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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIN-E

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESErsTTAQÁO
DA EDIQÁO ON-LINE
Diz Sio Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confisca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO 111

35
ÍNDICE

Pég.
i. filosofía e religiao

1) "Existe realmente o que se chama Direito natural, isto


é, direitos e deveres decorrentes da natureza humana como tal?

Somos freqñentemettte levados a crer que as leis soñáis só


tim fundamento na vontade do legislador humano, podendo por
isto variar a gasto do menino" 4í3

II. DOGMÁTICA

2) "Quais os fundamentos tto aogmn da Asxuncao corporal


de María aos céus ?" 451

3) "Nao é verdade que o dogma da Assnncao de María foi


condenado pelo Papa Sao Gelásio no século V ?" Í58

III. MORAL

i) "HA quem fale de respeito ao corpo humano, principal


mente no se tratar da prálicn do amor. Em que se bnscia esta
honrosa apreciacao do corpo ?

Seria possivel daí deduzir alguma conclus&o sobre a estima


do esporte ?" j,63

5) "Quisera urna patarra de esclarecimento sobre a inas-


turbacáo, Há médicos que a aprovam, ao passo que os mora
listas a condenam" ¿72

IV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

O) "Qiuil a origetn da Rosario ?

E como se poderia justificar tal forma de oracáo, em. que a


rotina e o mecanicismo tanto tendem a prevalecer ?" U77

CORRESPONDENCIA MIÚDA (a ac&o de gracas após a Missa) 4.*3

COM APROVA^AO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano III — N' 35 — Novembro de 1960

I. FILOSOFÍA E BELIGIAO

PEDRO (Rio de Janeiro):

1) «Existe realmente o que se chama Direito natural,


isto é, diratos e deveres decorrentes «la natureza humana
como tal?
Somos freqüentemente levados a crer aue as leis sociais
só tém fundamento na vontade do legislador'humano, podendo
por isto variar a gósto do mesmo».

Em nossa resposta, averiguaremos primeramente o que se


entende por «Direito natural»; a seguir, esbocaremos o histórico
da questao proposta, para poder com seguranca asseverar algo sobre
a existencia de um Direito dito «natural».

1. Que é o Direito Natural?

1. Nao raro empregam-se indiferentemente as expressóes


«lei natural» e «Direito natural». Faz-se mister, porém, distin-
gui-las.
«Lei natural», em Moral, vem a ser o conjunto de normas
que, impregnadas na natureza humana desde a sua origem,
encaminham o individuo para o seu Fim Supremo ou a bem-
-aventuranga eterna; essas normas tém por objeto todo e qual-
quer tipo de bem que o homem possa praticar na térra: assim
«amar a Deus sobre todas as coisas, nao desesperar da Provi
dencia Divina, nao matar, nao roubar, etc.».
Quanto ao «Direito natural», ele coincide com urna parte
ou um aspecto apenas da lei natural: visa únicamente ésse
tipo de bem que é a justica, ou seja, as relagóes do homem
com o seu semelhante. O Direito regra, sim, o intercambio de
individuo humano com individuo, de individuo com grupo, e
de comunidade com comunidade. Define-se, por isto, o Direito
natural como sendo o conjunto de normas impressas na natureza
humana, a fim de que realize adequadamente a sua vida social
ou comunitaria na térra.

Desta conceituacáo decorrem algumas conseqüéncias importantes:


1) o Direito tem por objeto atos externos e visiveis, que interes-
sam nao sómente ao agente, mas também a outras pessoas; o Direito
pode mesmo abstrair das disposicóes internas do sujeito, considerando

— 443 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 1

apenas a repercussáo exterior dos seus atos (daí o porigo de forma


lismo vazio ou farisaísmo no cultivo extremado do Direito). — A
Moral, ao contrario, tem por objeto nao sómente os atos externos,
mas também e principalmente os atos internos do individuo; ela
julga as intenc,5es de quem age, os seus próprios pensamentos e afetos.
2) O Direito, por causa da sua repercussáo social, tem sempre
anexa a si urna sanciío temporal: compreende-se que a sociedade exerga
certo controle sobre os cidadáos para que observem as normas do
Direito, pois a comunidade pode exigir que alguém ñas suas relacoes
com o próximo se comporte como deve. — A Moral, ao contrario,
nao está por si sujeita ao controle da comunidade: esta nao pode
obrigar alguém a ser intrínsecamente bom; ninguém se torna bom
por violencia da policía. Alguém pode, sim, ser constrangido pelo
Direito público a prestar assisténcia material aos seus genitores, mas
nunca poderá ser obrigado a tomar em relacáo a éles urna atitude
interior de piedade filial.
Em suma, dir-se-á: a Moral visa diretamente a consciéncia do
individuo, ao passo que o Direito contempla o comportamento externo.
Contudo nem em teoria nem na prática se pode acentuar rígidamente
esta distincáo, pois há muitas virtudes que por si parecem nada ter
de comum com a justica e o Direito (como a temperanca, a prudencia),
contudo vém a ser indiretamente objeto da justiga e, por conseguinte,
do Direito; além disto, o cumprimento prático de um dever jurídico
permanece sempre imperfeito, se nao é animado pela atitude interior
(moral) correspondente; assim o filho que dá seu tributo financeiro
aos pais, sem, porém, os reverenciar devldamente, aínda nao realiza
plenamente o seu papel.

2. Ao lado do Direito natural, coloca-se o Direito positivo,


que é o conjunto de normas sociais direta e livremente conce
bidas pelos homens em vista do bem comum (... da familia,
da nagáo, da sociedade internacional). Como se compreende,
essa legislagáo, a fim de atingir os seus objetivos, pode e deve
variar dentro de cortos limites, adaptando-se as circunstancias
de vida de cada povo e cada época. Ora é justamente éste fato
que dá origem ao problema focalizado no cabecalho do presente
artigo: será que tais variagóes dependem únicamente do arbitrio
dos legisladores humanos, de sorte que nada haja de perene no
Direito positivo e tudo aquilo que hoje é tido como legal possa
amanhá ser declarado ilegal, e vice-versa?
Em demanda de solugáo para ésse problema, passemos a um

2. Esbógo histórico da questáo

Foi muito comum entre os povos, no decorrer dos tempos


a acepcáo de que as leis que regem as relagóes dos homens
entre si, nao dependem exclusivamente da vontade do legislador,
mas tém fundamento mais remoto: fundamento na própria
natureza do homem e dos elementos que o cercam. Por sua
vez, ésse fundamento natural ou essa lei natural foi, desde
remotas épocas, associada ao conceito de Deus, Autor da natu-

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EXISTE UM DIREITO NATURAL?

reza, e, em particular, da natureza humana. Em conseqüéncia,


as normas do Direito público sempre tíveram, segundo o teste-
munho comum dos povos até a Idade Moderna, um caráter de
absoluto nao sujeito ao bel-prazer do legislador humano.

