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2.3. Cinema de Montagem Soviético

Contexto Histórico e Aspectos Centrais

A revolução de 25 de Outubro de 1917 (que corresponde a 7 de Novembro no nosso

calendário gregoriano) foi a primeira revolução marxista do séc. XX e marca o início de

uma nova era: o fim do Império Russo, do poder do czar, e o princípio do que viria a ser

a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). A figura de proa da revolução foi

Vladimir Ilitch Lenin, mais conhecido como Lénine. Como secretário-geral do Partido

Comunista Russo, é ele que vai pensar mais seriamente no que deve ser feito — daí o

seu livro, já com alguns anos no momento da revolução, Que Fazer? Lénine nacionaliza

a indústria do cinema em 1919, depois de dois anos de desorganização e baixa

produção, permitindo o controlo sobre dois aspectos: a produção e a distribuição. A

nacionalização permitiu a descoberta de muitos filmes antigos, russos e estrangeiros,

guardados. Foram estes filmes que constituíram o grosso dos programas de exibição

até 1922.

Para perceber estas opções e o cinema de montagem soviético é preciso ter alguns

noções da abordagem marxista à realidade. Esta abordagem é materialista, não no

sentido de consumista, mas no sentido de entender a importância das condições


materiais em que as pessoas vivem e influência dessas condições na consciência que

têm da sociedade e de si. Outro termo fundamental é dialéctica. Os filósofos gregos

usavam-no para se referirem aos vários métodos de raciocínio e discussão que tinham

como fim descobrir a verdade. Immanuel Kant aplicou-o depois à análise das

contradições que surgem quando consideramos o conhecimento para além dos limites

da nossa experiência — nomeadamente, quando consideramos conceitos abstractos.


Hegel, por sua vez, como percursor mais directo de Marx, emprega o conceito de

dialéctica para descrever o processo de pensamento pelo qual aparentes contradições


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(tese e antítese) são vistas como parte de uma verdade mais elevada (síntese). Segundo a

perspectiva do materialismo dialéctico e do materialismo histórico que dele decorre, os

eventos políticos e históricos resultam do conflito de forças sociais com interesses

comuns (classes) que tem como base necessidades e recursos materiais. Esse conflito ou

luta é interpretável como uma série de contradições e tensões que se vão resolvendo de

modo dialéctico. O materialismo dialéctico e histórico permitem uma tomada de

consciência do modo como o mundo humano funciona, no seus aspectos económico e

social, abrindo por isso a possibilidade real da sua transformação. Podemos dizer então

que as opções políticas de Lénine em relação ao cinema se centraram nas condições

materiais existentes na União Soviética, um país pobre e sub-desenvolvido, mas com

grandes recursos naturais, numa tentativa de congregar esforços para garantir uma

produção como uma base sólida e uma distribuição que chegasse a todo o povo. É este

novo contexto cultural, social, e político que serve de pano de fundo à escola de

montagem soviética.

Lénine morre em 1924, já depois do estabelecimento do estado soviético em 1922,

baseado no trabalho colectivo de um conjunto de conselhos (sovietes) eleitos a nível

local, distrital, e nacional. Entre as décadas de 1920 e 30, mas transcendendo esse

período, esta escola desenvolve um cinema politicamente comprometido com a

revolução. O cinema revolucionário teria quatro grandes funções: a agitação de

carácter político, a desmistificação de falsidades, a disseminação de ideias, e a


educação da sociedade, procurando criar espaço para uma atitude crítica e uma

consciência política. Lénine declarou mesmo que “[d]e todas as artes, o cinema é para

nós a mais importante.” Isto porque o cinema é uma arte de massas, capaz de chegar

rapidamente a um grande número de pessoas, mesmo que sem instrução, adequando-

se bem ao movimento de massas que suportava a revolução. No geral, era um cinema

do operador de câmara — o operador filmava, montava, e projectava, e os filmes eram


montados a partir de fragmentos aos quais era dada uma certa ordem, e depois

mostrados em diversos locais. É de referir, no entanto, que os grandes filmes da escola


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soviética não são estes e surgiram numa altura de grande questionamento da prática

artística e da criação do sentido através da arte (tal como o cinema impressionista e

expressionista) e, portanto, são também um produto desse questionamento que define

a modernidade.

