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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIISIE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanza a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
3
MARZO
7958

ERGUNTE

Responderemos

ANO
ÍNDICE

I. FILOSOFÍA E RELIGIAO

1) "Porque dizem que o católico nao pode ser comunista?" . . $7


2) "Sobre a telepatía, que. se pode afirmar de certo ?" 92
fl) "Que é a Antroposofia. e em que se distancia do Catoli
cismo ?" p?

II. DOGMÁTICA

i) "Se a Misxa tem valor infinito, porque te celebra maús de


u'a Missa por determinada intencao ?" 100
Ci) "O culto dos santos nao será paganismo que corrompe o
Evangelho ? Em particular, a devocao a María parece derrogar d
excelencia de Cristo, o -único Mediador entre Deus e os homens (cf.
1 Tim 2,5)" IOS
ti) "Quais os argumentos bíblicos e teológicos aplicáveis na
controversia com os batistas sobre a doutrina da gra$u ? A ma-
veira como covccbem <i xtilvacño parece bem diferente da católica" lOfí

III. SAGKADA ESOKITTJr.A

?) "ICttt f/nf htf/ttr tltt to.rra firttva n ¡tfirní^ti ovdr. vivcrtnn


Ailño o Uva ?" 1¡¿
fí) "Qual a dala érala do naacimento de A'o.vso Sevhor Jesús
Cristo ?" 1U
9) "A estréla que unión ox magos ao presepio nao constituí
fenómeno milagroso ?" llt!
10) "Qual o significado auténtico da frase de Cristo: 'Se al-
guém te bater na face direita, apresmita-lhe a outra' (Mt 5,3!))?" .. 118

IV. MORAL

11) "Nao será injusta a rampanha movida contra a chamada


I.<uwo <>>'. Boi' Voníatlc ?" 119

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

1S) "Houve inesmo ti: serie dos Papas uniu Papisa t" l£.'i

COItRESPONDSSCJA Mll.DA iSfi

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS >

N? 3 — Marco de 1958

I. FILOSOFÍA E RELIGIÁO

PEDRO JUÁREZ (Rio de Janeiro):

1) «Porque dizeni que o católico nao pode ser comu


nista ?»

1. O comunismo hoje muito apregoado, ou seja, o mar


xismo (doutrina de Karl Marx, 1818-1883), vem a ser o sistema
que propugna tornar comuns, de maneira radical e mais ou
menos violenta, nao sómente os fundos produtivos (o capital e
as térras), mas também os bens produzidos; preconiza assim a
aboligáo da propriedade particular e a rigorosa igualdade social
entre os homens.

O marxismo económico e sociológico se enquadra dentro


de uma concepgáo geral da vida ou dentro de uma filosofía, da
qual é inseparável. Esta filosofía, porém, é muitas vézes igno
rada por aqueles a quem certos aspectos laterais do comunismo
conseguem atrair. Percorramos, portanto, rápidamente os tragos
dessa ideología.

Primeiramente, o marxismo professa o materialismo, e ma


terialismo dialético; o que quer dizer: a única realidade exis
tente é a materia, e a materia posta em continua evolugáo,
devida ao choque de fórgas antagónicas. Em conseqüéncia, toda
a historia se tece de conflitos entre os elementos contrarios da
materia. Táo longo processo, porém, tende ao equilibrio e á
harmonía fináis. Vé-se desde já que o marxismo incute uma visáo
dinámica (que os seus mentores chamam de «dialética»), em
oposigáo a qualquer concepgáo estática (ou «metafísica», diriam
os marxistas) do mundo.

A materia é eterna; está em movimento desde todo o sem-


pre, nem pode ser concebida sem movimento. Na ideología
marxista, portanto, nao há necessidade de um Motor Imóvel,
Causa última- de todas as causas (segundo a filosofía de Aristó
teles), nem de um Criador ou Deus. A fé em um Ser todo-pode-

— 87 —
-PEKGUNTE K RESPONDEREMOS. 3/1 !)!>*, ()u. 1

roso proviria da incapacidade de explicar os fenómenos naturais


ressentida pelo homem primitivo.

Aplicados mais próximamente á sociologia, estes princi


pios significam que o género humano até a época contemporánea
viveu cm constante luta de classes : o capitalista é o explorador
e opressor; o operario, o oprimido : «A historia da humanidade
registrada até hoje é historia da luta de classes», reza o mani
festó de Karl Marx publicado em 1848. O fator que condiciona a
luta e explica todas as atividades humanas, vem a ser a econo
mía : «A oeonomia o a produlividade da vida material condicio-
nam os fenómenos sociais, políticos o ospirituais da vida em
geral. Nao é a consciéncia do homem que determina o modo de
ser da sociedade, mas, ao contrario, é a vida dos homens na
sociedade que determina a consciéncia dos mesmos» (Marx, Zur
Kritik der politischen Oekonomie, Vorrede 1859).

Em outros termos : Direito, Filosofía, Moral, Arte, Reii-


giáo sao considerados «ideologías» ou «super-estruturas» da
produeáo material; a classe dominante na sociedade costuma
impor as domáis as suas concepcóes filosóficas e religiosas.
O feudalismo medieval e o capitalismo falavam de principios
éticos absolutos; o marxismo, ao contrario, nega a existencia de
normas moráis imutáveis : «A nossa moral é, em tudo e por
tudo, subordinarla aos interésses da hita do classe do proleta
riado» (Lenin, Obras, 3* edigao XXV. Moscou 1933, 391). A pri-
meira lei da ética marxista é a luta pela instauracáo universal
da ordem de coisas comunista : nao há, pois, direitos absolutos,
mas a fórga o a violencia em vista do objetivo proposto vém a
ser os ditames supremos da vida social. As artes e as ciencias
no marxismo devem igualm&nte exprimir o pensamento da classo
operaría, isto é, háo de ser cultivadas em funcáo do Partido Co
munista; alias, toda a cultura comunista vem a ser «cultura do
Partido», portadora de carálcr popular socialista, patriotismo
soviético, otimismo, etc.

Proposto ao mundo nos séc. XIX e XX, o marxismo apre-


goa a revolugáo social, da qual devem resultar a total extincáo
de classes e até mesmo a supressáo do Estado; é a propriedade
particular que divide a sociedade em classes. Para conseguir a
sua meta final, o marxismo visa, em primeiro lugar, instaurar a
chamada «ditadura do proletariado». Mediante a aboligáo do
Estado burgués, os trabalhadores oprimidos procuraráo aniqui
lar os seus opressores atuais, sendo-lhes lícito, para isto, o re-

— 88 —
CATÓLICO E MARXISTA ?

curso a qualquer meio coibitivo (em verdade, no Estado mar-


xista, é um so homem, o ditador, quem aplica ésses meios «em
nome do proletariado» ou também contra o proletariado). Na
fase definitiva do processo comunista, já nao haverá autoridade
de Estado, mas todos os homens, livres da escravidáo capitalista
e dos numerosos preconceitos que esta acarreta, viveráo sem
leis, movidos únicamente pelo entusiasmo do trabalho desinte-
ressado, trabalho espontáneamente executado para o bem da
coletividade; desapareceráo as injusticas e a miseria! — É, pois,
urna verdadeira Redengáo, é um autentico messianismo encami-
nhado para um paraíso terrestre, que o marxismo propóe ao
mundo.

Ncste quadro é claro que nenhuma das tradicionais for


mas de religiáo tem cabimento : «O marxismo é um materia
lismo. Como tal, é inimigo implacável da religiáo.. Devemos
combater a religiáo. Éste é o abe de todo materialismo, por con-
seguinte também do marxismo» (Lenin. Obras XIV 70). «O Par
tido nao pode ser neutro frente á religiáo... porque ele é favo-
rável ia ciencia, ao passo que os preconceitos religiosos sao con
trarios a esta» (Stalin. Obras X 132). Nao é menos verdade,
porém, que a ideología marxista com a sua mística, ou soja, com
a sua fé entusiástica na consecuc.áo da felicidade integral, se
torna urna religiáo, exigindo para as instituicóes e os repre
sentantes do comunismo a adesáo que sempre foi tributada a
Dous. Já Dostoevskij (f 1881) dizia muito bem, como qup carac
terizando anlecipadamente os comunistas contemporáneos : «Os
homens nao se tornam ateus apenas, mas créem no ateísmo
como em urna religiáo». Tem-se observado repetidas vézes que o
marxismo se aprésenla como um catolicismo as avessas; muitos
sao os pontos de contato de ambos, trazendo apenas sinais in
versos de valorizagáo (positivo, negativo; á direita, á esquerda).

2. Qual o juizo a, proferir sobre tais teorías?

Nao se pode negar que a ideología marxisla encona um


núcleo de verdade : o mal-estar da sociedade provém nao raro
do predominio injusto de urna classe sobre as outras ou da
defeituosa distribuigáo dos bens produtivos. Desta verificacáo,
porém, nao se segué que a solucáo consista em suprimir a pro-
priedade privada e as classes sociais. Com efeilo

a) nao se podem reduzir todos os problemas humanos á


questáo económica, como se o homem por sua natureza fósse

— 89 —
^K jajyTONj^REMOg»_3/195S. qu, 1

destinado a ser mero produtor e consumidor de bens materiais


ficando as suas demais aspiragóes dependentes da satisfagáó
desta primeira. Haja vista a familia : nao sao as necessidades
económicas que dáo origem á familia, mas, ao contrario, é a
familia que funda a economía (o termo grego oikonomia o diz
muito bem : oikos, casa; nomia, dispensagáo, legislagáo). É o
desejo de se perpetuar e de certo modo imortalizar que leva o
homem a constituir um lar e a procurar conseqüentemente, me
diante a sua industria (caga, pesca, agricultura), os meiós de
subsistencia para os seus familiares.

Tambóm ó váo dizer que a Filosofía, a Moral, a Rcligián


sao fungóes da produgáo material, embora possam sofrer a in
fluencia desta; existem, sem dúvida, verdades especulativas e
normas éticas objetivas, imutáveis : que a soma dos ángulos de
um triángulo seja igual a dois retos, é proposigáo que nenhum
sistema económico jamáis poderá alterar. Em particular no
tocante á religiáo, é absurdo apresentá-la como expressáo do
homem covarde ou atrasado : o testemunho dos povos, os docu
mentos da civilizagáo ai estáo a dizer o contrario. A religiáo
sempre foi o fator que estimulou a civilizagáo e a industria dos
diversos povos: a construgáo da habitagáo humana, a funda-
cáo de cidades, a abertura de estradas, a eregáo de pontes, a
domesticagáo de animáis, o cultivo de plantas, a contabilidade
baíioária sao realizacóes inspiradas inicialmente por motivos
religiosos; a religiáo, long<; de coibir, sompro fomnntou o oxer-
cicio das faculdades superiores do homem (inteligencia c von-
tade); a historia da ciencia e a civilizagáo sao, em grande parte,
tributarias das aspiracóes religiosas que constantemente mo-
veram os homens a novos empreendimentos. Veja-se a propósito
a abundante documentagáo citada por P. Deffontaines, Géogra-
phie et Religions. París 1948; outrossim «P. R.» 19/1959, qu. 1.

b) A tesé da etemidade da materia está em contradi-


gáo com a da evolugáo ascensional da mesma materia; carencia
de inicio e evolugáo sao termos inconciliáveis entre si, pois toda
evolugáo supóe necessáriamente um ponto inicial e outro final.
A hjpótese da etemidade do mundo está também em desacordó
com a ciencia moderna, que nao sómente requer um ponto de
partida para o processo evolutivo do universo, mas também fala
de relativa «juventude» do cosmos (cérea de dez bilhóes de
anos).

c) Entre os homens existe, sim, igualdade básica de na-


tureza (todos sao animáis racionáis), diferenciada, porém, por

— 90 —
CATÓLICO E MARXISTA ?

características acidentais, pessoais; dotados de diversa capaci-


dade intelectual e variada energía de vontade, os individuos
tendem pelas suas atividades a se dispor em hierarquia, devida
ao uso e ao abuso que cada um faz de suas qualidades. As
desigualdades económicas, portanto, provém em grande parte das
desigualdades naturais que intercedem entre os individuos; por
isto é que nao sao condenáveis, desde que se mantenham dentro
de certos limites e nao impecam a colaboragáo de todos para o
bem comum. O nivelamento dos individuos mediante a extingáo
da propriedade particular é contraditório á própria natureza
humana, como o comprova a experiencia da Rússia mesma : a
sociedade soviética conhece hoje de novo as suas classes, os
seus individuos e grupos privilegiados, embora os nomes e títulos
sejam diferentes dos que estavam em voga no regime imperial.
Donde se vé que a igualdade entre os homens nao poderá ser
aritmética, mas há de ser proporcional: todo individuo na so
ciedade há de gozar de direitos particulares, correlativos as suas
aptidóes naturais e á contribuicáo que ele possa prestar ou haja
prestado ao bem comum.

De resto, fraternidade entre os homens sem crenca em


Deus é impossível; se nao se reconhece um Pai comum nos
céus, com que direito se exigirá que os homens se reconhecam
uns aos outros como irmáos sobre a térra ? Cedo ou tarde,
mostra-nos a historia que as tendencias egoístas se atuam,
corroendo a filantropía dos atcus. Muito menos se pode espe
rar que, sem Deus, os homens instaurem o paraíso sobre a térra,
vivendo sem leis, em espontánea concordia. Tal expectativa
ignora totalmente a realidade histórica : a natureza humana
e, com ela, o mundo visível estáo sujeitos a desordem que o pe
cado inicial introduziu (pecado de que falam as reminiscencias
mesmas dos povos primitivos); e sómente pela reconciliagáo
do homem com Deus é que se poderáo obter harmonía e bem-
-estar neste mundo. — Á luz destas consideragóes, o marxismo
aparece claramente como urna religiáo desviada do seu verda-
deiro objetivo. Alias, já dizia muito a propósito Donoso Cortés,
o famoso estadista (f 1853): «Toda civilizagáo é sempre o re-
flexo de urna Teología» (Ensayo sobre el catolicismo, el libera
lismo y el socialismo 1851).