1. Nao nos deteremos sobre a mentalidade dos povos primitivos,


para os quais toda a legislacáo, tanto religiosa como civil, se derivava.
em última análise, da Divindade, geralmente concebida como «o
Primeiro Pai» ou «o Pai comum» (Urvater, na linguagem técnica
alema).
2. Entre os gregos clássicos, léz-se ouvir contra a concepgáo
tradicional urna serie de pensadores que estabeleciam antitese entre
a natureza (Physis, Moira) e a leí (Nomos), como se as lels vigentes
na sociedade nao tivessem fundamento algum na natureza do homem
e das coisas ou como se dependessem únicamente do capricho subje
tivo do legislador; as categorías de «justo» e «injusto» dever-se-iam
apenas a convencao humana artificial.
Urna das expressOes mais típicas désse modo de pensar é a
famosa sentenca do sofista Protágoras (t415 a.O: «O homem é a
medida de tedas as coisas» (no diálogo de Platáo, Teeteto 151s); tal
medida, em última análise, vinha a ser, conforme Protágoras e sua
escola, o utilitarismo e o hedonismo (a procura do gozo).
Contudo as proposigfies relativistas provocaram a reacao de auto
res que reafirmaran! em tom aínda mais consciente a tese tradicional
segundo a qual a última fonte do Direito é algo de objetivo, indepen-
dente do parecer volúvel dos homens.
Haja vista, entre outros textos, a scguinte passagem de Sófocles
na sua peca Antigone (442 a. C.): o tirano Creonte quer fazer preva
lecer a sua arrogancia ou o seu desrespeito á lei, em detrimento de
Antigone inocente; éste entáo resolve apelar para «as leis nao escritas
e indestrutíveis dos deuses,... cuja existencia nao data de hoje nem
de ontem, mas é de todos os tempos» (Antigone 452-457).
Nos sistemas de PlatSo (t347 a.C.) e Aristóteles (t322 a.C),
esbocou-se claramente a nogáo de um direito fundamental, indepen-
dente do arbitrio humano. Em particular, Aristóteles realcou a distin-
Cño entre o que é justo pela natureza mesma das coisas (isso seria
sempre e em toda parte válido) e o que é justo por efeito de urna
lei positiva (seria variável); cf. Eth. Nicom. V 7 [10] 1; Ret. I 13,2.
Segundo os estoicos, a justica é ditada pela reta razao, reta razáo
que anima tanto o homem quanto o universo, constituindo a natureza
mesma das coisas e dando estabilidade ás leis do comportamento
humano.
3. Os juristas romanos em geral adotaram as concepcóes da
filosofía grega, reconhecendo a existencia de um Direito Natural.
Como porta-voz do pensamento comum, baste citar aqui Ulpiano
(t228): «Ius naturale est quod natura omnia animalia docuit. — O
Direito natural é aquéle que a natureza ensina a todos os seres vivos»
(fragm. I § 3; Dig. II).
4. O Cristianismo, sobrevindo ao mundo da cultura antiga.
corroborou a nocáo de Direito natural, aprofundando-a á luz do con-
ceito de «lei eterna» existente em Deus, como se verá adiante, no
§ 3 desta resposta.

5. O séc. XVI, porém, época do Humanismo, deu inicio


a nova fase na historia do Direito, fase em que o racionalismo

— 445 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960. qu. 1

lavrou a sen tenga de auto-destruigáo dos próprios valores


humanos.
O processo se deu por etapas.
A primeira fase de dissolucáo foi marcada pelo arrefeci-
mento da fé no sobrenatural. Já que esta vacilava, muitos
pensadores (católicos, protestantes, e até mesmo «independen-
tes») procuraram demonstrar a existencia do Direito natural
(da qual nao queriam abrir máo) abstraindo de Deus ou mesmo
admitindo a hipótese de que Deus nao existisse.

Um des mais lamosos autores neste aíá foi o iurista holandés


calvinista Hugo Grócio (1583-1645). o qual, supondo a nao-existéncia
de Deus (suposicSo absurda, afirmava ele), procurou basear seu
sistema completo de Direito natural e internacional únicamente sobre
a razáo humana. Conseqüentemente assim definía o Direito natural
(«ius naturales):
«Dictatum rectae rationis indicans actui alicui, ex eius conve
niente aut disconvenientia cum ipsa natura rationali ac sociali, inesse
moralem turpitudinem aut necessitatem moralem. — Ditado da reta
razáo que, tendo analisado a harmonía ou a desarmonia de determi
nado ato com a natureza racional e social do homem, julga ser tal
ato ou moralmente torpe ou moralmente necessário (oportuno)»
(De iure belli ac pacis 1625 1. I c. 1 § 10,1).
O Direito natural é imutável, acrescenta Gróc'o, porque nem
mesmo Deus poderla íazer que «o que é por si mesmo mau, delxe
de ser mau (quod intrínseca ratione malum est, malum non sit)»,
ibd. § 10,5. Postos estes principios, o jurista déles derivava a inviola-
bilidade dos tratados e pactos («cum iuris naturae sit stare pactis»,
ob. cit. proleg. § 15), assim como a plena validade do direito positivo
(«iura dvilia») e a legitimidade dos governos existentes (como se
estes fdssem resultantes de um pacto ou consentimento inicial dos
homens entre si).
Grócio encontrou numerosos discípulos por todo o decorrer dos
séc. XVn/XVIII. O seu sistema, porém, pelo fato mesmo de abstrair
de Deus, tomando como fundamento último de todo o Direito a
natureza humana, estava fadado a dissolver-se; nao levando em conta
a nocáo básica de Deus, os homens nem sequer salvariam a de
Direito natural, direito sólido e construtivo da sociedade.

Com efeito (e aqui comega a segunda etapa da evolugáo


dissolutória), os juristas dos séc. XVIII foram propondo como
ditames da natureza humana as aspiragóes pessoais e arbitra
rias que cada qual nutria, por vézes inspirado em circunstancias
políticas contingentes; o individualismo e o subjetivismo foram
campeando ñas escolas de Direito; em conseqüéncia, houvo
quem afirmasse que a própria vida dos homens em sociedade
é decorrente de um contrato realizado entre individuos cuja
existencia natural e primitiva nada tinha de social.

Haja vista, entre outros, o ensinamento de Th. Hobbes (tl679),


segundo o qual «homo ad societatem non natura, sed disciplina aptus

— 446 —
EXISTE UM DIREITO NATURAL?

factus est (o homem foi adaptado á vida em sociedade, nao por sua
natureza, mas por um artificio de disciplina)»; o estado natural dos
homens seria o de guerra de todos contra todos, possuindo cada um
por sua natureza mesma o direito a tudo, «ius in omnia»; o médo
reciproco, ou seja, a necessidade de paz teria dado origem ao Estado
mediante um contrato pelo qual os individuos, renunciando inteira-
mente ao seu primitivo direito natural, se submetem a um poder
absoluto (cf. The Cive 1642; Leviathan 1651).

Na terceira etapa da dissolucáo, verificou-se urna reagáo


contra o subjetivismo e o individualismo, reagáo, porém, pre
caria. Sim; o chamado «positivismo jurídico» no séc. XIX
afirmou só reconhecer como fonte de Direito a vontade todo-
-poderosa do Estado — doutrina esta que se exprimía em breves
sentencas: «O que o chefe ordena, é sempre justo» ou «O que
nao é regrado (pela lei), nao pode estar em ordem». Mesmo
nos casos em que a aplicacáo da lei positiva acarreta flagrante
injustica, o positivista nao reconhece lei superior para resolver
a situacáo.

O positivismo jurídico é, de certo modo, conseqüéncia das idéias


que Lutero apregoou- ao mundo no inicio da era moderna. Com
eíeito, ensinando que a natureza humana foi totalmente corrompida
pelo pecado dos primeiros país e que o homem está escravizado sob
a concupiscencia, possuindo um «servo arbitrio», e nao um livre
arbitrio, o Reformador alemáo só podia lanear o discrédito sobre a
natureza humana e concorrer para cancelar a nogáo de um Direito
ou de urna ordem reta das coisas derivada das aspiracSes mesmas
da natureza: toda lei civil deveria ser, conseqüentemente, lei positiva,
dependente da vontade do legislador humano.