Lénine tinha uma visão tradicional da arte e pessoalmente pouco lhe interessava

movimentos como o construtivismo (que na pintura, design, e arquitectura,

combinaram a mecanização moderna com formas abstractas geométricas). No entanto,

Lénine não confundiu a sua preferência com o que podia ser feito e garantiu, e até fez

florescer, a liberdade artística — que foi, de alguma forma, diminuída mais tarde com o

predomínio e defesa do chamado realismo socialista. O cinema de montagem soviético foi

um movimento de vanguarda, não apenas experimental. Aproveitando a analogia

militar (avant guarde, à frente da guarda), foi um cinema sem rede ou protecção, à frente

do seu tempo, capaz de repensar o cinema na sua raiz. Para os cineastas soviéticos, o

cinema permitia uma crítica dos sistemas tradicionais de representação — isto liga-o

ao formalismo, no qual a forma das obras de arte é um sistema pensado e estruturado,

mas sem o encerrar nele porque se trata de um sistema significante. A dependência do

cinema das máquinas que o produzem (a câmara, a mesa de montagem) liga-o ao

construtivismo, na relação de um quotidiano povoado de máquinas com a produção

artística.

Kulechov e Pudovkin, Associação e Integração

Lev Kulechov e Vsevolod Pudovkin foram duas figuras importantes desta escola.

Kulechov dirigiu um laboratório em Moscovo, no Instituto Técnico do Cinema, que

conjugava a teoria e a prática — e que foi crucial na formação de Pudvokin. Os


cineastas desta escola são semelhantes no modo como colocam a montagem (de

fotogramas e de planos) como central para a arte cinematográfica. Mas como se verá,
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cada um deles vê o conceito de montagem de maneira diferente. Influenciado por D. W.

Griffith e Charles Chaplin, Kulechov considerava a montagem como central no

cinema. Em 1918, ele publica um ensaio intitulado “Montagem” no qual defende a

montagem como aquilo que é específico do cinema: sem montagem, não há cinema.

Para ele, um filme constrói-se como uma casa, bloco a bloco, na mesa de montagem,

assumindo o cineasta o papel do construtor. Ele escreve:

O meio de expressão específica do cinema é a sucessão rítmica dos planos, ou de

curtos fragmentos imóveis, o que produz a expressão do movimento, facto que

tecnicamente, se chama montagem. A montagem no cinema corresponde à

organização das cores na pintura ou à sucessão harmónica dos sons na música. Os

planos devem ser simples, legíveis, expressivos, aptos a poderem ser

correctamente percebidos pelo espectador. O ritmo é o verdadeiro conteúdo do

filme; é ele que decide das reacções e dos pensamentos do público.

Até 1923, a oficina de Kulechov teve de explorar estas questões quase sem película, por

falta de meios. Organizando uma sucessão de pequenas cenas mudas como se fossem

planos, utilizando um jogo de cortinas, e optando pela estilização visual, o grupo

desenvolveu a ideia do planeamento de um filme a partir da noção de repetição de

unidades preenchidas ou por preencher. Estas unidades funcionavam como os


desenhos de um storyboard, que constituem uma espécie de partitura cinematográfica,

dando indicações para a concretização de um projecto de filme.

Para Kulechov, a montagem tinha um efeito de associação, que é aquilo a que

chamamos efeito-Kulechov. Já com película, os membros do laboratório criaram uma

série de experiências. Combinaram planos de diversas mulheres (uma braço de uma,

uma perna de outra) para criar uma mulher imaginária. Combinaram planos da Casa
Branca e do Kremlin, criando uma geografia composta e imaginária. A mais citada

dessas experiências envolveu a repetição (o que se chama montagem em relevo, que é


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diferente da montagem horizontal, de simples ligação, sem repetição) de um grande plano

inexpressivo de um actor (Ivan Mozzhukhin) intercalado com três planos

aproximados:

(1) de um prato de sopa numa mesa;

(2) de um corpo morto de uma mulher num caixão;

(3) de uma criança a brincar com um urso.