Vé-se, por fim, que nao há compatibilidade entre catoli


cismo e marxismo plenamente entendidos. Isto nao excluí que
certas teses marxistas referentes á economia ou á administra-
gáo pública possam ser incorporadas á ideología crista. Segundo
as declaragóes dos próprios comunistas, o marxismo nao pode

— 91 —
-PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 3/1958, qu. 2

nem quer ser concebido independentemente do quadro filosófico


ou do materialismo dialético que inspirou a Marx; qualquer ten
tativa, como a da II Internacional, de edificar o comunismo
sobre outro fundamento filosófico é rejeitada pelo bloco mar-
xista preponderante qual deviacáo ou heresia (sabe-se que a
II Internacional, de 1880 ao finí da primeira guerra mundial,
foi tida por Lenin, Trotzkij como Internacional dos social-
-patriotas e dos traidores). A prática do marxismo é indissolú-
vel da respectiva leoria; por isto também tudo que o marxista
realiza na vida pública, ele o realiza no espirito do partido. Diz
Lenin : «O materialismo implica, por assim dizer, o espirito de
parí ido, enquanio nos obliga, em todo juí/o quo formulemos
sobre um acontecimenlo, a colocar-nos dirota e abcrtumcnle do
ponto de vista de certo grupo social» (Obras I 380s).

WALTER (Matías Barbosa, MG):

2) «Sobre a telepatía, que se pode afirmar de certo?»

A telepatía (do grego tele, longe, e pathos, padecimento)


é, em sentido lato, a faculdade de conhecer pessoas ou acon-
tecimentos postos em distancias ou circunstancias que nao sao
normalmente apreendidas pelos sentidos humanos. A tal fenó
meno se dáo igualmente os nomes de telestesía (percepcáo a.
distancia), criptestesia (percepgáo por via oculta) e clarividen
cia. Trata-se de um modo de conhecer que nao é própriamente
doentio, mas também nao é normal, e, sim, paranormal, ou seja,
verificado ao lado das vias normáis; seria o caso, por exemplo,
de quem lé um documento tendo os olhos vendados, ou refere
a morte de um párente no momento mesmo em que eia ocorre
a grande distancia.

Nao se pode negar a existencia de tais fenómenos, nem


atribui-los todos á intervengáo milagrosa de Deus, nem, de outro
lado, reduzí-los simplesmente a coincidencias casuais. Ésses fe
nómenos podem ser, e tém sido, provocados em laboratorios
segundo leis estatisticas; hoje em dia mais c mais se cultiva a
ciencia da telepatía (ramo da metapsíquica), procurando-se des
vendar as normas misteriosas que a regem. Entre 1880 e nossos
tempos foram realizados cérea de cinco milhóes de experiencias
QUE DIZER DA TELEPATÍA ?

telepáticas, na base das quais se distinguem atualmente 150 cate


gorías de fenómenos de telepatía.

Note-se, por conseguinte, que tais fenómenos nao sao ex


clusivos do dominio do espiritismo; verificam-se independen le-
mente déle. Na verdade, o espiritismo nao passa de urna inter-
pretagáo entre as muitas dadas aos fenómenos telepáticos, inter-
pretagáo que abusivamente envolve crengas religiosas em um
setor que de per si pertence á algada da medicina, da psicología,
ficando abaixo das altas esferas da filosofía e da religiáo.

2. O ostudo da metapsiquica o da telepatía ('■ rolativamenle


récenle; polo que aínda navega em meio a maros obscuros. A
complexidade dos seus fenómenos é tal que se torna difícil gene
ralizar as explicagóes; varios sao os fatores aos quais, segundo
a configuragáo de cada caso, se poderá recorrer para dar conta
do ocorrido. Tres teorías explicativas estáo mais em voga :

a) alguns estudiosos^ admitem no homem um «sexto


sentido» ou urna faculda'de especial de conhecer por vias
ocultas. Estas faculdade nao seria privilegio, mas propriedade
comum da natureza humana, propriedade ora mais, ora me
nos aguda, susceptivel de ser desenvolvida e educada (todo indi
viduo, por conseguinte, seria capaz, até certo grau, de se tornar
«médium»). Tal é a conclusáo a que chegaram os cientistas ame
ricanos da «Duke University» de Durham, da «Colombia Uni-
versily» do Nova Iorque, do «Hunter College>\ etc.; ci". J. A.
Greenwood, Extra-Sensory Perception after Sixty Year.s. New
York 1940; também «P. R.*» 13/1959, qu. 8.
b) Outros autores admitem que os sentidos possam ultra-
passar os limites normáis de suas percepeóes, intensificando-se
e abrangendo lugares remotos. Sendo a alma humana indepen-
dente do espago (por ser espiritual), ela poderia estender a sua
atividadc para além das fronteiras que lhe impóe o corno; conhe-
ceria entáo instantáneamente objetos e aconlecimentos existen
tes a longa distancia. Mesmo os acóntecimentos futuros estáo
contidos germinalmente em suas causas; através destas (con
temporáneas ao sujeito que conhece), poderiam ser previstos
com exatidáo.

c) Ató os últimos anos julgava-se outrossim que tanto o


sujeito humano como os seres infra-humanos ernitem radiales
especiáis, as quais impregnam o ambiente em que se encontré
-PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 3/1958, qu. 2

tal pessoa ou objeto e podem ser subseqüentemente captadas por


individuos que tenham a sensibilidade apurada; denunciar-se-iam
assim as pessoas que posteriormente penetran nésse ambiente.
É o que se chama «a Psicometria», estudada por Fechner, Bu-
chanan, Danton, Myers, de Rochas, Bozzano. — Esta tese,
porém, sofre hoje contestacáo; os melhores autores sao reserva
dos no toca.nte ao magnetismo animal ou a fluidos e ondas que
sairiam do corpo humano.

3. Embora as pesquisas da ciencia ainda nao permitam


elucidar positivamente todos os fenómenos telepáticos, elas sao
suficientes para demonstrar quáo vá é a explicagáo que dos
mesmos dá o espiritismo; conforme éste, um espirito do Além
(como o de Napoleáo, o de Maria Antonieta, o de Bossuet,
Lincoln, etc.) baixaria sobre a térra e revelaría ao vidente
nogóes que ele ignorava; seria o espirito «guia», em nome do
qual o «médium» falaria.

Contudo o aparecimento de personalidade nova num indi


viduo posto em estado de transe ou hipnose expíica-se perfeita-
mente por dados seguros da Psicología, sem recurso a interven-
cáo do Alcm.

Com efeito. Recordemos a maneira como cada individuo


humano conhece a sua própria pessoa.

Ninguém aprccndc o próprio cu senáo através de fenó


menos psíquicos que déle se originam e déle dependem como
de um sujeito. Ésses fenómenos psíquicos sao múltiplos, com-
preendendo as variadas atividades, como também as esperangas,
os desengaños, as emocóes da infancia, da adolescencia, da vida
de adulto do respectivo individuo. Táo numerosos dados na mente
do sujeito aos poucos se dispóem em uma sintese harmoniosa,
hierarquizada,Pcom a qual o individuo em condicóes normáis se
identifica; é por esta sintese que ele se define a si mesmo, como
sendo o mesmo sujeito existente através dos anos.
Admita-se, porém, que a pessoa venha a sofrer um cho
que psíquico, seja em virtude de um estado patológico (fun-
cionamento irregular do cerebro ou de glándulas), seja em
virtude de influencia alheia (por hipnotizacáo) ou de auto-
-sugestáo (o que se dá geralmente com os «médiuns»). Em tal
estado anormal, a fungáo de sintese da qual resultam a defi-
nicáo do próprio eu e seu comportamento conseqüente, passa
por alteracóes; é desagregada e refaz-se, desviada em determi
nado sentido, de acordó com o caráter da pessoa ou com as su-

— 94 —
QUE DIZER DA TELEPATÍA ?

gestóos evocadas nesta : certas recordacóes sao entáo como que


canceladas da memoria; pode dar-se que subam á tona da
consciéncia exclusivamente impressóes colhidas na infancia (a
pessoa coíiseqüentemente parece retroceder no tempo e se com
porta como crianga) ou adquiridas em leituras e conversas refe
rentes a urna personalidade histórica do passado ou urna figura
lendária, etc. (o individuo entáo comporta-se como Maria Anto-
nieta, Napoleño, Humberto de Campos, etc.). Enlrementes a
personalidade normal do individuo ou deixa de se manifestar
como tal ou ainda se afirma ao lado da nova personalidade. Em
tais casos, dizem os espiritas que o sujeito ou o «médium» está
possuido polo «espírito-guia» proveniente do Alérn ou que está
revivendo fatos de urna vida anterior á encarnaeáo atual (a tese
da reencarnagáo entra entáo em voga. ..).

A psicografia ou escrita automática .nao é senao um siria!


particular dessas desagregacóes da personalidade : no «médium»
combinam-se, de maneira mais ou menos arbitraria e imprevisí-
ve!, diversas reminiscencias da pessoa ou das obras de tal ou tal
escritor, á semelhanca do que se dá num sonho (em que diversas
impressóes adquiridas na vida cotidiana se associam ontre si,
dando ao sonhador a sensaoáo do viver urna roalidadc diferente
da comum). O «médium» impressionado pela sugostáo de que é
ésse escritor (que ele, sem dúvida, já conhece), passa a escrever
no estilo do mesmo. Fenómeno tal nao depende em absoluto da
ovoearáo rio ospírilos, pois ooonv i<m pessoas histéricas o pode
ser obtido em individuos normáis suficientemontü sensíveis ou
impressionáveis. Para que nao fique dúvida sobre esta afirmacáo,
note-se bem que as obras psicografadas nao transcendem os
conhecimentos anteriormente adquiridos pelo respectivo «mé
dium», nem mesmo no caso tño citado de Francisco Cándido
Xavier (Minas); como ainda recentemente se averigüou. éste
nao é um ignorante, mas, desde a sua juventude, so (em dedicado
a leitura de clássicos, tanto nacionais como estrangriro;-;.

De maneira geral, as mensagens espiritas comumentc divul


gadas nada aíiunciam quo nao estivesse previamente contido na
consciéncia ou no subconsciente do respectivo «médium» ou dos
sous interlocutores ou de possoas eslreitamente unidas a éstos.
Em conseqüéncia disto, certas noticias atribuidas pelos espiritas
á alma de um genio desencarnada (Ampére, Sto. Agosíinho,
Bossuet.. .) surpreendem pela pobreza e a banalidade de seu
conteúdo; dir-se-ia que os espíritus desencarnados so depauperam
tremendamente... Para evidenciar que ñas mensagens espiritas

— 95 —
^PERGUNTE K_ RESPONDEREMOS .V195S. qu. 2

nao há revelagóes, mas se transmitem os conhecimentos que o


«médium» consegue captar por si ou por uma «corrente simpá
tica», vem a propósito famoso caso :

«O Dr. G. era ilustrado médico militar. O General da Regiáo Z.,


onde prestava os seus servicos, era afeicoado ás práticas do espiritismo,
ás quais se dedicavam também nao poucos chefes e oficiáis da guar
niere Nada crédulo e inteiramente contrario ás balelas dos espiritas,
o Dr. G. teve de assistir, por compromisso, a uma sessáo em que o
«'médium» pretendía por os circunstantes em comunicacáo com o es
pirito do célebre fisiologista francés Bichat, já falecido. O Dr. G.
manifestou ao ■¿médium-- desojar perguntar ao espirito de Bichat se o
ñervo dinamnclassi-r linha fungóos sensitivas ou fungues motoras. O
«.médium'» naturalmente sentiu-sc embaragadu tom tal consulta, qut;
se vé nao estava dentro da esfera dos seus conhecimentos; e rogou
ao sen interlocutor quisesse precisar mais os termos da pergunta. —
Ora, senhor, respondeu o Dr. G., nao sei que maior precisáo se possa
desejar. — Todavía acrescentou que, havendo no organismo humano
uns ñervos com fungSo sensitiva e outros com fungáo motora, o que
interessava saber do espirito de Bichat era a qual das duas classes
de ñervos pertencia o ñervo dinamoclasser. A isto, após varias hesi-
tagoes, ante as quais o consulente se manteve impassível, o pretenso
espirito do célebre fisiólogo Bichat respondeu por voz do «médium»,
com grande aprumo, que, «embora o ñervo dinnmoclasscr geralmente
tivesse funcóes sensitivas, em eompensacáo outras vézes as tinha tam-
hém motoras-. Excusado ó dizor que o Dr. G. nao pode conter o riso.
O frarasso tinlia sido rompido. Os rimuistantos porgunlavam ao Dr.
G. se porventura o espirito responderá acertadamente. O Dr. G. leve
do Ihes dizor que o ñervo riinumorUisscr nem era sensitivo nem era
molfir, |K>ri|iic ucm soijiioi- vva norvn, o, sim, um nomo fingido que ólo
iiivcntiii'.'i fj.ii.i jinr i'in cvi'lcnci.i :i rr;iiiilnli'Mii°i;i il.i <>xporiónoi¡i. Mis
tuv oía convir cin <|iio o cspirilo do liiolial, so roalnu'iilo <?r;i i> ciui*
falava por boca do médium-, decaira "muito i transcrito da obra de
F.M. Palmes, Metapsíquica e Espiritismo. Petrópolis 1957, 220).