O termo mais lógico do processo de dissolugáo do Direito


e da Moral foi finalmente atingido no existencialismo contem
poráneo. Jean-Paul Sartre, no seu livrinho «L'existencialisme
est-il un humanisme?», denuncia, com razáo, a posigáo absurda
de todos os pensadores anteriores que, rejeitando a idéia de
Deus, quiseram nao obstante guardar as normas da ética e do
Direito. Na verdade, diz Sartre, tal pretensáo é contraditória:
ou a sociedade reconhece as normas do Direito com seu funda
mento auténtico, que é Deus, ou simplesmente deve rejeitar
qualquer veleidade de moralidade e juridismo, pois tal velei-
dade seria de todo inconsistente:

«O existencialismo op6e-se fortemente a certo tipo de moral


leiga que pretende suprimir Deus com o mínimo de inconvenientes
possivel. Quando por volta de 1880 alguns professóres franceses
tentaram constituir u'a moral leiga, argumentaram mais ou menos
do seguinte modo: 'Deus é urna hipótese inútil e penosa; suprimimo-la.
Contudo, para que haja u'a moral, urna sociedade, um mundo poli-
ciado, é necessário sejam certos valores levados a serio e considerados
de antemáo como existentes; é nécessário haja de antemáo obrigacáo

— 447 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 1

de ser honesto, de nao mentir, de nao espancar a esposa, de gerar


prole, etc., etc.... Vamos, por conseguinte. realizar um trabalhinho
que permita mostrar que tais valores existem, apesar de tudo inscritos
num céu inteligivel, embora Deus nao exista. Com outras palavras:...
nada será alterado, se (declararmos que) Deus nao existe; defrontar-
-nos-emos com as mesmas normas de honestidade, progresso, huma
nismo, e teremos feito de Deus urna hipótese ultrapassada a qual
morrerá tranquilamente e por si mesma'.
Ora o existencialismo, ao contrario, julga ser muito incómodo
que Deus nao exista, pois com Deus desaparece toda possibilidade
de encontrar valores num céu inteligivel; nao pode mais haver bem
algum de antemáo, já que nao há consciéncia infinita e perfeita para
o conceber; em parte alguma está escrito que o bem existe, que é
preciso ser honesto, que é preciso nao mentir, pois precisamente
íicamos num plano em que só há homens. Dostoievsky escreveu:
'Se Deus nao existisse, tudo serla permitido'. Tal é o ponto de partida
do existencialismo» (L'existencialisme est-il un humanisme? 1946,
34-36).
Sem Deus, nao há lei, assegura Sartre com razáo, pois lei bascada
únicamente na vontade ou no bom senso de um homem carece de titulo
auténtico para se impor a outró homem.

O chamado «positivismo jurídico» veio a lavrar destarte


a destruicáo do próprio Direito... Tal é a última palavra da
historia.
O esbóco histórico ácima já nos habilita a considerar com
mais clareza

3. Os fundamentos do Direito natural

1. O homem é, por sua natureza mesma, destinado a


viver em sociedade; nao há quem nao se veja impelido a procurar
seus semelhantes a fim de travar com éles urna comunháo
estável de vida. E isto, por dois motivos principáis:

a) a natureza humana, como ela se encontra em cada individuo,


é incapaz de bastar a si mesma ou de atingir o termo das suas
aspiracóes ¡natas. Com outras palavras: nenhum homem «se realiza»
a sos; precisa, para tanto, do auxilio de outros;
b) existe em cada individuo urna tendencia afetiva que o movc
a associar-se ao próximo.
A comunháo de vida assim suscitada eíetua-se em ámbitos grada-
tivamente mais ampios, isto é, na familia, na tribo, na nacjio e na
sociedade internacional. Ésses tipos de comunháo de vida sao naturais
ou espontáneos ao homem.

Ora «ubi societas, ibi ius», reza o adagio; onde há sociedade,


ai há Direito, isto é, sistema que oriente as relagóes dos homens
entre si, coordenando as tendencias de todos para a consecugáo
do bem comum. Ésse sistema nao pode deixar de ter seus dita-
mes naturais espontáneos, pois as tendencias fundamentáis sao
as mesmas em todos os homens. Em outros termos: assim

— 448 — .
EXISTE UM DIREITO NATURAL ?

como todo ser traz, gravadas no íntimo de sua natureza, as


leis que regem o desenvolvimento de suas atividades, assim
também o homem traz a sua lei natural, que tende a levá-lo
á obtencáo do seu último Fim. Dai dizer-se que existe um
Direito natural.

2. O Direito natural, em última análise, nao é senáo


urna participagáo da Lei eterna ou do conjunto de normas que
a sabedoria do Criador concebeu a fim de encaminhar cada
criatura para o seu Termo devido. Alias, é essa índole de
«participagáo da lei eterna» que comunica ao Direito natural um
valor de «absoluto» ou de «constante» independente da vontade
volúvel dos legisladores humanos.
Quanto ás leis positivas humanas, elas nao sao de todo
autónomas: sua funcáo é a de explicitar e aplicar a casos
concretos os principios gerais contidos na lei natural e na lei
eterna. Tal afirmacáo é ilustrada e comprovada nao sómente
pelos testemunhos da historia referidos no § 1 déste artigo,
mas também pelas seguintes observacóes:

1) a expressáo «lei injusta», nao raramente, na linguagem


cotidiana, aplicada as leis positivas humanas, significa bem que estas
nao constituem a fonte d0 Direito ou da justica; a lei injusta é
precisamente aquela que nao leva na devida conta certas aspirantes
ou exigencias dos individuos, aspirac5es ou exigencias que se fazem
ouvir antes do legislador e que éste deveria ser o primeiro a auscultar.
As leis positivas humanas compete em primeira linha o papel de
traduzir com íidelidade ésses imperativos ditados pela estrutura
natural de cada ser.
Urna comparacáo, por muito grosseira que seja, poderla ainda
elucidar o pensamento: tdda cadeira, por exemplo, tem sua estrutura
própria, que exprime o objetivo e as normas de uso da cadeira; ela
foi, sim, fabricada para servir de assento. A rigor, a cadeira pode
ser utilizada em vista de outro fim; digamos:... para espancar o
próximo. Contudo quem assim utiliza a cadeira, comete um ato de
retorsáo dos valores, contra o qual protestam as leis da arte ou o
pensamento do artífice concretizado no artefato.
Ora o mesmo se dá no setor da natureza humana: nao é licito
ao homem fazer uso arbitrario de suas funcóes naturais (psíquicas
e físicas), pois estas sao regidas por finalidades que nelas foram
profundamente gravadas pelo primeiro Artista ou pelo Criador e que
a vontade humana deve observar respeitosamente para nao cometer
ato hediondo. Assim o objetivo primario da funcáo sexual é a procria-
cáo e educacáo da prole; em vista disto, a natureza exige uniáo
estável e indissolúvel de um varáo com u'a mulher, e exclui o
anticoncepcionismo artificial. A propricdade particular, por sua vez,
é exigencia do desenvolvimento da natureza humana em cada indi
viduo, etc.

2) A fim de salvaguardar a justica ou os direitos das partes


interessadas, é necessário fazer excecSes ás leis positivas. Isto de
novo demonstra que o conceito de justica ou de Direito é mais
ampio do que o de lei positiva; é mesmo anterior á nocáo de lei positiva.

— 449 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960. qu. 1

Destarte aparece váo o sistema do positivismo jurídico,


segundo o qual toda lei e todo direito seriam exclusivamente
dependentes da vontade do legislador. Na verdade — saja
permitido repeti-lo — a éste toca apenas a fungáo de intérprete
da lei eterna ds Deus manifestada através da natureza humana
ou através da lei natural. O homem é criatura, e nao Criador...
até mesmo no plano jurídico!

3. Urna observagáo aínda se impóe: embora se afirme


a igualdade de aspiracóes ¡natas em todos os homens, faz-se
mister reconhecer que nao poucas populacóes viveram, e vivem
aínda hoje, em contradicho ora mais, ora menos flagrante com
tais aspiracóes, principalmente no que diz respeito ao matri
monio (prática da poligamia, do divorcio, do aborto...); a
consciéncia désses povos parece, em grau variável, embotada,
de modo que certas acóes contrarias á natureza sao por éles
toleradas em termos oficiáis e públicos. Que dizer désse fato
á luz dos principios que acabam de ser expostos?
O proceder de tais poyos está longe de significar que nao
há Direito natural; quer dizer apenas que ao homem, colocado
diante de um preceito, fica sempre a liberdade de o seguir
ou nao, a ponto mesmo de poder sufocar, parcial ou totalmente,
os ditames da lei natural. O Autor da natureza, que é também
o Autor do Direito natural, tendo dotado de liberdade o homem,
jamáis a retira; antes, suporta a derrogacáo das leis da natu
reza, a finí de que o homem, destinado a ser livre, nao se veja
rebaixado á categoría de autómato. Contudo, mesmo que as
leis positivas de determinado povo contrariem as leis naturais
(o que se dá quando, por exemplo, permitem o divorcio, o
aborto, etc.), a natureza nao deixa de fazer ouvir a sua voz
de protesto, acarretando na sociedade múltiplos desajustes, tais
como os que acometem os homens de nossos dias.

