirem no clímax: a resolução de uma
deflagra a resolução da outra. Em Jejum de amor [His Girl Friday, Howard Hawks,
1940], a suspensão da pena de Earl Williams precede a,reconciliação de Walter
e Hildy, mas é também a condição para o reacerto do casal.
O syuzhet é sempre dividido em segmentos. Na época do cinema mudo,
o filme hollywoodiano típico continha entre 9 e 18 seqüências; na do cinema
sonoro, entre 14 e 35 (os filmes do pós-guerra geralmente apresentavam um
número maior de seqüências). Grosso modo, existem apenas dois tipos de seg-
mentos nos filmes hollywoodianos: "resumos" (compreendendo o terceiro, o
quarto e o oitavo tipos sintagmáticos de Metz) e "cenas" (o quinto, o sexto, o
sétimo e o oitavo tipos de Metz.f As cenas na narração hollywoodiana são
claramente demarcadas por meio de critérios neoclássicos- unidade de tem-
po (duração contínua ou consistentemente intermitente), espaço (um local
definido) e ação (urna fase distinta de causa e efeito). E os limites da seqüência
são indicados por pontuações padronizadas (fusão, escurecimento, chicote, 3 \jJ(\A.,
pontes sonoras). 8 Raymond Bellour assinala que o segmento clássico também J.d..h
tende a se definir microcosmicamente (por meio de paralelos com outros seg-
mentos de mesma magnitude). 9 Devemos lembrar, ainda, que cada filme es-
tabelece sua própria escala de segmentação. Um syuzhet que se concentra em
um único local ao longo de uma duração dramática limitada (por exemplo, o
filme de "uma noite em uma casa mal-assombrada") pode criar segmentos
por meio de entradas ou saídas de personagens, adotando uma liaison de scenes
teatral. Em um filme que se desenrola durante várias décadas, e em diversos

7
Christian Me tz, " Problems of De notation in the Fiction Films", em Fil m Language, trad. Mi ch ae l
Ta ylor (Nova York: Oxford University Press, 1974), pp. 108-146 [edição em por tug uês: "Problemas
de denotação no filme d e fi cção", em Christi an Me tz, A significação no cinema (São Paulo: Pe rspec-
tiva, 1972)] .
6
Ra ymond Bellour, "The Obv ious and the Cod e", e m Screen, 15 (4), inverno de 1975, pp. 7-8. Ve r
ta mb ém Alan Williams, "Narra ti ve Patterns in ' Only Angels H ave Wings'", em Quarterly Review of
Film Studies, 1 (4), novembro de 1976, pp. 357-372.
' Raymond Bellour, "To Analyse, to Segment", em Rick Altman (org.), Genre. ., cit.

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Na rrati1> idade e es tilística cin ematográfica

locais, uma série de fusões de uma pequena ação a outra não criará necessa-
riamente seqüências distintas.
Um segmento clássico não é uma entidade lacrada. Ele é espacial e tem-
poralmente fechado, mas carrsalnmrrte al5er operando para fazer avançar a
progressão causal e abrir novos desenvolvimentos. 10 O padrão desse "momentum
para a frente" é bastante codificado. A seqüência montada tende a funcionar

tempo, o lugar e os personagens relevantes- suas posições espaciais e seus


estados mentais atuais (geralmente resultado de cenas anteriores). No meio
da cena, os personagens agem no sentido de alcançar seus objetivos: lutam,
fazem escolhas, marcam encontros, determinam prazos, planejam eventos
futuros . No curso de sua ação, a cena clássica prossegue, ou conclui, os desen-
volvimentos de causa e efeito deixados pendentes em cenas anteriores, abrin-
do, ao mesmo tempo, novas linhas causais para desenvolvimento futuro. Uma
linha de ação, ao menos, deve ser deixada em suspenso para servir de motiva-
ção à próxima cena, que retoma a linha deixada pendente (freqüentemente
por meio de um" gancho de diálogo"). Daí a famosa "linearidade" da constru-
ção clássica- aspecto que não é característico dos filmes soviéticos de monta-
gem (que seguidamente se recusam a demarcar as cenas com nitidez) ou da
narração do cinema de arte (com seu jogo ambíguo entre subjetividade e ob-
jetividade).
Um simples exemplo poderia ser uma cena de Assassinos [The Killers,
Robert Siodmak, 1946]. O investigador da companhia de seguros, Riordan,
termina de escutar o relato do tenente Lubinsky sobre a vida pregressa de OIE~
Anderson. Ao final da cena, Lubinsky conta a Riordan que Ole será enterrado
ainda hoje. Essa causa pendente conduz à cena seguinte, passada no cemité-
rio. Um plano de conjunto (establishing shot) fornece a contextualização espa-
cial. Enquanto o padre faz a encomendação, Riordan indaga a Lubinsky sobre
a identidade de vários dos presentes. O último deles, um velho solitário, é
identificado como "um antigo desordeiro chamado Charleston". Fusão para
um salão com Charleston e Riordan em uma mesa bebendo e conversando

lll Thierry Kuntzel, "The Film-Work II", em Camera Obscu ra, n° 5, 1980, p. 25.