Citar-so-áo, poróm, casos em que ;:s mensagens parocem


transcender de modo absoluto todas a-; possibilidades natu-
rais do «médium». . . Pois bem; os mais famosos désses casos
aduzidos pelos' espiritas (os de Helena Smith, Eleonora Piper,
llodgson, etc.) tém sido sujeitos a análise rigorosa, a qual leva
hoje os estudiosos a dizer que ainda se tratava de eiup;.óes do
subconsciente, independentes da intervenc.áo dos «dese,ncarna-
dos». —!■ Nao se nega, com isto, que Deus possa, por Si ou por
um espirito criado (anjo bom, alma humana ou demonio), reve
lar aos homens algo de totalmente novo; nao é, porém, o que se
dá no comum das revelacóes espiritas.

Os médicos contemporáneos insistem em afirmar que as


funcoes de «médium» supóem uma personalidade um tanto lábil,
já por si tendente ao desequilibrio e a estados patológicos. Além

— 96 —
ANTROPOSOFIA E CRISTIANISMO

disto, verificam que grande número de «médiuns» e de clientes


déstes contraem realmente doencas mentáis graves, de sorte que
os interésses da saúde pública desaconselham seriamente a prá-
tica da mediunidade.

M. A. P. M. (Piracicaba):

3) «Que é a Antroposofia e em que se distancia do Cato


licismo?»

1. A Antroposofia constituí urna Escola filosófica fundada


por Rudolf Steiner (1861-1925). Éste pensador ató 1013 era
o chefe da seccáo alema da Sociedadc Tcosófica, entáo recém-
-fundada. Desentendeu-se, porém, com a Presidente desta, a
Sra. Annie Besant, por causa das pretensóes que Me. Besant
nutria, de apresentar ao mundo o novo Messias na pessoa de um
jovem hindú, Krishnamurti, o qual já estaría na sua trigésima
encarnacáo... Steiner, julgando que Mme. Besant abusava da
credulidade de seus discípulos, resolveu separar-se da Sociedade
Teosófica para ensinar urna Teosofía remodelada, a qual foi
dado o nome de Antroposofia. A respeito da Teosofía veja
«P. R.» 17/1959, qu. 8.

2. Quais as principáis doutriñas desta Escola?

O termo sofia (sabedoria, em prego) indica tratar-se de


conlM'einu'niMs sapi^nciais, islo ó, adquiridos nfio piópriamente
pela experiencia dos sentidos e pelo raciocinio da inteligencia
(de que se serve, por exemplo, a Teología), mas, sim, por urna
intuicáo superior mística devida a facuídades especialmente
apuradas de certns individuos. A fonte dessa sabedoria seriam
tradigóes ocultas, oriundas da Atlántida (famoso continente que
teria desaparecido) ou de arquivos e bibliotecas antiqüissimas
pertencentes ao Egito e ao Oriente. Essa sabedoria primordial
haveria deixado de ser patrimonio comum dos povos, que em
seu lugar foram criando as diversas formas de rcligiáo hoj-%
conhecidas, todas inferiores á explicacáo do mundo dada petes
concepQóes antigás... Ora a Teosofía, recorrendo no sáculo pas-
sado aos Mestres (Mahatmas) da India, do Tibe, da Caldéia, do
Egito, propunha-se cultivar de novo essa sabedoria primordial,
fazendo convergir a sua atencáo para Deus (Theós); Steiner,
ao separar-se do teosofismo, nao abandonou as grandes teses
doutrinárias déste, mas preferiu explorar o que na ideología
primordial dizia respeito ao homem (donde Antroposofia, de
anthropos, homem).

— 97 —
PERGUNTE E RESPONDEREMOS-» 3/1958, qu. 3

Steiner julgava que a Teosofía fazia perder ao homem um


pouco de seu equilibrio e o desviava dos respectivos deveres
sociais; a Teosofía incutiria urna atitude passiva, prometendo
a intervengáo de misterioso poder do alto. Por isto, o fundador
do antroposofismo quis despertar nos seus discípulos o amor
de um método, de urna disciplina imposta as faculdades superio
res do homem, a fim de ampliar o raio de alcance do espirito.
As teses, porém, que Steiner ensinava como resultantes dessa
disciplina, sao em grande parte as mesmas que as da Teosofía,
a saber:
1.) O Panteísmo ou monismo. Deus seria a única reali-
dade existente, da qual o mundo, espiritual e material, se origi-
nou por emanacáo; a substancia divina seria impessoal, neutra,
sempre em via de evolucáo no decorrer da historia; em cada
individuo humano ela estaña paulatinamente tomando conscién-
cia de si mesma, até chegar á plenitude ou á perfeicio : o homem
é destarte u'a manifestagáo de Deus, manifestacáo identificada
com a Divindade.

2) A alma humana é um agregado de muitas partes,


unidas entre si por relar;óes assaz frouxas. Está claro que nao
¡no é imposta urna lei moral extrínseca, divina, pois alma e Divin
dade vem a coincidir entre si; toca a cada individuo descobrir
dentro de si as normas de sua conduta prática (o que dá mar-
geni, sem dúvida, a muita liberdade e arbitrariedade no plano
moral).

3) O currículo de vida do homem nesta térra é condicio


nado pelas obras que o individuo tenha realizado em urna vida
ou encarnacáo anterior. É esta a inexorável lei do Karma; tudo
que ccorre ao homom neste mundo c efeito e, ao mesmo ternpo,
causa : efeito em relacáo á encarnagáo passada, causa em rela-
cáo á futura. Mediante sucessivas descidas ao corpo, ou seja,
através de longo período de tempo, a alma humana se purifica,
passando aos poucos da sua animalidade inicial á plena cons-
ciéncia da sua identidade com a substancia única, divina, do uni
verso. Tendo atingido esta consciéncia, o homem perde natu
ralmente a sua personalidade, que o singulariza, e mergulha-se
no único grande Todo (estado do nirvana, que os conceitos co-
muns da nossa experiencia nao poderiam em absoluto des-
crever).
Em suma, o panteísmo ou monismo e a lei da reencarnagáo,
eis as duas pilastras sobre as quais repousam tanto a ideología
teosofista com a antroposofista. Esta verificacáo é suficiente
para incutir as diferencas radicáis que Lntercedem entre Cris-

— 98 —
ANTROPOSOFIA E CRISTIANISMO

tianismo e Antroposofia. Sobre o Panteísmo, veja-se «Pergunte


e Responderemos» fase. 7 de 1957, qu. 1; a respeito da reencar-
nacáo, fase. 3 de 1957, qu. 8. No tocante á Antroposofia em par
ticular, as potencias ocultas de intuigáo mediante as quais o
homem poderia transcender o conhecimento racional, sao antes
produto da fantasía de Steiner do que objeto de conclusóes cien
tíficamente firmadas (nao se negam os fenómenos metapsíqui-
cos, de que fala a resposta n" 2 déste fascículo; nao era, porém,
a éles que Steiner se referia).
Verdade ó que o pensador alemao, visando o público euro-
pou, ao qual se dirigía, quis apoiar suas concopcócs em fontes
e tradieoes oeidentais, cristas, distanciándose um pouco das
fontes orientáis para as quais apela a Teosofía. Nao foi feliz,
porém, porque, para ficar dentro dos quadros do pensamento do
ocultismo, teve que negar a Divindade de Cristo; desojando neo
abater ídolo algum, apresentou Jesús como reencarnacáo e sín-
tese de Mitra (divindade persa) e Dionisio (divindade grega)!

3. A Antroposofia logrou sucesso logo nos seus primei


ros anos (como, alias, também a Teosofía). Esta boa aceita-
gáo se explica por fatores diversos :

a) o materialismo o o racionalismo que imperaiam no


século passado, parecem ter cansado as mentes e despertado
de novo em muitos pensadores sinceros a sede do misterio, do
conhecimento irísüco, ou soja, do conhecimento adquirido nao
por via moramente humana, mas por unía pretensa iluminagáo
divina;

b) as grandes ruinas, materiais e moráis, que o mundo


ocidental sofreu nos primeiros decenios do séc. XX concorreram
para que nao poucos filósofos voltassem sua atene.áo para o
Oriente; éste sempre impressionou os ocidentais por parecer
muito mais voltado para o transcendente e o eterno; pelo seu
caráter conservador, tradicionalista, toma o aspecto de urna arca
de paz. É o que explica que Teosofistas o Antroposofislas tonham
ido pedir inspiracüo aos pensadores orientáis o hajam encon
trado eco satisfatório no Ocidente;

c) é imponente e sedutor o título de «manancial donde


todas as religióes tiraram urna parcela de verdade», titulo que
a Teosofía e Antroposofia reivindicam para sua ideología. Éste
título é gratuito; nenhum estudioso o pode jamáis comprovar
(alias, por definicáo, nem seria possível apresentar provas em
favor do mesmo. pois se pressupóem tradieóes e arquivos ocultos
ao público — o que realmente constituí bela evasiva!). Nao

— 99 —
-PKRGUNTL: E RESPONDEREMOS* 3/195S, qu. 4

obstante, a fórmula com que a Antroposofia se apresenta ao


mundo, é muito apta a bajular o orgulho do homem; aderindo á
Teosofía ou á Antroposofia, éste po'derá dar-se por mais escla
recido e inteligente do que seus semelhantes que fiquem presos
'as formas tradicionais de religiáo... O teosofista e o antroposo-
fista nao negam a existencia de Deus, mas conseguiram fazer
do Soberano Senhor urna entidade impessoal e neutra que na
prática nao «incomoda» o homem. Embora Rudolf Steiner nao
se quisesse diretamente incompatibilizar com o Cristianismo nem
com alguma forma de religiáo, ele propóe um conceito de Deus
o das relacóos do homom com Deus que cedo ou tarde tende a
remover nos seus adeptos qualquer dos credos religiosos tra
dicionais.

II. DOGMÁTICA

OSVALDO (Lorena):

4) «Se a Missa tem valor infinito, porque se celebra mais


de u'a Missa por determinada intenc&o?»

1. Na clucidagao dosta questáo, faz-sc mister recordar


primeiramente o que é a S. Missa.
Em poucas palavras, a Missa é o sacrificio mesmo do Cal
vario tornado presente sobre os nossos altares para que déle
participemos. O que quer dizer :
a) nao é mero rito simbólico, imagem destituida de con-
teúdo, cuja fungáo seria únicamente evocar na memoria dos
assistentes um feito passado;
b) doutro lado, porém, nao é novo sacrificio de Cristo,
posterior ao do Calvario, como se Jesús continuasse a sofrer
e morrer após a sua gloriosa ressurreigáo.
Positivamente, pois, a Missa é a própria imolacáo de Cristo
(outrora oferecida cruentamente na cruz) que a Onipoténcia
Divina torna presente de maneira incruenta sobre os altares,
sem que multiplique tal imolagáo, mas sem que por isto Ihe di-
minua algo de sua plena realidade. A mesma oblagáo de Cristo,
numéricamente a mesma, realizada no pretérito deixa de per-
tencer ao pretérito e se faz presente — «Misterio da íé», diz a
fórmula de consagracáo eucarística.
E porque quis Jesús Cristo instituir tal rito?
Ele o quis em vista de seus fiéis, ou seja, a fim de asso-
ciar ao sacrificio da Cruz a sua Igreja. Com efeito, outrora no

— 100 —
MUITAS MISSAS POR UMA INTENQAO ?

Calvario Jesús como Sacerdote se ofereceu ao Pai qual Vítima


pelos pecados do mundo. Atualmente na S. Missa Jesús oferece
com a Igreja, que participa do Sacerdocio de Cristo; e oferece-se
com a Igreja, que participa da qualidade de Cristo Hostia.
Ora lembremo-nos de que a Igreja nao é apenas o clero,
mas é « Corpo Místico de Cristo, Corpo Místico do qual todo
cristáo é um membro ou uma célula viva. É, pois, em cada fiel
batizado que a Igreja repousa, vive e age.
2. Déste fato decorre importante conseqüéncia referente
aos frutos da S. Missa.
Sendo a Missa o próprio sacrificio da Cruz celebrado do
maneira incruenta, compreende-se que cada S. Missa tem em
si valor infinito; com efeito, qualquer dos atos de Cristo possui
tal valor, já que procede de urna Pessoa Divina. Por conseguinte,
uma só Missa por si seria suficiente para dar a Deus todo o lou-
vor que as criaturas lhe devem, suficiente também para apagar
as culpas de todos os homens, perdoar todas as penas satisfató-
rias, obter todas as gragas, espirituais e temporais, necessárias á
salvagáo, etc.
Na realidade, porém, o valor infinito da Missa nao é apli
cado aos homens em grau infinito; os frutos da S. Missa, para as
criaturas, sao sempre limitados.
Porque ?
Porque a Missa nao é sómente oferecida por Cristo. En-
quanlo, sim, é oferecida por Cristo, toda Missa indubitável-
mente produz frutos para o género humano. Na medida, porém,
em que os membros do Cristo, os cristáos, sao associados ao
oferecimento, ésses frutos sao restritos. Com efeito, o Corpo
Místico, com o qual Jesús compartilha o seu ato de oblacáo,
consta de u'a multidáo de homens portadores das conseqüéncias
do pecado, por isto coibidos em seu espirito de imolagáo, de
entrega total ao Pai. A parte de devotamento pvóprio que cada
erisláo associa á oblacáo do Cristo, está sujcita as ros1.rií;óes que
o egoísmo c a covardia ocasionam. Éstos empecí Ihos, como se
compreende, tornam os fiéis menos aptos a usufruir os benefi
cios da Redengáo e conseqüentemente limitam a aplicacáo dos
frutos da S. Missa.
Em termos positivos, poder-se-ia dizer com as palavras do
Canon da Missa (oragáo «Te igitur»): é a fé e a devofáo (espi
rito de entrega e de amor) dos cristáos, em uns mais intensa, em
outros menos vivida, que os torna capazes de impetrar em seu
favor e em favor de outrem, as gragas decorrentes do sacrificio
eucarístico.