Em conclusáo, apraz registrar aqui a proclamacáo dos «Direitos


do homem» eíetuada aos 10 de dezembro de 1948 pela O.N.U. em
nome do género humano, proclamacáo que vem a ser em nossos dias
urna afirmacáo pública do Direito natural (embora alguns dos fautores
désse documento tenham intencionado fundar um Direito novo em vez
de reforcar o Direito natural já existente).
A Igreja, por sua vez, sempre cabera a missao de afirmar o
Direito natural, pois a ordem sobrenatural supOe a harmonia natural,
tornando a Esposa de Cristo interessada por tudo aquilo que 6
humano; perante Deus, a Igreja vem a ser responsável pela conser-
vag&o dos valores da própria natureza humana. Era esta concepcao
que Jacques Maritain exprimía ao Papa Pió XII, quando aos 10 de
maio de 1945 se apresentava a S. Santidade como novo embaixador
da Franca junto ao Vaticano; dizia, «em nome simultáneamente dos
católicos e dos náo-católicos..., que, se aqueles veneram em S. San
tidade... o Vigário do Verbo Encarnado e o Cabeca visivel da Santa
Igreja, os outros (náo-católicos) se voltam respeitosamente para o

— 450 —
A ASSUNCAO DE MARÍA AOS CÉUS

Papa como sendo o Defensor do Direito natural, da dignidade humana,


da justica e da caridade do género humano..., valores que mais do
que nunca necessitam... da autoridade moral e dos ensinamentos
universais da voz consagrada a Verdade Divina» (cf. «Documentation
Catholique» 10/VI/1945, col. 427).
Mais precisamente sao focalizadas algumas determinacSes do Direi
to natural em fascículos anteriores de «P. R.»; assim o que se refere a
amor e amor livre. em «P. R.» 13/1959, qu. 1;
divorcio, em 7/1957, qu. 4. 5 e 6;
aborto, em 6/1957, qu. 9: 8/1957, qu. 12; 25/1960, qu. 4;
propriedade particular, em 23/1959, qu. 5;
arte e moral, em 1/1958, qu. 11; 25/1960, qu. 5;
moral leiga. em 5/1958, qu. 8; 7/1958, qu. 5.

II. DOGMÁTICA

EVANGÉLICO (Sao Paulo):

2) «Quais os fundamentos do dogma da Assuncáo corpo


ral de María aos céus?»

O dogma da Assungáo professa que Maria Ssma. se acha


atualmente em corpo e alma na gloria do céu, á diferenga dos
demais justos, cujo corpo ainda aguarda a glorificacáo no dia
do juízo final. Definindo esta proposito a 1" de novembro de
1950, o Sto. Padre Pío XII nao se quis pronunciar sobre urna
questáo conexa, a saber: terá a Virgem Ssma. passado pela
morte e a ressurreicáo antes de entrar na bem-aventuranga
celeste? Ou haverá sido elevada diretamente da vida mortal
para o triunfo eterno? Dado o silencio intencional do magis
terio da Igreja sobre o assunto, fica ao arbitrio de cada fiel
optar pela afirmativa ou pela negativa no tocante á morte e
á ressurreigáo de Maria.

Os documentos mais antigos professam a morte e a ressurreicáo


da Santa Máe de Deus. A Virgem Santíssima nao terá sido isenta
da sorte que o seu próprio Filho quis provar pregado á Cruz; apenas
nao haverá sido sujeita á corrupcao da carne no sepulcro. Assim pensa
ainda hojc a maioria dos teólogos. — Contudo certo número déstes,
principalmente em época recente, julga que a Virgem Ssma. foi
dispensada mosmo do tributo á morte, de tal modo era ela imaculada
ou alheia ao pecado e ás suas conseqüéncias (conseqüéncias das quais
a morte física é urna das primeiras).
A sentenga que atribuí a morte a Maria parece mais fiel tanto
á tradicáo como a certos principios teológicos (se Cristo quis morrer,
dando á morte um sentido redentor, é bem compreensível que Maria.
Intimamente associada k obra de Cristo, tenha também ela morrido).

Antes de analisarmos os fundamentos da crenga na Assun


cáo de María, será oportuno propor urna observagáo referente
ás fontes da fé crista.

— 451 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 2

1. Revelacáo e Tradigao

1. O católico tem consciéncia de que a Revelacáo se fez


primariamente de viva voz, pela pregagáo de Cristo; só por
motivos esporádicos (necessidades imediatas de comunidades
de cristáos do séc. I), alguns aspectos das verdades da fé foram
consignados em cartas e opúsculos, cuja colegáo se chama «o
Novo Testamento». Resta, portante, fora déstes escritos, ou
seja, na Tradigao oral, um cabedal de proposigóes auténtica
mente reveladas, as quais constituem objeto de fé católica.
Cf. «P.R.» 7/1958, qu. 2.

O criterio para se avaliar a genuinidade de urna tradigao é


a sua antigüidade, ou melhor, a origem da mesma nos tempos
dos Apóstelos; conseqüentemente, as afirmagóes de doutrina
e de moral transmitidas (de maneira explícita ou simplesmente
implícita) pelas geragóes cristas desde o séc. I e hoje em día
oficialmente reconhecidas pelo magisterio da Igreja sao tidas
como parte integrante do patrimonio revelado. Ora justamente
entre essas afirmagóes se enumera a da Assungáo corporal de
María Ssma. aos céus.

Na verdade, a Virgem Máe de Dous devo tor terminado os seus


dias na térra depois que estavam redigidos os escritos do Novo
Testamento, excetuados talvez os de Sao Joáo; a quanto parece, todos
os hagiógrafos, a nao ser o quarto Evangelista, deixaram esta vida
antes de Maria. É o que se costuma concluir do fato, geralmente
admitido pelos estudiosos, de que Sao Joáo só se transleriu para a
Asia Menor após a invasáo romana na Palestina (66-70); a sua
estada na Judéia até essa época elucidar-se-ia muito bem se Maria
tivesse permanecido em vida até tal data (ou mais tempo ainda) e
Sao Joáo lhe houvesse prestado a assisténcia íilial que Cristo, ao
morrer, lhe recomendara (cí. Jo 19, 27). Varios autores antigos refe-
rem, sim, que a Virgem Ssma. ficou na térra até avancada idade,
ao passo que Sao Pedro e Sao Paulo, por exemplo, parecem ter sofrido
o martirio no ano de 67, Sao Tiago o Menor o padeceu em 62 (as datas
da morte dos outros Apostólos sao incertas; apenas se pode assegurar
que Sao Joüo sobreviveu a todos, morrendo por volta do ano 100).

O fato de que Maria ainda nao deixara éste mundo quando os


hagiógrafos redigiram a grande maioria (se nao a totalidade) do
Novo Testamento, explica plenamente o silencio da Escritura a respeito
da Assuncao corporal da Virgem. — Ademáis sabe-se que nenhum dos
autores sagrados intencionou escrever urna biografía de Maria Santis-
sima: esta é mencionada no Novo Testamento ünicamente em vista do
Senhor Jesús, ou seja, preenchendo certas atribúleles de Máe do Senhor,

2. Para corroborar o que acaba de ser dito sobre o valor


da Tradicáo oral, váo abaixo citados alguns depoimentos impor
tantes.
Já Sao Paulo, numa passagem do Novo Testamento, exorta:

— 452 —
A ASSUNCAO DE MARÍA AOS CÉUS

«Portanto, irmáos, permanecei firmes e guardai as tradigóes que


de nos aprendestes, seja de viva voz, seja por escrito» (2 Tes 2,15).
Como se vé, o Apostólo equipara o ensinamento oral ao escrito
(parece mesmo antepó-lo), recomendando fidelidade integral a ambos.
Por conseguinte, a íim de que algo pertenca ao depósito da íé revelada,
nao é necessário haja passado explícitamente para as páginas da
Biblia Sagrada.

Semelhante afirmacáo se encontra sob a pena de antigos


escritores cristáos.
Assim ensina Sao Joáo Crisóstomo (f 407), ao comentar
o trecho paulino citado atrás:
«Por conseguinte, é claro que os Apostólos nao nos entregaran!
tudo por via da Escritura, mas muitas proposigóes ficaram fora desta,
merecendo igualmente a nossa fé. Por isto devemos considerar digna
de íé a tradicSo da Igreja. £ tradlcSo; nao quelras pesquisar ulterior
mente» (In II Thes h. 4 n. 2).
Com a sua írase final, o S. Doutor quer dizer que o ensinamento
transmitido de viva voz desde os tempos dos Apostólos tem autoridade
por si mesmo, dispensando-nos de procurar ulterior fundamento.