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-------cOI(c=tíin1ee/i;
ma~cld;ás:isi~co lwllywoodiano: normas e
L____:_..~----

sobre Ole. Durante a cena do enterro, a linha da investigação de Lubinsky é


concluída e a linha de Charleston é iniciada. No fechamento da cena, Charleston
é deixado em suspenso, mas imediatamente retornado na exposição da cena
seguinte. Em lugar de urna complexa tessitura (corno em Rivette) ou urna
abrupta ruptura de linhas causais (corno em Antonioni, Godard ou Bresson),
o filme hollywoodiano clássico as desenvolve por meio de urna suave e meti-
culosa linearidade.
A ligação de linhas causais localizadas deve, ao final, ser encerrada. Corno
cpncluir o syuzhet? Há duas maneiras de compreender o final clássico. Pode-
mos entendê-lo corno 6 coroamento da estrutura, a conclusão lógica de urna
cadeia de eventos, o efeito final da causa inicial. Esse entendimento possui
alguma validade, tendo em vista a construção bem amarrada freqüentemente
encontrada nos filmes hollywoodianos clássicos e os preceitos clássicos de
roteirização que a sustentam. As gramáticas, por exemplo, são sistemáticas
em sua condenação às pressões por um final feliz, enfatizando a necessidade
de urna conclusão lógica. Entretanto, urna série de exemplos de soluções de (\1
roteiro irnotivadas ou inadequadas sugere urna segunda hipótese: a de que o fr
I
final clássico não é na verdade tão decisivo do ponto de vista estrutural, sur- t:J ~..wíh
gindo corno um ajuste mais ou menos arbitrário de um mundo desarranjado tí. " Cf
no curso dos oitenta minutos precedentes. De acordo com Parker Tyler, cLcLv
Hollywood considera todos os finais corno "puramente formais, convencio-
nais e, geralmente, corno urna charada com lógica infantil" .11 Aqui, mais urna
vez, podemos ver a importância da linha da trama que envolve o romance
heterossexual. É significativo que, de cem filmes hollywoodianos escolhidos
aleatoriamente, mais de sessenta finalizem com uma exibição do casal român-
tico- o clichê de "final feliz", muitas vezes mostrando um beijo apaixonado
e que muitos dos outros terminem de maneira feliz. Logo, urna norma
extrínseca, a necessidade de resolver a trama de um modo que ofereça "justi-
ça poética", toma-se urna constante estrutural, inserida com maior ou menor ,...
motivação em seu local apropriado, o epílogo. Em qualquer narrativa, corno} ~iJ.J.fr
assinala Meir Stemberg, sempre que o final da syuzhet é fortemente antecipa- (p~"':'_
do pela convenção, a atenção com posicional incide sobre o retardamento do ~~ ?
resultado promovido pelas porções intermediárias. O texto então "justificará ~
o atraso necessário' em termos quase rnirnéticos, localizando as causas para o

11
Parker Tyler, The Hollywood Hall ucin ation (Nova York: Simon & Schus te r, 1970), p. 177.

283
,. . _r v

~~ ?

retardamento no interior do mundo fictício e transformando os segmentos


intermediários no cerne da ação representada" .12 Às vezes, porém, a motiva-
ção é construída para ser inadequada, e a discordância entre a causalidade
exposta acima e o desenlace feliz toma-se perceptível como uma dificuldade
ideológica. Tal é o caso de filmes como Vive-se uma só vez [You Only Live Once,
Fritz Lang, 1937], Suspeita [Suspicion, Alfred Hitchcock, 1941], Um retrato de
mulher [The Woman in the Window, Fritz Lang, 1944] e O homem errado [The
Wrong Man, Alfred Hitchcock, 1958]. 13 Devemos, pois, estar preparados tan-
to para a amarração habilidosa dos finais perdidos, como para a aparição mais
ou menos miraculosa daquilo que Brecht designou como o mensageiro mon-
tado da literatura burguesa. "O mensageiro montado nos assegura uma apre-
ciação realmente livre de perturbações até mesmo das condições mais intole-
ráveis, sendo, portanto, uma condição sine qua non para uma literatura cujo
sine qua non é conduzir a lugar nenhum." 14
O final clássico pode ser problemático em outro sentido. Mesmo que dê
solução às duas linhas causais principais, algumas questões relativamente
m enores podem ainda ficar pendentes. O destino dos personagens secundá-
rios, por exemplo, pode não ser reordenado. Em Jejum de amor, Earl Williams
tem a pena suspensa, a administração corrupta será deposta, e Walter e Hildy
se reconciliam, mas nada sabemos sobre o que sucede a Molly Malloy, que
pulara por uma janela a fim de distrair os repórteres. (Sabemos apenas que
ela sobreviveu à queda.) Pode-se argumentar que na resolução do problema
central são esquecidos os assuntos menores, mas essa é uma explicação ape-
nas parcial. O esquecimento é promovido pelo procedimento de-encerrar o n ...J ~
filme com um epílogo, uma breve celebração da nova estabilidade alcançada lO~
pelos personagens principais. O epílogo não apenas reforça a tendência a um
final feliz, como também repete os motivos conotativos aparecidos ao longo
do filme. Jejum d amor termina com um breve epílogo de Walter e Hildy
telefonando à red ção do jornal para anunciar que vão se casar novamente.
Ficam sabendo qu acaba de estourar uma greve em Albany e Walter propõe
darem uma passa a por lá durante sua lua-de-mel para cobrir o evento. A