— 101 —
-PERGUNTE K RESPONDEREMOS^.!'1958^ qu._£

3. Enunciados osles principios gerais, deseamos a porme


nores da doutrina.
Costumam-se distinguir tres tipos de frutos decorrentes de
cada celebracáo da S. Missa :
a) frutos gerais, isto é, grasas que redundam em bene
ficio de toda a S. Igreja e de cada um de seus membros direta-
mente; indiretamente, beneficiam também todos os homens que
nao pertencem á Igreja, visto que a santificacáo dos cristáos
implica a santificagáo do mundo;
b) frutos especiáis : sao gracas quo tocam ao celebrante,
aos seus ministros e a todos os quo assistem físicamente ao sacri
ficio, néle tomando alguma parte;
c) frutos especialíssimos : sao gragas cuja aplicagáo a
Misericordia Divina deixa á livre escolha dos fiéis. Pode-se-lhes,
portanto, assinalar um destino particular; é o que os fiéis fazem
quando pedem seja a S. Missa celebrada por tal ou tal de suas
ir.tengóes propinas (por um defunto, em acáo de gracas, etc.).
— A intencáo formulada será mais ou menos beneficiada na
medida da fé e da devocáo dos cristáos considerados na seguinte
hierarquia :
1") o sacerdote quo celebra a S. Missa, pois éste será o
representante imediato da S. Igreja em tal ato litúrgico;
2?) os fiéis que tiverem ocasionado a celebracáo da Missa
formulmido a rospooliva i.ntrncño, pois osles sorño, logo a pos o
celebrante, os oferentes m:iis diiclos, |ior eonseyuinle (is mais
próximos representantes da Igreja;
3") os fiéis que estiverem presentes á celebracáo do sacri
ficio, rezando com o celebrante;
4") os fiéis da Igreja universal (mosmo ausentes c longin-
quos), pois todos es cristáos sao envolvidos nos atos oficiáis da
Igreja; sao éles que constituem de maneira concreta a face hu
mana da Esposa de Cristo.
Disto tudo se depreende a importancia que tém as dispo-
sicóes de piedade com que os fiéis assistem a S. Missa. Com-
preende-se também que mais de urna S. Missa seja aplicada por
urna só intengáo : já que nunca se podem avaliar com precisáo
os efeitos produzidos por urna celebracáo eucarística, é obvio que
se repita a aplicagáo da S. Missa pela mesma intengáo, a fim de
finalmente se atingirem todos os beneficios colimados por esta
intengáo. — Caso nao fósse mais necessária a celebragáo em
vista de tal fim, os frutos respectivos redundariam em proveito
das intengóes gerais da S. Igreja.

— 102 —
CULTO DOS SANTOS E PAGANISMO

CAKMEN (S. Joño de Mcriti) :

5) «O culto dos Santos nao será paganismo, que corrompe


o Evangelho? Eni particular, a devocáo a María parece derro-
gar á excelencia de. Cristo, o Único Mediador entre Deus e os
homens (cf. 1 Tim 2,5)».

1. Embora o culto dos santos seja por vézes exagerado


por parte de devotos pouco esclarecido?, ele possui um sentido
profundamente cristáo; dir-se-á mesmo :.. . um sentido essen-
eialmenie teocéntrico e eristocéntrico.
Com efeito. Quem sao os sanios, que a piedad'1 ciisiá lem
em vista?
Sao membros do Corpo Místico de Cristo nos quais a Re-
dencáo deu a plenitude de seus frutos; terminaran: a sua pere-
grinacáo terrestre totalmente penetrados pelo amor de Cristo,
fielmente configurados a Ele, e gozam atualmente da visáo de
Deus face a face.
Conscientes disto, os cristáos, desde os primeiros sáculos,
voltaram sua atencáo para os santos (em primeiro lugar, para
os mártires, que sao os mais belos frutos da obra do Redentor)
a fim de os envolver na sua piedade. Anualmente no dia aniver
sario da morte (chamado com muito acertó «o dia natalicio»)
de tal mártir ou tal justo famoso, os fiéis se reuniam e se reu-
nem, para celebrar a Liturgia votiva do santo.
K mial i) sentido pivciso dessa colebra^ao? Nao desvia ola
a atencáo dos orantes, que deve estar toda voltada para Deus?
Nao. A genuína piedade para com os santos é — repitamo-lo
— teocéntrica; nem querem éles ser cultuados em detrimento
da nossa uniño com Deus; muito ao contrario, só desejam que
esta se intensifique.
Na verdade, os santos, em primeiro lugar, constituem mo
tivo especial para que os cristáos adorem, louvem c agratteeam a
Dcus. Com efeito, todo santo é do seu modo um artefalo esme
rado do Criador e do Redentor (cf. SI 4,4); é urna expressáo
enfática da sabedoria de Cristo e da sua vitória, que néle se
desdobra com matizes particulares e traeos minuciosos muito
vivos. E ó essa magnificencia divina que, antes do mais, os fiéis
reconhecem e agradecem ao considerar os santos. O culto pres
tado a estes, portante, é sempre relativo; é o culto indireto do
Criador, do Redentor e de sua Bondade (está claro que o cristáo
nao pensa em adorar os santos, muito menos aínda adorar urna
estatua de santo).

— 103 —
"PERGUNTK E RESPONDEREMOS: 3/195S, qu. 5

Após evocar á nossa memoria Deus e suas obras, a figura


do Santo cultuado nao pode deixar de despertar nos fiéis que
ainda peregrinam nesta térra, o desejo de chegarem também
éles ao termo consumado ou a Jerusalém celeste em que se en-
contram os bem-aventurados. Por isto o culto dos santos implica,
em segundo lugar, urna prece, geralmente dirigida a Deus Pai, a
fim de que, por intercessáo de tal ou tal membro da corte celeste,
nos queira outorgar «o pao nosso de cada dia», as gracas, tanto
espirituais como sensíveis, de que necessitamos para conseguir
a plenitude da Redengáo, para ser imagem perfeita do Cristo
Jesús (cf. Rom 8,29). O santo, em tal caso, ó considerado como
o amigo que, em virludo de sua caridade, nao pode deixar de
orar pelo amigo que déle precisa; as preces dos justos consuma
dos sao, sem dúvida, particularmente agradáveis ao Pai do céu
(cf. Gen 18,22-32). Mais ainda : quando oramos a Deus apresen-
tando-lhe a obra grandiosa que Ele realizou em seus santos,
valemo-nos déles como que de penhorcs da nossa consumagáo;
é-nos lícito apoiar-nos sobre o que Deus já fez em seus justos
para pedir faca algo de semelhante em nos.

A Sagrada Escritura mesma dá-nos a saber que o Ssnhor


do céu manifesta aos seus justos o que nos concerne na térra,
mórmente as nossas necessidades; mostra-nos também como, em
conseqüéncia, oram por nos (alias, como se poderia admitir o
contrario, desde que constituímos urna grande familia, um Corpo
Místico, a Comunháo dos Santos?). Tenha-se em vista, por
exemplo, o texto de 2 Mac 15, 11-14, segundo o qual Judas Ma-
cabeu contemplou no céu Onias, o antigo Sumo Sacerdote, de
«aspecto modesto e costumes brandos... entregue desde a infan
cia a todas as práticas da virtude, o qual estendia as máos e
orava por toda a nacáo dos judeus». Viu também Jeremías, «no-
tável por sua dignidade, revestido de prodigiosa e soberana ma-
jestade», a respeito do qual lhe foi dito : «Éste é o amigo de seus
irmáos, aquéle'que muito ora pelo povo e por toda a Cidade
Santa, Jeremías, o profeta de Deus».

Pode-se lembrar outrossim que no Apocalipse o vidente des-


creve um anjo a fazer subir até o trono de Deus as preces profe
ridas pelos justos na térra (8,3s).

2. As oragóes clássicas que a Liturgia formula no culto


dos santos geralmente se dirigem a Deus Pai, para O louvar e
suplicar mencionando os méritos tal ou tal justo. Contudo, após
o que foi dito, vé-se nao ser erróneo interpelar diretamente os
santos; é mesmo éste o modo mais comum como o povo cristáo

— 104 —
CULTO DOS SANTOS E PAGANISMO

os cultua. Isto nao quer dizer que sejam considerados fontes de


grabas e doadores da Redengáo. Ao contrario, todo fiel sabe
perfeitamente que os santos sao grandes únicamente por causa
do Sumo Sacerdote, cujos méritos frutificaram néles;... sabe
que o Cristo é o único Dispensador da salvagáo. A esta verdade,
porém, nao inflige derrogacáo nenhuma quando pede aos santos
unam suas preces as nossas no intuito de nos obter os beneficios
do Redentor; se se tornam intercessores nossos, a sua mediagáo
nao se coloca ao lado da de Cristo, encobrindo o papel do Salva
dor, mas, ao contrario, fica toda sujeita a Jesús; é mesmo urna
afirmacáo nova, por vézes esplendorosa, da mcdiac.no do Re
dentor.

É neste sentido que a Igreja entende a piedade para com


os santos.

3. Tais idéias se aplicam de maneira especial á devocáo a


Maria Santíssima. Além de ser, dentre as criaturas, a que mais
agradou a Deus, Cristo quis torná-la Máe dos homens (cf. Jo
19,26s); o que quer dizer : associou-a particularmente a nos por
caridade, e confiou-nos de modo especial á sua protegáo. Cons
cientes disto, é que os cristáos recorrem com ternura filial as
preces da Máe do céu; sabem que é esta a criatura na qual Cristo
com mas abundancia quis derramar os beneficios da Redengáo,
unindo-a muito intimamente a Si em toda a sua obra salvadora:
foi por Maria que Cristo veio ao mundo; a carne de Maria e a
carne de Jesús eram «urna só carne» (como se diz clássica-
mente). O próprio Senhor se dignou mostrar quanto lhe agra-
dava a intercessáo de Maria : por ocasiáo das bodas de Cana,
rogado por sua Máe Santíssima, insinuou-lhe primeiramente que
ela desejava algo de muito grande (quase a «antecipagáo da sua
hora»), mas nao deixou de fazer o seu primeiro milagre justa
mente a pedido de Maria (cf. Jo 2,1-11). Éste episodio tem certa-
mente profundo significado para se avaliar a devocáo a
Maria Ssma.

Note-se ainda que esta em absoluto nao derroga á media


gáo de Cristo; foi mesmo por causa da Jesús, para mais O por
em realce, que a atengáo dos fiéis pela primeira vez se voltou
para Maria de modo solene : no séc. V, a fim de defender o ge
nuino conceito da Encarnagáo do Filho de Deus, os bispos e
teólogos reunidos no concilio de Éfeso (431) definiram convir
a Maria verdaderamente o título de «Máe de Deus» (Theotó-
kos); dizendo isto, queriam proclamar, contra o Nestorianismo,
haver em Cristo urna só Pessoa — a Divina (cf. «Pergunte c

— 105 —
^PERGUNTE E RESPONDEREMOS^ 3/1958, qu. 6

Responderemos» fase. 6 de 1957, qu. 3). Assim a primeira afir


magáo mañana da teología católica foi, em última análise, urna
afirmagáo cristológica; e foi sempre em fungáo de Cristo, subor
dinadamente a Jesús, que a genuína piedade crista cultuou a
Santa Máe de Deus.

4. Alias, entre os protestantes contemporáneos nota-se


uma renovagáo da estima a Maria : apareceu recentemente um
folheto protestante na Suiga, onde se lamenta que a Reforma
tenha ido táo longe ñas suas derrogagóes ao culto de Maria e se
afirma que o Protestantismo terá de reparar as injustieas come-
lidas para rom a iVlfu» do Salvador, que ó lainbñn a Mfu* da
crislandade tuda, visto que, .sendo pela le híñaos de Jesús, have-
mos também de ser filhos de Maria. Em Taizé-Cluny (Franga)
existe uma comunidade de religiosos reformados (como que
monges protestantes) que, dedicando-se á Liturgia, editaram
para seu uso um livro de Oficio Divino para cada dia do ano
(especie de Breviario); nesta obra estáo assinaladas as festas
da Anunciagáo e da Purificagáo de Nossa Senhora, assim como
uma festa mañana para 15 de agosto. Max Thurian, o pastor
dirigente dessa comunidade, observou que, se a invocagáo dos
santos nao é disciplinarmente legítima na Reforma, ela parece
ao menos lícita. Semelhante afirmagáo foi proferida pelo pastor
Vidal, secretario da Federagáo Reformada de Franca.

É muito interessante também o testemunho de Karl Barth,


o mai.s importante teólogo protestante do nossos días :
«No séc. XVI importava dizer que os santos da Igreja, os defun-
tos, nao tém a possibilidade de nos ajudar. Contudo, talvez íósse lícito
acrescentar um ponto de interrogacáo a aíirmaciío táo categórica. Nao
estou tüo certo de que os santos da Igreja nao nos podem ajudar: os
Reformadores, por exemplo, e os santos que estüo sobre a térra. Vi
vemos em comunhSo com a Igreja do passado e déla recebemos um
auxilio. Um fato, porém, é certo : nem os homens vivos, nem os que
já morreram, podem-se tornar para nos o que Deus é para nos —
um socorro na grando oprossao que ó a nossa diante do Evangelho
e da Lci» (La priero d'apres les cntéchismi's di- la Réíormation. Neu-
chátel/Paris 1949, 33).

NAZARETH (Rio de Janeiro) :

6) «Quais os argumentos bíblicos e teológicos aplicáveis


na controversia com os batistas, sobre a doutrina da graca?
A maneira como concebem a salvacáo parece bem diferente da
católica».
1. Antes do mais, convém lembrar os tragos principáis
das mencionadas doutrinas batistas.