Sao Basilio (t379), por sua vez, professa:

«Dentre os dogmas conservados na Igreja, recebemos alguns por


via de ensinamento escrito; outros foram a nos transmitidos pelo
misterio da tradigáo apostólica. Uns e outros gozam da mcsma auto
ridade para serem por nos venerados» (De Spiritu Sancto 27,66).

3. A luz do que foi exposto, verifica-se que urna «definigáo de


dogma» (tal como a que Pió XII fez em relacáo á Assuncáo corporal
de Maria) nao significa «criaeáo de novo dogma». Nao se criam
novos dogmas, pois a Revelagáo se encerrou com a morte do último
dos Apostólos (Sao Joáo, no ano 100 aproximadamente). Urna deíini-
gao dogmática vem a ser apenas a afirmagño solene e extraordinaria
de alguma proposigáo já contida no depósito da fé e explícita ou
implícitamente professada por toda a Cristandade. O motivo pelo
qual o magisterio da Igreja, de quando em quando (sem plano precon
cebido), procede a urna definicáo solene, é geralmente o surto de
erro ou controversia em torno de tal ou tal ponto dogmático. A fim
de remover mais eficazmente o perigo de deturpacáo da fé, a Santa
Igreja afirma entáo de maneira extraordinaria, pela voz de seu
Cabeca visível ou de um concilio ecuménico, a sentenca da verdade;
tal intervencáo, porém, constituí sempre regime de excegáo.
Isto se deu também no caso da definigáo da Assungáo corporal
de Maria: já era objeto da fé comum dos cristáos; em 1950, porém,
foi solenemente definida, a fim de lembrar ao mundo o destino trans
cendente e o valor religioso do corpo humano numa época em que
éste é vilipendiado pela imoralidade dos costumes e pelas terriveis
armas de guerra modernas. Cf. «P. R.» 23/1959, qu. 4.
Em conclusáo, verifica-se que a definigáo proferida por Pió XII
em 1950 nao foi algo de decisivo na historia do dogma da Assuncáo,
pois éste já era comumente professado pelo povo de Deus. E, para
que fósse legítimamente professadc, vé-se que nao é necessário haja
sido explícitamente consignado na Sagrada Escritura, mas basta que
seja tradigáo de origem apostólica.

— 453 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 2

É na base déstes principios que se coloca e resolve a


questáo dos fundamentos revelados do dogma da exaltado de
María aos céus. Qualquer outra posigáo do problema é falsa,
pois nao leva em conta os trámites pelos quais Deus houve
por bem revelar-se aos homens (fé-lo essencialmente por via
oral; acidental e parcialmente, por via escrita).
Sendo assim, indagaremos abaixo em que sentido se pode
falar da origem apostólica da tradigáo referente a Assungáo
de María. A seguir, procuraremos averiguar o que a S. Escri
tura afirma em consonancia com tal tradigáo.

2. A Tradigáo dos escritores cristaos

1. Nao se pode apontar urna serie de textos assuncio-


nistas que retroceda de época em época até a era apostólica;
os quatro primeiros séculos pouca coisa oferecem que mere-a
consideragáo neste particular. Sendo assim, de tal período
destacaremos apenas o seguinte testemunho de S. Epifánio
(1403), bispo de Cipro:

«Sondem (os leitores) as Escrituras. Nelas ná0 encontrario o


relato da morte de María, nem a resposta as questóes 'se ela morreu
ou nao morreu1, 'se ela foi sepultada ou nao'... A Escritura guardou
a respeito do íim de María um silencio completo por causa da magni-
tude do prodigio, a íim de nao provocar excessiva surprésa no
espirito dos homens. Quanto a mim, nao ouso falar désse prodigio;
guardo-o em minha mente, e calo-me... Nao digo que María tenha
permanecido imortal, mas também nao afirmo naja morrido...
Se a Virgem Ssma. morreu e foi sepultada, seu desenlace foi
glorioso; a morto a encontrou pura, e sua coroa foi a da vlrgindade.
Se lhe tiraram violentamente a vida, conforme o que está escrito:
'E urna espada traspassara a tua alma', ela refulge entre os mártires,
e seu corpo muito santo é proclamado bem-aventurado; por ela. com
efeito, a luz se levantou sobre o mundo. Também pode ter ela perma
necido em vida, pois a Deus nada é impossivel... Na verdade, ninguém
sabe qual foi o fim da vida terrestre da Virgem» (Haer. 78. 11. 24).

Éste texto nao deixa de ser significativo: atesta como entre os


cristaos do séc. IV tres opinides eram professadas com referencia ao
fim de Maria: a Virgem Ssma. ou teria morrido de morte natural ou
haveria sido martirizada ou teria sido preservada da morte. O próprio
S. Epifánio nSo ousava afirmar que a Máe de Deus houvesse morrido,
muito menos... que houvesse conhecido a corrupcüo do sepulcro.
Ésto santo bispo, que conhccia bem a Palestina e a Cidade Santa,
n3o conseguirá colhér noticia certa sobre a morte e o lugar de sepul-
tamento da Virgem Ssma. (íoi súmente por volta de 550 que se
comecou a apontar o «túmulo de Maria» em Jerusalém). «Pode-se
dizer que S. Epifánio concebeu o problema da Assuncáo. Se nao
o resolveu, deixou ao menos entrever possivels solueñes... é por
isto que seu testemunho se reveste de importancia capital tanto para
o historiador como para o teólogo* (M. Jugie, La Mort et l'Assomption
de la Sainte Vierge. Vaticano 1944, 80s).

— 454 —
A ASSUNCAO DE MARÍA AOS CÉUS

2. Em 431 na cidade de Éfeso (Asia Menor) realizou-se


o 3» concilio ecuménico, o qual, para incutir que em Cristo só
havia urna Pessoa (a Pessoa Divina), declarou ser Maria Ssma.
a Theotókos ou a Máe de Deus (ulteriores esclarecimentos
sobre éste assunto se encontram em «P. R.» 6/1957, qu. 3).
O concilio de Éfeso suscitou considerável incremento da
teología mañana e do culto á Santa Máe de Deus. De entáo
por diante, no Oriente e no Ocidente foram-se multiplicando
os testemunhos tanto de escritores cristáos como da Liturgia
a respeito da exaltagáo de Maria aos céus; esta, sem grande
demora, veio a ser comumente professada pela Cristandade.
3. Note-se agora um fato importante: os bispos e fiéis,
ao afirmarem após o concilio de Éfeso o dogma da Assungáo,
procuravam justificá-lo, ou seja, baseá-lo sobre certos princi
pios dogmáticos. Ora quem analisa ésses principios, verifica
que já eram reconhecidos pela Igreja antiga, de tal modo que
a proposigáo da Assungáo se apresenta qual mera explicitagáo
de um depósito doutrinário sempre possuído pelos cristáos: a
profissáo de fé na Assungáo nao vem a ser mais do que urna
das facetas do desenvolvimento de um embriáo ou daquele
grao de mostarda com o qual Cristo compara o S. Evangelho
(cf. Mt 13, 31s). Em outros termos, diremos: afirmando outras
proposigóes de fé, os cristáos dos primeiros séculos já afirmavam
implícitamente a exaltagáo corporal de Maria Ssma. aos céus.