Em cada um dos casos, formou-se um sentido diferente na mente do espectador em

cada associação — (1) fome, (2) tristeza, e (3) ternura — apesar de se tratar do mesmo

plano do actor. A conclusão é que estes sentidos não estão nos planos (ou estão neles

apenas em potência), mas são sugeridos pela associação de planos. Isto mostra que

aquilo que os espectadores sentem e pensam não é apenas dependente do que foi

filmado, mas sobretudo da combinação de imagens. Em Po zakonu (1926), Kulechov usa

a montagem desta maneira. É um melodrama passado quase todo no interior de uma

cabana onde um garimpeiro está amarrado por supostamente ter roubado ouro. Na

comemoração do seu aniversário, o filme combina imagens do rosto do acusado e de

uma garimpeira que lhe pergunta por que razão ele roubou, com imagens dele a dar o

ouro à mãe, de ramos em flor, do amparo do seu cão, do bolo de aniversário a arder, e

de uma paisagem desolada. Cada uma das imagens em combinação com o rosto e as
lágrimas dele expressam a mágoa de um homem devastado, que ainda consegue ter um

vislumbre de alegria (que reflecte a entrega da riqueza à mãe e a natureza florida).

Tudo isto é transmitido sem palavras.

Esta última experiência foi já conduzida por Kulechov em conjunto com Pudovkin.

Mais tarde, o segundo havia de chegar a outro entendimento de montagem. Para

Pudovkin, a montagem tinha a ver com integração. Os planos filmados fragmentam a


nossa percepção da realidade e a montagem é uma forma de a reconstruir de outro

modo, criando aquilo que ele descrevia como uma mentira verosímil. Para ele, a
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montagem não era uma prática posterior à rodagem, mas começava antes,

impregnando todo o processo de construção de um filme (planificação, sequenciação

da filmagem, filmagem, edição). Um filme não era por isso rodado: era fabricado. A

planificação, que corresponde à especificação dos planos a rodar, seria uma fase

analítica e a edição (a montagem propriamente dita) seria uma fase sintética. Da

análise à síntese, a montagem em vez de ser uma soma de partes, é o produto de uma

integração de elementos. Um dos filmes mais marcantes de Pudovkin é Mat (A Mãe,

1926), adaptado do livro homónimo de Máximo Groki, escrito em 1907. Como outros

filmes dele, é um épico, uma narrativa histórica espectacular que não perde o contacto

com as emoções pessoais nem com a dimensão colectiva. No fim do filme, a mãe deste

drama resolve manifestar-se com os revolucionários contra o regime czarista que

prendeu o seu filho devido a uma greve. Pudvokin enquadra-a como uma heroína e a

sequência evolui para um ritmo acelerado, atingindo um clímax quando os cavalos dos

soldados passam pela câmara em rápidos borrões para a direita, para a esquerda, e

virados de cabeça para baixo. O espectador sente que o ataque a esta mãe vem de todos

os lados. Ela morre, mas o gesto de resistência e contestação sobrevive à sua morte.

Pudovkin propôs uma classificação de vários tipos de montagem que foram

utilizados em Potomok Chingis-Khana (Tempestade na Ásia, 1928) sobre um mongol

capturado por forças invasoras britânicas. A montagem contrastada explora o contraste

entre dois elementos de importância desigual, na mesma cena (unidade espaçio-


temporal) — como o japa mala, cordão budista com 103 contas para exercícios de

meditação, e as insígnias do comandante britânico na sequência do Lama. A montagem

paralela estabelece uma progressão dialéctica de acções contrastadas (diversidade de

espaço e unidade de tempo) — como quando a tentativa de assassinato do protagonista

mogol Bair (Valéry Inkijinoffé) é intercalada com a descoberta de que ele é descendente

de Genghis Khan, o grande líder do Império Mongol. A montagem simbólica utiliza uma
imagem estranha à acção como metáfora visual (diversidade de espaço e possivelmente

de tempo) — por exemplo, a tempestade final simboliza a força avassaladora contra os


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invasores. A montagem por leitmotiv é a reiteração temática de um motivo visual — a pele

de animal reaparece como imagem da exploração quando Bair é já líder depois de,

numa cena inicial, Bair (ainda pastor) ter trocado a pele por dinheiro e ter sido

enganado por um oficial britânico, precisamente o mesmo oficial que oferece mais

tarde a pele a uma mulher. Todos estes tipos de montagem utilizados em Potomok

Chingis-Khana dependem fortemente de elementos da mise-en-scène (adereços, cenários,

guarda-roupa), o que confirma o modo integrado como Pudovkin entendia a

montagem.

Os dois maiores teóricos-cineastas do cinema de montagem soviético foram Dziga

Vertov e Sergei M. Eisenstein.