— 106 —
A TEOLOGÍA DOS BATISTAS

Para os batistas, «a salvagáo do crente é eterna», o que


quer dizer : todo homem que sincera e firmemente confie em
Cristo, pode considerar-se filho de Deus, destinado infalivel-
mente a conseguir a bem-aventuranga eterna; nada absoluta
mente (nem tentagóes, nem infidelidades passageiras) lhe po-
derá arrebatar o galardáo celeste; Deus, que é rico em meios
para auxiliar os seus fiéis, saberá sempre fazer prevalecer a
virtude e a causa do bem em tal alma. Donde se segué que as
obras (sejam virtuosas, sejam pecaminosas) nao influem deci
sivamente sobre a salvacáo eterna : tudo depende de crer, ou
molhor, confiar em Cristo. Quanto aos f|iio so porclom no in-
ICnio, se i "'i preciso di/.or <|Uf om vonlado tmtic;i livrram a ki"m."'
de Deus, pois esta, urna vez possuida, leva iní'ulivelmcMite o seu
possessor á gloria celeste.
Os textos bíblicos sobre os quais se funda tal doutrina,
seriam aqueles em que Jesús ou os Apostólos afirmam terem
os fiéis recebido a vida eterna; cf. Jo 3,15.36; 5,24; 6,40.47.
Ao passo que estas passagens gozam de alto apréco e.ntre os
batistas, é menos estimado o sermáo de Jesús sobre a mon-
tanha (Mt 5-7), trecho em que o Senhor recomenda aos fiéis
urna conduta de vida aparentemente legalista, cumplidora de
obras.
Urna sintese da soteriologia batista se encontra no livrinho
de William Taylor, A salvacáo do crente é eterna, ao qual
havemos de nos referir mais de urna vez ñas consideracóes
abaixo.

2. Que dizer de tais idéias?


Em primeiro lugar, reconheca-se que «vida eterna», se
gundo as Escrituras, é realmente vida imortal ou sem fim
(Taylor, no seu opúsculo, muito se empenha por demonstrar
filológica e etimológicamente que o «eterno quer dizer eterno
mesmo»; cf. pág. 13 da ob. cit.). Nao resta dúvida, pois, de
que a vida que Deus da ao homem em Cristo, do per si, carece
de finí (tem como qualidade inerente a si a imortalidade).
Disto, porém, seguir-se-á que vida eterna ó também inamissivel,
quando dada de presente a urna criatura?
Nao. A ilacáo nao seria lógica nem é recomendada pelas
Escrituras.

3. Nao seria lógica. .. Algo de eterno nao é necessária-


mente algo que nao possa ser perdido pelo seu possuidor (sem
deixar de ser por si mesmo eterno). Posso possuir uin tesouro
em si duradouro ou perene: se eu o guardar fielmente, ele será

— 107 —
-PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 3/1958, qu. 6

duradouro em meu proveito; se o negligencia r, perdé-lo-ei, isto


é, o tesouro continuará a ser perene, nao, porém, em meu favor.
O adjetivo «eterno», portante, designa a índole do dom que
Deus outorga aos homens, quando se considera éste dom da
parte de Deus e em si mesnio. Para que éste dom se torne per
manente ou sem fim no cristáo, nao se excluí (ao contrario, a
Escritura a requer) a livre colaboracáo déste, ou seja, a livre
accilagíio da grncu c tl continua entrega do discípulo a esta;
pois Deus, que nos fez sem nos, nao nos salva sem nos, como
diz S. Agostinho. O Senhor, sem dúvida, é fiel as suas promes-
sas e aos scus dons (cf. Rom 8; 1 Cor 1,9); nao retira por ini
ciativa própria o quo filo conivdou, mas lambérn nao forca o
homom nom a aechar nom a guardar o dom divino; justa
mente, se o Criador fez o homem livre, fé-lo para que éste, á
diferenca das criaturas inferiores, se encaminhasse para Deus
usando do seu livre arbitrio.
Entende-se, porém, porque nossos irmáos batistas identi-
fiquem vida eterna e vida inamissível. Nao reconhecem o valor
do livre arbitrio e da colaboracáo humana com a graga de
Deus; e nao o reconhecem, por causa das premissas luteranas
e calvinistas que éles abracam : os batistas constituem urna
confissáo fundada no séc. XVIII por John Smyth, ministro
anglicano (cf. «Pergunte e Responderemos», fase. 7 de 1957,
qu. 17), o qual se inspirou preponderantemente de idéias
calvinistas.
Em quo consistem, poLs, cssas premissas luterano-calvi
nistas?
Lutero no séc. XVI deu inicio ao movimento da Pseudo-
-Refcrma, afirmando, entre outras coisas, que o pecado origi
nal destruiu o livre arbitrio no homem, de sorte que éste é inca
paz de fazer o bem (praticar obras boas) de acordó com as
decisóes de sua vontade. Em compensagáo, Lutero ensinava
que seus discípulos podiam ter certeza da sua justificacáo (ou
de possuirem a amizade de Deus nesta vida) na medida em que
tivessem fé ou confianga inabalável em Cristo. Calvino relomou
estas idéias e as desenvolveu; ensinou que a fé ou confianca
no Redentor dá ao crente certeza infalível nao só da sua justi-
ficagáo momentánea (na vida presente), mas também da sua
salvagáo eterna (na vida futura); a vontade humana nao entra
em conta no processo de salvagáo eterna; destarte Calvino que-
ria enfáticamente exaltar que Deus é tudo, e o homem nada.
A honra de Deus Ihe parecia exigir tais afirmagóes. Note-se
que os mesmos principios levaram Calvino a dizer outrossim
que existe urna predestinagáo que é absoluta da parte de Deus :

— 108 —
A TEOLOGÍA DOS BATISTAS

desde toda a eternidade, o Todo-Poderoso decretou que tais e


tais individuos se salvaráo no céu, ao passo que tais e tais
outros se perderáo .no inferno; ésse decreto de predestinagáo é
de todo inalterável; o homem nada pode fazer contra ele, de
modo que o predestinado para a gloria recebe a graga de Deus
e, ainda que peque, nao fica no pecado; o predestinado para o
inferno nunca recebe a graga de Deus e, ainda que pratique
atos bous, nao doixa do sin1 viciado ou man. Estas ¡drir.s 'vpor-
cutiram, sem dúvida, na formagáo do credo batisla.
Nos seus inicios (séc. XVII) os batistas se dividiam em
«Batistas gerais» (professando que Cristo por sua cruz salvou
todos os érenles) e «Balistas particulares!* (professando que
salvou apenas os predestinados). No docorrcr do .sóc. XVII, na
Inglaterra, foram prevalecendo os Batistas particulares, en-
quanto declinavam os Batistas gerais. No séc. XVIII, quando as
comunidades batistas corriam o perigo de certo entorpeci-
mento, foram provocadas a novo fervor por John Wesley
(t 1791), fundador de urna seita á parte, o Metodismo, que pro-
pugnava urna espiritualidade mais metódica. Os batistas, por
seu turno, comecaram entáo um movimento de .evangelizagáo
popular, tendo como um dos seus pioneiros no inicio do séc. XIX
William Carey Taylor; éste fundou a «Sociedade dos Batistas
particulares para a propagagáo do Evangelho entre os pagaos»
e partiu para as indias. Foi éste movimento que deu as caracte
rísticas próprias á vida batista na Inglaterra e nos Estados
Unidos.

4. Mas será que a S. Escritura mesma nao sugere a iden-


tificagáo de vida eterna e vida inamissível?
Nao. É bem evidente que ela acautela os fiéis contra o
perigo de por sua própria culpa perderem a graga de Deus
e conseqüentemente a vida eterna. É, por exemplo, o que
S. Paulo inculca aos Filipenses : «Assim como sempre obedeces-
tes..., assim também operai a vossa salvagáo com temor e
tremor» (2,12). O mesmo Apostólo diz que procura tornar-se
conforme á morte de Cristo, «para ver se de alguma maneira
posso chegar á ressurreigáo dos mortos. Nao que já a tenha
alcangado ou que seja perfeito, mas prossigo para abragar
aquilo para o que fui também preso por Cristo Jesús. Irmáos,
quanto a mim, nao julgo que naja alcangado; mas urna coisa
fago, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e
avangando para as que estáo diante de mim, prossigo para o
alvo, pelo premio da soberana vocagáo de Deus em Cristo
Jesús» (3,10-14; tradugáo de Ferreira de Almeida).

— 109 —
-PERGUNTE K RESPONDEREMOS > 3/195S, qu. 6

Aos Corintios o Apostólo afirma exercer a mesma solici-


tude para conseguir a salvagáo :
«Fiz-me tudo para todos, para por todos os meios chegar a salvar
alguns. E faco isto por causa do Evangelho, para ser também partici
pante déle. Nao sabéis vos que os que correm no estadio, todos na ver-
dade correm, mas um só leva o premio? Correi de tal maneira que o
alcancéis. E todo aquélc que luta, de tudo se abstém; éles o íazem. para
alcancar uma coroa corruptível, nos, porém, uma incorruptivel. Pois
eu assim corro, nao como a coisa incerta; assim combato, nao como
batendo no ar. Antes subjugo o meu corpo, e o reduzo á servidáo,
para que, pregando aos outros, eu mesmo nao venlia de alguma maneira
a ficar rpprovnrto* (1 Cor í),22-27>.

W.C. Taylor, anulisando esta passagem lao significativa,


julga que o apostólo nao se refere á consecucáo da salvagáo
eterna, mas apenas a obtencáo de um galardao independente
da salvagáo; Paulo teria tido a certeza de ser salvo, nao, porém,
a de conseguir uma coroa de vitória no céu (como os atletas
podem hesitar a respeito de sua vitória ou da aquisigáo de uma
coroa no estadio). Ora esta distingáo do comentador inglés é
totalmente estranha á Biblia; vida eterna e galardao (ou coroa)
da vida eterna se identificam plenamente na Escritura Sa
grada; o dom que Deus dá definitivamente ao homem no céu
é um só, é simplesmcnte a vida eterna; nao há vida eterna com
galardao (ou com coroa) nem vida eterna som galardao (ou
sem coroa) :
licm;ivi-iil in .ni') o v.ilao <|Uc sofiv ;■ IciiIíc ai>. ]hmí|Ui\ (¡liando
fór provado, receberá a corou da vida, a qual o Senhor tum prometielo
aos que O amam» (Tg 1, 12).
«Quando aparecer o Sumo Pastor, alcancarcis a. incorruptivel coroa
de Kh'ir'r.Dn (I Pdr ñ,4).
"Sé fiel ató a morto, c cu t<; darci ;i coroa da viil:i... Guarda o
que tons p;ira quo ninguém lome a lna coroa», diz o Senhor no Apo-
calipse (2,10; 3,111.

Alias toda a^ epístola de Sao Tiago (que Lutero rejeitava,


mas que CalvLno e os protestantes modernos reconhecem como
canónica) inculca fortemente a necessidade de obras boas para
que o cristáo nao venha a perder a vida eterna.

«Meus irmáos, que aproveita se alguém disser que tem fé, e nao
tiver as obras? Porventiira a fó pode salvá-lo?... A fé, se nao tiver
as obras, é morta em si mesma... Tu crés que há um só Deus; fazes
bem. Também os demonios o créiun e cstrcmec.em. Porventura o nosso
pai Abraáo nao foi justificado pelas obras, quando oferecia sobre o
altar o seu filho Isaque? Bem vés que a fé coopera com as suas obras
e que pelas obras a fé foi aperfeicoada... Vés entao que o homem é
justificado pelas obras, e nao simiente pela fé. .. Porque, assim como
o corpo sem o espirito está morto, assim também a fé sem obras é
morta> (Tg 2,14.17.19.2Js.24.261.

— 110 —
A TEOLOGÍA DOS BATISTAS

Se, de outro lado, Sao Paulo tanto acentúa o valor da


fé (principalmente em Rom e Gal), parecendo excluir o das
obras, isto se deve ao fato de que Sao Paulo tem em vista o
inicio da justificagáo; combatendo a mentalidade legalista
de certos judeus, quer afirmar nao haver méritos previos do
homem que lhe possam merecer o dom da fé sobrenatural;
esta é concedida por Deus de modo totalmente gratuito, sem
que em absoluto o homem a possa atrair a titulo de justiga
ou em recompensa; é, sim, crendo dócilmente na Palavra de
Deus com ánimo contrito que o pecador comeca a ser amigo
do Deus o recebe o gormen da graea santificante ou da vida
eterna; depois desta prime-ira conversao o justif ¡carao é que
poderá, com o auxilio de Deus, realizar obras meritorias.
— Sao Tiago nao contradiz a Sao Paulo porque visa queslüo di
ferente : considera nao o ingresso no estado de graca, mas a
couservacao desta última; assegura entáo que impossivel é
perseverar na amizade de Deus únicamente mediante a fé;
as obras boas se tornam imprescindíveis para que alguém nao
se torne como os demonios, os quais acreditam, sim, mas, nao
obstante, estáo condenados por nao terem as obras da caridade.
Quem considera as perspectivas próprias visadas por
S. Paulo e S. Tiago, nao dará valor absoluto a afirmacóes de
um ou de outro separadas do seu contexto, e saberá estimar
a necessidade das boas obras para que alguém nao se perca.
MiMver atencao o falo do que a S. Escritura oxigi* categóri
camente as obras boas de todo o quulquer cristáo, sem distin
guir entre predestinados e nao predestinados; nao fala de ho-
mens que, aparentemente apenas, se perderáo pelas suas más
obras, o homens, que realmente so perdorao polas suas más
obras. É Sao Paulo quem assim escreve :

«Deus recompensará cada um segundo as suas obras, a sabor : a


vida eterna aos que, com perseveranca cm fazer o bem, procuram
gloria e honra e incorrupto; mas a indignaciio e a ira aos que sao
contenciosos o desobedientes á verdade e obedientes á iniqüidade; tri-
bulacáo c angustia sobre toda alma do homem que obra o mal, pri-
meiramente do judeu, e lambém do grego; gloria, porém, c honra e
paz a qualquer que obra o bem, primeramente ao judeu, e também
ao grego* (Rom 2.6-10).