12 Meir Sternberg, Expositional Modes and Temporal Ordering in Fiction (Baltimore : Johns Hopkins
University Press, 1978), p. 178 .
13
Ver Richard Dyer, Stars (Lond res: British Film Institute, 1979), p . 65, e David Bordwell, "Happil y
Ever After, Part II", em The Velvet Light Trap, n" 19, 1982, pp. 2-7.
14
Bertolt Brecht, apud Ralph Ma nheim & John Wille tt (orgs.), Collected Plays, vo l. li (Nova York:
Vintage, 1977), p. 331.

284
virada no enredo anuncia uma repetição do que ocorreu na primeira lua-de-
mel e faz recordar que Hildy ia casar-se com Bruce e viver em Albany. Ao
saírem à rua, com Hildy carregando sua mala, Walter lembra que Bruce talvez
pudesse hospedá-los. A clara recorrência desses motivos confere à narração
uma vigorosa unidade; quando detalhes como esses são tão fortemente amar-
rados, é natural que o destino de Molly Malloy acabe passando despercebido.
Em lugar de "fechamento", talvez fosse mais adequado falar em "efeito de
fechamento", ou até mesmo, se o conjunto de questões deixadas pendentes
parecer excessivo, de "pseudofechamento". No plano das normas extrínsecas,
porém, o padrão a ser perseguido permanece o de um epílogo o mais coeren-
te possível.
Lugares-comuns como "transparência" e "invisibilidade" não possuem
utilidade para a determinação das propriedades narrativas do filme clássico.
De um modo bastante geral, pode-se dizer que a narração clássica tende a ser
onisciente, p'i)ssuir um alto grau de cornunicabilidade e ser apenas moderada-
mente autoconsciente. Ou seja, a narração sabe mais que do que qualquer
um dos personagens ou todos eles, esconde relativamente pouco (basicamen-
te "o que vai acontecer a seguir") e quase nunca reconhece que está se dirigin-
do ao público. Mas essa caracterização deve ser ressalvada em dois aspectos.
Em primeiro lugar, há fatores genéricos que geralmente ocasionam variações
nesses preceitos. Um filme policial será bastante restritivo na divulgação de
conhecimento e fortemente supressivo em seu ocultamento de informações
causais. Já um melodrama como Nascida para o mal [In This Our Life, John
Huston, 1942] pode ser ligeiramente mais autoconsciente que À beira do abis-
mo [The Big Sleep, Howard Hawks, 1946], especialmente no tocante ao uso
da música e da interpretação. E um musical conterá momentos codificados
de autoconsciência (nas cenas em que os personagens cantam diretamente
para o espectador, por exemplo). Em segundo lugar, a progressão temporal

ao longo do filme, e também estas são codificadas.

em geral exibem traços de narração aberta. Porém, uma vez iniciada a ação, a
narração toma-se mais velada, permitindo que os personagens em sua interação
assumam o controle da transmissão de informações. A atividade narrativa aberta
reaparece, convencionalmente, em determinados momentos: no início e no