Vertov e o Cine-Olho

Vertov desenvolveu o conceito de cine-olho. Para ele, a verdade está na relação entre a

visão e a matéria. Que visão é esta? É a visão do olho da câmara, do olho do cinema, que

nos dá acesso a uma forma de ver (proporcionada por uma máquina) que é diferente da

nossa e através da qual podemos ver mais e melhor. Esse olhar é verdadeiramente

revolucionário, faz o espectador revolver, rodopiar, confrontado com uma torrente de

imagens diferentes das imagens da sua simples percepção. Para além disso, o
espectador é confrontado com relações que não consegue estabelecer ou que lhe

escapam na sua vivência quotidiana. Trata-se de um olho sobre-humano, mas não

inumano. É um olho que produz um certo tipo de imagens e não outras, e vai pedir um

modo cortante, intervalar, de passar de um plano para outro, de um fragmento para

outro — como num piscar de olhos. Nos filmes de Vertov, se a rodagem é o eu, a

montagem é o nós, isto é, a sequenciação de vários actos de ver. O cine-olho é o cinema


fundado neste olho, um cinema que torna visível a dialéctica, a combinação de visões

numa grande visão.


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Vertov fez diversos diários fílmicos curtos, sob o título de Kino-pravda que

complementava o jornal Pravda (Verdade) do Partido Comunista, mas ficou mais

conhecido por Chelovek s kino-apparatom (O Homem da Câmara de Filmar, 1929). O cineasta

anuncia logo o seu programa artístico no genérico: esta é uma experiência visual de

cinema sem narrativa, sem diálogos, sem intertítulos. Nesta obra, as condições

materiais do cinema são expostas logo desde o início — as primeiras imagens mostram

os espectadores a entrarem numa sala de cinema e também nós estamos a ver um

filme. A transitoriedade do mundo é mostrada e o operador arrisca a vida para recolher

imagens extraordinárias. O filme regista o quotidiano, mas não abdica da elaboração

formal, conjugando o cinema documental com o cinema experimental.

Tri pesni o Lenine (Três Canções sobre Lénine, 1934) é outro filme de Vertov que merece

referência. Trata-se, como o próprio título faz adivinhar, de uma homenagem a Lénine,

realizada uma década depois da sua morte, e dividida em três partes. A primeira sobre

uma mulher muçulmana numa das repúblicas da URSS que ganha consciência sobre a

sua condição oprimida ao ler e reflectir sobre as ideias leninistas. A segunda sobre a

vida de Lénine. A terceira sobre o governo a que presidiu e as transformações a que deu

origem.

Como veremos, tudo isto é, de certa forma, o contrário do que Eisenstein defende.

Para Vertov, o mundo já é dialéctico e, por isso, gera a dialéctica no cinema e o

pensamento dialéctico dos cineastas. Para Eisenstein, o cinema é um instrumento que


constrói uma perspectiva dialéctica sobre o mundo e apenas o pensamento do artista

pode criar uma visão dialéctica. Ao cine-olho de Vertov contrapõe-se o cine-punho de

Eisenstein. O segundo queria atingir os espectadores, afectá-los — daí a imagem do

cinema como um murro na cabeça ou no estômago.

Eisenstein e o Filme como Organismo


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O teatro foi o primeiro interesse de Eisenstein e foi a ele que o cineasta foi buscar um

dos seus conceitos basilares: a atracção. A ideia de atracção vem mais precisamente do

circo, que apresenta diversas atracções com animais, magia, palhaços, e acrobatas.

Partindo desta noção, o cineasta diz que o cinema pode usar atracções para chamar a

atenção do espectador, recorrendo a passagens deliberadamente violentas entre

imagens fortes e espectaculares. Estas passagens sublinhariam a autonomia em vez da

continuidade, a ruptura em vez da fluidez. Eisentein utilizou também a ideia de

patético, de mudança de pathos, a composição de efeitos emocionais, para descrever as

rupturas de tom entre imagens e sequências num filme.

Para Eisenstein, os planos são células em vez de blocos (como eram para Lev

Kulechov e Vsevolod Pudovkin). Um plano não é um elemento de montagem, mas uma

célula de montagem, isto é, criam o filme através da montagem, como as células criam

organismos. Esta criação surge através do modo como colidem. Tal colisão criadora é

claramente dialéctica e tal conflito existe não apenas entre planos, mas no interior dos

próprios planos, sendo multiplicada fotograma a fotograma. É precisamente isto que se

vê em Oktyabr (Outubro, 1928), que está estruturado em partes, nas quais se vê a

dialéctica em acção, um determinado desenvolvimento na luta de forças que gera uma

