Você está na página 1de 46

Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir {1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
BL vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Estevao Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacao.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO IV

45
SETEMBRC

19 6 1
ÍNDICE

p&g.

I. CIENCIA E KELIGIAO

1) "Que apréco merece a Grafologia (estudo da escrita)?


Estará ligada á superstic&o e as ciencias ocultas, chocán
dose assim com a fé católica ?
Até a escrita dos santos tem sido submetida a exorne, ocasio
nando surprésas e decepcñes. Que pensar disso ?" 363

II. SAGRADA ESCRITURA

2) "O eMacionamento do sol-por ordem de Josué, narrado


pela Sagrada Escritura (Jos 10, 7-15), 6 fenómeno demasiado^
estranko para que possa merecer crédito. Que pensar, no caso ?" 373

III. MORAL

S) "Há comprimidos modernos que, sem mutilar a natureza,


tortiam a mtdher provisoriamente estéril.
Aos olhos da Moral, será licito usá-los ?
Em caso negativo, nao se tratará de urna proibicáo momen
tánea a ser remodelada a fim de que a Ética se adapte melhor
aos tempos modernos ?" S7

IV. LITURGIA

4) "Qual a origem do sinal da cruz dos cristaos ? •


385
Que significa própriamente ?"

V. PEDAGOGÍA

5; "Como julgar a celeuma suscitada pelo 'Plano de Diretri-


zes e Bases da Educagño Nacional'?
Diz-se, entre otitras coisas, que ésse projeto equivale a um
golpe contra o Escola Pública, democrática, em favor de interésses
particulares, aristocráticos !"

CORRESPONDENCIA MIÚDA i0S

- COM APROVAC&O ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano IV — N! 45 — Setembro de 1961

I. CIENCIA E RELIGIAO

DESAPONTADO (Rio de Janeiro):

1) «Que aprisco merece a Grafologia (estado da escrita) ?


Estará ligada a supersticáo e as ciencias ocultas, chocan-
do-se assim com a fé católica?
Até a escrita dos santos tem sido submetida a exame, oca
sionando surpresas e decepgóes. Que pensar disso?»

A Grafologia é o estudo das relacóes existentes entre a


Grafologia, qual a sua posicáo perante a ciencia e a Religiáo,
e o que dizer das suas recentes aplicagóes na hagiografía ou
na reconstituigáo do perfil dos santos.

1. Grafologia e veracidade

A Grafologia é o estudo das relacóes existentes entre a


escrita de urna pessoa e as suas características psíquicas e
moráis; segundo os grafólogos modernos J. Chr. Grohmann
e G. Moretti, poderia mesmo denunciar as notas físicas ou so
máticas do sujeito, revelando assim a personalidade inteira.

Já os antigos pré-cristSos costumavam sondar a escrita, a fim


de melhor conhecer o caráter e o curriculo de vida das pessoas; fa-
zlam-no, porém, segundo regras mais ou menos inconsistentes, inspl-
piradas muitas vézes por falsa mística. Praticavam destarte a Gra-
íomancla ou a adlvinhacSo pela escrita, Essa praxe, que ainda em
nossos dias está em uso, é condenada tanto pela Religiáo como pela
ciencia, pois se acha baseada na crendice supersticiosa, carecendo
de fundamento racional.
Cultiva-se, porém, o estudo da escrita guiado estritamente por
criterios científicos, isto é, pelo conheeimento das relacOes que ine-
gávelmente ligam entre si o caráter físico de urna pessoa e seu ex-
pressionismo gráfico. O primeiro tratado de Grafologia assim enten
dida, cóm base em experiencias e observac8es serias, deve-se ao mé
dico e professor bolonhés Camilo Baldi; foi editado em Bolonha no
ano de 1662, com o titulo «Trattato come de una lettera mlssiva si
cognoscano la natura e qualitá dello scrittore».
Contudo, só a partir de coméeos do séc. XTX é que a Grafologia
vem sendo estudada de maneira metódica e sistemática; o pioneiro

— 363 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961, qu. 1

desta nova fase foi o Padre Flandrin, cujas pesquisas foram conti
nuadas pelo seu discípulo, o Pe. Michon. Éste deu k nova ciencia o
nome que aínda hoje a caracteriza, e escreveu diversos livros a
respeito, entre os quais se destaca a chamada «Histoire de Napo
león I d'aprés son écriture». Pesquisas e observares nesse setor
se tém multiplicado, por iniciativa tanto de eclesiásticos como de
leigos (Goethe, Moreau, Edgar Poe, Walter Scott, o bispo Boudinet,
o Cardeal Regnier, o jesuíta Martín, o jurista Lombroso, etc.).

Tais estudos sao perfeitamente legítimos nao sómente do


ponto de vista científico, mas também do religioso. Está, sim,
comprovada a existencia de íntimas relagóes entre o psíquico
e o físico ou — no nosso caso — entre o temperamento la-.
tente de urna pessoa e a sua linguagem corpórea, linguagem
corpórea que pode consistir ou em gestos (mímica) ou em pa-
lavras (idioma) ou em movimentos da máo que chamamos
«a escrita»; o corpo, por suas atitudes conscientes ou incons
cientes, é o espelho por excelencia da alma (cf. «P. R.»
28/1960, qu. 8).
Na base, pois, de experiencias e estatísticas, os estudio
sos tém conseguido descobrir e formular principios que regem
o comportamento da máo ao exprimir pela escrita o que vai
no íntimo de cada personalidade.

Basta observar a letra de urna pessoa tida como nervosa e a de


outra pessoa que é calma; a agitacao interior desregrada da primei-
ra se traduz pela escrita irregular; da mesma forma, a índole pon
derada da outra... Leve-se em conta também a letra de um indi
viduo bem disposto ñas primeiras horas do dia, e a désse mesmo
individuo ao terminar exausto um dia de trabalho; a diferenca de
modalidades gráficas é por vézes surpreendente!

A estipulagáo dos principios da Grafologia vai-se proces-


sando lentamente através dos anos; está nao raro sujeita a
reformas, dada a liberdade de arbitrio da alma humana; nao
depende, porém, de adivinhagáo nem de preconceitos religio
sos ou místicos. A Grafologia é considerada hoje em dia um
ramo da Psicología do movimento e, como tal, tornou-se ma
teria de currículos em Universidades. As pesquisas dos Pro-
fessóres Le Senne e G. C. Jung foram decisivas para os ru
mos atuais dessa disciplina.
A análise da escrita tem-se revelado de inegável utilidade,
principalmente ao se tratar de auxiliar alguém a conhecer a
si mesmo (seu temperamento e suas tendencias; seu estado de
saúde física). Pode ter também suas aplicacóes vantajosas no.
conhecimento de terceiras pessoas, exigindo-se, porém, nestes
casos, muita cautela e discricáo para nao se tirarem conclu-
sóes indevidas ou exageradas (pode haver outrossim obriga-

— 364 —
OS SANTOS ESTOPADOS PELA GRAFOLOGIA

gao de sigilo profissional); assim tem-se utilizado a análise da


letra na orientagáo educacional, profissional, em exames pré-
-nupciais, no selecionamento do pessoal de urna empresa, etc.

Note-se, alias, que o objetivo da Grafologia é apenas o de des-


crever o caráter da pessoa; de modo nenhum intenciona ler o pas-
sado, profetizar o futuro ou denunciar acontecimentos ocultos pre
sentes (como tenta fazer a Grafomancia). O comportamento futuro
do individuo, em seus pormenores concretos, depende da livre von-
tade humana; portanto, nao pode ser rigorosamente predito pelas
leis da ciencia. Por conseguinte. querer usar da Grafologia para
obter profecías implica desvirtuamento e supersticáo. Será necessá-
rio pois que as pessoas interessadas se acautelem contra charlatáés
e meros amadores, a fim de só se dirigirem a técnicos competentes
em psicología e em análise da escrita.

2. Sistemas de Grafologia

Se os estudiosos estáo concordes entre si ao reconhecerem


os principios psicológicos que tornam científica e moralmente
legítima a pesquisa da escrita, divergem bastante ao tentarem
estipular os criterios de interpretagáo dos sinais gráficos. Ana-
Iisam minuciosamente todas as características que estes pos-
sam apresentar: forma (arredondada, alongada, angulosa...),
inclinagáo, dimensSes, intensidade do tragado, maior ou me
nor proximidade entre as letras e entre as palávras, maneira
de cortar o t; regularidade, curvatura, ritmo ascensional ou
declínio das linhas; respeito as margens, margens largas ou
estreitas, á direita, a esquerda... superfluidade, simplicidade
ou harmonia de tragos; pardmónia ou esbanjamento de papel;
legibilidade maior ou menor, ilegibilidade; configuracáo das
maiúsculas (tipográficas, floreadas, muito altas, baixas), etc.
Contudo, ao procurarem o significado respectivo de cada um
désses particulares, os grafólogos nao concordam sempre en
tre si;
Neste setor, quanto mais recentes sao os sistemas de in
terpretagáo, tanto mais autoridade possuem.

A euisa de ilustragáo, segue-se urna lista de interpretac6es que,


por sua Índole mais evidente, merecem consideracáo por parte do
estudioso.

Escrita' muito Inclinada para a direita: sensibilidades


muito inclinada para a esquerda: disstaralacao;
muito redonda: bondade, afetuosidade;
muito angulosa: maldade, frieza afetiva;
pesada, com traeos grossos: senslbiHdade;
leve, com traeos finos: espiritualidade e sentimentalismo.

— 365 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961, qu. 1

Linhas muito direitas: caráter Inflexível e pesstmista;


direitas, mas sem rigidez: franqueza e retidSo;
serpejantes: astucia, velhacaria, diplomacia;
ascendentes: ambiguo, ardor;
descendentes: desanimo, tristeza;
convexas ou cdncavas: coragem desigual, passagem brus
ca do entusiasmo a decepcSo.

Margens ausentes: falta de gósto, avareza;


estreitas: economía;
largas: prodlgalidade;
duplas (á direita e a esquerda): poesía.

Letras muito grandes: orgulho;


medias: dignidade;
pequeñas: prudencia, senso critico;
muito pequeñas: astucia, oovardla.

Silabas separadas: Intulcao;


desligadas: deduSSo;
ora ligadas, ora separadas: termo medio entre a Intul-
cSo e a deducáo.

Palavras espacadas: coragem de oplnlSo, clareza;


amontoadas: avareza;
ligadas entre si: senso de argumentado, chegando ao
sofisma;
pontiagudas: mentira, tendencia a ofender;
..'. culos traeos váo pouco a pouco engrossando: franqueza 8
probidade;
muito legíveis: lealdade corajosa;
ileglveis: finura, Impenetrabllidade, desequilibrio nervoso.

Dadas a seriedade e a lealdade de seus estudos, impóe-se


á atencáo do público em geral o chamado «Instituí Internatio-
nal de Recherches Graphologiques (París, Bruxelles, Washing
ton) », cuja sede principal se acha em Boulogne-sur-Seine: 13,
Avenue Victor-Hugo., Esta entidade ministra, por correspon
dencia, um «Curso Racional de Grafologia Psicológica», o qual
consta de 17 aulas por semana, acompanhadas de exercícios
e de figuras ilustrativas; visa nao sonriente dar a interpreta-
gáo dos diversos sinais gráficos, mas também o «porque» des-
sa interpretacáo, habilitando assim o discipulo a julgar com
pleno conhecimento de causa.
Um dos grafólogos que de mais autoridade gozam atual-
mente, é o Pe. Frei Jerónimo Maria Moretti, da Ordem dos
Franciscanos Conventuais, o qual desde agosto de 1905 já rea-
lizou mais de trezentas mil análises grafológicas. Na base de
táo vasta experiencia, formulou 81 regras, cada urna das
quais exprime a relagáo existente entre determinado sinal
gráfico e certa qualidade psico-somática do individuo. O Pe.
Moretti julga que com o progresso dos estudos ainda podera

— 366 —
OS SANTOS ESTOPADOS PELA GRAFOLOGIA

ser aumentado o número dessas regras; cada urna délas foi


submetida a controle mediante observagáo do comportamento
das pessoas analisadas ou mediante consultas feitas a educa*
dores e médicos que conheciam tais pessoas: num total de
300.000 análises, diz-se que Moretti recebeu 299.999 respostas
de confirmagáo e aplauso 1... Os sinais gráficos sao por ele
distribuidos em substanciáis, modificadores e acidentais, e en-
quadrados dentro de um sistema próprio de classificagáo
decimal.

A teoría se apresenta consecuentemente multo aprimorada e ori


ginal. Contudo os críticos se mostram cautelosos ao julgá-la. Cons
cientes de que a ciencia graíológlca aínda está em seus anos de in
fancia, admitem que os estudos futuros possam levar a reformar
certas conclusSes do Pe. Moretti, no momento tldas como válidas,
mas talvez insuficientemente assentadas. Além disto, propOem urna
questao nao desprezivel: nos casos em que os grafólogos proíerem
diagnósticos certos, estarao sendo induzidos a isto únicamente pelas
regras da Graíologia ou quem sabe se nao íalam por efeito de um
dom pessoal de clarividencia (dom que nao teria que ver com os
principios da Grafologia)?

Como quer que seja, o Pe. Moretti aplicou suas regras á


escrita .dos santos, deixando-nos, em conseqüéncia, um livro
que muito tem impressionado o público: «I Santi dalla Scrit-
tura», livro traduzido para o francés com o título «Copie non
conforme. Le vrai visage des Saints revelé par leur écriture».
París, Casterman 1960. É para tal obra que vamos agora vol-
tar a nossa atengáo.

3. A Grafologia e os Santos

1. Há mais de quarenta e cinco anos, em 1914, Monse-


nhor Clementi, historiador em servico no Vaticano, entregava
ao Pe. Girolamo Moretti, já entáo conceituado grafólogo, urna
carta de S. José de Cupertino (1603-1663), franciscano con
ventual, que acabava de ser declarado padroeiro dos aviadores.
Submetendo o documento á. análise grafológica, Moretti se
surpreendeu por descobrir na fisionomía do santo assim ex-
pressa sinais de fraqueza de caráter e de espirito vingativo.
Contudo Mons. Clementi assegurou-lhe que a conclusáo bem
correspondía aos dados históricos: estes atestam que Sao José
de Cupertino teve de sustentar durante toda a vida arduas
lutas contra as más tendencias de sua natureza.

A seguir, foram confiados ao Pe. Moretti espédmesda escrita


de cérea de cinqüenta santos canonizados, cu] os nomes nao lhe eram
revelados, a flm de que a análise nao soíresse influencias estranhas.

— 367 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961, qu. 1

Os resultados do exame désses documentos de tal modo surpreende-


ram Moretti que éste por tres anos renunciou a praticar a Grafo-
logia: as pesquisas haviam-lhe dado a ver de perto a humanidade
dos Santos, humanidade que, na maioria dos casos, lhe aparecía te-
cida de inclinac6es pouco condizentes com santidade. Dai o espanto,
á primeira vista desnorteador...