285
-
Na rrat ividade e estilística cinem rograpca

final de cenas (por exemplo, planos de conjunto, planos com sinais, rnovi7
rnentos de câmera em tomo de objetos significantes, fusões simbólicas), e no
segmento-resumo conhecido corno "montagem em seqüência". No encerra-
J ;nento do syuzhet, a narração pode mais urna vez reconhecer sua consciência
--j't: do público (motivos musicais reaparecem, personagens olham diretamente
para a câmera ou fecham urna porta sobre nós), sua onisciência (por exemplo,
a câmera se recolhe para um plano geral) e sua cornunicabilidade (agora sabe-
mos tudo). Anarração clássica não é, pois, uniformemente "invisível" em todo
tipo de filme, ou ao longo de todo o filme: as "marcas da enunciação" são por
vezes exibidas. M> M'AQ,CPrS bt::. tMJf\O"A. cro
A cornunicabilidade da narração clássica é pat ente na forma corno o syuzhet
lida com as omissões. Ao ocorrer um lapso temporal, urna montagem em se-
qüência ou algumas linhas de diálogo entre os personagens nos informam. Do
mesmo modo, se urna causa é omitida, logo seremos informados de que está
faltando alguma coisa. - as lcrcanasrar te-serã Nas palavras
de um roteirista: "Ao princípio do filme, nada sabemos. Então, ao longo da
história, acumulam-se informações, até que ao final estamos sabendo de tudo." 15
Esses princípios, no entanto, podem ser mitigados por urna motivação genéri-
ca. Um thriller pode conter urna lacuna (por exemplo, a abertura de Alma em
suplício - Mildred Pierce, Michael Curtiz, 1945), urna fantasia pode deixar
urna causa ainda pendente ao final (por exemplo, Seu milagre de amor - The
Enchanted Cottage, John Crornwell, 1945). Nesse sentido, Cidadão Kane [Citizen
Kane, Orson Welles, 1941] pode ser, relativamente, "não-clássico" : a narração
fornece a resposta ao mistério de "Rosebud", mas os traços centrais do persona-
gem de Kane permanecem parcialmente indeterminados, sem que nenhuma
motivação genérica o justifique.
A construção do tempo pelo syuzhet é determinante na estruturação do
grau de abertura da narração. Quando o syuzhet adota a ordem cronológica e
omite períodos de tempo causalmente desirnportantes, a narração toma-se
orternente comunicativa e não-autoconsciente. Por outro lado, em urna rnon-
#tagern em seqüência, que comprime em poucos segundos o julgamento de
um assassinato, urna campanha política ou os efeitos da Lei 3'eca, a narração
toma-se abertamente onisciente. Um Jlashback pode rápida e veladarnente
preencher urna lacuna causal. Pode-se obter redundância sem violação ao

15
Eugene Vale, The Teclmique of Screenplay Writing, cit., p. 81.

286
O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narraliuos

~.mundo da fábula quando a narração representa cada evento da história diver-


~ sas vezes no syuzhet, por meio de uma encenação inicial e reforços posteriores
~os diálogos entre personagens. Os prazos finais claramente permitem que o
syuzhet respeite de forma não-autoconsciente os limites duracionais estipula-
dos pelo mundo da fábula para a sua ação. Sendo necessário sugerir ações
repetidas ou habituais, a seqüência em montagem é mais uma vez eficaz,
como observou Sartre ao elogiar tais seqüências em Cidadão Kane por sua
perfeita equivalência ao t~mpo "freqüentativo": "Ele fez sua mulher cantar
em cada um dos teatros dos Estados Unidos." 16 Quando o syuzhet utiliza uma
manchete de jornal para preencher intervalos temporais, reconhecemos tanto
a onisciência da narração como a sua forma relativamente dissimulada. (O
registro público é menos autoconsciente que um intertítulo "vindo direta-
mente" da narração.) De modo geral, a narração clássica revela sua discrição
colocando-se como uma inteligência editorial que seleciona alguns fragmen-
~~ tos temporais para um tratamento em grande escala (as cenas), promove o
; ~ enxugamento de outros e apresenta os demais de um modo enormemente
1J lf"'"' comprimido (as seqüências em montagem), eliminando, simplesmente, os
_ - eventos sem conseqüência. Quando a duração da fábula é expandida, isso é
C c.-) i to por meio da montagem paralela.
Aspectos narrativos gerais também se manifestam na manipulação do ,
espaço pelo filme. As pessoas são ajustadas com vistas à obtenção de uma P~
autoconsciência moderada, posicionando-se os corpos em ângulos relativa- _~
mente frontais, porém evitando-se os olhares para a câmera (exceto, é claro,
em trechos com ponto de vista óptico). O fato de que nunca uma informação
causalmente significativa para uma cena seja mantida desconhecida é um
demonstrativo da comunicabilidade da narração. E ainda mais importante é a
tendência do filme clássico de produzir a onisciência narrativa por meio da
onipresença espacial. 17 Se a narração procura esconder o seu conhecimento
dos efeitos e desenvolvimentos temporais subseqüentes, não hesita em reve-
lar a sua habilidade para, a todo momento, produzir mudanças de perspecti~
va. O corte no interior de uma cena e a montagem em paralelo entre vários
locais são indicativos da onipresença da narração . Em 1935, um crítico afir-

" Jean-Paul Sartre, "Quand H ollywood veut fair e penser ", em L'Écran Français, nº 5, 3 d e agosto d e
1945, p. 3.
17
Tomo emprestado o termo usad o por Seymour Chatman em Story and Discou rse: Narra tive Struct ure
in Fiction and Film (Ithaca: Cornell University Press, 1978), p. 103.