E quais seriam ésses principios básicos para a teología da


Assuncáo?
Podem-se reduzir aos tres seguintes:

a) ,o principio da restaiiracáo. Maria e Eva se contrapoem na


historia sagrada: aqueta restaura o que esta perdeu. Ora Eva, pelo
pecado, acarretou a morte para o género humano; Maria, por conse-
guinte, deve ter obtido (por dom de Cristo, sem dúvida) a Vitoria
sobre a morte sobre a morte que se caracteriza por reduzir o
corpo á poeira (cf. Gen 3,19);

b) o principio da Matemidade Divina. Maria e Jesús, na quali-


dade de Máe e Filho, constituiam urna só carne. Nao convinha,
portanto, que a carne de Maria sofresse a dissolucáo no seio da
térra da qual fóra isenta a carne de Cristo. — Além disto, a comunháo
entre Maria e Jesús era táo intima que convinha concedesse Cristo
á sua Máe Ssma. a Redencáo consumada antes de a dar ás demais
criaturas. Ora a Redencáo consumada implica a restauragáo do próprio
corpo humano;

c) o principio da virgindade milagrosa. A virgindade, conforme


os antigos, significa vitória sobre a corrupeáo da carne, Vitoria que
no seu grau perfeito excluí a própria deterioracáo do corpo no sepulcro.

Os tres principios ácima já eram formalmente enunciados pelos


escritores e teólogos des quatro primeiros séculos: assim, no séc. II,

— 455 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 2

por S. Justino (t 165, aproximadamente) e S. Ireneu (t 202, aproxima


damente); no séc. III, por Tertuliano (tdepois de 220), Orígenes
(t253/4), S. Gregorio Taumaturgo (Í270, aproximadamente); nos
séc. IV e V, por S. Ambrosio (t397), S. Epifanio (t403), S. Jerónimo
(t420), S. Agostinho (t430).
Esta ébservacáo — repitamo-lo — permite concluir que o dogma
da Assuncao, em seus fundamentos, sempre pertenceu ao depósito da
Revelacáo.

4. Aconteceu que em meados do séc. XVIII os fiéis


comegaram a pedir a Santa Sé a definigáo solene desta verdade
de fé. O primeiro a fazé-lo foi o Pe. Shguanin (t 1769), servita.
As petigóes se foram tornando cada vez mais numerosas e
significativas, até que Pió XII, atendendo aos desejos de 113
Cardeais, 2523 Patriarcas, Arcebispos e Bispos, 82.000 sacer
dotes e religiosos e de mais de oito milhóes de fiéis, resolveu,
a 1' de maio de 1946, escrever a todos os bispos urna carta
circular em que lhes pedia o parecer sobre a «definibilidade»
(possibilidade teológica de se definir) da Assungáo de María.
Finalmente diante dos votos favoráveis da hierarquia e dos
fiéis, após minuciosos estudos de historia do dogma empreen-
didos por teólogos do mundo inteiro, e principalmente após
haver invocado a assisténcia do Espirito Santo, Pió XII houve
por bem declarar solenemente que pertence ao depósito da fé
crista o fato de que a Virgem Ssma., «ao terminar o currículo
desta vida, foi em corpo e alma elevada á gloria celeste».
É, em última análise, a voz do magisterio (ordinario e
extraordinario) da Igreja que funda a certeza do dogma da
Assungáo ou que garante a autenticidade da tradigáo oral
referente a éste assunto. O Espirito Santo é a alma do Corpo
Místico de Cristo ou da Santa Igreja; nao terá permitido que
esta se naja unánimemente engañado durante quinze séculos,
professando a exaltagáo final de María, nem terá deixado que,
confirmando táo vetusto testemunho do povo cristáo, o Sto.
Padre o Papa Pió XII haja ensinado e imposto á fé da Cristan-
dade urna proposigáo errónea. Cristo nao teria enviado o Es
pirito Santo sobre os Apostólos nem lhes teria prometido a
sua própria assisténcia até o fim dos séculos (cf. Mt 28, 20),
se nao fósse justamente a fim de que a hierarquia da Igreja
soubesse devidamente discernir verdade e erro ñas afirmagóes
sucessivas do povo cristáo através da historia.
É, portante, a voz oficial da Igreja, depositaría do ensi-
namento oral de Cristo e dos Apóstelos, que no caso da Assun
gáo de María supre a sobriedade da revelagáo escrita.
Nao obstante, torna-se oportuno averiguar até que ponto
o fato da exaltagáo corporal da Virgem Ssma. possa estar
insinuado pela Escritura.

— 456 —
A ASSUNCAO DE MARÍA AOS C6US

3. O testemunho bíblico

Os textos da Biblia, interpretados únicamente segundo os criterios


da lingüistica, nao sugeririam conclusáo segura a respeito da exaltacáo
de Maria; guiado, porém, pela fé na Revelacáo total (a qual é expressa
pelo magisterio da Igreja), o leitor pode descobrir na Sagrada Escri
tura os germens désse dogma, germens que ele de outro modo talvez
nao percebesse.
Feita esta observacáo, passamos a analisar as quatro passagens
bíblicas que mais costumam ser explanadas no tratado da Assuncáo:
Gen 3,15; Le 1,28; 1 Cor 15,20-23 e Apc 12,ls.

a) Gen 3,15. Disse o Senhor Deus á serpente, após o pecado de


Adáo e Eva:
«Porci inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendencia
e a déla. Esta te ferirá a cabega e tu lhe íerirás o calcanhar».
No sentido pleno, a descendencia da mulher aqui mencionada é o
Redentor, Jesús Cristo, o único dentre os íilhos da mulher que obteve
perfeita vitória sobre o demonio (em Cristo, alias, todo o género
humano se achava recapitulado, como em um novo AdSo). Por conse-
guinte, a mulher referida em Gen 3 vem a ser, no sentido pleno,
Maria Ssma., a Máe do Redentor (também Maria, na qualidade de
nova Eva, recapitulava em si toda a humanidade).
Pois bem; o texto promete ao Redentor e á sua Máe Ssma. a
plena vitória sobre a serpente, isto é, sobre o demonio. Ora o triunfo
sdbre o Maligno compreende, de ac6rdo com a doutrina de Sao Paulo
(Rom 4,25; 5,12-21; 6,23; 8,19-23; 1 Cor 15,3.24s.54s), a vitória só'jre
o pecado e suas conseqüéncias, entre as quais está a morte. Por
conseguinte, se Maria, por sabio designio da Providencia, teve que
passar pela morte, seu corpo terá permanecido isento da corrupeáo
do sepulcro, pois esta nunca é honrosa e fecunda (ao passo que a
morte é por vézes honrosa e fecunda). O corpo virginal de Maria,
do qual o Redentor tomou carne e sangue, nüo haverá sido presa dos
vermes da térra como se fósse «carne de pecado» (Rom 8,3). Donde
se segué que, se Maria morreu, deve ter ressuscitado após breve
intervalo, e a sua ressurreicao terá sido lógicamente coroada pela
exaltacáo, em alma e corpo, aos céus. — É éste o texto bíblico mais
importante para o dogma da Assungáo.

b) Le 1,28: «Ave, cheia de graga, o Senhor é contigo, bendita


és entre as mulheres», diz o anjo a Maria no momento da Anunciagáo.
Maria é dita pelo emissário celeste «cheia de graga», como se
éste título fóra o sen próprio nome. A graga, por conseguinte, encheu-a
som limitacjio; o que, entre outras coisas, quer dizer:... encheu-a
desde o primeiro instante da sua existencia, fazendo-a imune de
qualquer pecado e, por conseguinte, imune do dominio da morte, já
que a morte domina os homens em conseqüéncia do pecado. Destarte
a Virgem Imaculada deve ter sido igualmente a Virgem vitoriosa
sobre a morte no íim do seu currículo terrestre.
c) 1 Cor 16,20-23: «Eis que Cristo ressuscitou dentre os mortos,
primicias dos que morreram. Com efeito, por um homem veio a
morte, e é por um homem que vem a ressurreigSo dos mortos. Como
em Adáo todos morrem, assim também em Cristo todos reviveráo,
mas cada um em sua ordem: Cristo como primicias; depois os que
fórem de Cristo, por ocasiáo de sua vinda».
No texto ácima. Sao Paulo, recorrendo a urna imagem agrícola,
distingue duas categorías de justos que ressuscitam: as primicias

— 457 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 3

(Cristo, já ressuscitado) e o restante da messe (os cristáos, que


ressurgiráo no íim dos tempos). — Cristo constituí as «primicias»
porque, conforme Sao Paulo, é principio da vida nova (em oposicáo
a Adáo, que foi principio de mor te); ora algo de análogo se pode
dizer de María, pois a Virgem Ssma. (por graca de Cristo) se
'tornou, do .seu modo, principio de vida (em oposicáo a Eva, a qual
foi principio de morte para todo o género humano). Por conseguinte,
á semelhanca de Cristo, também Maria deve ter ressuscitado ou
vencido plenamente a mortp antes dos ciernáis justos.