Vé-se nesta passagem como S. Paulo mesnio ¡issocia estri-


tamente a sorte eterna á prática de obras.
Contudo está claro que as boas obras do justo nao cons-
tituem urna fonte de salvagáo independente dos méritos de
Cristo; sao produzidas com o auxilio da graca do Redentor,

— 111 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 3/1958, qu. 7

que nelas frutifica. Seria impossível, porém, nao as levar em


conta no processo da nossa justificagáo; haja vista o relevo
enorme que Cristo lhes deu no seu sermáo sobre a montanha,
o qual, segundo Sao Mateus, proferido logo no limiar da vida
pública de Jesús, constituí a Magna Carta do Reino de Deus.
Nenhum comentador de autoridade, cristáo ou náo-cristáo,
ousaria afirmar que o «sermáo do monte em geral só ensina
indiretamente o Evangelho... a própria linguagem do Evan-
gelho está ausente de Mateus 5 a 7» (cf. Taylor, ob. cit. 79).
Ao contrario, os estudiosos o os homons do Dous somprc roco-
nheceram no sermáo sobre a montanha urna das exprcssóes
mais típicas da mensagem de Jesús ao mundo.
Por último, será preciso reconhecer (fazendo eco á S. Es
critura e aos nossos irmáos batistas) que a grasa santificante
possuida nesta vida é realmente o germen ou a sementé da
gloria celeste; náó há soluqáo de continuidade entre o dom
de Deus que os justos trazem nesta peregrinagáo terrestre e
o dom que renova a alma e o corpo dos santos no céu; a dife-
renc.a é apenas a que intercede entre a sementé e a planta ple
namente desenvolvida. Neste sentido pode-se e deve-se dizer
que eterno é o dom de Deus; isto, porém, nao significa que o
homem nao o possa recusar livremente no decorrer desta vida,
mesmo depois de o haver aceito. Nao levar em conta a liber-
dade da criatura seria indiuno do Dous, quo justamente quer
ser louvado nao apenas por autómatas, mas por seres a quem
Ele deu urna livre vontade como expressáo de maior perfeicáo
ontológica.

III. SAGRADA ESCRITURA

JOSUÉ (Rio, de Janeiro) :

7) «Em quo lugar da térra ficava o paraíso onde vive-


ram Adao c Eva ?»

Baseando-se ñas sobrias e obscui*as indicagóes de Gen


2,8-14, os autores, desde remota antigüidade, tém-se esforzado
por indicar a situagáo geográfica do paraíso dos primeiros pais.
Hoje em dia contam-se cérea de oitenta teorías concernentes ao
assunto; o paraíso terrestre tem sido colocado na Mesopotámia,
na Armenia, na Arabia, na india, na China, mesmo .no Polo
Norte, na África Ocidental, na Alemanha Setentrional, ñas
ilhas Canarias, no Perú.. . Por ocasiáo das Cruzadas, ou seja,
em 1165 aproximadamente, o Imperador bizantino o o Papa

— 112 —
ONDE FICAVA O PARAÍSO TERRESTRE ?

receberam cartas de um pretenso rei da India, que lhes notifi-


cava estar o paraíso situado a tres dias de viagem apenas do
seu reino... Sabe-se ainda que, no fim do séc. XV quando
Cristóváo Colombo descobriu a foz do Orenoco, julgou que éste
rio imenso devia sair do paraíso terrestre!
Ao lado destas teorías, convém notar a opiniáo de alguns-
judeus e cristáos que, movidos de respeito sagrado, localizavam
o paraíso fora dó mundo terrestre ou ao menos acreditavam ter
sido transferido para fora do mundo, já que éste se lhe tornou
inóspito após o pecado. Outros cristáos, ao contrario, afirma-
ram que existe na torra, mas 6 inacessívol, coreado quo esfú
de montes, agua e fogo.. .

Os criterios para os quais.geralmente apelam os autores


de hipóteses, sao os nomes dos quatro ríos que, conforme Gen 2,
irrigavam o paraíso : Fison, Gehon, Tigre e Eufrates. Ao passo
que os dois últimos sao bem conhecidos, muito se discute a
identidade dos dois primeiros; prevaleceu durante muito tempo
a tese de que sao respectivamente o Ganges (na Asia Oriental)
e o Nilo ou um de seus afluentes (na África); ora, dada a dis
tancia a que se encontram essas caudais urnas das outras, en-
tende-se que muito variadas hajam sido as sentengas referentes
ao local do paraíso terrestre. Em conseqüéncia, nao poucos
autores julgam insolúvel esta questáo geográfica.

IIojo em día, porém, com o ranhecimento niais oxato dos


géneros literarios ou do expressionismo dos antigos, percebe-se
que o problema está mal posto : o autor bíblico nao quería em
absoluto indicar a situacao topográfica do jardim primitivo,
mas, consoante a intengáo geral dos hagiógrafos, visava ircutir
urna verdade religiosa: com efeito, ensina o Génesis que o Cria
dor elevou o primeiro casal a grande dignidade sobrenatural,
concedendo-lhe a graga santificante e os dons do estado de ino
cencia; ora o escritor sagrado nao quis senáo ilustrar a digni
dade interior do homem, quando apresentou a mansáo dos pri
meiros pais como lugar ameno e encantador; segundo a sua
mentalidade, o «habitat» do homem agraciado por Deus devia
ser também um lugar «agraciado» ou gracioso. E, para o orien
tal, um lugar ameno é naturalmente um parque irrigado por
quatro rios :

O rio é sempre fator e símbolo de fecundidade, vida e civi-


lizacáo;

quatro era o número que, conforme os antigos, simbolizava


a totalidade das coisas déste mundo;

— 113 —
PERGUNTE E RESPONDEREMOS 3/1958, qu. 8

por conseguinte, quatro rios significavam, em Gen 2, toda


a fecundidade, todos os beneficios que as aguas fluentes podem
trazer a uma regiáo.

E, para mais inculcar a sua tese, o autor quis dar aos qua
tro rios simbólicos os nomes de quatro imponentes caudais :
tais eram certamente, para o oriental, o Tigre e o Eufrates; o
valor benéfico do Fison é indicado por correr éste rio em torno
de uma térra rica em substancias preciosas (ouro ótimo, pedra
de ónix, resina aromática; cf. 2,lls); quanto ao Gehon, bastava
dizer que tocava a Mesopotámia, de um lado, e a Etiopia
(Cuche), dt> oufro lado, para indicar a sua pujanca (cC
Gen 2.13).

Por cc.nseguinte, o leitor da Biblia interpretará os quatro


rios paradisíacos como expressáo figurada da riqueza e dos en
cantos que ornavam a primeira mansáo do homem. Quanto á
situacáo topográfica desta, o texto bíblico nada diz; o autor
sagrado a devia ignorar (dado o longo intervalo de tempo que
o separava de Adáo e Eva) e o Espirito Santo nao julgou neces-
sário revelar-lhe éste dado de ordem meramente geográfica (já
que religiosa ó a finalidade da Biblia).

Nao lia, pois, diriouklado em so admitir, como opinam geó


logos recentes, que o berco do género humano tenha sido nao
a Asia, mas a África, mais precisamente a África do Sul.

Jl'JKÓNI'VIO «¿uiiraliba):

8) «Qual a data cxata do nascimento de Nosso Senhor


Jesús Cristo ?»

1. Quanto ao dia e ao mes em que nasceu Jesús, desde


o séc. III os cristáos carecem de indicagóes seguras. O escritor
Clemente de Alexandria (!• antes de 215), por exemplo, apon-
tava o dia 25 Pachón (20 de maio) ou o 15 Tybri (10 de
Janeiro) ou o 11 Tybri (6 de Janeiro), sendo esta última a
data mais comumente aceita, conforme Clemente. Outro escri
tor, autor do «De pascha computus» (falsamente atribuido a
S. Cipriano, y 258), indica a data de 29 de margo. S. Hipólito
de Roma (v 235) falava do dia 2 de abril do ano de 5500 após
a criacáo do mundo Prevaleceu, porém, no uso cristáo a data
de 25 de dezembro. Porque ?
A data de 21 de margo, equinócio da primavera, era tida,
segundo as concepcóes dos antigos, como data inicial da cria-

— 114 —
__ A DATA DO NASCIMENTO DE CRISTO

gao do mundo; foi, por coiiseguinte, considerada outrossim


como data provável da Encarnagáo do Criador. Mais ainda : o
profeta Malaquias (4,2) apresenta o Messias qual Sol de Jus-
tica; por sua vez, Jesús se chama «a luz do mundo» (cf. Jo
8,12). Em conseqüéncia, os cristáos escolheram o quarto dia
(conforme Gen 1,14-19 no quarto dia Deus fez o sol, a lúa e
as estrélas) da semana que comega a 21 de margo, ou seja, o
dia 25 de margo, para comemorar a conceigáo do Salvador no
seio de María Virgem. Daí decorria que o nasci mentó de Jesús
havia de ser celebrado nove meses depois, isto é, aos 25 de de-
zembro. Foi talvez em meados do séc. IV que se implanlou defi
nitivamente a observancia tiesta data em Roma.

É possivel que sobre a escolha da data litúrgica ten'su


exercido influencia o calendario civil de Roma. O Imperador
Aureliano em 274 introduziu a 25 de dezembro a celebragáo do
Sol Invictus ou do deus Mitra. Em 362 o Imperador Juliano o
Apóstata (i 363) escreveu o opúsculo «De Solé Rege» (Sobre
o Rei Sol) a ser lido em Roma .no dia 25 de dezembro, a fim de
celebrar o sol. Ora sabe-se que as autoridades da Igreja nao
raro procuravam santificar datas ou costumes famosos do culto
pagáo mediante urna celebragáo crista; assim a fim de inculcar
tjue Cristo ó realmente o Sol de justiga Invicto, único capaz de
corresponder as aspiragóes dos homens, teriam •escolhido o dia
25 de dezembro para a celebragáo litúrgica de Natal; os bispos
costumavam nao simplesmente extirpar os usos pagaos, mas,
na medida do possivel, os cristianizavam, servindo-se déles
como de instrumentos pedagógicos que levassem o povo a com-
preender melhor o significado de Cristo.

2. Quanto ao ano do nascimento do Senhor, tém-se dados


mais explícitos. Nos primeiros séculos do Cristianismo, conta-
vam-se os anos a partir de diversos acontecimentos famosos da
antiguidade : havia, por exemplo, a era das Olimpíadas, a era da
fundaeño de Roma, a era de Diocleciano, a era bizantina.

Aconteceu, porém, que no séc. VI o monge Dionisio o


Exiguo ou Pequeño (v 556), desejoso de calcular a data de Pás-
coa para os anos subseqüentes, resolveu tomar como ponto de
referencia ou inicio de nova era o nascimento do Redentor,
acontecimento de importancia máxima na historia. Pós-se
entáo a conjeturar a data dóste a partiv de indieaeócs fornea
das pelos S. Evangelhos : Le 3,1 refere que Joáo Batista come-
cou a pregar no ano 15" do reinado de Tiberio: no ano seguinte
a éste, Jesús foi batizado, tendo aproximadamente trinta anos

— 115 —
PERGUNTE K RESPONDEREMOS- 3/1958, qu. 9

(cf. Le 3,23); por conseguinte, Dionisio recuou trinta anos a


partir do 15" de Tiberio, e chegou ao ano 754 da fundagáo de
Roma, ano que ele indicou como sendo o do nascimento de
Cristo e o inicio da era crista, ainda hoje em voga.

Dionisio, porém, enganou-se.

a) Com relacáo a Le 3,1, nao considerou que o ano 15"


de Tiberio se contava provávelmente a partir nao da morte
de Augusto, mas da elevacáo de Tiberio ao trono na qualidade
de «socius» ou compnnheiro de govérno de Augusto (elevacáo
que se don dois anos anlos da morte de Augusto). Já a ésto
título terá cometido um erro de 2 anos na sua computagáo cro
nológica. — Ademáis, Dionisio parece ter entendido com de
masiado rigor a fórmula «cérea de trinta anos», que indicaría
a idade de Jesús. Já que, segundo o costume judaico, ninguém
podia entrar na vida pública antes dos trinta anos, pode ser
que o Evangelista tenha desejado indicar* apenas que Cristo, ao
comecar seu ministerio público, já tinha idade legal.

b) Dionisio nao levou em conta a noticia consignada por


Mt 2,1: Jesús nasceu antes do falecimento do rei Herodes, o
qual se verificou no ano de 750, ou seja, no ano A* antes da era
crista. Ora Herodes passou doente os últimos meses de sua vida
em Jericó, ao passo que os magos ainda o encontraram em
Jorusalóm (cf. Mt 2,3); disto so concluí que a visita déstes
personagens a curte de Ilerodcs se deve ter dado, pelo menos,
por volta do ano 5" a.C. — Note-se outrossim que Herodes
mandou matar todos os meninos que tivessenu até dois anos de
idade : supunha, portanto, que Jesús pudesse ter nascido havia
dois anos. Admitindo que o monarca haja fcito um cálculo
largo, teremos que recuar um ano ou mais para além do ano
5* a. C., a fim de chegar ao ano em que Cristo nasceu. É o que
leva os melhore§ exegetas a admitir que Jesús tenha vindo ao
mundo por volta do ano 6" antes da era crista, ou seja, cérea
de 748 da era de Roma. Estas indicacóes se completaráo na
resposta seguinte.