287
Narratividade e es tilís tica cinema tográfica

~~~~-'-'--'-'-'-'-LU.o..ii 1 8
Enquanto os planos-seqüências de
Miklos Jancso criam padrões espaciais que recusam a onipresença, restringin-
do drasticamente o conhecimento de informações sobre a história pelo espec-
tador, a onipresença clássica transforma o esquema cognitivo a que denomi-
namos "câmera" em u erva or llberto das contingências
de tempo e espaço, mas discretamente confinado a padrões codificados, em
nome da inteligibilidade da história.
Graças a esse tratamento de tempo e espaço, a narração clássica faz do
mundo da fábula um constructo internamente consistente, sobre o qual a nar-
ração parece intervir a partir de fora. A manipulação da mise-en-scene (compor-
tamento das pessoas, iluminação, cenários, figurinos) cria um evento pró-fílmico
aparentemente independente, que se toma o mundo tangível da história, en-
quadrado e registrado a partir do exterior. Esse registro e enquadramento tende
a ser tomado como a narração em si, que pode, por sua vez, ser mais ou menos
aberta, mais ou menos "intrusiva" com relação à homogeneidade proposta do
mundo da história. A narração clássica depende, assim, da noção de "observa--;/:::
dor invisível". 19 Bazin, por exemplo, descreve a cena clássica existindo inde-
pendentemente da narração, como que sobre um palco. 20 A mesma qualidade
é designada pela noção de "ocultamento da produção" : a fábula não parece ter
sido construída, mas preexistir à sua representação narrativa. (Isso também ocor-
re na esfera da produção: nas grandes produções dos anos 1930 e após, os cenó-
grafos construíam maquetes dos cenários para inserir modelos de câmeras, ato-
res e equipamento de iluminação, de modo a predeterminar os procedimentos
de filmagem.)21
A narração do observador invisível é consideravelmente ocultada. Exa-
minarei rapidamente as razões estilísticas para esse procedimento, mas pode-

18
A. Lindsley Lan e, "The Camera 's Omniscient Eye", em American Cinema tographer, 16 (3), março d e
1953, p. 95.
" A explicitação mai s cla ra da noção de "observador invisível" é encontrad a em V. I. Pudovkin, Film
Technique (Nova York: Grave, 1960), pp. 67-71.
20 André Bazin, What Is Cinema7, trad . Hu gh Gray (Be rkeley: Uni versity of California Press, 1966), p.

32 [ed ição em po rtug u ês : O cinema (São Pau lo: Brasiliense, 1991)).


21
Ver H al Herma n, "Mo tion Picture Art Director ", em American Cinema tographer, 28 (11), novembro
de 1947, pp. 396-397, 416-417; e H erman Blumen thal, "Card board Counterpa rt of the Motion Picture
Se tting", em Production Design, 2 (1), janeiro d e 1952, pp. 16-21.

288
----.:TD-n=-------~{mas e prin
~--------------~

mos desde já constatar que a narração clássica prontamente nos fornece indi-
cações para a construção da temporalidade, da espacialidade e da lógica (cau-
salidade, paralelismos) da história, sempre de modo a fazer com que seven

exemplo, é evidente que as narrativas hollywoodianas são fortemente redun-


dantes. Tal efeito é obtido principalmente por modelos que podem ser impu-
tados ao mundo da história. Seguindo a taxinomia de Susan Suleiman, 22 po-
demos observar que a narração atribui os mesmos traços e funções a cada
personagem, com base em sua aparência; que diferentes personagens tecem
idêntico comentário interpretativo sobre o mesmo personagem ou situação; e
assim por diante. Em sua maior parte, as informações são reiteradas pelas
falas ou pelo comportamento dos personagens. Reconhecidamente, existe certa
· redundância entre
como no caso dos intertítulos de um filme mudo, que transmitem informa-
ções cruciais, ou da música não-diegética que é pleonástica com relação à ação
(por exemplo, "Lá vem a noiva", em Nascida para o mal). Porém, em geral, a
narração é construída de modo a fazer com que os personagens e seu com-
portamento produzam e reiterem os dados fundamentais da história. Com-

portância do ponto de vista causal, ií,:e;;;:;.n_.,.........,;;;;.;.;""'"""-


'"'"-==-"'~---, e não por digressões narrativas do tipo encontrado na seqüência
"Deus e pátria" de Outubro [Oktiábr, Serguei Eisenstein, 1927]. Da mesma
forma, r cunas c sai na fábula são, em geral, assinaladas pela ao
a ens por exemplo, a descoberta de pistas em filmes policiais). O especta-
dor se concentra em construir a fábula e não em indagar por que a narração a
está representando dessa maneira particular- uma questão muito mais carac-
terística da narração do cinema de arte.
A prioridade conferida à causalidade da fábula e o mundo integral da
fábula comprometem a narração clássica com uma apresentação não-ambí-