Sao Felipe Nerl teria tido inclinagdes ao sadismo psíquico ou a


«sem-vergonhice»; S. Inácio haveria sido propenso a vinganca; SSo
Joáo da Cruz teria possuido um lastro de ceticismo; Sta. Teresa de
Avila aparecía dotada de vontade íorte, mas tendente á sensualidade;
Sta. Teresa de Lisieux, concluía Moretti, «se tivesse vivido na mise
ria, como donzela pouco instruida, haveria levado urna existencia
mediocre, talvez de manequim da alta costura ou de modelo..., sim-
plesmente para ganhar a vida».

Moretti, porém, se reíez do susto e decidlu-se a publicar, no vo-


lume citado, os resultados de seus estudos concernentes a trinta san
tos. A disposicáo da materia é a mesma em cada caso : vé-sel) urna
página de texto da lavra do respectivo santo; 2) o exame da escrita,
segundo a dassificacáo decimal e a terminología técnica de Moretti;
3) a interpretacáo clara e minuciosa dos dados colhidos; 4) traeos
biográficos do santo que mostram a correspondencia entre o Julga-
ménto do grafólogo e a realidade vivida pelo santo.

2. Qual a mensagem de táo meticulosos exames? Será realmen


te desconcertante, levando a crer que, na verdade, nao há santos ou
que é impossível chegar a santidade?

É o que vamos ponderar abaixo.

a) Antes do mais, leve-se em conta o fato de que a


Grafologia indica apenas o «lastro bruto» ou o «fundo bravio»
do qual se fez a figura do santo; ela só evidencia as tenden
cias inatas, sem dizer coisa alguma do trabalho que cada san
to empreendeu industriosamente com essa sua massa de ar-
gila; já nao é da aleada da Grafologia enunciar as Vitorias
sobre as paixóes que cada santo logrou no decorrer de sua
vida.

b) Assim a ciencia da escrita apenas leva a concluir que


ninguém nasee santo, mas que também os santos comparti-
lharam o patrimonio de miseria nativa do comum dos ho-
mens. Experimentaran! ímpetos da natureza desregrada, como
os experimentaran! os demais homens. Contudo o que os di
ferencia dos restantes moríais, é que, embora possuíssem ésse
fundo de fraqueza, nao se renderam á «sina» de ser mediocres
por toda a vida, nao se conformaran! com a miseria moral, mas
empreenderam corajosamente a luta que poucos empreendem:
oraram, pedindo a graca de Deus; cooperaran! com esta, lu-
tando contra seus defeitos sem desfalecer, sem desanimar
(desánimo seria expressáo de amor próprio decepcionado ou

_ 368 —
OS SANTOS ESTOPADOS PELA GRAFOLOGIA

magoado)... Em conseqüéncia, conquistaram as virtudes


contrarias as suas más tendencias, tornando-se verdadeiros
heróis; merecem assim o título de «auténticos homens livres»;
livres, sim, porque escaparam aos pretensos «determinismos»
da natureza e do ambiente, configurando-se totalmente ao
exemplar de perfeiéáo que Deus lhes assinalou.

Assim o exame grafológico, longe de lancar o discrédito sobre


os santos, contribuí para que melhor se perceba o seu verdadeiro
valor e mais estima se lhes tribute: os santos nSo foram santos por
possuirem urna natureza humana privilegiada ou, de algum modo,
diferente da nossa; ao contrario, a partir do. ponto mesmo em que
todos comecamos a vida na térra, foram subindo para Deus; o se-
grédo de seu éxito consistiu simplesmente ern deixar-se guiar pela
graca, da qual infelizmente tantos homens fogem.

c) A luz dos resultados grafológicos, entende-se melhor


como todos possam ser (e, de fato, sao) chamados á santídade,
apesar das más tendencias congénitas em cada filho de Adáo.
Nao é necessário que estas digam a última palavra no curn-
culo terrestre de alguém. Para suplantá-las, qualquer que
seja a sua intensidade, existem os recursos da oragáo e da
graga de Deus indistintamente oferecidos a todos os homens.

As vézes almas particularmente favorecidas por suas qualidades


naturais ficam na mediocridade, justamente por nao terem ocasiáo
freqüente de se humilhar diante de Deus e de pedir a graca doi Al-
tissimo. Bem-aventurados, antes, aqueles que se colocam na atitude
de humildes mendigos diante de Deus (cf. Mt 5,3).

d) Ainda em outros termos: a análise da escrita per


mite ver como a graca de Deus explorou a massa de argila
humana dos santos, transformando em arroubo para Deus cada
urna das baixas tendencias que éles traziam em si mesmoa.

Assim o amor sensual veemente, apaixonado, fol, pela graca,


convertido em amor místico de Deus; a obcecada cobica de bens tem-
Dorais foi transformada em inflexível procura de bens espirituais ou
ardente sede de Deus e da vida eterna; a prodlgalidade perdularia,
esbanjadora, mudou-se em generosidade continua para com Deus e
nara com o próximo; a tétanosla soberba transfigurou-se em tenaci-
dade inquebrantável no servico humilde de Deus; a sandlce lasciva
passou a ser ausencia de todo respelto humano na procura do bem...
Ein conseqüéncia vé-se também que a humildade de Sto. Antonio
de Pádua, por exemplo, nao fol a humildade de S. Francisco de Sa
les, nem o amor de S. Francisco de Assis foi o amor de Sto. Inácio
de Loiola, pois cada santo oferecia á acáo da graca um lastro pró-
prio. A propósito, pode-se citar o famoso adagio de S. Tomaz de
Aqulno: «A graca nao destról a natureza humana, mas a supoe e a
aperfeicoa» (S. Teol. I qu. 1, a. 8 ad 2).

— 369 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961, qu. 1

Destarte a obra do Pe. Moretti contribuí para evidenciar


e exaltar as riquezas da graga de Deus entre os homens
(cf. Ef 1,12).

Apéndice

A íim de ilustrar o fenómeno que acabamos de considerar, váo


reproduzidos abaixo alguns dos tópicos mais significativos que Mo
retti apresenta no seu livro.
SAO TOMAZ DE AQUINO (1227-1274), Religioso1 dominicano,
eminente teólogo e doutor da Igreja. A escrita désse santo manifes-
ta inata ambigao de imaginar e inventar novas doutrinas (escrita
metódicamente desigual); se nao tivesse recebido íormac&o religiosa
muito sólida, fácilmente (em.virtude das suas qualidades naturais)
se teria tornado um disseminador de erros, dominando mesmo as
classes intelectuais; saberia desviar os homens mais cultos, explo
rando os seus pontos fracos; abriría brechas, provocarla criticas e
censuras (escrita pontiaguda), sempre, porém, usando de tancas
atraentes e sedutoras.
Nessas circunstancias, a notável humildade de S. Tomaz de Aqui-
no dá evidente testemunho da acáo da graca.
Ésse homem de Deus chegou a por a servico da humildade" a sua
tendencia inata á taclturnidade. Quando ainda novico, assistia as
aulas de Sto. Alberto Magno, superando os seus condiscípulos pela
facilidade em compreender...; guardava, porém, o silencio, fósse
ñor respeito ao mestre, fósse por estimar que os colegas lhe eram
superiores Impressionados, estes atribuiam a taciturnidade de Tomaz
a sua «exigua inteligencia», chegando a cognominá-lo «o bol mudo».
Alguns colegas compadecidos foram mesmo oíerecer-lhe ulteriores
explicaseis da materia já explanada em aula; Tomaz aceitou-as com
alegría e efusivos agradecimentos; aconteceu, porém, que um día um
désses zelosos irmáos se énganou notoriamente ñas explicacoes que
dava; Tomaz entao, pedindo licenca, retificou a doutrina, e acres-
centou-lhe comentarios pessoais muito profundos. Sabedor disto,
Sto Alberto advertiu o grupo de discípulos: «Um dia os enstaamen-
tos daquele que chamáis 'o boi mudo', serao rugidos tais que reper-
cutiráo no mundo lnteiro». — Apesar do ocorrido, nao se mudou o
comportamento de Toma*: sempre igualmente modesto, simples e
recolhido.

Certa vez quando fazia a leitura de comunidade no refeítório,


Tomaz foi corrigido em público como se houvesse pronunciado mal
determinada palavra. O Santo, entáo, certo de nao se ter engañado,
repetiu pronunciando como lhe mandavam; a seguir, tendo averigua
do que a correcto estava fora de propósito, os irmaos perguntaram-
-lhe por que a havia aceito; ao que Tomaz respondeu: «Pronunciar
urna sílaba com acento breve ou acento longo é coisa de I»u£f ta-
portancia; de grande monta, porém, e ser humilde e obediente».
S4NTA BERNADETE SOUBIEOUS (1844-1879), vidente de
Lourdes e Religiosa em Nevers. A escrita tenue" (filiforme) e des
ligada dessa santa denuncia delicadeza e finura de sentimentos. Ora
a biografía comprova tal conclusao. Tenha-se em vista, por exemplo,
o segulnte episodio:

— 370 —
OS SANTOS ESTOPADOS PELA GRAFOLOGIA

Um día propunham a Bernadete, qual modelo de Religiosa, Santa


Teresa de Avila... Ora a esta o Menino Jesús certa vez apareceu,
quando o sino do convento tocava chamando-a para um ato de pie-
dade comunitaria; Santa Teresa obedeceu á Regra e ao sino, deixan-
do de dialogar com o Menino-Deus. — Pois bem; ao ouvir isto, Ber
nadete nSo se mostrou em absoluto impressionada; perguntaram-lhe
entáo:

«Que teria feito, Irma Bernadete?

NSo terla procedido como Santa Teresa, respondeu ela com


vivacldade e energía».

Isto causou surprésa e certa desaprovacáo no grupo de Religio


sas que a ouvlam. Entao expllcou Bernadete:

«Terla seguido o chamado do sino, sim; mas... sem me separar


do Menino Jesús... Té-lo-ia tomado comigo... É tao pequeño que
nao deve pesar multo!»

Tinha outrosslm um temperamento inllexível, que, sob a ac,áo da


graca, velo a tornar-se intransigencia na recusa de prazeres mera
mente humanos. Contavam-lhe, por exemplo, que seu nome perma
necía glorioso e multo evocado em Lourdes, onde, alias, vendiam seu
retrato por dois sóidos :

«Dois sóidos? Ah, é precisamente tudo que eu valho».

A urna Religiosa que lhe manifestava admirac&o, replicou Ber


nadete :

— «Para que serve urna vassoura?


— Oh, que pergunta! Para varrer.
— E depols que varreu?
— Depols, recolocam-na no seu lugar.
— E qual é o seu lugar?
— Costuma ser um canto, atrás da porta.
Pols bem; tal é a mlnha historia, concluiu Bernadete. A
Virgem servlu-se de mim; a seguir, fui posta num canto. Éste é o
meu lugar; estou ieliz e aquí fleo».

SAO PIÓ X (1835-1914). Papa. A escrita (por seus numerosos


ángulos em A) denuncia, neste santo, temperamento muito suscetl-
vel e Irascível. A graca, porém, o tornou equánime dlante das con
trariedades de cada dia, mesmo quando estas tinham o caráter de
provocacOes desrespeltosas. Mals de urna vez, por exemplo, referi-
ram-lhe que sua política era criticada tanto no Vaticano como fora
e que o.tinham sfinplesmente na conta de bom pároco de aldeia; en
táo, com o rosto Iluminado por •um sorriso, respondía:
«Sel que nSo sou um político, mas apenas um pobre bispo. Sel que
dlzem que nao entendo da tareía e que nao passo de vulgar campo-
nés. Pouco imparta. S6 tenho urna vía e um termo final: o Cruci-
li o>.
Após sofrer ofensas e injurias, estava sempre pronto a perdoar
com o coracáo magnánimo.

— 371 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961. qu. 1

SAO JOAO-MARIA VIANNEY (1786-1859), cura de Ars (Franca).


Éste santo era naturalmente propenso á zombaria e a sátira. Sob o
influxo do Espirito Santo, porém, utilizou esta tendencia nao para
destruir, mas para construir, como dSo a ver alguns episodios ane-
dóticos narrados por seus biógrafos:

Certa vez, enquanto o Santo dava o catecismo na Igreja. algumas


senhoras, ostentando inconvenientemente os vestidos mals em moda
na época, tentaram entrar no santuario. Ao vé-las, disse o cura:
«O Imperador fez muita coisa boa; esqueceu urna, porém: devia .ter
mandado alargar as portas, para que pudessem passar as crinolinas
(ampias saias estufadas com barbatanas de baleia ou láminas de
ago)>.

De outra feita, num dia chuvoso ia o Santo, sem chapéu nem


guarda-chuva, visitar um doente. Sobreveio entao seu fiel auxiliar, o
Irmáo Atanásio a quem S. Joáo-Maria logo perguntou: «Aonde vais,
amigo? — Trago-lhe um guarda-chuya, Sr. Cura. — Oh! nao sou de
acucar!». E, rindo, continuou a caminhada.

SAO ROBERTO BELAEMINO (1542-1621), Cardeal e Bispo de


CápuaDoutor da Igreja. Sua escrita, miüda como era, revela indl-
nacáo á ironía capaz de ferir ou pulverizar hábilmente o adversarlo.
Ora os biógrafos referem que éste Santo praticou com esmero a ca-
ridade: um dia, por exemplo, teve que censurar duramente um dos
seus sacerdotes... Pouco depois, levaram-lhe, de presente, algumas
tratas frescas; embora nao tivesse o costume de receber dádivas de
tal género, dessa vez aceitou; fé-lo, porém, com a intencSo de curar
a chaga que ele podia ter aberto no coráceo de seu interlocutor an
terior; por Isto mandou logo chamar um fámulo, a quem entrégou
o peixe, dizendo: «Rápido, leva isso ao sacerdote que há pouco estéve
aqui, e dize-lhe que íoi o arcebispo quem lho mandou».

SAO PIÓ V (1504-1572), Papa. A Grafologia aponta, nessa per-


sonalidade, um caráter espontáneamente muito austero. Ora os his
toriadores confirmam eloqüentemente éste trago.
Referem que Sao Pío V praticou a continencia e o desapego de
tudo a ponto de nao se querer submeter á extracto de cálculos, que
seus médicos Ihe recomendavam para curar urna sua molestia inve
terada; preferiu suportar as dores mais atrozes a permitir que maos
estranhas Ihe tocassem o corpo. Após a morte, quando se fez a au
topsia do cadáver, os médicos néle descobriram tres cálculos, cada
um dos quais pesava mais do que urna onca; surpreenderam-se
profundamente por verificar que pudera tolerar espasmos tao vio
lentos. Sua alma, dominando constantemente o corpo, impunha si
lencio ás queixas da natureza. Durante as «rises de dor mais aguda,
limitava-se a dizer: «Senhor, aumentai-me o sofrimento. se o que
réis, mas áumentai-me também a paciencia!». Apesar de sua fra-
queza física, ainda quis no fim da vida observar integralmente a qua-
resma. Foi entao que um de seus fámulos, vendo-o táo debilitado,
temperou com um pouco dé caldo dé carne a chicoria selvagem de
que ele costumava alimentar-se; apenas a provou, o Papa manifes-
tou-se vivamente contrariado, e exclamou; «Amigo, queres que por
causa dos poucos dias que me restam, eu viole a lei de abstinencia
que durante cinqüenta anos observei sem jamáis a transgredir?!».