9) «A estréla que nuion os magos ao presepio nao cons


tituí um fenómeno milagroso ?»

1. Primeiramente, alguns dados sobre os magos de Mt 2.


O nome «mago» vem do sánscrito mahat, grande, dando em
Pehlvi a forma mogh, sacerdote. Conforme Heródoto e Xeno-
fonte, os magos constituiam entre os medos e persas urna casta

— 116 —
A ESTRÉLA QUE GUIOU OS MAGOS

sacerdotal muito conceituada, que se ocupava principalmente


com adivinhagáo, astrologia e medicina. É bem possível que os
magos dos quais fala o Evangelho, fóssem realmente sabios
sacerdotes da Pérsia (alguns exegetas preferem a Caldéia, por
ser esta a térra clássica dos astrólogos e matemáticos; outros,
a Arabia, visto que a palavra «Oriente», empregada pelo Evan
gelista, costumava, na geografía palestinense da época, desig
nar a Arabia).
Os magos teráo tido conhecimento da expectativa dos judeus
referente á vinda de um grande Rei ou do Messias, já que os
israelitas após o exilio (séc. VI a.C.) haviam espalhado por
todo o Oriente a sua fé no Salvador vindouro; é.sso Salvador
era mesmo simbolizado por urna estréla, conforme a profecía
de Balaáo:

«Urna estréla que sai de Jaco, torna-se Chefe;


Um cetro se levanta, procedente de Israel».
(Núm 24,17)

Táo difusa era a expectativa israelita que Tácito (v 120)


chegou a escrever, apesar de todo o seu garbo romano :
«Os homens estavam geralmente persuadidos, á luz da
fó de antigos profetas, de que o Oriente ia tomar a vanguarda,
e, dentro em breve, se veriam sair da Judéia aqueles que gover-
nariam o universo» (Hist. V 23).
Compreende-so, a luz déstes precedentes, que sabios pa
caos orientáis tcnhntn reconhocido, no nparecimento de um
novo sinal luminoso no céu, a vinda de grande Personagem
aguardado como Renovador do mundo.
2. Pergunta-se agora em que consistía precisamente ésse
sinal luminoso.
O termo grego áster de Mt 2,2 podendo significar tanto
estréla como astro, como também fenómeno astronómico, os
exegetas tém proposto as mais variadas opinióes para o in
terpretar :

a) durante muito tempo estove em voga a scnteng; de


Kepler (i 1630), que explicava o sinal luminoso como sendo
o resultado da conjuncáo dos planetas Júpiter e Saturno no
signo zodiacal dos Peixes; esta conjuncíio se deu de fato no ano
747 de Roma (7 a.C). Tal sentenga levaría a recuar o nas-
cimento de Jesús até o ano 8" a.C. (746 de Roma). A hipótese,
porém, está hoje muito desprestigiada, pois se vé que nao cor
responde suficientemente aos dados do texto evangélico (o fe
nómeno de conjuncáo de astros por si nao indica rotciro sobre

— 117 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 3/1958, qu. 10

a térra; nao teria, pois, apontado aos magos o caminho de


Belém).
b) Outros autores apelam para o aparecimento de um
cometa; assim Orígenes, já no séc. III, e em nossa época o
famoso Pe. Lagrange. A passagem do cometa de Halley, que
em 1910 foi visivel em sua rota do Oriente para o Ocidente,
corroborou em muitos estudiosos a opiniáo de Orígenes.
Sabe-se, porém, que o cometa de Halley passou sobre as térras
do Oriente e do Ocidente no ano 12 a. C., e nao em 6 a. C.:
os chineses assinalam, sim, o aparecimento de outros cometas
em 1 o 3 n.C, os quais, poróm, paroccm nao ter sido obser
vados no Ocidente. Além disto, objcta-sc que os cometas só
podem ser observados á noite e, por seu roteiro muito longinquo
no firmamento, nao indicam senáo vaga direcáo, insuficiente
para se localizar tal pontinho preciso que é urna casa sobre a
térra.
c) Nao resta, portante, senáo a opiniáo que realmente
parece corresponder á mente do Evangelista e á dos antigos
Padres da Igreja: trata-se em Mt de um fenómeno milagroso
(quanto ao modo como foi produzido), ou seja, de um meteoro
que Deus quis servisse especialmente aos magos de pioneiro e
guia para a viaj*em que doviam ompreender, a. semelhanca da
coluna luminosa que precedía os israelitas na travcssia do de
serto (cf. Éx 13,21) : o astro, por disposicáo divina, mostrou-se
aos magos o desaparecou <;st lilamente segundo as exigencias do
caso. Váo, por conseguinte, se torna procurar explicacao mera
mente natural para o fenómeno. — É esta a sentenga dos me-
lhores comentadores católicos contemporáneos (Benoit, Buzy,
Ricciotti...).

ARIEL (Rio de Janeiro) :

]()) «QuaF o significado auténtico da frase de Cristo:


'Se sil«;uéiii fe linter na face direita, apresenta-lhe a oiitra'
(Mt 5,39)?»
De maneira geral, chama a nossa atengáo o estilo do fa
moso sermáo de Jesús sobre a montanha (Mt 5-7): é muito
vivo, visando penetrar e calar fundo na mente dos leitores me
diante as suas imagens, os seus contrastes e aparentes para-
doxos. Assim é que Jesús fala aos seus ouvintes de
arrancar o próprio ólho (5,29),
amputar a máo direita (5,30),
só dizer «Sim, sim; Nao, nao», pois ulteriores palavras
seriam inspiradas pelo Maligno (5,36),

— 118 —
DAR A OUTRA FACE A QUEM ESBOFETEIA

entregar o manto a quem queira tirar a túnica (5,40),


dar dois mil passos quando nos angariam para mil apenas
(5,41), e
apresentar a face esquerda a quem bata na direita (5,39).

O entendimento literal destas expressóes tena feito dos


discípulos de Jesús, logo no inicio do Cristianismo, um reba-
nho simplório, posto á mercé de todo aventureiro ou explo
rador; urna tal «prática do Evangelho» só faria promover o
mal no mundo, dando ocasiáo a que impíos e criminosos aca-
bassem por sufocar a causa do direito, do amor e da verdade.
As geragóes cristas, desde o inicio da nossa era, bem entende-
ram o sentido metafórico e hiperbólico das citadas frases de
Mt 5-7; nunca se julgaram obrigadas, por fidelidade ao Evan
gelho, a se arrancar um ólho, amputar a máo direita, entregar
manto e túnica em máos do ladráo, nem a apresentar a face
esquerda a quem batesse na direita. Jesús mesmo deu a inter-
pretacáo auténtica de suas palavras quando foi esbofeteado por
um dos guardas da corte do Sumo Sacerdote judeu: nao julgou
necessário, nem mesmo conveniente, fazer-se espancar de novo,
mas, mediante palavras serenas, procurou promover o bem do
injusto agressor, pedindo-lhe tomasse consciéncia exata do mo
tivo por que havia agido :
«Se falei mal, dá testemunho disto; mas, se falei bem,
porque assim me bates ?» (Jo 18,23).
Assim procedendo, o Senhor incutia o direito que toca a
quem é injustamente acusado, de defender a sua causa e por
as claras a verdade, a fim de que nao seja deturpado o bem
comum : «A resposta de Jesús deve servir de garantía aos
acusados; é preciso que se lhes reconhega o direito de se defen-
derem e de responderem livremente» (M.-J. Lagrange, Evangile
selon St. Jean. París 1936, 467).
Voltando ao texto de Mt 5,39, Braun assim comenta a
atitude do Senhor:

«Responder táo tranquilamente, mas com tal firmeza, a um ho-


mem irado, diante do qual Jesús estava desarmado, isto era, na ver
dade, apresentar-lhe a outra face» (Evangile selon St. Jean, em «La
Sainte Bible» de Pirot-Clamer X. Paris 1946, 458).

IV. MORAL

OBSERVADOR (Rio de Janeiro):

11) «Nao será injusta a campanha movida contra a cha


mada Legiáo da Boa Yontade ?»

— 119 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 3/195S, qu. 11

Independientemente de quanto se diga sobre a pessoa do


Sr. Alziro Zarur, interessa-nos aqui analisar á luz do Cristia
nismo (ao qual o Sr. Zarur quer satisfazer) o significado do
movimento que ele chefia.
Urna das teses mais apregoadas pela LBV é a prática da
caridade. O convite, em si atraente, nao podia deixar de pro
vocar a adesáo de muitas pessoas bem intencionadas.
Eis, porém, que, ao se praticar a caridade, cedo ou tarde
se verifica ser impossível prescindir da questáo religiosa. Cari-
dado implica sacrificio o abncgacáo da parte de quem a excrce;
implica o reconhecimento de uní valor (natural ou sobreñatu-
ral) na pessoa do próximo; implica um juízo sobre os bens e a
felicidade desta vida. Ora. estes sao pontos que inevitávelmente
se relacionam com a idéia de Deus, do sentido que tem a exis
tencia humana sobre a térra, ou seja, com a religiáo. Por seu
lado, nem o Sr. Zarur quer abstrair da religiáo na sua campa-
nha; muito ao contrario — e ai comeca o mal da historia — a
fim de mais estimular os ouvintes a seguir as suas instrugóes,
apela para o sentimento religioso da nossa sociedade, e, sendo
a grande maioria dos brasileiros crista, é com o Evangelho ñas
máos que ele os quer aliciar.
Nesta altura, porém, é preciso observar que, embora seja
ótima obra divulgar o Evangelho, a ninguém é licito fazé-lo a
seu bel-prazer. Só há urna face do Cristo auténtica, como só
há um rebanho e um aprisco do Cristo, e é sómentc em meio
a éste que Ele se encontra (como Ele mesmo o declarava, se
gundo Jo 10,16). A ninguém, portanto, será licito dizer que está
em contato com o Cristo pelo fato de abrir o Evangelho e de se
unir em espirito, numa linha vertical, ao Cristo que está no céu.
Cristo está muito mais próximo de nos : está na térra; foi-se
ao Pai, mas voltou ao mundo e permanece conosco, como pro-
meteu (cf. Jo 14,18s); é preciso, por isto, procurá-Lo primeira-
mente em linha horizontal, ou seja, através das geragóes que
ininterruptamente retroceden! a partir dos nossos tempos até
atingir o Cristo histórico no limiar da era crista. É nessa linha
horizontal (que se chama a Tradicáo crista), e sómente nela,
que o Cristo se encontra vivo; foi nessa linha horizontal que os
Evangelhos foram concebidos, escritos e transmitidos continua
mente através de dezenove séculos. Se alguém quer separar
dessa linha ou dessa Tradigáo crista o Evangelho, separa do
Cristo o Evangelho, o que simplesmente quer dizer : já nao
prega o Cristo.
Pergunta-se, pois, ao Sr. Zarur : como está unido ao Cristo
a fim de pregar auténticamente o Evangelho ?

— 120 —
A LEG1AO DA BOA VONTADE

O Presidente da LBV repetir-nos-ia que do alto Jesús se


lhe comunica diretamente. — Isto, porém, já o afirmaran!
muitos, posteriormente comprovados como falsos arautos do
Senhor. A via das revelacóes é muito suspeita, porque demais
explorada; nem é o caminho usual pelo qual o Senhor se comu
nica aos homens. Jesús mandou que nos acautelássemos contra
profetas e Messias (cf. Mt 24,23s).
Estaña entáo o Sr. Zarur unido ao Cristo na linha hori
zontal? Ou em linguagem mais simples : estaría unido á familia
sobrenatural do Cristo, á linha de 55 geracoes (aproximada
mente) que modeinm entro Cristo o nos ?
Nao; precisamente nao. A sua campanhu dá a entender,
em última análise, que nao há urna familia tradicional do Cristo
a prolongá-Lo desde o sáculo 1" da nossa era, mas que, a fami-
iia espiritual do Cristo, é o Sr. Zarur mesmo quem a faz, lendo
e revelando, «redescobrindo» o Evangelho para o mundo. A fim
de suprir o vazio e a incoeréncia de suas idéias, o Presidente
da LBV serve-se muitas vézes de um tom de voz mística, que
impressiona o público pouco dado ao raciocinio; assim ele «mis
tifica» realmente, inebriando a alma religiosa do povo brasi-
leiro, que inconscientemente se vai afastando do Cristo, Filho
de Deus feito homem, para seguir o Sr. Zarur, novo Messias,
e um ideal de filantropía meramente humana. Tal ostentacáo,
tal aparato, com que o Presidente da LBV tenta angariar legio
narios, sao de todo condenáveis, nao sómente aos olhos do Cris
tianismo, mas também aos da honestidade humana.
Se, nao obstante as suas falhas radicáis, a LBV encantrou
adeptos e ainda conta com defensores, duas pareceni-nos ser
as causas do fenómeno :
1) o sentimentalismo pouco esclarecido da nossa boa
gente. Basta falar em miseria para que muitas pessoas se emo-
cionem e fagam alarde (o que nao quer dizer que respondam
como deveriam responder). Um dos casos mais típicos de explo-
racáo do sentimentalismo, exploracáo superficial que nao leva
em conta o raciocinio, é o amor a Satanaz, «meu irmáo», apre-
goado pelo Sr. Zarur...
Com efeito. Refutamos um pouco sobre o que isto significa.
Satanaz é um anjo que Deus criou dotado de inteligencia
penetrante, mas que abusou da liberdade de arbitrio para se
tornar avésso ao Criador; optou conscientemente pela auto-
-satisfacáo em vez de seguir o plano de Deus; e a sua opgáo é
irrevogável, dada a perfeicáo da natureza angélica (no homem,
enquanto consta de alma unida ao corpo, ou seja, durante esta