gua. Enquanto a narração do cinema de arte pode promover um apagamento
das linhas de separação entre a realidade diegética objetiva, os estados men-
22
Susan Rubin Suleiman, Authoritarian Fictions: the Ideological Novel as a Literary Genre (Nova York:
Columbia University Press, 1983), pp. 159-171.

289
Narrafiz,idade e estilística cinematográfica

tais dos personagens e os comentários narrativos inseridos, o filme clássico


nos solicita a supor distinções bastante claras entre esses estados. Quando o
l filme clássico limita o conhecimento a um personagem, como durante a maior
parte de À beira do abismo ou Até a vista, querida [Murder My Sweet, Edward
Dmytryk, 1943], mantém-se uma nítida fronteira entre a afiguração subjetiva
e a objetiva. É evidente que a narração pode nos reservar algumas armadilhas,
como em Fogueira da paixão [Possesed, Curtis Bernhardt 1947t quando um
assassinato que parece ser objetivo revela-se subjetivo (uma virada motivada
incidentalmente), mas o artifício é reconhecido imediata e inequivocamente.
Nesse sentido, o Jlashback clássico é revelador. Sua presença é quase sempre
motivada subjetivamente, pois é a lembrança de um personagem que deflagra
a representação encenada de um evento anterior. Mas a amplitude de conheci-
mento no segmento em Jlashback:&freqüentemente não é idêntica à do perso-
nagem que tem a lembrança. É comum que o Jlashback mostre mais do que o
personagem sabe (por exemplo, cenas em que ele não está presente). Um
exemplo curioso ocorre em A casa das amarguras [Ten North Frederick, Philip
Dunne, 1958]. A maior parte do filme é apresentada como um Jlashback da
filha, mas ao final do syuzhet, de volta ao presente, ela descobre informações
contidas em "seu" Jlashback! Os Jlashbacks clássicos são caracteristicamente
"objetivos": a memória do personagem é um pretexto para uma disposição
não-cronológica do syuzhet. Da mesma forma, planos opticamente subjetivos
são ancqrados em um contexto oqjetivo. 1m autor observa que um plano-
ponto-de-vista" deve ser motivado e associado decisivamente a cenas (planos)
objetivas que o precederam ou o sucederão" .23 Essa é uma das fon~es dopo.-
der do observador invisível: a câmera parece sempre incluir a subjetividade
tdo personagem em uma objetividade mais ampla e definida.

O estilo clássico

O fato de que o espectador ingênuo considere o estilo do filme


hollywoodiano clássico como invisível ou sem costuras não nos é de grande
auxílio crítico. O que ocasiona um auto-ocultamento tão significativo do estilo
clássico? Será difícil responder satisfatoriamente à questão enquanto não exa-

23 Herb Ligh tman, "The Su bjec tive Ca me ra", em American Cinematographer, 27 (2), feve reiro de 1946,
pp. 46, 66-67.

290
O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos

minarmos a atividade do espectador, mas podemos iniciar pela sugestão de


Yuri Tynyanov: "Assinalar a' contenção' ou o 'naturalismo' do estilo de um
filme ou diretor não implica eliminar o papel do estilo. Simplesmente existe
uma variedade de estilos que cumprem distintos papéis, de acordo com sua
relação com o desenvolvimento do syuzhet". 24 Apresento, a seguir, três pro-
posições gerais.
(1) Em seu conjunto

tiv ar composicionalmente o oe o azhe·


Consideremos a noção do que hoje denominamos plano. Durante décadas, a
prática hollywoodiana designou o plano ~orno" cena", combinando assim uma
unidade estilística material a uma unidade dramatúrgica. Na prática de filma-
gem, o princípio orientador era o de que toda e qualquer manifestação da técni-
ca fosse colocada a serviço da transmissão de informações da fábula pelos per-
sonagens, fazendo dos corpos e rostos, invariavelmente, os pontos focais da
atenção. Tendo em vista a estrutura causal recorrente da cena clássica (exposi-
ção, fechamento de um fator causal anterior, introdução de novos fatores cau-
sais, suspensão de um novo fator), o cineasta pode utilizar-se das técnicas de
forma isomórfica com relação a essa estrutura. A fase de introdução caracteristi-
camente envolve um plano que estabelece os personagens no tempo e no espa-
ço. À medida que os personagens interagem, a cena é segmentada em imagens
mais próximas de ação e reação, enquanto o cenário, a iluminação, a música, a
composição e os movimentos de câmera ajudam a acentuar o processo de for-
mulação de objetivos, de luta e de decisão. A cena geralmente finaliza com uma
porção de espaço - uma reação facial, um objeto significativo - que fornece
uma transição para a próxima cena.
Embora seja verdade que o estilo de um filme clássico por vezes se toma
"excessivo", suplementando decorativamente as exigências denotativas do