— 372 —
O «MILAGRE DO SOL» DE JOSUÉ

SANTA TERESA DE AVILA (1515-1572), mística Reformadora do


Carmelo. Era dotada de tfio forte inclinacao & sensualidade que, con
forme o grafólogo Pe. Moretti, as pessoas assim configuradas fácil
mente se entregam á poligamia ou á poliandria.
Ora sua alma se entregou de tal modo ao amor de Deus que,
em relacáo aos bens carnais, ela só procurava praticar a mortifica-
gao; fez assim convergir todo o veemente ardor de sua natureza para
Deus só; amou, mas amou virginalmente (daí os traeos característi
cos de sua santidade).
Nao obstante, ela podía ser muito atraente e provocar sentimen-
tos de viva paixáo em quem a abordasse. Teresa mesma, muito de
licadamente, narra o seguinte episodio: pouco depois de entrar no
convento, conheceu um jovem sacerdote que se desviara, fascinado
por infeliz mulher. Teresa tomou a seus cuidados especiáis a salva-
cao da alma désse padre, e. recorrendo tanto ás palavras como aos
exemplos, conseguiu libertá-lo da vida pecaminosa em que caira. Em
breve, porém, verificou que o sacerdote se apaixonara por ela e que
alimentava planos pouco honestos a seu respeito. Teresa nao se
perturbou; antes, mostrando coragem verdadeiramente viril, tanto se
empenhou que conseguiu n5o sdmente escapar ela mesma ao gran
de perlgo da situacSo, mas também reexguer o amor mórbido do sa
cerdote, transformando-o em férvido amor a Deus!

Eis pálidos espécimes de como, nos santos, os valores negativos


se transformam em valores positivos, sem perder, porém, a sua fi
sionomía própria.

II. SAGRADA ESCRITURA

MESTRE (Recife):

2) «O estacionamento do sol por ordem de Josué, nar


rado pela Sagrada Escritura (Jos 10, 7-15), é fenómeno de
masiado estranho para que possa merecer crédito. Que pen
sar, no caso?»

A controversia que se desenrola em torno do «milagre do


sol» de Josué, está geralmente fundada em falha interpreta-
gáo do texto bíblico; essa falha dá origem ao problema, que
na verdade carece de fundamento real.
Sendo assim, examinaremos abaixo o texto bíblico como
tal e as principáis interpretacóes até hoje propostas; a seguir,
deter-nos-emos sobre o seu auténtico significado.

1. O texto bíblico e suas diversas interpretacóes

1. A passagem de que se trata, narra urna campanha


vitoriosa dos israelitas sob o comando de Josué na térra de
Canaá, referindo, entre outras coisas, urna batalha contra os
amorreus assim concebida:

— 373 —
«PERGÜNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961. qu. 2

JOS 10: 7 «Josué subiu de Gálgala, ele e todos os homens de


guerra cora ele, todos corajosos combatentes. 8 Entáo o Senhor fa
lou a Josué: 'NSo os temas, pois os entregarel em tuas mSos, e ne-
nhum déles resistirá diante de ti'. 9 Josué, pois, irrompeu sdbre
éles repentinamente; durante a noite lnteira tinha subido de Gálgala.
10 E o Senhor langou coníusáo sdbre éles em presenca dos israelitas,
de modo que Israel lhes iníligiu grande derrota perto de Gabaon;
perseguiu-os pelo caminho que sobe para Betoron e abateu-os com
seus golpes até Azecá e Macedá. 11 Ora, quando fugiam dos is
raelitas, na descida de Betoron, o Senhor1 fez caJr do céu sobre éles
grandes seixos até Azecá. e morreram. Mais numerosos foram os
que pereceram pelos seixos de granizo do que os que morreram pela
espada dos filhos de Israel.

12a Entilo Josué falou ao Senhor, no día em que o Senhor en-


tregou os amorreus aos filhos de Israel, e falou a vista de Israel:

12b 'Sol, detém-te sdbre Gabaon,


E tu, lúa, sdbre o vale de Ascalon!'
13a E o sol parou, a lúa se manteve imóvel,
Até que o povo se tlvesse vlngado dos seos lnimlgos!

13b Nao se acha isto escrito no Xivro do Justo1? 13c Assbn o


sol parou em meló ao céu. e nao se apressou por chegar ao ocaso,
durante quase nm día intelro. 14 NSo houve, nem antes nem de-
pols, dia como aquéle, em que o Senhor obedeceu a voz de um ho-
mem, pois o Senhor combatía por Israel.

15 E Josué, e todo Israel com ele, voltou ao acampamento em


Gálgala».

2. Sao múltiplas as tentativas de explicar o relato áci


ma; limitar-nos-emos aqui a mencionar as principáis :

a) Os comentadores antigos e medievais, carecendo de


conhedmentos profundos de lingüística oriental, tomavam o
texto ao pé da letra, no sentido que lhes parecia obvio: já que,
conforme a astronomía da época, o sol girava em torno da
térra, julgavam que Josué f§z parar o sol, a fim de alongar
o dia e poder consumar a Vitoria sobre os amorreus.

Esta interpretagáo devia naturalmente ser posta em xe-


que no séc. XVII: Galileu entáo chegava á conclusáo de que
nao é o sol que se move, mas é a térra que gira em torno
do sol. Os teólogos, a principio, se inquietaram com esta afir-
magáo, julgando que contradizia á Biblia Sagrada (sobre o
caso de Galileu, veja-se «P.R.» 4/1958, qu. 12).

Aos poucos, porém, íoram mudando de parecer: reconhecendo


que a Sagrada Escritura nao quer ensinar ciencias profanas, perce-
beram que as concepcSes de astronomía (sistema geocéntrico de
Ptolomeu), no relato ácima, evidentemente nao sSo de fé; o escritor
sagrado nao as quería inculcar como tais, mas apenas servla-se das

— 374 —
O «MILAGRE DO SOL» DE JOSUS

opinlóes científicas vigentes no seu terhpo para afirmar a intervencao


do Senhor em favor do seu povo na batalha contra os araorreus. De
resto, ainda hoje os nossos sentidos, antes de ser eorrigidos pelo racio
cinio, nao nos levam a afirmar que é o sol que «se levanta» e «se poe»?
Usamos dessa linguagem popular, sem que alguém nos acuse de
mentira, pois todos sabem que, assim talando, nao entendemos ensi-
nar astronomía, mas apenas chamar a atencáo para o fato que dese-
jamos narrar. Assim no livro de Josué os exegetas perceberam que
o autor sagrado se referiu ao «estacionamento ác sol* de acordó com
a linguagem pré-cientifica e familiar de sua gente, porque nao tinha
a intengao de dissertar sobre astronomía, mas apenas a de aludir a
urna circunstancia acidental do episodio que ele desejava relatar: a
vitória sdbre os amorreus.

b) Urna vez reconhecida como errónea a interpretagáo


outrora dado ao texto de Jos 10, ainda ficava aberta a ques-
táo: como, pois, entender o episodio? Como explicar o «mila-
gre» á luz da nova astronomía?
Varias foram entáo as tentativas de explicacáo apresen-
tadas:
— nao poucos, transpondo a linguagem popular para o
campo científico, passaram a crer que nao o sol, mas a térra
interrompeu o seu movimento: terá ficado estacionaria á luz
do sol, de modo a ocasionar um dia mais longo para que Jo
sué e seu exército obtivessem a vitória sobre os amorreus!...
— outros recorreram a interpretaeóes mais sutis, admi-
tindo ou urna chuva de meteoros, que teriam iluminado extra
ordinariamente o céu após o por do sol, ou relámpagos, que
haveriam fulgurado durante a noite, ou ainda um fenómeno
de refragáo dos raios do sol, que, á noite, teria feito o céu
aparecer luminoso aos combatentes, como se o sol nao fivesse
declinado.

3. Que dlzer de tais interpretares?

Nenhuma délas implica algo de absurdo ou contraditório em si;


por isto sao aceitáveis. Pergunta-se, porém. se alguma délas corres
ponde ao que de fato se deu no caso de Josué. Na verdade, levan-
ta-se contra qualquer das explicacSes que acabamos de propor, urna
seria dificuldade: todas supfiem um fenómeno extraordinario no
curso dos astros, fenómeno que derrogue as leis da natureza. Ora
Deus nap costuma, sem motivo grave, permitir derrogacfies as lels
que Ele mesmo tracou: o Senhor nao faz milagres sem íinalidade
adequada. No caso de Josué, porém, ter-se-ia dado um portento de
proporgOes astronómicas únicamente para permitir a vitória de um
pequeño exército de israelitas sobre outro pequeño exército de amor
reus. Isto parece pouco digno da sabedoria de Deus.
Em conseqüénda, os melhores exegetas propSem outra via de
solucao, que passamos a expor. . •. . -

_ 375 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961, qu. 2

2. O auténtico sentido do episodio

Em vez de admitir precipitadamente um milagre qualquer


no texto de Jos 10, os comentadores modernos empreendem,
antes do mais, um estudo exato do texto sagrado, do ponto
de vista lingüístico e literario, a fim de poder perceber com
precisáo o que o autor bíblico terá intencionado.
Seguindo, pois, tal método, eis as conclusóes a que che-
garam os estudiosos.

1. Quem lé atentamente o texto de Jos 10,7-15, é levado


a concluir que há ai duas narrativas paralelas provenientes de
duas diversas fontes: urna em prosa, devida ao autor mesmo
do livro, que abrange os w. 7-11; e outra, poética, citagáo
transcrita de outro livro (12-13b) e ornada de breve comen
tario (13c-14). O versículo 15 é a conclusáo comum as duas
narrativas.
De fato, o v. 11 refere ao leitor já o fim da batalha com
a vitória de Josué, o qual perseguiu os inimigos e os extermi-
nou em grande multidáo; Israel foi nesta campanha coadju-
vado por violenta tempestade de granizo que «o Senhor de-
sencadeou» (essa expressáo parece insinuar um fenómeno
imprevisto, urna intervengáo extraordinaria de Deus). Ápós
o v. 11 nao se esperaría mais nenhuma faganha bélica de Jo
sué, pois os inimigos estavam vencidos e prostrados; lógica
mente seguir-se-ia o v. 15, ou seja, a mengáo da volta de Jo
sué ao acampamento. — Eis, porém, que entre os w. 11 e 15
se insere um episodio (12-14) que reconduz o leitor as peri
pecias da batalha em curso e se concluí, como o anterior, com
a volta dos israelitas ao acampamento (v. 15).

2. Como entender éste outro trecho (w 12-14)?

A sua posigáo no contexto e a análise do seu conteúdo


indicam que os w. 12-14 referem um particular da mesma
batalha transcrito de outra fonte; sao urna citagáo inserida
no nosso capítulo 10.
Analisemos, pois, os w. 12-14:
Após a fórmula introdutória (v. 12a), seguem-se quatro breves
frases, que constituem nítidamente urna estroíe poética (w. 12b-13a);
o v 13b é a indlcacao da íonte donde foi transcrito o texto
poético- como se depreende de 2 Sam l,17s, o «Livro do Justo» era
urna colecSo de cantos seletos em honra dos Justos ou Heróis de
os vv. 13c e 14 constituem um comentario em prosa da segunda
parte do texto citado (v. 13a); devem-se ao autor da transcrlsSo. O

— 376 —
O «MILAGRE DO SOL» DE JOSUÉ

comentario em 13c diz positivamente que o sol parou; repete o mes-


mo negativamente: «nao se apressou para chegar ao ocaso»; e, por
último, acrescenta que essa fixidez do sol durou quase um dia in-
teiro. O v. 14 remata com o louvor de dia tSo estupendo e glorioso:
«nao houve, nem antes nem depols, dia como aquéle» (nao é a ex
traordinaria duracao, mas o caráter glorioso do dia, que o escritor
quer p6r em relevo). Pode-se observar que o comentador só fala
da .interrupcáo tío curso do sol, háo da lúa. pois, provavelmente, no
canto citado se fazla mencáo da lúa únicamente por motivo poética
(sabemos que urna das leis da poesia hebraica era o paralelismo, ou
seja, a justaposicáo de membros de frase idénticos ou semelhantes
ou antitéticos entre si); na realidade, Josué nao se terá dirigido &
lúa, cuja rotacáo nao o interessava durante o dia em que travava
a batalha;
o v. 15, supondo encerrada a luta, menciona a volta de Josué ao
acampamento.

Após estas consideragóes, já nao é difícil admitir que os


w. 12-14 se referem á batalha descrita em 7-11, com a par-
ticularidade de realgar em estilo lírico o que ela teve de glo
rioso.

3. Ora justamente éste trecho poético (e o seu respecti


vo comentario) é que menciona a extraordinaria «interrupgáo
do curso dos astros». Tal fenómeno nao é referido no trecho
prosaico, o qual nem por isto dá a impressáo de estar laguno
so, nem poderia silenciar circunstancia táo importante, caso
fósse realmente histórica. Sendo assim, tem-se já certo fun
damento para perguntar se o estacionamento do sol, de que
fala a citacáo, nao é mera figura de poesia, que, transposta
em linguagem prosaica, diría o mesmo que a descrigáo pro
saica antecedente.
A esta questáo responde-se afirmativamente. Em verda-
de, na linguagem lírica dos judeus, dizer que o sol parara ou
silenciara significava que éste astro deixara de dar a luz, fós
se por motivo de eclipse, fósse por razáo de nuvens ou tem-
pestade; haja vista o texto de Habacuque 3,11, além de do
cumentos babilónicos análogos.

4. Se agora nos servimos desta observagáo para a exe-


gese do milagre de Josué, verificamos que o «parar» do sol
no trecho poético de Jos 10,12-14 nao significa outra coisa do
que a terrível.e tenebrosa tempestade (de granizo) de que
fala, sem figura literaria, o v. 11.

Essa tempestade teria durado quase um dia inteiro, conforme o


v. 13c («o sol nao se apressou, para chegar ao ocaso», isto é, nao
se moveu, íicou parado, «durante quase um dia Inteiro»). Táo longa
tempestade, que íoi o principal instrumento de dispersáo e morte dos
amorreus, teria sido especialmente permitida por Deus para aten-

— 377 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961, qu. 3

der a Josué, que implorara auxilio na batalha. O que houve de ma-


ravilhoso e extraordinario neste episodio, nao íoi a tempestade como
tal, mas o modo inesperado e extremamente violento como esta se
produziu. Em linguagem técnica dos teólogos, dir-se-ia: houve um mi-
lagre «quanto ao modo», nao «quanto a substancia» do acontecimento.

Note-se que tm Eclesiástico 46,-ls o dia sem igual de Jos 10,14


é apresentado como equivalente a dois, o que nao é senao outra for
ma de dizer «dia cheio de gloria, de íeitos maravilhosos».