d) Anc 12,ls: «Grande sinal apareceu no céu: u'a mulher reves


tida do sol, tendo a lúa debaixo dos pés, e na cabera urna coroa de
doze estrélas. Estava grávida, o gritava de dores, sentindo as angustias
de dar á luz».
Essa mulher dá á luz um Filho que, conforme o v. 5, é o Messias .
(pois Sao Joáo lhe aplica os dizeres do salmo 2, messiánico). Tal
figura feminina, por conseguinte, há de ser Maria, a qual é Máe
do Cristo f isico e do Cristo Místico (ou dos membros de Cristo reunidos
na Igreja). Qual Máe do Cristo físico, Ela está no céu, físicamente
em corpo c a'raa, como sugDre o v. 1; qual I.IZ/j do Cristo Místico,
porém, Ela está místicamente sobre a térra, soírendo a hostilidade
do demonio. —Tal foi a interpretacáo dada a éste texto pelo Sto.
Padre Pío X na sua encíclica «Ad diem illum»; trata-se de opiniáo
particular, que nao se apoia em exegese muito rígida do texto sagrado.
Na verdade, Sao Joáo, sob a figura da mulher de Apc 12, parece
ter em vista a Santa Igreja, a qual realiza neste mundo urna funcáo
materna, funcüo esta que Eva e Maria desempenharam de maneira
típica (pode-se por ¡sto admitir muito bem que, ao descrever a
mulher simbólica, a Santa Igreja, em Apc 12. o Apostólo se tenha
inspirado da personalidade de Maria Ssma.).
Sao estes os principáis textos bíblicos que os autores costumam
citar ao explanarem a Assuncño da Virgem Ssma.. Nao há dúvida, é a
luz do conjunto da Revelagáo que tais testemunhos manifestam todo
o seu significado.

PENNA (Belo Horizonte):

3) «Nao é verdade que o dogma da Assungao de Maria


foi condenado pelo Papa Sao Gelásio no sáculo V?»

A questáo ácima alude ao fato seguinte: existe um do


cumento chamado «Decreto Gelasiano» e atribuido ao Papa
Sao Gelásio I (492-496). Ésse documento encerra, por assim
dizer, o primeiro catálogo de livros que os cristáos nao devem
ler, enunciando, entré outros, um opúsculo intitulado «Transitus
Mariae» (Transe ou Desenlace de Maria). Ora éste opúsculo
rada mais é do que um relato do maravilhoso desfecho da
vida terrestre de Maria. Tendo sido tal obra condenada, parece
poder-se concluir que o próprio dogma da Assungao foi repu
diado, e repudiado pela suprema autoridade da Igreja. Daí
a psrplexidade que nasce na mente de muitas pessoas hoje em
dia, ao considerarem que o Papa Pió XII definiu solenemente
a Assungáo da Virgem.

— 458 —
CONDENADA A ASSUNCAO PELO PAPA?

A fim de elucidar o problema, consideraremos primeira-


mente a índole e a autoridade do «Decreto Gelasiano»; a seguir,
analisaremos brevemente o seu significado na historia do dogma
da Assuncáo.

1. Que é o «Decreto Gelasiano»?

O «Decreto Gelasiano» está longe de ser um documento


(bula, encíclica, lei...) emanado do Papa Sao Gelásio. Em
verdade, nao possui senáo relacüo remota e obscura com éste
Pontífice, como abaixo se verá.
Em termos positivos, o «Decreto Gelasiano» apresenta-se
como um escrito latino composto, conforme alguns manuscritos
antigos, em um sinodo de Roma do ano de 494. Compreende
cinco capítulos assim discriminados:

o cap. 1' trata dos sete dons do Espirito Santo e dos diversos
nomes de Cristo;
o cap. 2» contém o catálogo dos livros bíblicos, mencionando (sem
fazer difarenga de autoridade de uns e outros) os chamados «proto-
candnicos» e os «deuterocanónicos» (Tobías, Judite, Eclesiástico,
Sabedoria, Baruque, 1* e 2» dos Macabeus);
o cap. 3' versa sobre a autoridade da Igreja e o primado df\ sé
de Roma;
o cap. 4' considera a autoridade dos concilios e dos Padres da
Igreja;
o cap. 5" menciona os livros «apócrifos» que a Igreja nao aceita,
incluindo, como dissemos, o «Transitus Mariae».

Os estudos de paleografía deram a ver que o «Decreto


Gelasiano» consta de duas partes (ce. 1-3 e ce. 4,5), redigidas
em épocas e circunstancias diferentes. A compilagáo ou o
«Decreto» como tal só aparece citado por escritores cristaos
do sáculo VII em diante, sendo que os primeiros manuscritos
que apresentam as duas partes reunidas datam apenas do
séc. VIII.
Os críticos se tém aplicado ao estudo désses capítulos,
fornecendo-nos hoje em dia as seguintes conclusóes:

1) a primeira parte do «Decreto* (ce. 1-3) parece datar de üns


do séc. IV; pode ser tida como obra do concilio reunido em Roma
no ano de 382 sob o Papa Sao Dámaso;
2) a segunda parte (ce. 4 e 5) deve-se a um escritor anónimo,
o qual trabalhou por conta própria, provávelmente na Galia Meridional
em íins do séc. V ou inicios do séc. VI (entre 492 e 523); nutria
grande veneracáo para com Sao Jerónimo, em cujas obras colheu
numerosas noticias sdbre a antiga literatura crista;
3) a fusáo das duas partes numa só peca ou «Decreto» deu-se
no sul da Gália ou no norte da Italia. Alguns manuscritos do «Decreto»

— 459 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 3

atribuem a obra, intelra ou em parte, ao Papa Sao Dámaso (t384);


outros a atribuem simplesmente ao Papa Gelásio (donde o nome
«Decreto Gelasiano», que prevaleceu); outros ainda, ao Papa Hormis-
das (514-23);
4) o «Decreto» assim oriundo permaneceu desconhecido íora da
sua regiáo de origem durante algum tempo, nao gozando de grande
autoridade (é o que explica que só seja citado do séc. VII em diante).
Tal silencio nao se entendería se o documento fósse realmente obra
de Sao Gelásio ou Sao Dámaso, Papas.
Consideremos agora mais detidamente o que diz respeito á questáo
assuncionista.

2. O «Decreto Gelasiano» e o dogma da Assungao

O cap. 5' do documento traz o título: «Notitia librorum


apocryphorum qui nullatenus a nobis recipi debent. — Lista
dos livros apócrifos que de modo nenhum por nos podem ser
reconhecidos».
O titulo sugere logo a questáo:

a) Que é própriamente um apócrifo?

«Apócrifo», segundo a etimología grega, vem a ser o


«oculto» ou «secreto». Tal era o apelativo dado na antigüidade
a livros que nao se liam em público, ñas assembléias de culto
cristas; poderiam ser lidos pelos fiéis em particular (dado que
o seu conteúdo doutrinário fósse concorde com a reta fé). O
motivo pelo qual nao se utilizavam os apócrifos no culto oficial
da Igreja, era urna suspeita que geralmente sobre éles pairava:
alguns se apresentavam como obras dos Apostólos («Evange-
lho de Pedro», «Atos de Paulo com Tecla», «Apocalipse
de Tomé».. .), quando na verdade nao eram tais; outros, ao
menos pelo seu estilo e vocabulario, imitavam fraudulentamente
os genuínos escritos bíblicos; tais falsificagóes se deviam, em
nao poucos casos, a herejes, que visavam por essa via dar
autoridade a seus erros doutrinários. Em conseqüéncia, o termo
«apócrifo» foi tomando o sentido de «herético».
Nao se poderia, porém, afirmar que todo apócrifo contém
proposigóes heréticas; muitos sao totalmente inofensivos do
ponto de vista dogmático; outros referem episodios reais ocor-
ridos nos tempos de Cristo e dos Apostólos, episodios transmi
tidos oralmente de geragáo a geracáo durante algum tempo,
até que foram finalmente consignados na literatura apócrifa.
Em suma, éste género de escritos tem o grande valor de nos
dar a conhecer o que pensavam os cristáos dos primeiros
séculos; é a tal título que lhes cabe importancia notável na
historia dos dogmas. Por conseguinte, o leitor, ao se defrontar