resolução provisória, até outro desenvolvimento começar. Por exemplo, no Acto I, a

antiga ordem representada pela estátua do czar Alexandre III é desafiada pela

Revolução de Fevereiro e o que resulta deste processo dialéctico é a criação do governo


provisório. Eisenstein não quis fazer um filme factual (a estátua do czar era em

Moscovo não Petrogardo, muitos acontecimentos não se passaram exactamente

assim), mas capturar a verdade emocional, intelectual, e social da história da revolução

russa. Um outro aspecto onde se vê a dialéctica em acção é a relação entre o indivíduo e

o colectivo — Outubro, é um filme de massas de pessoas, do povo a dirigir a história,

onde mesmo Lénine se acaba por tornar uma figura no meio da maré da revolução.
Eisenstein propôs uma nomenclatura para a montagem ainda mais detalhada do

que a de Pudovkin e que é bem exemplificada em Bronenosets Potyomkin (O Couraçado


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Potemkin, 1925), mesmo que alguns destes termos só tenham sido cunhados pelo

cineasta depois deste filme. Montagem métrica (a medida dos fragmentos) e montagem

rítmica (o ritmo dentro e entre fragmentos) referem-se aos níveis métricos e rítmicos da

montagem, que têm a ver com os seus aspectos quantitativos e qualitativos — a

sequência das escadarias de Odessa explora contrastes gráficos estridentes que moldam o

ritmo, por exemplo. Montagem tonal diz respeito à associação de imagens-ideias, ao som

emocional de cada fragmento (ligando a montagem à composição musical) — o

desespero trágico da mãe perante os soldados na mesma sequência exemplifica isto.

Montagem harmónica é um desenvolvimento da anterior, agora aplicado a todo o filme

em vez de uma parte dele. Montagem intelectual é uma associação de planos que faz

passar uma ideia sem relação causal com o resto da sequência, como acontece na

animação criada através das estátuas dos leões em diferentes posições depois do

confronto nas escadarias. O leão levanta-se tal como o couraçado se eleva para ajudar a

população atacada por causa de um acto de insurreição. Por fim, a montagem vertical,

que ele desenvolve na década de 1930, vê o plano e o fotograma como carregados de

elementos (composições, motivos, objectos, actores, cores, etc.) e relações, criando uma

estrutura vertical que complementa a horizontalidade da montagem na união de

pedaços de película.

Dovjenko e os Filmes de Raiz Popular

O cineasta Aleksandr Dovjenko de origem ucraniana deve também ser referido. Zemlya

(A Terra, 1930) é o seu filme mais conhecido, sobre o processo de colectivização e a

hostilidade dos exploradores agrícolas mais ricos na região da Ucrânia. Zvenigora (1928)

é uma obra menos conhecida, mas muito rica, primeiro tomo da trilogia que inclui
Apcehaa (Arsenal, 1929) e Zemlya. Zvenigora conta a história de um velho que confidencia

ao neto que há um tesouro enterrado numa montanha. Era o quarto filme de Dovjenko,
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que decidiu sair do estúdio e filmar em exteriores, usando as gentes locais. O filme foi

concebido como um poema. Regista o progresso industrial e a luta dos trabalhadores,

mas sobretudo celebra o folclore local, fazendo uso de factos históricos e de tradições e

lendas do povo ucraniano. Algumas destas histórias são recriadas pelo filme, à medida

que o velho as conta, introduzindo a fantasia na realidade, e mostrando o modo como

se interligam e alimentam.

Cinema de Montagem e Marxismo

Não há uma estética de cinema marxista. Há uma forma marxista de pensar o cinema,

que reflecte sobre as condições materiais da sua criação (dos recursos existentes a

quem detém os meios de produção) e sobre a sua dimensão política e social. Este

movimento cinematográfico colocou a materialidade do filme no centro da sua arte. Ao

levar ao limite a reflexão e a prática sobre o aspecto material do cinema, explorou a

incrustação e manipulação do sentido através dos efeitos gerados pela estrutura formal

de um filme como sistema de relações. O que interessava a estes cineastas era a

realidade registada pela câmara e materializada na película, no que têm de constante

(os intervalos negros entre as imagens) e de variado (as imagens em si). O cinema de

montagem soviético constitui um paradigma teórico e prático quando se fala da


natureza, das possibilidades, e dos efeitos da montagem no cinema. Este paradigma

continua a influenciar o trabalho de cineastas contemporâneos, directa e

indirectamente.

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