É esta a interpretagáo que, sobre as outras, tem a van-


tagem de levar mais em conta as particularidades literarias
do texto sagrado, que, até o nosso século, eram negligenciá-
das, por nao se conhecerem táo bem os documentos e o modo
de falar dos aritigos povos orientáis.
Concluir-se-á, portante, que a propalada interrupgáo do
curso dos astros, no livro de Josué, nao é senáo o desencadea-
mento de violenta e demorada tempestade de granizo, permitida
por Deus, a pedido de Josué. Duas narrativas justapostas re-
ferem essa tempestade: enquanto a primeira usa de estilo liso,
a segunda emprega linguagem poética familiar aos antigos
orientáis, mais desconhedda aos leitores posteriores, que, por
isto, falaram do «milagre do sol detido em seu curso»!

III. MORAL

3) «Há comprimidos modernos que, sem mutilar a na-


tureza, tornam a mulher provisoriamente estéril.
Aos olhos da Moral, será licito usá-los?
Em caso negativo, nao se tratará de urna proibicao mo
mentánea a ser remodelada a fim de que a Ética se adate me-
lhor aos tempos modernos?»

Em resposta, analisaremos primeiramente a moralidade


do uso dos mencionados comprimidos; a seguir, proporemos
algumas observagóes sobre a posigáo da consciéncia crista di
ante das tendencias anticoncepcionistas cada vez mais acen
tuadas em nossos dias.

1. O novo medicamento e a Moral

1. A vida moderna, com seus múltiplos problemas, tem


sugerido aos governos de alguns países a campanha de limi-
tagáo da natalidade ou o anticoncepcionismo oficializado. Essa
tática tem conseguido criar urna mentalidade ou um clima em
que a mencionada praxe parece de todo natural; é o que se
verifica principalmente na India e no Japáo.

— 378 —
LIMITACÁO DA NATALIDADE

Até mesmo os homens de ciencia tém posto seus serios


esforgos a servigo do anticoncepcionismo, procurando desco-
brir os remedios mais eficazes e menos dispendiosos para di
fundir em larga escala a técnica de limitacáo artificial da na-
talidade. Embora até hoje ainda nao possam apontar um mé
todo isento de quaisquer funestas conseqüéncias, seja para a
saúde física, seja para o estado psíquico da mulher, muito se
preconiza o uso de certos comprimidos que tornam a mulher
provisoriamente estéril, deixando-lhe o uso normal de suas
funcóes sexuais para o caso de as querer retomar. Entre tais
comprimidos, mencionam-se os de progesterona, já apresenta-
dos em «P.R.» 37/1961, qu. 5, pág. 27.

Éste novo remedio tem algo de capcioso, pois (seja licito repe
tir) nao implica interferencia no ato sexual, mas apenas preparacáo
remota do mesmo, de modo que a própria natureza por si seja es
téril. A moral crista nao enslna aos cdnjuges desejosos de nao ter
fllhos, usem da natureza precisamente ñas fases em que ela por si
mesma nao é fecunda? Que mal estáo haveria em ajudar a natureza
a ser mais vézes ou mais prolongadamente infecunda?

2. Posta diante da nova tática, a consciéncia nao pode


deixar de a rejeitar formalmente. O uso das pilulas esterili
zantes, em última análise, vem a significar desvio de um pro-
cesso vital ao qual o Criador deu urna finalidade impreterível.
Sim; tódá a vida sexual (com suas fases de menstruacáo e
ovulagáo, esterilidade e fecundagáo, na mulher) constituí urna
única fungáo destinada á reprodugáo da especie humana; mes
mo os períodos de esterilidade num organismo sadio sao eta
pas que se encaminham para a fecundidade ou que' desta se
derivam. .

O Criador, sem dúvida, houve por bem associar as funcSes se


xuais um certo deleite que facilita ao ser humano a tarefa de cres-
cer e multiplicar-se sobre a térra; contudo ésse deleite nao constituí
senáo algo de secundario no conjunto da vida sexual; so se justifica
na medida em que é subordinado á reprovacáo da especie humana.
O Criador nao deu ao homem as suas funcSes sexuais para lhe pro
porcionar' um «prazer Infecundo» (do ponto de vista biológico), mas,
sim, urna «fecundidade prazenteira».

Donde se vé que é ilícita (ou contraria á natureza) qual-


quer intervengáo, por mais remota que seja, destinada a tor
nar estéril a fungáo sexual, a fim de que os interessados pos
sam usufruir do prazer (elemento secundario) sem aceitar a
finalidade que justifica ésse prazer, ou seja, sem aceitar a ta
refa de se multiplicarem pela geragáo de prole.
- Faz-se mister, pois, concluir: do ponto de vista moral, sao
condenáveis mesmo as pilulas que apenas visam esterilizar o

— 379 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961, qu. 3

organismo; contradizem a urna das tendencias mais obvias da


natureza, tendencia incutida pelo próprio Criador. — O més-
mo, alias, se diga de qualquer medicagáo congénere (existem,
sim, espermatoxinas ou tóxicos para espermas, injetáveis).

2. Contudo diante déstes dizeres, talvez se levante urna


objegáo: nao será tal reprovacáo inspirada por um modo de
pensar antiquado? Por conseguinte, a Moral crista ou a Igre
ja nao háo de reformar em breve essa sua sentenca? —Ade
máis leve-se em conta o fato de que nao há na S. Escritura
declaragáo alguma que reprove o anticoncepcionismo como tal
(contudo o procedimento de Oná foi condenado; cf. Gen
38,8-10).
Em resposta, dir-se-á que a posigáo anticoncepcionista se
deriva diretamente da lei natural, que é a lei de Deus comu
nicada ao homem anteriormente a qualquer revelacáo positi
va, anteriormente portante á mensagem das Escrituras Sa
gradas: ao criar o homem, Deus inscreveu, por assim dizer,
na inteligencia e no coragáo de sua criatura um código de Di-
reito natural. As Escrituras Sagradas supóem ésse código e
constróem sobre ele. — O Direito natural, porém, é perene ou
sempre o mesmo, como a natureza humana é sempre a mes-
ma, qualquer que seja a época ou o grau de cultura da huma-
nidade. Por conseguinte, nao se pode esperar que algum pre-
ceitb da lei natural possa vir a ser adaptado á moda ou ao
género de vida dos homens de determinada época; estes é que
se deveráo amoldar aos mandamentos da lei natural. Quanto
á Igreja, nao poderia ser mestra fiel da Revelagáo bíblica, se
Ela nao fósse, ao mesmo tempo, porta-voz da lei natural; as
sim como a Igreja nao é autora dos preceitos naturais, assim
nao lhe compete ó direito de os retocar; cabe-lhe apenas a
missáo de os lembrar ao mundo — e lembrar intrépidamente —
em meio ao turbilháo de idéias em que a sociedade se debate.
Em vista do bem comum da humanidade, nao será lícito
á Igreja silenciar a tal propósito, permitindo que se embote a
consciéncia dos homens, que as veleidades do mundo moderno
tendem a sufocar.
Contudo, a fim de melhor se avaliar a posigáo da Moral
crista, parecem impor-se ainda algumas

2. Observa$5es gerais sobre o assunto

1. Para justificar o anticoncepcionismo, costuma-se ale


gar o iminente perigo de superpopulagáo do globo e de con-
seqüente fome universal. Ora já em «P. R.» 37/1961, qu. 5
foram publicados dados positivos e declaragóes de abalizados

— 380 —
LIMITACAO DA NATAIJDADE

Sociólogos, que evidenciavam ser vá tal alegagáo; com efeito,


a natureza nao se recusa, nem recusará, a fornecer ao género
humano o espac.b e os meios de subsistencia necessários ao
seu rápido aumento demográfico; há, sim, abundantes recur
sos naturais, dos quais alguns já estáo em exploragáo e outros
aínda se acham por explorar. A deficiencia se acha, antes, em
outro setor: falta altruismo por parte dos homens ou tomada ,
de consciéncia dos deveres de cada um para com seus irmáos
indigentes.

Na Franca, por exemplo, o próprio bem comum, longe de reco


mendar limitac&o da natalidade, exigiría mesmo um aumento de po
pulado; calculam os economistas que, para se desenvolver harmo-
niosamente, éste país precisarla de 90 milhfies de habitantes apro
ximadamente, quando atualmente conta apenas com 44.289.000 de
cidadáos.
Ademáis certos inquéritos tém demonstrado que, se nao fóssem
o preconceito e a propaganda que impregnam a sociedade moderna,
muitas familias nao se impressionarlam pelo motivo de pretensa su-
perpopulacao do mundo para praticar o anticoncepcionismo.

Em última análise, verifica-se ser o egoísmo ou o como-


dismo que inspira as táticas anticoncepcionistas modernas; é
o «grande médo de amar devidamente...», como dizia Fran-
cois Perroux. — Ora a tal motivo a Igreja só pode opor um
apelo á reagáo: restabelega-se a reta ordem das coisas; haja
doravante generosidade onde tém reinado o egoísmo e a mes-
quinhez, que depauperam a dignidade humana. Esta generosi
dade no tocante ao uso do matrimonio e á geragáo da prole
está longe de significar temeraria ousadia; ela coincide, antes,
com o desabrochar, normal da personalidade.

Principalmente os cristaos, que sabem ter recebido pelo sacra


mento do matrimonio urna graca de estado própria a fim de amar
com retidao e integridade, nao podem ceder á covardia e ao egoismo
no desempenho de sua vida conjugal. Em geral, nota-se que a lé
e a confianza na graca de estado estáo depauperadas em nao poucos
casáis; as previsGes humanas e o modo de proceder ditado pela pobre
prudencia natural vém a ser normas decisivas para multos; é contra
tal deíinhar do espirito sobrenatural e da coragem sempre juvenil
característica do cristáo que a Igreja tem a missáo de erguer a voz
na hora presente; a Esposa de Cristo eré no progresso espiritual do
homem mediante a luta; por isto Ela rao se conforma com urna
«paz de cemitério», paz que consistiría em dizer que as «tendencias
desordenadas» do mundo moderno sao «ordem» ou que a «morbidez»
da consciéncia contemporánea é «saúde» ou que a «morte espiritual»
tem que ser tlda como «vida»; Ela prefere, antes, despertar o senso
de otünismo e conflanca no bom éxito da luta; e, sim, possivel re
mar com sucesso contra a corrente do mundo moderno, que tende
covardemente a fazer crer que o mal é o próprio bem ou que o
mal prdpriamenté nao existe.

— 381 —
tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961, qu. 3

A fím de corroborar quanto acaba de ser dito, vai aqui


citado um trecho de S. Santidade o Papa Pió XII, que, diri-
gindo-se á Federacáo Italiana de Familias Numerosas em 20
de Janeiro de 1958, assim se referia ao problema da super-
populagáo do globo : -

, <Sem dúvida, nao foi por defeito ou por inercia da Providencia,


mas por desordem do homem — em particular por motivos de egoís
mo e avareza — que se originou e ainda persiste sem solucáo o proble
ma da superpopulacáo do globo... Acontece, porém, que, gracas ao
progresso da técnica, & íacilidade dos transportes, ás novas fontes
de energias de que apenas comegamos a colhér os frutos, a térra
promete prosperidade a todos aqueles que ela ainda há de hospedar
por muito tempo.
Quanto ao futuro, quem pode prever quais óutros novos recursos
estáo ocultos em nosso planeta, e quais surpresas.., nos estáo tai-
vez reservando as maravilhosas realizagSes da ciencia, que hoje em
día ainda se encontram em seus inicios?... A Providencia reservou
a Si os futuros destinos do mundo... A superpopulacao nao consti
tuí, portanto, motivo válido para se propagaren! as práticas ilícitas
do controle da natalidade; vem a ser, antes, o pretexto para que na-
cdes... e individuos... tentem legitimar a avareza e o egoísmo.
Destarte os homens chegam a violar as leis certas do Criador sob
pretexto de corrigir imaginarios erros de sua Providencia. Seria, ao
contrario, mais razoável e útil que a sociedade moderna se aplicasse,
de maneira mais decidida e cabal, a reformar sua própria condufa,
removendo as causas da forne ñas zonas subdesenvolvidas ou super-
povoadas, aplicando mais eficazmente em empreendimentos pacífi
cos as descobertas modernas, adotando urna política mais franca de
colaboracáo e de intercambios, urna economía de visáo mais larga e
menos nacionalista, principalmente reagindo contra as sugestdes do
egoísmo mediante a caridade e da avareza mediante aplicacáo .mais
concreta da justiga. Deus nao pedirá aos homens contas dos destinos
gérais dalhumanidade — assunto éste que é de competencia do pró-
prio Deus —, mas pedirá contas de: cada um dos atos que os homens
tiverem empreendido em conformidade ou em oposicáo com os di-
tames de sua. consciéncia» (texto transcrito de «Documentation Ca-
tholiqué» n« 1271, a. 1958, 202s). . • :

' Por sua vez, o episcopado da India dedicou a sua carta pasto
ral da Quaresma de 1961 ao problema do controle da natalidade, de
clarando imoral a campanha anticoncepcionista que nestes últimos
cinco anos o govérno hindú tem efetuado (mais de cem mil pessoas
já foram esterilizadas na india; nao obstante, as táticas ainda se
acham em sua fase experimental, e só afetam dois milhoes de pes
soas dentre urna populacho de 400 milhñes de habitantes). — Alguns
prelados hindus chegaram a lembrar a propósito as admoestacCes de
Gandhi. Assim, por exemplo, D. Dyer, arcebispo de Calcutta, citava
as seguintes palavras do Mahatma proferidas em 1925:

«As pessoas que com leviandade preconizam métodos artificiáis,


fariam ótima obra se reexaminassem a questáo, interrompessem
suas atividades injustas e apregoassem a Brahtna charya, o dominio
de si, junto a individuos casados e celibatários. Éste é o único mé
todo nobre e eficaz de controlar a natalidade».

_ 382 —
LIMITACAO DA NATALIPADE

O Cardeal Gracias, arceblspo de Bombalm, citou igualmente


Gandhi, que dez anos mals tarde declarava :

«A a?áo mais funesta que os propagandistas do anticoncepcionls-


mo realizam em meló á juventude hindú, é a de lhe encher o espi
rito com o que me parece ser urna ideología falsa».

S. Eminencia acrescentava: «Aqueles que censuram os católicos


por nutrirem preconceitos religiosos, sao éles mesmos vitimas de
preconceitos materialistas. Querem resolver o problema da fome
nao mediante o aumento da producáo de alimentos, mas mediante a
diminuicao do número de bocas a alimentar; paralelamente, querem
solucionar o problema da doenca pela reducáo do número de pessoas
que possam cair doentes» (noticias colhidas em «Informations Ca-
thollques Intemationales» n" 141, pág. 12).

Tais declarares sao especialmente significativas por mostrarem


como um náo-católico, Gandhi, já pelo fato de ser um homem de
ideal, eré na possibilidade de resistir á devassidáo de costumes do
mundo moderno. Nao é necessário que os bons se rendam á onda
dissolutória, procurando legalizá-la, como se ela já tivesse seu triun
fo assegurado.