syuzhet, o uso da técnica deve ser minimamente motivado pela interação en-
tre os personagens. O "excesso", tal como o encontramos em Minnelli ou em
Sirk, é com freqüência justificado por convenções genéricas. O mesmo é váli-
do até para os estilistas mais excêntricos de Hollywood, Busby Berkeley e Josef
24
Yuri Tynyanov, "Fundamentais of the Cinema", em Chistopher Williams (org.), Realism in lhe Cinema
(Lon dres: Routled ge & Kega n Paul, 1980), p . 149. Mod ifiquei um p ou co a tra dução.

29 1
Na rrat iuidade e estilística cinematog ráfica

von Stemberg, cada um dos quais exigia uma base genérica de motivação (a
fantasia musical e o romance exótico, respectivamente) para os seus experi-

inequivocamente sinalizada (por meio de intertítulos, indicações convencio-


nais, uma linha de diálogo). A iluminação deve destacar a figura de fundo; a
cor deve definir os planos espaciais; a cada plano, o centro de interesse da
história geralmente será centralizado em relação às laterais do quadro . Ore-
gistro de som é planejado para proporcionar máxima clareza aos diálogos. Os
movimentos de câmera são concebidos para criar um espaço volumoso e ine-
quívoco. "Ao movimentar a grua", observa Dwan, "geralmente, considera-
mos que é uma boa idéia passar ao redor das coisas[ ... ] Sempre percebemos
que, ao movimentar a grua em tomo de uma árvore, ela se toma sólida e
encorpada, em lugar de plana" .25 Hollywood emprega sistematicamente a
composição ou o movimento de câmera antecipatórios, reservando espaço no
quadro para a ação ou movimento, como preparação à entrada de um outro
personagem. Compare-se a tendência de Godard para fazer o enquadramento

de câmera. A desorientação temporária é aceitável somente quando realistica-


mente motivada. A montagem descontínua, como na seqüência de Slavko
Vorkapich durante o terremoto em San Francisco [Willard Van Dyke, 1936], é
motivada pelo caos inerente à ação afigurada. A desorientação estilística, em
resumo, apenas é aceitável quando transmite situações desnorteantes conti-
das na história.
25 Pe ter Bogdanovich, Alan Dwan (Berkeley: Univers ity of California Press, 1970), p . 86 .
26
Apud Thomas Elsaesser, "Why H ollywoo d? ", em Monogram , n° 1, ab ril de 1971, p. 8.

292
O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narraliZ>os

(3) o.

te des es eetãdure . A razão disso é que o estilo se utiliza de um número


limitado de dispositivos, sendo estes regulados como opções alternativas de
representação. A iluminação oferece um exemplo bastante simples. Uma cena
pode ter uma iluminação com luz direta ou difusa. Existe a iluminação de três
pontos (luz-chave, luz atenuante e contraluz, mais iluminação de fundo) em
oposição à de fonte única. O fotógrafo também tem à sua disposição graus de
difusão variados. No plano teórico, todas as escolhas são possíveis, mas em
um contexto específico uma delas é mais provável que as outras. Numa co-
média, é mais provável a iluminação direta; uma rua escura motivará realisti-
camente uma iluminação de fonte única; o primeiro plano de urna mulher

ria das vezes, um personagem será enquadrado entre o plano americano


(enquadramento dos joelhos para cima) e o primeiro plano (enquadramento na
altura dos ombros). O ângulo da câmera será reto ou "normal", no nível do
ombro ou do queixo. É mais raro o enquadramento em plano geral muito aber-
to ou em primeiríssimo plano, com uma câmera baixa ou alta. Os pontos de
vista "olho de pássaro", ou desde o chão, são bastante improváveis, e exigiriam
urna motivação composicional própria, ou seguindo convenções genéricas (por
exemplo, um ponto de vista óptico ou a visão de um bailado em um musical).
De todos os sistemas, o ai coCllfi_c em regras é o da ecupage
@:a ssica. A confiança num determinado eixo de ação orienta o espectador com
relação ao espaço, e a sucessão de cortes mostra escolhas paradigrnáticas claras
entre diferentes tipos de raccord.* Estes são balanceados probabilisticarnente:
a maior parte das cenas hollywoodianas inicia-se com planos de conjunto,

Optamos pela utili zação do termo raccord (em francês), presente em outros tex tos sob re o assunto
em português, em lugar do termo matches (no orig inal), para desi gnar especificame ~nmas de
o ag.~ p.ci.as..ae es ~asaleeünentp,rlê cQ.DJi,J,w.i.d,ad.e..&sAAço-tem poral na narrativa clássica . Falso
raccord designa procedimentos es tilís ticos que evide nciam a quebra dessas convenções (jump cu!
no original). (N. do 0 .)

293
Na rratividade e estilística cinem atográfica

segmenta o espaço em planos mais próximos, ligados por raccords de olhar e/