— 121 —
<PERGUNTE K RESPONDEREMOS* 3/I95X, qu. 11

vida, as opcóes sao revogáveis, porque o corpo obscurece a


perspicacia da inteligencia, a qual conseqüentemente pode re
considerar os seus atos e reformá-los). Satanaz, portante, nao
quer em absoluto amar nem a Deus nem aos homens (o seu
tormento é justamente viver odiando); e ele tudo faz para
atrair ao seu odio e á sua desgraga outros parceiros, ou seja,
os homens. Sendo assim, que posigáo pode o cristáo tomar
diante de Satanaz ?
— Enquanto Satanaz é um ser, urna criatura inteligente,
ele é uní bem, que do seu modo (por sua existencia mesma)
glorifica a Deus. Mas Satanaz nao ó um mero ser... Em última
análise, ó um ser livre, sujeito íi ordem moral; enquanto tal,
ele é o contrario do bem, é um mal, e um mal irreformável.
Ora o mal como tal nunca pode ser objeto de amor; é a Psico
logía, nao sómente a Religiáo, que o ensina (conceber Satanaz
de outro modo para poder amá-lo seria conceber um Satanaz
que nao existe).
Donde se vé que nao tem cabimento, á luz da inteligen
cia, falar de «amor a Satanaz»; é contradicáo apta para em
briagar os simplórios. O fato, porém, é que quem apregoa ésse
absurdo passa talvez por mais caridoso do que os caridosos,
mais santo do que os santos; parece mais próximo de Jesús
do que qualquer dos anteriores arautos do Evangelho.
2) Tocamos aqui o segundo fator que, a nosso ver, dá
voga á LBV; muitos talvez lhe prestem adesao por motivo de
orgulho (consciente ou, em nao poucos casos, inconsciente).
Ocasióes para praticar a caridade nao faltam em instituigóes
já vigentes, principalmente na Igreja Católica; mas na LBV a
pessoa socorre os indigentes sem professar a Dogmática do
Cristianismo e sem se obrigar a observar as leis da religiáo e
do culto de Cristo; na LBV cré-se na existencia de um «Deus»
e de um «Jesús»; mas nao se abraga oficialmente nenhum credo
religioso; é cada um quem faz a sua religiáo (caso a queira),
escolhendo os seus dogmas e obedecendo as normas que agra-
dem ao seu bom senso subjetivo. Ora a nao poucos atrai (talvez
sem que o saibam) a perspectiva de nao estar sujeito a alguma
obrigagáo religiosa, sem, porém, passar por ateu ou impio aos
olhos da sociedade! Quantos nao gostam de por Deus no bolso
e tirá-Lo, ostentá-lo, quando isto lhes convém!
O que acaba de ser dito, visa apenas incitar a urna reflexáo
e abrir caminho á verdade. Em vista disto, foi preciso falar
contra o procedimento do Sr. Zarur; mas note-se bem:
— contra o procedimento. Quanto á sua pessoa, ela é muito
cara a todo cristáo : o discípulo de Cristo, enquanto repudia

— 122 —
A PAPISA .1OANA

o erro, quer bem ao homem que erra, pois sabe que por ele
Jesús derramou a última gota de seu sangue.
Já que o Sr. Zarur tanto estima o Evangelho, entre final
mente na familia sobrenatural do Redentor! A Igreja de Cristo
ama sinceramente a pessoa do Presidente da Legiáo da Boa
Vontade.

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

MIRO SANTOS (Rio <lc Janeiro) :

12) «Hohvíí raesmo na serie dos Papas urna Papisa?»

1. Duas sao as versees da historia, ou melhor (como se


depreenderá abaixo), da lenda da Papisa Joana.
A mais divulgada refere que urna jovem de Mogúncia
(Alemanha), vestida de homem, foi por seu amante levada a
Atenas, onde granjeou grande erudicio : transferiu-se para
Roma, ai exerceu o magisterio, chegando finalmente a se tornar
Papa com o nome de Joáo Ánglico, logo depois de Leáo IV
(falecido em 855). Aconteceu, porém, que um día, caminhando
de Sao Pedro para a Basílica do Latráo, deu a luz e morreu...
Teria governado a Igreja durante dois anos e meio.
Eis outra forma da mesma lenda, também consignada
nos manuscritos medievais : u'a mulher, cujo nome nao é indi
cado, ter-se-ia apresentado em público como varáo, tornando-se
sucessivamente escriváo da Curia Romana, Cardeal e Papa.
Um dia, porém, quando andava a cávalo, teria dado a luz, mor-
rendo entáo apedrejada pelo povo. A data déste «pontificado»
é diversamente indicada pelos manuscritos : depois de Ur
bano II (falecido em 1099), dizem uns; depois de Sergio III
(falecido em 914), referem outros.
Nos séculos XIV e XV a historia gozava de crédito mais
ou menos geral : no domo de Sena, por exemplo, em cérea de
1400, foram erguidos os bustos dos Papas, entre os quais o da
Papisa Joana. No Concilio de Constanca (1414-1418), o hereje
Joáo Hus citou a Papisa Joana sem sofrer contestagáo alguma.
Humanistas e adversarios da Igreja muito explora ram a nar
rativa.

2. Apesar de ligeiras dúvidas sobre a veracidade dessa


historia proferidas desde o século XIII, sómente a partir de
meados do século XVI se reconheceu o caráter lendário da
mesma, devendo-se citar, entre os que a desmascararam e

— 123 —
PEPvGi;NTE__E RESPONDEREMOS 3/13)3, qu. 12

denunciaram, o autor protestante D. Blando! («Familier es-


claircissement de la question, si une femme a esté assise au
siége papal de Rome entre Léon IV et Benoit III*. Amsterdam
1647) e o erudito Ignaz von Dellinger («Die Papstfabeln des
Mittelalters». Stuttgart 1890), o qual nao era muito amigo do
Papado, pois se separou de Roma por nao querer reconhecer a
Infalibilidade pontificia definida em 1870.
As razóes por que nao se admite mais a «historia» da Papisa
Joana sao :
a) as incertezas o vacilacóes das diversas versóes, princi
palmente ao assinnlarem a dala do pretenso episodio;
b) o fato de que até meados do sóculo XIII a extraordi
naria e interessante historia da Papisa Joana (que teria vivido
no período dos séculos IX, X, XI) é totalmente ignorada pelos
cronistas medievais. Os primeiros que a referem, sao o domini
cano Joáo de Mailly, na sua «Chronica universalis Mettensis»
redigida por volta de 1250, e seu confrade Martinho Polono
(v 1279), autor de «Chronicon pontificum et imperatorum».
Averigüou-se que os relatos da lenda encontrados em documen
tos mais antigos do que estes foram interpolados depois do
século XIII;
c) a serie dos Papas, como hoje é conhecida, nao admite
interrupcáo entre Leáo IV e Bento III (séc. IX), como táo
pouco a admite entre Pontífices dos séculos X/XI.
3. Como entáo se explica o surto e a propagacáo da lenda
de Joana?
Julga-se que a historieta é urna alusáo as tristes condieóes
em que se achava o Papado no século X : varios pontífices cai-
ram entáo sob a influencia de tres mulheres prepotentes em
Roma — Teodora, esposa de Teofilacto, e suas filhas Teodora
e Marócia. Na mesma época houve sete Papas com o nome de
Joáo: Joáo IX (898-900), Joáo X (914-929). Joáo XI (931-
935), Joáo XII (955-964), Joáo XIII (965-972), Joáo XIV
(983-984), Joáo XV (985-996), sendo que a respeito de Joáo XI
escreveu um cronista seu contemporáneo : «Foi subjugado em
Roma pela prepotencia de u'a mulher» (Bento de S. André
de Sorate, Chronicon, em «Monumenta Germaniae Histórica»
III 714). Tal fase difícil da historia do Papado terá sido ilus
trada de maneira muito eloqüente pela narrativa ficticia de que
u'a mulher chegou a subir ao trono pontificio. . .
A lenda foi reforcada pela existencia de urna estatua de
mulher com urna crianca ñas máos, que na Idade Media se
achava junto á igreja de Sao Clemente em Roma. Essa estatua

— 124 —
A PAPISA JOANA

seria, conforme os cronistas medievais, a da Papisa Joana; esta


ría acompanhada de urna inscrigáo, da qual quatro variantes
nos sao referidas pelos historiadores da Idade Media :

«Parce pater patrum papissae prodito partum».


«Parce pater patrum papissae prodere partum».
«Papa pater patrum papissae pandito partum».
«Papa pater patrum peperit papissa papellurn».

Ora os arqueólogos admitem seja a estatua mencionada


a quo so enconini hoje no Museu Chiaramoni.i do Roma; seria
unía estatua de origem paga a roprosont.ir l;i!vo/. Juno que
amaínenla Hércules.
As diversas formas da inscricáo ácima parecem nao ser
mais do que tentativas medievais para reconstituir urna frase
fragmentaria assim encontrada :

P. . . PATER PATRUM P P P.

Sabe-se que Pater Patrum era título característico dos


sacerdotes de Mitra (justamente debaixo da igreja de Sao Cle
mente foi encontrado grandioso santuario de Mitra). Mais
ainda : sabe-se que a abreviacáo P P P ó freqüente na epigrafía
latina, significando muitas vézes propria pecunia posuit, ou
seja, construiu a cusía própria. Donde se concluí com verossi-
milhaiiga que a «estatua da Papisa Joana» nao v senAo urna
efigie em uso no culto de Mitra, custeada e colocada no san
tuario respectivo pelo sacerdote pagáo P. .. (talvez Papirus)
em inicios da era crista. A inscrigáo abreviada e mutilada pela
injuria dos tempos, prestando-se a interprétaseos diversas,
teria dado lugar as conjeturas dos poetas medievais que corro-
boravam a lenda da Papisa Joana.

CORRESPONDENCIA MWDA

Aos nossos leitores acs quais por falta de espago nao foi
possivel responder no presente fascículo, comunicamos nosso
desejo de lhes satisfazer no próximo número.
AFLITO (Rio de Janeiro): Oxalá tivéssemos seu ende-
rego! Nao ha motivo para se perturbar com a mensagem de
Fálima. Os «profetas» tém explorado indevidamenle o nssunto.
As autoridades da Igreja, porém, estáo conscientes do caso, e
Cristo prometeu assistir-lhes para que nos orientem (cf. Mt
28,20).

— 125 —
-rPERGUNTE E RESPONDEREMOS* 3/1958

UM ESTUDIOSO (Rio de Janeiro) : No fascículo de Ja


neiro de 1958 qu. 1, a intengáo do redator era a de afirmar
que a habitagáo de outros planetas e a possibilidade de comu-
nicagóes inter-siderais sao teses que se podem afirmar fora do
espiritismo, ou seja, independentemente de qualquer profissáo
de fé espirita. Nao há dúvida, porém, de que Kardec incorporou
essas tesos ao seu sistema.

D. Estevao Bettencourt O.S.B.

— 126 —
Pergunte e Responderemos
Caro amigo, nao há qnem se ponha a pensar e nAo conceba
sem demora Importantes problemas («Afinal que faco neste
mumlo? Qiial o sentido da vida presente? Que se Ihc >efriilra?»>.
Nao sufoque ni'iii di-spre/r cftsas questfics. Soni luz sobre l:ii-
assuntos ninguém se pude sentir plenamente tranquil» <■ feliz.

l'ara n ajudar na procura Uas solucoes qur llio inieressain.


V. S. tem u sii:l disposicáfi urna Caixa I'oNtal c um fanrículci
men.sal de 40 páginas publicarlo sol> os Cllidiulcí». de 1). K»t<"-viio
nettencuurt O. S. H. Podcra propnr qnestóes f ilosíifú'jis. niur;iis <■
ri-llelusaK un xrgiiintc nnilcreco :

cPEUCVNTK B KESrONDEllKAIOS»

Caita rostal 2f>iifi

Rio de Janeiro

A resposta »erá enviuda gratuitamente a V. S. im f.i-i-ú-nln


iinprossií. Queira, pols, indicar endereco c pseudónimo.

A culeváo «lo» fascículos «l'crgiintc c I(<spond»r<mosí noilr-


-s« ohter tumbúm por asslnalurn (a serie no inir.ioii em in;ir(.n
(le 1057). Preco da asslnnt.ura anual : C'rS 400,00. Número avulso :
Cr$ 40,00. Pedidos a Rúa Real Grandeza. 108, Huta foco — Itlo
de Janeiro (trl. : 30-1832).

.V. II. : — Tildo quv xi- refere ii IIHUACAO de ve mt <iivia<lo a


D, Kstcvfio Rettencourt O. S-B. (ou «Pergunte e Responderemos»),
Calva postal 206G, Rio «le Janeiro. O que diz respelio a ADMI-
NISTKACAO seja dirigido a Rila Real Grandeza. 10». Uotafoiro.
Hin dr Jmu'iro.

DEPÓSITOS:

RIU Di; JANEIRO :

Instituto Pío X do Rio de Janeiro — R. Rea! Granñvyb, i<'K ■


Botnfogo;
I.ivrarla a Lumen ChristU — Caixa Postal 26GG:
l.ivraria «Voies Ltda» — R. Senador Dantas, 118-A;
Llvrarla Misslonárla — R. 7 de Setombro, 65-A.

SAO PAULO (Capital) :

ISdicflcg rnulinas — Praca da Sé, 184 - 1" nn<iar.

.MINAS (¡ERAIS :

IJvrarla Eklltdra «Lar Católico» — C. Postal 73 -- Juiz dt Foro.


«PERGÜNTE E RESPONDEREMOS»
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Rio de Janeiro Tel. 26-1822 —Rio de Janeiro

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