2. Ulterior advertencia ainda se impóe: a posigáo anti-


concepcionista da Igreja nao significa que Esta seja irrestri-
tamente em favor da natalidade, encorajando de maneira cega
e indiscriminada a procriagáo de filhos. Nao; a fungáo de ge-
rar implica necessariamente a de educar; ora a educaeSo,
para ser devidamente levada a efeito, impóe exigencias que
os genitores nao podem preencher quando a prole é demasia
do numerosa. Levem-se em conta outrossim os casos em que
a saúde da genitora seria comprometida por sucessivos esta
dos de gravidez... Em vista de tais situac.5es, a Moral crista
reconhece sem dificuldade aos esposos cristábs o direito de li
mitar a prole, contanto que o fagam mediante abstinencia pe
riódica, respeitando em tudo as leis da natureza.

A propósito vem urna declaragáo do episcopado francés


datada de 3 de margo de 1961, declaragáo que, após hayer
condenado peremptóriamente os métodos artificiáis de limita-
gáo da prole, observava o seguinte :

«A Igreja nao é indiscriminadamente natalista. Tendo em mira


auxiliar os cónjuges a realizar sua tarefa e atingir o objetivo pri
mario do matrimdnio, que é nao só a procriagáo, mas também a
educacáo dos filhos. a Igreja apela para a razao, o dever e a cons-
ciéncia,... assim como para a responsabilidade dos país, a fim de
que decidam diante de Deus a respeito do número de filhos que
éles estáo em condicSes de educar».

— 383 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961, qu. 3

S. Eminencia o Cardeal Geriier, arcebispo de Liáo, aos


10 de fevereiro de 1961, assim se pronunciava numa entrevista
concedida a imprensa:
«Embora a Biblia considere a fecundidade dos lares como bén-
cáo de Deus, ela nao nos incita a avallar a perfeicáo de urna familia
pelo número de seus filhos. A generosidade da procriacSo só é hu
mana, caso respeite as personalidades: súas leis e seus limites sáo-
-lhe dltados pelo amor que a inspira. Por conseguinte, aos esposos
toca o dever de se entenderem para evitar estados de gravidez de
masiado freqüentes, prejudidais a saúde da genitora; renunciaráo
ao aumento da prole quando se julgarem incapazes de nutrir e edu
car maior número de íilhos. Ao passo que a Moral católica rejeita
perepmtoriamente o enticoncepcionismo inspirado por egoísmo ou
por um cconceito materialista da vida, ela aceita a limitagáo de
natalidade orientada por prudencia que tenha em vista o bem dos
íilhos, dos pais, da nacáo e da Igreja...
Embora aprove urna sabia limitacáo da prole,... a Igreja Cató
lica julga que o uso de métodos anticoncepcionistas se op3e a lei
natural, a, dignidade da pessoa humana e do amor humano. Assim
se explica urna intransigencia que por vézes escandaliza, quando nao
é devidamente compreendida: tal intransigencia nao é senSo fideli-
dade ao Criador e defesa do homem. Assim como a compaixao se
desvirtúa quando ela leva alguém a matar um doente para pdr ter
mo aos seus soírimentos, assim a benevolencia para com um casal
infeliz... n3o pode resolver um problema humano por vias indignas
do homem* (textos colhidos em «Documentation Catholique» n' 1348,
1960, col. 372-374).

3. Até aqui, principios doutrinários... Agora urna pa-


lavrinha de Índole prática.
A fim de se averiguarem as fases de esterilidade e fecun
didade da natureza, sabe-se que existem métodos diversos. O
mais conhecido é certamente o da tabela de Ogino-Knaus, que
implica um cálculo... Ora, a fim de evitar os possíveis erros
de raciocinio humano, que dáo lugar a decepcóes, existe um
aparelhq calculador de precisáo, capaz de levar em conta as
oscilacoes que nao raro ocorrem na fisiología da mulher; ulte
riores informaeóes poderáo ser fornecidas pela firma distribui
dora do dito.aparelho «Indicador»: Avenida Copacabana 542,
s/ 310, Rio de Janeiro (GB).
Existe também o método da medicáo de temperatura do
organismo feminino: subidas e quedas de temperatura estáo
correlacionadas com as fases interessantes da mulher, de sor-
te que, mediante a aplicacao de certas normas, especificadas
em bula especial, se torna possível avaliar o estado em que se
encontra o organismo feminino. A distribuicáo do termómetro
«Cyclotest» e de sua respectiva bula está a cargo da «Impor
tadora Central S.A.», Caixa Postal 3531, Sao Paulo (SP),
Possam estas linhas ser úteis á orientaQáo das cons-
ciéncias!

— 384 —
SIGNIFICADO DO SINAL DA CRUZ

IV. LITURGIA

4) «Qual a origem do sinal da cruz dos cristaos?


Que significa propriamente?»

A fim de elucidar o assunto, examinaremos em primeiro


lugar o significado da cruz antes do Cristianismo; a seguir,
analisaremos a prática do sinal da cruz entre os cristaos. '

1. A cruz antes de Cristo

A cruz é um dos símbolos mais antigos e difundidos en


tre os povos — o que se deve provávelmente á sua configurá-
gáo extremamente simples e espontanea; consta de# duas li-
nhas retas que se cortam em direcóes opostas: a vertical, lem-
brando o fogo, representaría as aspiragóes mais profundas e
ardentes do homem, sua sede de algo de melhor e sua- ativi-
dade; a linha horizontal, lembrando a superficie plácida da
agua, representaría a tranqüilidade e a paz decorrentes da
consecucáo do objetivo almejado.
E que conceitos teráo os homens associado ao símbolo
da cruz?

1. As primeiras nogóes que a humanidade parece ter


concatenado com a cruz, eram alvissareiras ou de bom pre
sagio, nao de mau agouro.
Como se poderia evidenciar issb?
Em geral, o desenho da cruz era associado, entre os po<-
vos orientáis primitivos, a alguma das tres seguintes idétós,
muito caras a todo homem : a idéia do sol, fonte dé calor, luz
e vida (ou sej'a, de bem-estar); a idéia da térra hiteiía; do
universo;, ou a idéia do homem mesmo.
Procuremos exemplificar cada urna dessas tres associa^
cóes:
a) O binomio «cruz = sol, fonto de vida» é dos mais fre-
qüentes na antigüidade.
a') Assim os caldeus na Mesopotamia representavam o sol por
um disco donde procediam oito ralos; juntando teses ralos dois a
dois, obtinham quatro bracos -ou feixes de luz a emanar (a Igual
distancia) do disco central — o que equivalía a urna cruz.
Entre os destrocos da idade do bronze, nao faltam; em objetos
de cerámica, em Jolas, os traeos característicos da cruz, a recordar
um foco de luz ou o sol.

b') No Egito, um dos hlerogliíos tinha a forma de cruz;


era o ank, o qual significava «vida, ser». Na v«rdade, o ank nada

— 385 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961, qu. 4 .

mais era um tau (T) munido de urna alga sdbre a trave horizon
tal, para ser fácilmente transportado; tomava asslm a forma de urna
chave, sendo por isto chamado «chave da vida».
Do Egito, o símbolo ank ou a chave da vida difundiu-se para a
Fenicia e para outras reglfies do mediterráneo, aparecendo em túmulos,
cerámicas, jolas...

c') Outra modalidade de cruz antlga é a cruz gamada (assim


dita porque se comp5e de quatro gamas (r)> unidos entre si
pelas bases); encontra-se freqüentemente na Greda antiga e na
Asia. Na India, a cruz gamada tinha o nome de swastiska (apelativo
derivado de su, bem, e astí, está). Na China, a cruz gamada perten- '
cia aos sinais da escrita, exprimindo «pluralidades e, por consegulnié,
«abundancia, prosperidade, longa vida». No Japáo, representava o
número 10.000 e, derivadamente, «abundancia, prosperidade».
Os estudiosos tém perguntado: donde se poderla derivar o sen
tido de bom agouro da cruz gamada? — Diversas sao as respostas
apresentadas: a cruz gamada significarla ou agua corrente ou ó ar,
ou o fogo, ou o relámpago ou o sexo feminlno ou o sol e seu
'aparente curso rotatorio. Cada urna destas explicacSes parece
encerrar parte da verdade: em última análise, é bem possl-
vel que originariamente a cruz • gamada tenha representado o sol
sol em seu aparente movimento (o sol é, sim, um dos elementos
básicos que a cruz constantemente simboliza); posteriormente, a cruz
gamada se terá tornado símbolo do movimento dos astros em geral
e, por extensao, símbolo de tudo aquilo que parece mover-se por si
mesmo (a agua, o vento, o raio, o íogo, etc.). Conseqüentemente, a
cruz gamada flcou sendo aos poucos um símbolo de prosperidade,
fecundidade ou béncáo; em algumas regiOes, veio a ser mesmo o
emblema dos deuses que asseguram o desenvolvimento do homem
e da natureza.
Segundo Albert Reville, os aborígenes do México chamavam a
cruz «árvore da fecundidade» ou «árvore da vida».

' ' b) A cruz era cara aos antigos também por simbolizar
a térra ou o universo. Com efeito, por seus quatro bragos a
cruz alude ás quatro partes do mundo e aos quatro ventos
que trazem a chuva benéfica. Entre os chíneses, dizia-se que
a Diyindade plasmou a térra em forma de cruz. O filósofo
grego Platáo (séc. V a.C), por sua vez, ensinava que a es-
trutura do universo é constituida por dois grandes eixos que
se cortam ao meio em forma de X (cf. Timeu 36).
Já na era crista, S. Jerónimo (t421), fazendo eco a ésse
antigo modo de ver, interrogava:

«A Imagem da cruz, que representa ela senao a moldura qua-


drada do mundo?» (Com in Me).

c) O terceiro título que outrora valorizava a cruz, era


a afinidade com o tipo humano. Com efeito, desde que estenda
os bragos para os lados, o homem toma a forma de cruz; em
conseqüéncia, nao era raro dizer-se que o homem foi feito se-
SIGNIFICADO DO SINAL DA CRUZ

gundo a figura da cruz. Nos destrozos da pré-história encon-


tram-se amuletos e ídolos a representar o homem em forma
de' cruz.

2. No Imperio Romano, isto é, no fim da era pré-cristá,


a cruz foi sendo mais e mais aplicada como instrumento de
suplicio; destarte tomou-se lembrete de ignominia e morte;
aos cidadáos do Imperio ela nao podia deixar de inspirar
horror espontáneo (como a imagem da fórca horroriza o ho
mem do séc. XX). Por isto mesmo a cruz, entre os romanos,
nao tinha uso decorativo nem simbólico; estava mesmo banida
do setor da estética.

Recapitulando: nos primordios de sua historia, a cruz apa-,


rece como sinal de bom agouro, principalmente por estar nao'
raras vézes associáda a idéia do sol, fonte de vida e felicidade.
Sómente no limiar da era crista a cruz se tornou motivo
de escándalo e repudio, dado o largo uso que déla foram fa-
zendo os magistrados na punigáo de criminosos.
Ora foi em meio a tal estado de coisas que o Cristianismo,
mensagem do Crucificado, comecou a se propagar. Conside
remos, pois, o comportamento dos discípulos de Cristo em re-
lagáo ao símbolo da cruz.

2. Os cristáos e o sinal da cruz

1. Muito embaracosa era a situacáo dos cristáos "frente


aos demais cidadáos do Imperio Romano: deviam-lhes apre-
goar a mensagem da cruz redentora, de modo a suscitar nao
sómente compaixáo, mas também entusiasmo e adoracáo dí-
ante de Jesús Cristo crucificado!

«Enquanto os judeus exigem milagros e os gregos anclam em


busca da sabedoria, nos, da nossa parte, pregamos Cristo crucifi
cado — escándalo para os judeus, loucura para os gentíos. Para
aqueles, porém, que foram chamados — tanto judeus como gre-
gos —, é... poder de Deus e sabedoria de Deus» {S3o Paulo, 1 Cor
1,22-24).

Em tais circunstancias, os discípulos de Cristo nao hesi-


taram em acentuar o caráter aparentemente paradoxal da
«Boa Nova» ou da salvagáo pela cruz. A fim de persuadir
mais eficazmente, teráo, em casos oportunos, recorrido á es
tima que os antigos pagaos tributavam ao sinal da cruz; nao
era esta, apesar de tudo que ela pudesse evocar de horrendo
para um cjdadáo romano, um símbolo espontaneo de; bom
agouro desde os primordios da humanidade? '■'■'•
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961. qu, 4 '

O seguinte episodio ilustra bem como os cristáos pro-


curaram aproveitar as antigás concepgóes de seus condda-
daos pagaos a fim de os levar á fé de Cristo:

O historiador cristáo Sócrates (t 439) refere que no ano de 389,


em Alexandria (Egito), «quando se demolla e despojava o templo
de Serápis, foram encontrados caracteres ditos 'sacros' gravados sdbre
pedras. Ésses caracteres tinham a configurac.&o da cruz; vendo-os,
tanto os cristáos como os pagaos nao hesitaram em relacioná-los
com a sua respectiva religi&o. Os cristáos. considerando a cruz como
sinal da paixáo salutar de Cristo, julgaram tratar-se do sinal carac
terístico da fé; os pagaos, porém, diziam que se tratava de algo
de comum a Cristo e a Serápis... Levantou-se urna controversia so
bre o assunto, por ocasiáo da qual alguns dos gentíos convertidos
ao Cristianismo e bem iniciados na significacao dos hierogliíos de-
ram a interpretacáo do sinal que tinha a forma de cruz; assevera-
ram, sim, que significa (em linguagem hieroglííica) a vida futura.
Os cristáos aproveitaram-se entáo dessa circunstancia em favor da
sua próprla religiáo, concebendo ainda mais ardor e seguranca na
defesa da sua causa. Entrementes aconteceu que alguém demons-
trou, por meio de outros hieroglifos, que o templa de Serápis ael-
xarla de existir quando néle se tornasse notorio ao público o sinal
em forma de cruz a simbolizar 'a vida futura'. Diante disto, maior
número de pagaos abracou o Cristianismo e. confessando os seus
pecados, recebeu o Batismo» (Historia Eclesiástica V 17).

2. O fato é que desde cedo na historia do Cristianismo


o sinal da cruz aparece como um dos gestos mais caros aos
cristáos e mais freqüentemente praticados por éles.
No séc. m, por exemplo, Tertuliano na África atestava
o ampio uso que do sinal da cruz faziam os fiéis ñas mais
variadas contingencias da vida cotidiana:
«Quando nos pomos a caminhar, quando salmos e entramos,
quando nos vestimos, quando nos lavamos, quando Iniciamos as re-
feicOes, quando nos vamos deltar, quando nos sentamos, nessas oca-
si6es e em todas as nossas demais atlvldades, persignamo-nos a tes
ta com o sinal da cruz» (De corona militis 3).