ou campo/contracampo, e somente retoma para planos mais afastados se o
movimento dos personagens ou a entrada de um novo personagem exige que
se reoriente o espectador. A montagem de uma cena completa sem um plano
de conjunto é improvável, mas aceitável (especialmente quando se utilizam
imagens de arquivo ou filmadas em loca_ção ). A edição incoerente da direção
dos movimentos, assim como a angulação inconsistente dos olhares, é menos
provável. Falsos raccords facilmente perceptíveis e cortes não-motivados são
expressamente proibidos. Esse aspecto paradigmático faz do estilo clássico,

27
Por serem as norma s apenas g uias qu e classificam, probabilis ticamente, as o pções, nã o deve mos
nos apressar em expor as " transgressões" ao estilo clássico. Por exemplo, Peter Lehman aponta que
o enquadramento subjetivo do olhar d os personagens para a câmera em O médico e o monstro [Dr.
Jekyll and Mr. Hyde, Roub en Mamoulian, 1932] " está certamente em d esacord o com o paradig ma
hollywoodia no habitu a l" . No entanto, os planos de ponto d e vis ta óptico n ão são proibidos p e los
protocolos clássicos; são apenas m enos pro váve is que outra s opções. Da mesma forma, Lehman
assinala uma descontinuidade quando, no film e, Dr. Jeky ll sai de um pl ano de conjunto e supostam en-
te se vira de costas: há um corte para Ivy olhando para a câme ra e joga ndo sobre ela uma peça de
meia. Com relação a isso, gos taria de suge rir três coisas. Em pr ime iro lugar, as indi cações são
ambíguas com respeito a se Dr. Jekyll d e fato vira-se de costas; ele poderia ainda es tar olh ando para
fora d o quadro. Um pl ano posterior, que mostra seu pé virad o na direção de Ivy quando a peça de
meia ca i no chão à sua frente, reforça essa hipótese espacial. Em segundo lugar, a brincadeira com
o padrão do ponto d e v ista não é dife rente d o jogo com o es paço em Lubitsch e outros dire tores
clássicos mais inovadores. Por fim, é preciso le mbrar que O médico e o monstro inicia-se com um
longo travelling a partir do ponto de vis ta óp tico do Dr. Jeky ll, antes d e se rm os apresen tad os ao
personagem . A subj e tividade óp tica cons titui, portanto, uma importante pa rte d a norma intrínseca do
fi lme . Pode-se argumentar que o olhar d e Ivy em direção a um ambiva lente olho fora-de -campo
amplifica a norma narra tiva d o filme. Ver Peter Lehman, "Looking at Ivy Looking at Us Looking at
Her: the Camera and the Garter", em Wide Angle, 5 (3), 1983, pp. 59-63.
O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narratiuos

=~==~~-in' -
o classicismo, em qualquer arte, sempre se caracterizou pela obediência a
normas extrínsecas. 28

A lógica da espectatorialidade clássica

A estabilidade dos processos do syuzhet e das configurações estilísticas


não nos deve levar a tratar o espectador clássico corno um material passivo à
mercê de urna máquina totalizante. O espectador realiza operações cognitivas
específicas que não são menos ativas pelo fato de serem habituais e familiares.
A fábula hollywoodiana é o produto de urna série particular de schematas,
hipóteses e inferências particulares.
Quando o espectador vai a um filme clássico, vai muito bem preparado.
Provavelmente, a forma básica do syuzhet e da fábula será a da lS..tful
onic , da atividade de um indivíduo (o protagonista) voltada à consecução /
de objetivos e causalmente determinada. O espectador o ece os persona- , .., v.1j(
gens e as funções de estilo mais prováveis. Possu temalizadas a normas ~ '
cênicas de exposição, de desenvolvimento da linha causal anterior, etc. Co-
nhece ainda as formas pertinentes de motivação do que é apresentado. A
motivação "realística", no modo clássico, consiste em estabelecer conexões
reconhecidas corno plausíveis pelo senso comum. ("Um homem corno esse
iria naturalmente ... ") A motivação com posicional, por sua vez, consiste em
realçar as associações importantes de causa e efeito. Já as formas mais impor-
tantes de motivação transtextual são o reconhecimento da persona de um as-
tro de filme para filme e o reconhecimento de convenções genéricas. A moti-
vação genérica, corno vimos, tem um efeito particularmente forte sobre as
normas narrativas. Por fim, a motivação artística- tornar um elemento corno
"' "Exis tem, é claro, períodos que tende m à m áxima harmonia e es tabilid ad e possíve is, qu e são em
ge ra l denominados perío dos d e class ic ismo ." Jan Mukarovsky, "The Aesthe ti c Norm ", em John
Burbank & Peter Steiner (trads. e orgs.), Structure, Sign and Function: Selected Essays by Jan Mukarousky
(New Haven: Yale Universi ty Press, 1978), p. 54.

295

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