Pouco depois, a mesma praxe era testemunhada no Ori


ente por Sao Cirilo de Jerusalém (t386):
«Nao nos delxemos deter pela vergonha de confessar o Crucifi
cado. Corajosamente facarnos o sinal da cruz com a máo s&bre a
nossa testa ao iniciar qualquer ato, ou seja. antes de comer e be
ber, ao entrarmos em casa e ao sairmos, antes de nos deitarraos,
ao adormecermos e ao nos levantarmos, ao caminharmos e ao des-
cansarmos» (Catequese XIII 36).

O hábito de fazer o sinal da cruz estava táo arraigado


entre os cristáos que até mesmo o Imperador Juliano (t 363),
apóstata, costumava persignar-se nos momentos de perigo
(cf. Teodoreto, Hist ecl. m 3).

— 388 —
SIGNIFICADO DO SINAL DA CRUZ

O uso popular era, de resto, confirmado pela Liturgia da


Igreja. É o que da a ver S. Agostinho no seguinte trecho :

«Com o sinal da cruz consagra-se o corpo do Senhor (= a Euca


ristía), santifica-se a fonte batismal, ordenam-se os sacerdotes e os
outros ministros; numa palavra, consagra-se tudo que, por invoca-
cáo do nome de Cristo, deve ser tornado santo» (serm. 181; cf. In
lo tr. 118,5).

Táo peremptório testemunho leva alguns estudiosos a supor urna


tradicáo litúrgica muito antiga, datada talvez da época dos Apostó
los, os quais teráo dado inicio e autoridade ao costume de fazer o
sinal da cruz. Embora nao se possa insistir no valor desta hipótese,
reconhecer-se-á que documentos do séc. II (como as «Constituigoes
da Igreja do Egito», os «Atos de Sao Joáo,... de Sao Tomé,... de
S5o Pedro) aludem explícitamente á praxe de persignar-se vigente
entre os crlstáos da época. Sabe-se ademáis que os catecúmenos da
primitiva Igreja eram repetidamente assinalados com a marca da
cruz, marca esta que íazia parte também do ritual do Batismo.

3. Quanto á maneira como se fazia o sinal da cruz, deve-


-se notar o seguinte :
Tratando-se de pessoas, nos primeiros sáculos ou o pró-
prio cristáo ou o ministro sagrado marcava apenas a testa
mediante o polegar ou o dedo indicador da máo direita, de
acordó com o que insinúa Sao Joáo no Apocalipse (cf. Apc 7,3;
9,4; 14,1). O sinal podia ter a forma de cruz (-f) própriamente
dita ou de tau (T) ou de chi (X).
Aos poucos, passou-se a assinalar também a boca do cris
táo, os seus olhos, por fim, o seu coracáo ou o seu peito, a
fim de imprimir um sinal de santificagáo respectivamente as
palavras, aos olhares e aos afetos da pessoa (o tríplice sinal
da cruz feito sucessivamente sobre a testa, os labios e o peito
ainda está em uso na Liturgia, desempenhando um papel sim
bólico bem evidente).
Desde cedo, como referem os testemunhos de Tertuliano
e S. Cirilo de Jerusalém, o mesmo gesto simbólico foi sendo
tragado outrossim sobre os objetos de uso cotidiano dos cris-
táos, principalmente sobre os alimentos, a fim de comunicar
um valor religioso a todos os atos do discípulo de Cristo, mes
mo aos que ele realiza em comum com os demais seres vivos
(como o comer e o beber); ficava (e fica) assim realgado que
nada é profano ou meramente leigo na vida de um cristáo,
mas tudo deve ser exercício da obra da Redengáo, iniciada
por Cristo na cruz do Calvario e desdobrada por cada cristáo
no setor de atividades em que a Providencia o colocou.

Consta, alias, que na antigUidade e na Idade Media a cruz íazia


as vézes de assinatura, no caso dos analfabetos, representando assim
a própria pessoa do cristáo.

— 389 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961, qu. 4"

4. A posigáo dos dedos, ao tragarem o sinal sagrado, va-


riou no decorrer dos tempos.

Do séc. VI em diante, lsto é, após o surto da hcresia monoílsita


(que afirmava haver em Cristo urna só natureza e urna só pessoa),
os monofisitas fizeram questáo de professar a sua doutrina persig-
nando-se e dando a béngáo com um único dedo estendido (para sim
bolizar urna só natureza em Cristo), ao passo que os cristáos fiéis á
reta fé, no Oriente, paSsaram a tracar o sinal da cruz com dois de
dos estendidos (o polegar e o indicador ou o indicador e o medio),
a íim de afirmar as duas naturezas em Cristo.
Na mesma época introduziu-se também o uso de estender tres
dedos para professar a fé na SSma. Trindade ou o trinomio «Jesús
Cristo Salvador».
Tornou-se também habitual, a partir do séc. VIII no Oriente, o
gesto de unir entre si as extremidades do polegar e do anular, de
modo a formarem um circulo, ficando os tres outros dedos (o indi
cador, o medio e o mindinho) estendidos; tal configuracáo da mió
devia exprimir, pelo seu número ternario, a íé na SSma. Trindade
e, pelo seu binario, a crenca ñas duas naturezas de Cristo; havla de
lembrar outrossim as letras gregas I X C (iniciáis da fórmula
«Jesús Cristo Salvador»).
No Ocidente, tornou-se costume estender os tres primeiros de
dos, ficando o anular e o mindinho dohrados; os beneditinos, a par
tir do séc. VIII, davam a béncáo estendendo os cinco dedos da mao
(a simbolizar as cinco chagas do Senhor, como geralmente se diz);
esta praxe tornou-se obrigatória no Ocidente por ordem do Papa
Sao Pió V (tl572).

5. Pergunta-se agora: e de guando data o grande sinal


da cruz, que vai da testa ao peito e de espádua a espádua?
Há possíveís vestigios de tal rito no séc. V, pois o biógrafo
de Sao Severino de Colonia (f 482) narra que éste santo, an
tes de morrer, fez com a máo estendida o sinal da cruz sobre
todo o seu corpo (Mon. Germ., Auct. Ant. I 28). O rito pare
ce ter-se difundido principalmente por obra dos monges. Muito
provávelmente, a principio, para fazer o grande sinal da cruz,
estendiam-se apenas os tres primeiros dedos e passava-se da es
pádua direita para a esquerda (gesto que os cristáos orientáis
ainda hoje conservam). Após o séc. Xm foi prevalecendo en
tre -os ocidentais a praxe, atualmente usual, de fazer o grande
sinal com a máo direita aberta, passando-se do ombro esquer-
do para o direito. — A que motivos se devem tais múdangas?
— Difícil seria afirmar alguma coisa a ésse propósito.

O Papa Inocencio III (t 1216), sem pretender indicar a origem


histórica das modalidades do sinal da cruz, propunha interpretagoes
alegoristas do mesmo, de acordó com a mentalidade de sua. época.
Asslm, por exemplo, referindo-se á maneira mals antlga de fazer o
grande sinal, explicava que os tres dedos estendidos significavam a
SSma. Trindade, a qual, conforme o profeta Isaías «com tres dedos
mede a massa do globo terrestre> (cf. Is 40,12); a mao seria levada

— 390 —
SIGNIFICADO DO SINAL DA CRUZ

de cima (da testa) a babeo (ao peito), porque Cristo desceu do céu ■
á térra;... da direita para a esquerda, porque o mesmo Senhor pas-
sou dos judeus para os gentíos!... Quanto a modalidade posterior,
ocidental, dizia o mesmo autor que a máo passava da espádua es
querda para a direita porque nos nos devemos transferir da miseria
para a gloria, como Cristo se transferiu da morte para a vida (cf.
De sacro mysterio n 45, ed. Migne lat. 217, 825). Tais explicares
nao se impCem; serviráo para nutrir a pledade de quem se sinta
allciado por elas!

No séc. XVI aínda estavam em vigor no Ocidente as duas


modalidades (a mais antiga e a nova) de se fazer o grande
sinal da cruz.
Éste era, naturalmente, acompanhado de urna fórmula.
A principio proferia-se a simples indicacáo: «Signum crucis
(eis o sinal da cruz)» ou a clássica profíssáo de fé trinitaria:
«Em nome do Pal, do Filho e do Espirito Santo», ainda usual.
Os gregos costumam hoje em dia dizer: «Santo Deus, Santo
Forte, Santo Imortal, tem piedade de nos». Ocorre outrossim.
nos rituais latinos a invocagáo do Senhor: «Nosso auxilio está
no nome do Senhor» ou «Deus, vinde em meu auxilio».

6. Recapitulando, pode-se assim propor o significado do


tradicional sinal da cruz, táo caro aos cristáos :

1) É primeiramente o sélo do Senhor, imposto ao res


pectivo discípulo, a fim de indicar que o cristáo pertence to
talmente (alma e corpo, pensamentos, palavras e obras) a
Cristo; dai a razáo de se persignarem as principáis partes do
corpo (testa, labios, coracáo, ouvidos, olhos...).

2) É profíssáo de fé em Cristo e, em particular, no po


der redentor da cruz; daí utilizar-se freqüentemente o sinal da
cruz para dissipar as tentagóes e insidias do demonio; dizia
mesmo urna antiga fórmula que acompanhava o «persignar-
-se»: «Eis a cruz do Senhor; fugi, ó hostes adversarias!» Ain
da atualmente no Ritual do batismo o ministro faz o sinal da
cruz sobre o candidato, dizendo: «Éste sinal da santa cruz
que nos impomos á testa (de tal catecúmeno), tu, ó maldito
demonio, nunca ouses violá-lo». Pelo mesmo motivo, ao se
praticar o exorcismo, multiplicam-se os sinais da cruz sobre a
pessoa possessa.

3) É invocagáo da gra$a e da bengáo de Deus sobre pes-


soas ou objetos, invocagáo feita mediante os méritos da cruz
(ou da crucifixáo) de Cristo. Por esse motivo, todos,os sa
cramentos sao acompanhados do sinal da cruz; qualquer bén-

— 391 —
«PERQÜNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961. qu. 5

gao é dada mediante o sinal da cruz, pois, como dizia Sao


Leáo Magno (t 461), «a cruz de Cristo é a fonte de todas as
béncáos, é a causa de todas as gragas» (serm. 59,7).

4) Pode acontecer que o sinal da cruz tenha valor me


ramente indicativo, servindo apenas para designar pessoas ou
coisas a que se refira alguma fórmula de oracáo. Assim Ru
fino de Aquiléia (t 410) narra que os fiéis costumavam per
signar a testa quando proferiam no símbolo de fé as palavras:
«Creio... a ressurreigáo desta carne» (Com. in Symb. Apost.
43). As cruzes que o sacerdote faz sobre a hostia e o cálice
após a Consagracáo da S. Missa já nao podem ter valor de
béngáo, mas sao meros sinais indicativos.

Apéndice

A guisa de complemento, seguem-se algumas notas sobre a


posicáo doutrinárla dos protestantes a respeito do sinal da cruz.
Lutero, em seu contraste contra Roma, eliminou dos oficios pú
blicos tal sinal; nao obstante, recomendou calorosamente aos discí
pulos, nao deixassem de o fazer todos os días de manha ao se levan-
tarem. As «ConstituicOes Eclesiásticas» de Hannover (1536-89), por
sua vez, aboliram o sinal da cruz no culto; o teólogo luterano Brenz,
no séc. XVI, receava que ésse gesto levasse os fiéis á magia!
Contudo o sinal da cruz nao desapareceu logo por completo; ao
contrario, muito mereceu a estima das comunidades protestantes,
principalmente por ocasiSo da celebracSo da cela do Senhor.
O racionalismo do séc. XVIII fol funesto para tal gesto simbóli
co; o escritor protestante J. C. Velthusen preconlzava a total exün-
cSo do mesmo, desde que nSo ídsse necessário para satisfazer & men-
talldade dos fiéis mais fracos na fé; G. B. Elsenschmidt julgava que
o «perslgnar-se» favorecia a supersticáo; em conseqüénda, por todo
o sáculo passado ésse gesto estéve, por assim dlzer, banido dos usos
protestantes.
Nos últimos decenios, porém, já se tém feito ouvir testemunhos
a favor de sua restauracüo. Basta citar H. Asmussen: além de afir
mar dlferenga radical entre «sinal da cruz» e «magia» ou «encanta
mento», éste autor observa que a cruz tragada por ocasiao de urna
béncao constituí um sabio lembrete de que a promessa de béncao
messianica se cumpriu pela cruz de Jesús Cristo (cf. Asmussen, Die
Lehre vom Gottesdlenst. München 1939, 257-9). Principalmente a
chamada «Alta Igreja Anglicana» (ffigh Church) compartilha • as
tdéias do Catolicismo a respeito do sinal da cruz. — É assim. que a
cruz mais urna vez atrai os homens!

V. PEDAGOGÍA

MAE DE FAMILIA (Sao Paulo):

5) «Como julgar a celeuma suscitada pelo Tlano de Di-


retrizes e Bases da Educaeáo Nacional'?

— 392 -^
«DIRETRIZES E BASES» DA EDUCACAO

Diz-se, entre outras coisas, que ésse projeto equivale a tqn


golpe contra a Escola Pública, democrática, em favor dé in-
terésses particulares, aristocráticos!»

O Plano de Diretrizes e Bases da Educagáo Nacional tem


provocado um alarde muitas vézes injusto, pois a experiencia
.vem mostrando que bom número dos que o discutem nao o co-
nhecem exatamente. De outro lado, acontece que os oposito
res do projeto freqüentemente o apresentam desfigurado, como
se fósse obstáculo á escola pública ou instrumento de interés-
ses financeiros de cidadáos e entidades particulares.
Na verdade, o debate em tomo do famoso projeto está
longe de ser questáo de distribuicjio de verbas ou de adminis-
tragáo do ensino. Em última análise, o alcance do projeto ul-
trapassa a esfera dos especialistas; afeta diretamente a fami
lia brasileira ou mesmo cada cidadáo em particular. Com efei-
to, «Diretrizes e Bases» representa toda urna filosofía ou urna
concepcáo geral do homem e da vida, de tal modo que os
adversarios do projeto, consciente ou inconscientemente, re-
presentam outra filosofía, radicalmente diversa da anterior.
Em conseqüéncia, o «Sim» ou o «Nao» dito ao projeto signi
fica, em última análise (talvez nem todos tenham consciéncia
disto), urna tomada de posicáo geral perante o homem, a fa
milia e o Estado.
É o que a exposigáo abaixo tentará evidenciar, analisan-
do sucessivamente as linhas características e a oportunidade
do Plano de Diretrizes e Bases.

1. As características do Projeto

A. Familia e Estado diante do direito de educar

Distinguimos duas maneiras de apreciar o homem, fron-


talmente opostas urna á outra.

1) Pode-se considerar o homem como personalidade,


isto é,

como ser dotado de inteligencia e liberdade,


responsável portante por seus atos e, conseqüentemente,
portador de dlreitos e deveres indevassáveis.

A personalidade está imediatamente relacionada com a


familia, onde ela nasce e se desenvolve normalmente.
As familias unidas entre si dáo a nacao. Esta é dirigida
por um govérno civil (o Estado), cuja tarefa vem a ser «pro-

_ 393 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961, qu. 5

mover o bem comum das familias e dos individuos», respei-


tando a responsabilidade, a liberdade e os direitos de cada
qual, sem os absorver. Ao Estado compete estabelecer os
principios necessários para que as iniciativas livres dos mem-
bros da sociedade nao redundem em dispersáo, esfacelamento
ou injustiga, mas, ao contrario, haja colaboragáo harmoniosa
em prol do bem comum. A atuagáo do Estado assim conce
bida nunca chegará a ser tal ou táo íntima que equiválha a
padronizagáo ou a sufocagáo do direito que a cada cidadáo
compete, de desenvolver livremente a sua personalidade.
Dentro desta ideología, EDÜCAQAO vem a ser direito e
dever dos genitores, pois a prole (como quase continuagáo de
seus pais) pertence a estes e com éles integra a familia, Ao
Estado toca o papel de secundar e favorecer a funcáo dos pais,
sem tomar dianteira sobre éles, antes garantindo-lhes a liber
dade de escolher o tipo de educagáo e a escola que quiserem
destinar a seus filhos. As familias, portante, o Estado há de
fornecer ou suas escolas (escolas ditas «públicas») ou os ne
cessários subsidios financeiros para que, após livre opgáo, as
familias pobres possam, nao obstante a sua pobreza, exercer
o direito de educar seus filhos no educandário particular que
lhes satisfaga, sem estarem obrigadas a seguir a escola do
Estado.
É a ésse modo de ver que se chama «pensamento demo
crático» ou simplesmente «democracia». Numa palavra: esti
ma o homem como algo mais do que um ser material, desti
nado a produzir e consumir bens materiais; respeita no homem
valores moráis, que o relacionam diretamente com Deus, fa-
zendo que a personalidade humana nao seja toda e exclusiva
mente voltada para a sociedade visível e para éste mundo ter
restre.

2) Doutro lado, deye-se registrar a ideología do totali


tarismo, seja direitista (fascista), seja esquerdista (marxista).
Pode-se dizer que o totalitarismo transiere para o Estado to
dos os direitos, de modo que o individuo na sociedade só goza
dos direitos que o govérno se digne de conferir-lhe. O ser hu
mano é assim reduzido á categoría de mera unidade dentro
de urna massa padronizada, que tem que pensar e querer como
o Estado ou o govérno pensa e quer.
Em conseqüéncia, entende-se que a EDUCA^AO venha a
ser considerada tarefa da algada exclusiva do Estado. Sim;
nessa ideología a crianga nao pertence aos pais ou á familia,
mas ao Estado; éste, subtraindo-a desde cedo á orientagáo dos
genitores, se encarrega, mediante rijo plano de educagáo, de

— 394 —
<DIRETRIZES E BASES» DA EDUCACAO

lhe incutir o modo de pensar e querer que o govérno deseje.


Aos pais e ás entidades particulares só pode caber alguma ta-
refa educacional na medida em que o Estado, por mero bene
plácito, a queira conceder e dentro das condigóes que ele es
tipule. — Há entáo escola única, padronizada, em que todos
os cidadáos desde cedo sao exercitados a julgar e agir do
mesmo modo, sem liberdade para expandir sua própria per-
sonalidade. Um dos testemunhos mais eloqüentes que a tal
propósito se possam ler, é o de Benito Mussolini, o mentor do
fascismo italiano, que assim falava a um jornal estrangeiro:

«Nao admitiré! que ninguém, absolutamente ninguém, ouse tocar


no que pertence ao Estado. Minha fórmula é bem clara: tudo com
o Estado, nada contra o Estado. A crianca, asslm que atinge a idade
de aprender, pertence ao Estado e só a ele... e nao há partilha pos-
sivel» (citado por André Saint-Denis, em «Pío XI contra os Ído
los», 220).

O mesmo Mussolini voltava a afirmar:

«O Estado fascista assume todas as formas da vida moral e in


telectual do homem. Ele é forma e norma interior que disciplina
toda a pessoa, e penetra a vontade assim como a inteligencia («Dottri-
na», citado por Jules-Bernard Gingras, Initation á la science politi-
que, pág. 47).

Como se vé, no Estado totalitario fascista é o govérno


quem dita o modo único de pensar, querer e agir de todos os
cidadáos, e o dita a comecar da idade mais tenra dos indivi
duos, desde a escola primaria. O mesmo se dá nos regimes to
talitarios da extrema esquerda, os quais costumam ser veemen-
tes implantadores de suas idéias :

Haja vista, por exemplo, o que se deu em Cuba, onde urna das
primeiras medidas de Fidel Castro fol o fechamento das escolas par
ticulares (cf. «Diario de Noticias» do Rio de Janeiro, de ll/VI/61,
2' cliché, dorso).

Levem-se em conta as Constituicoes dos governos marxlstas mo


dernos, como a da Alemanha Oriental, datada de 7 de outubro de
1949 : nos artigos 34-40 declara nao admitir a escola particular.

A Constltuicao da Tcheco-Slováquia, de 9 de junho de 1948, no


seu § 13,2, prescreve: «A instrucáo básica é única, obrigatória e gra
tuita.». No § 14,2: «O Estado controlará todo o ensino e tdda a edu-
cacao, que se hao de ministrar de tal maneira que sejam conformes
com os resultados das pesquisas científicas e nao estejam em desa-
cdrdo com o regime popular democrático».

A Constituicáo da Bulgaria, de 4 de dezembro de 1947. determi


na que «a instrucáo é leiga e marcada pelo espirito democrático e
progressivo» (art. 70, alinea 1"); «a lei pode autorizar escolas par
ticulares sob o controle do Estado» (art. 70, alinea 3').

— 395 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961, qu. 5

A Constltuigáo da Iugoslávla, de 31 de Janeiro de 1946, reconhece


possa a lei autorizar escolas particulares, desde que controladas pelo
Estado (art. 38, alinea 3).

2. Estabelecidas estas duas maneiras de conceituar o


homem e a sociedade, pergunta-se qual a posigáo de «Dfretri-
zes e Bases» em relagáo a elas?
O Plano de Diretrizes e Bases se sitúa precisamente soba
inspiracáo da ideología democrática: proclama ser a educacáo
um direito dos genitores e da familia, cabendo ao Estado a
obrigacáo de respeitar e fomentar tal direito, sem possibili-
dade de jamáis o sufocar.

Eis como se abre o referido Plano :


«Titulo I

Art. 1*. A educacáo nacional, inspirada nos principios de llber-


berdade e nos ideáis de solidariedade humana, tem por finí:
a) a compreensáo dos direitos e deveres da pessoa humana
do ddadao, do Estado, da íamilia e demais grupos que compñem a
comunldade; , .
b) o respeito k dignidade e ás liberdades fundamentáis do
homem;

d) o desenvolvimento integral da personalidade humana e


a sua participacáo na obra do bem comum.

Titulo H

Art. 2*. A educacáo é direito de todos e será dada no lar e na


escola.

Parágrafo único. A familia cabe escolher, com prloridade, o gé


nero de educacáo que deve dar a seus filhos.

Art. 3*. O direito á educacSo é assegurado:


I) pela obrigacáo do Poder Público e pela liberdade de ini
ciativa particular de minlstrarem o ensino em todos os graus,. na
forma da lei em vigor;
II) pela obrigacáo do Estado de fornecer recursos indispen-
sáveis para que a familia e, na falta desta, os demais membros da
sociedade se desobriguem dos encargos da educacáo, quando prova-
da a insuficiencia de meios, de modo que sejam asseguradas iguais
oportunidades a todos.

Titulo m
Art. 4». É assegurado a todos na forma da lei o direito de trans
mitir seus conhecimentos, nao podendo o Estado favorece^ o mono
polio do ensino.

— 396 —
«DIRETRIZES E BASES> DA EDUCACAO

Analisemos sumariamente o significado destas "declaragóes


básicas:
- Como se vé, o projeto coloca no centro de toda a ativi-
dade educacional a pessoa humana (art. 1»), o que quer di-
zer: reconhece a todo cidadáo liberdade de pensamento, di-
reitos e deveres, em fungáo dos quais sao concebidos os direi-
tos e deveres do Estado (e nao vice-versa).
Conseqüentemente, afirma o projeto que a educagáo co-
meca no lar, seguindo (é obvio) a orientagáo que os genito
res e familiares lhe queiram dar; continuando na escola, a edu-
cagáo deverá naturalmente estar em harmonía com os prin
cipios ministrados no lar; o que implica (como, alias, o proje
to explícitamente declara no § único do art. 2') em liberdade
dos pais na escolha do sistema educacional pelo qual háo de
encaminhar seus filhos. Nao se tolera, portanto, que o Estado
monopolize a escola de modo a só deixar subsistir um tipo de
educandário ao qual as familias (concordem ou nao) se de-
vam conformar. Ao contrario, aos pais será fornecida ampia
escala de educandários, que compreenderá tanto os de inicia
tiva particular (inspirados pela orientagáo filosófica e religiosa
que os respectivos diretores lhes quiserem dar) como os de
iniciativa do Estado (orientados pelas normas que o govérno
houver por bem ditar, dentro dos termos do respeito á perso-
nalidade).
Está claro que dentro dessa variegada escala de educan
dários há de se observar um mínimo de legislagáo comum.
Por conseguinte, o Estado terá o inegável direito, e mesmo a
obrigagáo, de formular os estatutos necessários para que as
iniciativas dos educadores particulares nao redundem em dis-
persáo de fórgas e confusáo, mas, antes, convirjam harmonio-
sámente para a consecugáo do bem comum. Tais estatutos po-
deráo ser táo minuciosos quanto isto fór necessário para o
bem da nagáo, nunca, porém, a ponto de padronizar a educagao.

3. De duas maneiras preenche o Estado o seu papel de


uixiliar as familias no esfórgo educacional:

1) Criando escolas públicas para todos os graus de en-


sino.

■•• Contudo, se o Estado apenas cuidasse de abrir escolas


públicas obrigaria os particulares pobres (impossibiUtados de
pagar a escola particular) a renunciar ao seu direito de es
colha: a posigáo do pobre seria de avassalamento á escola pu
blica ou ao ensino ministrado pelo Estado, o que é antldemo-

— 397 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961, qu. 5

crático. Por conseguinte, a fim de evitar éste mal, o Estado,


além de criar suas escolas, deverá auxiliar a familia também.

2) forneccndo os meios financeiros indispensáveis para


que os genitores necessitados possam, caso o desejem, recorrer
a escola particular.

Destarte o govérno fará que a pobreza nao seja motivo


para que a familia renuncie a direitos legítimos, caindo, em
certo grau, no servilismo ao govérno. »
Donde se vé que nao é justo preconizar, sejam os recursos
públicos aplicados únicamente na fundagáo e manutengád de
escolas públicas. Éste adagio que, á primeira vista, parece su
mamente equitativo, em última instancia equivale a suma ini-
qüidade; redunda, sim, em exploragáo do pobre por parte do
Estado, pois éste, deixando de subvencionar os particulares
na tarefa educacional, os estará privando simplesmente do
exercído de um de seus mais legítimos direitos. A liberdade
seria entáo privilegio dos ricos, enquanto os pobres ficariam
reduzidos a servir.

Vém muito a propósito aqui algumas írases do Papa Pío XI,


que resumem quanto acaba de ser dito :

«É certo que o Estado nao pode nem deve desinteressar-se da


educacáo dos cidadSos, mas há de contribuir sdmente com aquilo
que o individuo e a íamilia nao podem fazer por si mesmos. O' pa
pel do Estado nao é, pois, absorver, devorar ou aniquilar o indivi
duo e a familia, o que seria um absurdo, contrario á natureza, pois
a familia existe antes da sociedade, antes do Estado. O Es.tado nao
pode, portante desinteressar-se da educacao, mas sua parte de con-
tribuieao é urna colaboracáo destinada a prover o que é necessário
e suficiente para ajudar e aperíeicoar a ag§o da familia; deve cor
responder plenamente aos desejos do pai. e da. mSe e, ácima de tudo,
respeitar o direito divino da Igreja»JPIo XI, alocucao aos aluno, de
Mondragone, de 14 de malo de 1929. Atos de S.S. Pió XI, t. 5,
pág. 116-120).

B. Escola pública ou escola única?

Afirmando a liberdade de educagáo, o Projeto de Dire-


trizes e Bases de modo nenhum se opóe á escola pública, como
tantas vézes se diz; apenas preconiza a coexistencia pacifica
de escola pública e escola particular, a fim de que os cidadaos
nao sejam avassalados pelo Estado. A experiencia bem ensi-
na que se o Estado ñáo subvenciona os educandanos ^parti-
culares e as familias, a escola particular difícilmente subsiste:
ela baixa de nivel e tende a desaparecer.

— 398 —
cDIRETRIZES E BASES» DA EDUCACAO

O projeto, portante, nao é contrario á escola pública, mas


á escola única, de tal modo que aqueles que o combatem em
nome da escola pública, como se esta fósse lesada por tal lei,
parecem, em última análise, ter em mira defender a escola
única, a escola totalitaria e, conseqüentemente, um regime de
govémo totalitario em lugar de govérno democrático.
Para confirmar esta conclusao, pode-se citar o fato de que as
ordens de comando do Partido Comunista Internacional para seus
delegados na América Latina visam explorar as campanhas em prol
da escola pública como instrumentos em prol da escola totalitaria ou
ún'ca Estas ordens nao estariam sendo executadas pelos adversa
rios do Projeto de Diretrizes e Bases, que, na verdade. nSo tenam
motivo para protestar em favor da escola pública, se em última ana-
lise nao estivessem servindo á escola única?
Com efeito, sabe-se que, de acordó com Instrucoes emanadas de
Pequim (centro de propaganda encarregado de prover á campanha
comunista na América Latina), os marxistas elaboraram um progra
ma de acao, que o escritor C. Godoy, em seu livro «Plano para a
América Latina», comenta minuciosamente, referindo nos seguintes
termos algumas das normas oriundas de Pequim:
«A titulo de centros ativos da luta, será necessário implantar em
todas as partes Comités de Ajuda á Escola Pública, que serviráo
para o recrutamento de simpatizantes nao comunistas. Nessa luta,
os comunistas devem preocupar-se em conquistar a direcáo. para
isso dever&o ser recrutados especialmente professóres filiados & Fe-
derag&o Internacional dos Sindicatos de Enslno.
Além disso, o plano (comunista) trata da preparacáo de um
Congresso de Apoio á Escola Pública, que servirla para mobilizar
todas as forgas laicas e anticlericais disponiveis e articular a ofensi
va cultural e anti-religiosa comunista no plano internacional latino-
-americano>.

Sumariamente : o reconhecimento da personalidade hu


mana, de sua liberdade, de seus direitos e deveres em geral e,
de modo especial, no tocante á educagáo, eis a nota mais mar
cante do Projeto de Diretrizes e Bases.
Devem-se agora salientar alguns outros tragos, que se
deduzem naturalmente do que acabamos de enunciar.

C. Distribuicao de recursos para a educacáo

O art. 94 do Plano leva explícitamente em consideracáo a distri


buicao de auxilios financeiros ás familias para que estas possam es-
colher livremente a escola que desejarem :
«Art 94. A Uniao proporcionará recursos a educandos que de-
monstrem necessidade e aptidáo para estudos, sob duas modalidades:
a) bolsas gratuitas para custeio total ou parcial dos estudos;
b) financiamento para reembolso dentro de prazo variável, nun
ca superior a quinze anos,

— 399 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961, gu. 5

§ 1'. Os recursos a serem concedidos sob a forma de bolsa de"


estudos... poderáo ser aplicados pelo candidato em estabelecimento
de ensino de sua livre escolha».

Éste artigo, que alguns julgam nocivo á escola pública,


está longe de ser tal. O Projeto nao cria nem amplia subven-
Qóes a escola particular; apenas mantém o que está sendo con
cedido, visando assegurar ainda melhores resultados, sem de
trimento para o ensino público. De resto, todo vestigio de dú-
vida se dissipa desde que se leia o art. 93 do Projeto, em que
é professada urna certa preferencia em favor da escola pública:
«Art. 93. Os recursos a que se refere o artigo 169 da Consti-
tuicao Federal, serao aplicados preferencialmente na manutencáo e
desenvolvimento do sistema público de ensino de acordó com os pla
nos estabelecidos pelo Conselho Federal e pelos conselhos estaduais de
educacáo, de sorte que se assegurem:

1. o acesso a escola do maior número possível de educandos; .

2. a melhoria progressiva do ensino e o aperfeigoamento dos


servicos de educacáo...>

E aue estipula o art. 169 da Constituicáo Federal?


— Ei-lo:

«Anualmente a Uniao aplicará nunca menos de dez por cento, e


os Estados, o Distrito Federal e os Municipios nunca menos de vinte
por cento da renda resultante dos impostos, na manutencáo e desen
volvimento do ensino».

Falando-se de custeio da educagáo, nao se poderia deixar


de lembrar aqui que o ensino particular resulta consideravel-
mente mais barato do que o ensino oficial.

«Estabelecido o custo medio por aluno, no curso de um ano, ve-


rifica-se que o custo do ensino secundario ministrado por estabeleci-
mentos particulares é quatro vézes menor do que o fornecido por
estabelecimentos oficiáis; com relagSo ao custo do ensino superior, a
diferenea é de seis vézes menor em favor dos estabelecimentos par
ticulares; face ao ensino normal, dez vézes mais barato é o ensino
ministrado nos estabelecimentos privados.
Interessante será conhecer as conclusSes a que chegou a Comis-
sSo Parlamentar de Inquérito. constituida em 1957 para 'investigar
o alto custo do ensino particular no Brasil1. Após ouvirem os mais
destacados educadores do país e examinar anuidades e salarios vi
gentes nestes últimos anos em cérea de 2.200 estabelecimentos de
ensino medio, a Comissao Parlamentar apurou 'nao haver exagero
nos precos atualmente cobrados pelos estabelecimentos de ensino
particular desde que satisfeitas as exigencias de ordem material e
pedagógica do Ministerio da EducacSo'. O encarecimento do ensino
nesta última década, em media de 150 %. nem foi proporcional á alta
«eral do custo de vida, que chegou a 300 %. Mais ainda, verificou a
ilustre Comissao que os estabelecimentos oficiáis gastam per capita,

— 400 —
e ¿ases» da educacao

com seus alunos, multo mais do que cobram os educandários parti


culares mais caros. Fósse a verba que se aplica na manutengáo dés-
ses educandários oficiáis empregada em abonos escolares, poderia
estudar, gratuitamente, em escolas particulares um número bem
mais elevado de alunos necessitados (Sérvulo Master, O Estado e a
escola particular, pág. 11).»

O texto ácima íoi-transcrito do estudo «Diretrizes e Bases da


Educacao Nacional» da autoría do Prof. José Sanseverino. Pdrto
Alegre 1960, pág. 67s.

Note-se que, sendo cara e dispendiosa para o Estado, a


escola pública vem a ser naturalmente cara e dispendiosa para
o povo.
Replica-se, porém: tém-se verificado abusos dos parti
culares na aplicagáo das verbas que o Estado lhes envial
— O abuso nao extingue o uso. Dado que se registrem
tais abusos, o remedio nao há de ser a extingáo das sub-
vengóes, mas, sim, o controle por parte do Estado, a fím de
assegurar o emprégo legítimo dos dinheiros públicos; sem dú-
vida, o govérno tem o direito de fiscalizar o destino dado as
contribuicóes que ele outorga.

Seja licito, alias, chamar a atencSo para o seguinte particular


(ao lado do qual muitos outros semelhantes se poderiam citar): em
1958, dentre 472.819 alunos matriculados em educandários católicos,
137.273 receberam instrucáo gratuita, enquanto 30.238 gozavam de
mais de 50 % de reducfio da respectiva anuidade. Isto bem mostra
que as escolas particulares podem desempenhar um servico público
nao desprezivel.

D. Flexibilidade dos programas de ensino

O Plano de Diretrizes e Bases reconhece aos estabeleci-


mentos de ensino a possibilidade de adaptar seus curriculos
as exigencias da populacho que os freqüenta. Desta forma a
instrugáo se torna muito mais viva e penetrante, perdendo a
nota de artificialidade estéril que muitas vézes tem, desde que
se queiram seguir os mesmos programas de ensino em diver
sas regióes do país.

No Brasil entende-se que as populacOes do Norte, do Nordeste,


do Centro é do Sul tenham seu nivel cultural próprio e, por conse-
guinte, suas indigencias especificas no setor dos programas escola
res. Essas exigencias tornam necessária a flexibilidade dos progra
mas de ensino. cabendo ao Estado estipular o mínimo de materias e
principios a ser observados na organizacáo dos currlculos, a fim de
que nao naja prejuizo do bem comum nos esforcos educacionais dos
particulares.

— 401 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 45/1961, qu. 5

E. Certa descentraliza§So da administragáo do ensino

Etn vez de concentrar a administragáo do ensino numa


única entidade como é o Ministerio da Educagáo e Cultura, o
Projeto desmembra-a, confiando-a a tres órgáos: o Ministerio
da Educacáo, o Conselho Federal e os Conselhos Estaduais
de Educacáo.

Os Conselhos Estaduais constituem inovacSo na materia, inova-


c&o porém, oportuna, pois seu papel principal consiste precisamente
em'adaptar as leis gerais do ensino as circunstancias particulares
de cada Estado, tornando assim o sistema geral de educacáo mais
significativo e eficaz. Ésses Conselhos seráo integrados tanto por
técnicos do govérno como por representantes do ensino particular,
de acordó com o art. 10 do Projeto.

F. Reconhecimento de estados e diplomas

O Plano estipula que os estudos efetuados nos educandá-


rios públicos e particulares seráo igualmente reconhecidos para
todos os fins:
«Nao haverá distincáo de direitos, para qualquer fim, entre os
estudos realizados em estabelecimentos oficiáis e os realizados em
estabeiecimentos particulares reconhecidos» (art. 19).

Éste artigo (ao qual fazem eco os art. 5 e 58) decorre lógicamen
te da existencia da escola particular. Teve grande repercussao prin
cipalmente entre as normalistas do Estado da Guanabara, onde só-
mente as alunas diplomadas pelo Instituto de Educacáo, mantido
pelo govérno. podem ingressar no magisterio oficial.
Ora evidentemente éste dispositivo da Guanabara, além de ser
pouco justo em si, íere frontalmente a Constituicáo Federal Brasi-
leira, que no seu art. 184 reza:
«Os cargos públicos sao acessíveis a todos os brasileros, obser
vados os requisitos que a lei estabelecer».
Donde se vé que nao se pode vedar a um grupo de brasileiros
o acesso a cargo público pelo simples motivo de nao possuir diplo
ma fornecido por estabelecimento oficial, quando a existencia dos
estabelecimentos particulares é reconhecida pela própria ConsUtuicáo
Federal no seu art. 167. Fora da Guanabara, qualquer jovem diplo
mada por escola normal pode pleitear colocagSo no magisterio oficial.

2. tJm confronto...

Finalmente, para a orientagáo de quem deseje proferir


um juizo objetivo sobre a Lei de Diretmes e Bases, parece
oportuno oferecer um confronto entre ésse Plano e dois ou-
tros documentos que norteiam a democracia no Brasil: a Cons
tituicáo Nacional de 1946 e a Dedaragáo Internacional dos
Direitos do Homem, promulgada pela Organizacáo das Na-
góes Unidas (ONU) aos 10 de dezembro de 1948.

— 402 — '
«DIRETRIZES E BASES» DA EDUCACAO

A fólha anexa apresenta ésse confronto, transcrito (após adapta-


q&o necessária) da revista «Presenca» n* 6, marco de 1961 (Rúa Mi
guel Lemos 97, Rio de Janeiro, GB).
A guisa de complemento da tabela anexa, pcde-'se observar ainda
o seguinte:
O Protocolo Adicional da Convencáo Européia dos Direitos do
Homem, firmado em 1952 pelo Conselho da Europa, estipula :
«Art. 2. O Estado, no exercicio das fung5es que assumir nos
dominios da educacao e do ensino, respetará o direito dos pais de
assegurar essa educacüo e ésse ensino de acordó com suas convicgóes
religiosas e filosóficas».
A XVIII Conferencia Internacional de Instrucao Pública promo
vida pela UNESCO e pelo Bureau Internacional de Educacáo em
Genebra (julho de 1955) dispos :
«Convém coordenar esforcos para outorgar todo o auxilio ao en
sino particular, quer se trate de subvengoes ou subsidios de doagáo
de equipamento ou de material escolar, de cessáo de pessoal de en
sino público, de auxilio social a cargo dos poderes públicos, etc.».

Estes poucos dados contribuiráo para evidenciar a orien-


tagáo sadia que inspirou o projeto de «Diretrizes e Bases da
Educagáo». Na hora atual pode-se dizer que representa o pen-
samento democrático e cristáo da nagáo brasileira.

CORRESPONDENCIA MIÜDA
APAVORADO (Sao Paulo): 1,) "Havendo pecado muito, tenho pa
vor á morte e ao juízo particular. Que fazer ?"
O temor perante o justo juízo de Deus é sempre salutar, quais-
quer que tenham sido as circunstancias de nossa vida passada. Verifica-
-se mesmo que, quanto mais urna alma, é justa, tanto mais é consciente
do contraste que existe entre Deus e o homem, e tanto mais indigna
se senté de comparecer diante do Altíssimo.
Contado o temor (e, muito menos, o pavor) nao deve definir de
maneira peremptória a nossa atitude perante Deus, tornando-a abatida
e melancólica.
Se tememos, é por grasa de Deus que tememos, ou seja, poique o
Espirito Santo está agindo em nossa alma, atraindo-a a Si. Em conse-
qüéncia, sejamos felizes por conceber ésse santo temor, e procuremos
aproveitar zelosamente da graga do tempo presente e do restante de
nossa vida terrestre para remir as culpas passadas mediante obras boas.
Se doravante nao opusermos deliberada resistencia á graga de Deus,
poderemos enfrentar a morte com tranqüilidade, pois Deus nao se deixa
vencer em generosidadej Ele perdoa a todos, todas as vézes que Lho pe
camos com um coragáo sinceramente contrito.
Por eonseguinte, recupere a paz, caro amigo. Procure viver na gra
ga de Deus, e utilize ciosamente as oportunidades de praticar a virtude
que o Senhor nao deixará de lhe proporcionar para o futuro.

2) "Tenho assistido a batizados e funerais, parte celebrados em


latim, parte em portugués. Por que nao há uniforcnidade nesse setor ?"
—- Eecentemente, a Santa Sé autorizou a celebragáo de parte dos
ritos da S. Liturgia em língua vernácula, a fim de facilitar a partici-
pagáo dos fiéis, mormente quando estes sao interpelados pelo ritual e

— 403 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 45/1961

incitados a responder. É o que se dá justamente na administracáo do


batismo (onde se procede a um questionário acompanhado de exorcis
mos e oracóes correspondentes). É o que se dá também em certas pas-
sagens dos ritos do matrimonio, da uncao dos doentes, e dos funerala.
O ritual bilingüe, portante, é normal; só se usa o ritual meramente
latino onde os novos formularios ainda nao tenham chegado. É possíyel
que em breve se amplié mais ainda o emprégodo vernáculo na Liturgia;
estamos provávelmente numa fase de transicáo.
UM CONTESTADO (Rio): O artigo ao qual V. S. alude, é ten
dencioso; nao pode portanto ser tomado como fonte de informacoes.
Sobre o sentido da devosáo aos santos, V. S. encontrara urna ex-

^^"res^i^dafcaSSó^ ¿ -P. B." 13/1959, qu. 5 Os pro-


cessos de canonizacáo datam do séc. X apenas; antes desta época, era
a voz do povo cristáo quem espontáneamente devotava aos justos fale-
cidos o título e as honras de «santos". Há, portanto, muitos santos a
respeito dos quais a autoridade infalível da Igreja nunca se pronunciou.
explícitamente; pronunciar-se-á caso haja motivo para isto (abusos ou
verificacáo de que falta serio fundamento histórico): •
A propósito de Sta. Filomena- em particular, veja "P. R." 44/1961,
qu 4. Sobre Sao Dimas, esperamos escrever resposta mais longa em
"P. R.".
UM CATÓLICO (Sao Paulo): A fim de colhér informacoes pre
cisas sobre os estudos exigidos de quem se senté tardíamente chamado
ao sacerdocio, queira dirigir-se ao R. P. Reitor do ''Seminario Santo
Cura d'Ars": Freguesia do 6 (Vila Albertina), Carxa postal 8582, Sao
Paulo (SP); tel.: 51-8494. . ..
Os Superiores do Seminario saberáo levar em coaita as circunstan
cias exatas do caso apresentado. A distancia, nao podemos devidamente
prever as normas.
LUCIO (Rio): As dúvidas de V. S. melhor se resolveriam num
coloquio oral; queira dispor (tel.: 23-4226).
Aos nossos caros consulentes lembramos que, embora muito deseje-
mos responder a todos, nao nos é possível fazé-lo sempre através das
páginas de "P. R.". Por isto, se nao nos mandam algum enderéco, cor-
rem o risco de ficar sem resposta.
D. ESTÉVAO BETTENCOURT O.S.B.

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
. Aos nossos amigos pedimos a bondade de aceitar a «ova lista de
presos de "P. R.", que entrou em vigor a 1' de agosto de 1961, ditada
pela elevagao geral do custo de vida:

^Sra%nuaidei96l() C* S!£o mais o porte respectivo


Número avulso de 1961 Cr| 30,00
Número de ano atrasado Cr| d&,uu
Colecáo encadernada de 1957 .... Cr$ 400,00
Col. encadernada de 1958, 1959, 1960 Cr$ 550,00
RpnACSO . ADMINISTKACAO
Ttl268« R. Eeal Grandeza, 108 —Botafogo
tSS? Tel. 26-1828 - Rio de Janeiro

Você também pode gostar