— 460 —
CONDENADA A ASSUNCAO PELO PAPA?

com algum livro dito «apócrifo», nao se deixará deter pelas


minucias muitas vézes imaginarias que tais escritos apresentam,
mas investigará quais as doutrinas assim veiculadas e procurará
aproveitar o cerne de verdades que possa estar contido nessa
literatura.
¡i-
Urna vez proposto o conceito de «livro apócrifo», notemos que o
«Decreto Gelasiano» no seu cap. 5* enuncia urna longa lista de escritos
assim qualificados, lista para a qual devenios agora voltar a nossa
atencáo.

b) A inclusáo do «Transitas María*» entre os apócrifos

O catálogo que nos interessa focalizar, menciona em estra-


nha desordem (sem observar categorias nem de cronología nem
de géneros literarios) os escritos seguintes:

o «Itinerario de Pedro» (ou seja, nove livros também ditos «Apó


crifos clementinos»), os «Atos de Andrés, os «Atos de Tomé», os
«Atos de Pedro», os «Atos de Filipe», o «Evangelho de Matías», o
«Evangelho de Barnabé», o «Evangelho de Tiago o Menor», o «Evan
gelho de Pedro», o «Evangelho de Tomé», os «Evangelhos de Barto-
lomeu», os «Evangelhos de André», os «Evangelhos falsificados por
Luciano», os «Evangelhos fabricados por Hesiquio», o «Livro da in
fancia do Salvador», o «Livro do Nascimento do Salvador», o «Pastor»,
os escritos de Léucio, «discípulo do diabo», o «Fundamento» e o
«Tesouro» de Maniqueu, a «Leptogénese» ou o «Livro das Filhas
de Adán», um poema virgiliano referente a Cristo, os «Atos de Tecla
e Paulo», o «Livro de Nepos», o «Livro dos Proverbios» atribuido a
um certo Sixto, o «Apocalipse de Paulo», o «Apocalipse de Tomé»,
o «Apocalipse de Estéváo», o «Transitus Mariae», o livro da «Peni
tencia de Adáo», o livro «sobre o gigante Ogias (cf. Dt 3,1), que,
conforme os herejes, lutou contra o demonio após o diluvio», o «Tes
tamento de Jó», a «Penitencia de Orígenes», a «Penitencia de S. Ci
priano» (mago de Antioquia), a «Penitencia de Jamnés e Membrés»,
as «Sortes dos Apostólos», os «Jogos dos Apostólos», os «Cánones
dos Apostólos», o «Fisiólogo», escrito por herejes e atribuido a S
Ambrosio, a «Historia da Igreja» de Eusébio, as ohras de Tertuliano,
Latancio, do «Africano», de Postumlano e de Galo, de Montano, Pris-
cila e Maximila, de Fausto Maniqueu, de Comodiano, de Clemente
Alexandrino, de Tásela Cipriano, Arnóbio, Ticónio, Cassiano, Vitorino
de Petau, Fausto de Riez, Fruméncio Cássio, a «Carta de Jesús a
Abgar», a «Carta de Abgar a Jesús», o «Martirio dos Santos Ciro e
Julita», o «Martirio de Sao Jorge», a «Interdicáo de Salomáo», «todos
os amuletos escritos nao em nome dos anjos, mas em nome dos
demonios».

Curiosa lista, á qual se devem fazer tres observagóes:


1) Trata-se de um catálogo redigido de memoria, con
forme o autor mesmo confessa. É o que explica a falta de
ordem ou de categorias na apresentagáo dos diversos nomes.
Em setor táo serio, como é o da condenagáo de livros, um

— 461 —
, «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 3

escritor de autoridade oficial nao teria procedido de maneira


táo leviana. A lista, portante, nao constituí um documento
oficial da Igreja; é, antes, urna compilagáo de nomes feita a
título particular para ajudar a memoria, ou seja, para o uso
pessoal do próprio redator e dos seus leitores contemporáneos.

2) A lista nao debca de apresentar suas incoeréncias e íalhas,


que em parte lhe tiram autoridade ou crédito. Assim, o autor, depois
de recomendar a leitura de S. Cipriano, citado entre os escritores
ortodoxos, coloca as obras do mesmo entre os apócrifos; depois de
observar que as Atas do martirio dos Stos. Ciro e Julita e de S. Jorge
podem ser lidas, condena-as como apócrifas; do mesmo modo procede
em relacáo á «Historia da Igreja» de Eusébio. Nao se saberia dizer
o que o autor entende ao mencionar a «falsificacao» e a «fabricacáo»
dos Evangelhos por Luciano e Hesíquio... Além disto, observa-se
que o catálogo condena as obras de Postumiano e Galo, quando estes
dois nomes (ao menos, a quanto se sabe até hoje) nao representam
senáo dois personagens de um diálogo de Sulpicio Severo...

3) O «Transitus Mariae» figura na lista dos livros conde


nados... Isto se deve certamente ao estilo fantasista déste
escrito. Sim; ai se lé que no fim da vida de Maria os Apostólos,
todos (segundo algumas versóes) ou em parte (segundo outras),
foram milagrosamente transportados para junto da Virgem
Santíssima; entáo um mensageiro celeste anunciou a Maria a
sua morte iminente; ao ouvi-lo, a Virgem manifestou seu receio;
quando os Apostólos sepultavam a Ssma. Máe de Deus, os
judeus intervieram hostilmente...
Ora tais pormenores pueris (para nao dizer: irreverentes)
devem ter provocado a indignagáo dos leitores dos quais a
lista do «Decreto Gelasiano» se fez porta-voz. O que éste
documento, portante, visava com a sua condenagáo nao era
a doutrina referente á exaltagáo final da Virgem Ssma., mas
as modalidades de redagáo com as quais tal doutrina era apre-
sentada no «Transitus Mariae».

3. Gonclusáo

Em remate de quanto acaba de ser ponderado, podem-se formular


as duas seguintes proposicóes:
1) A propalada condenacáo do dogma da Assuncáo por parte do
Papa Sao Gelásio nada tem de papal, nem de oficial, dentro da Igreja.
Deve-se a um escritor particular destituido de autoridade, o qüal
incorreu mesmo em contradigóes e íalhas.
2) A condenagáo proferida por ésse autor particular nao recaiu
sobre a doutrina da exaltagáo de Maria como tal, mas sobre a maneira
fantasista ou pueril como ela é narrada num dos escritos que a
referem no séc. V.

— 462 —
RESPEITO AO CORPO E ESPORTE

m. MORAL

JUVENTUDE (Rio de Janeiro):

4) «Há quem fale de respeito ao corpo humano, princi


palmente ao se tratar da prática do amor. Em que se baseia
esta honrosa apreciacáo do corpo?
Seria possível daí deduzir alguma conclusao sobre a estima
do esporte?»

A mentalidade moderna em geral pouco ou nenhum apreco tributa


ao corpo humano; usa e abusa déle ou em vista de um utilitarismo
terrestre, ¡mediato, ou a íim de obter gozo momentáneo, «existencia-
lista», nao hesitando em praticar o anticoncepcionismo, o aborto a
fecundacáo artificial, a selecáo racista, etc. ... A tendencia a depre
ciar o corpo se afirma de maneira especialmente significativa na
moderna onda mundial «pro-incineracáo» dos cadáveres; conforme
éste processo, o corpo humano, tendo urna vez terminado as suas
funcSes na térra, pode slmplesmente ser equiparado ao lixo aue
se quelma. . n
Abaixo enunciaremos alguns dados colhidos no patrimonio de
sabedoria dos mais diversos povos, dados que permitirao urna concei-
tuacáo adequada do corpo humano e do esporte.

1. O testemunho da natureza e dos povos

1. Quem analisa os documentos da cultura humana


(cristáos e náo-cristáos), dos quais citaremos alguns no decor-
rer desta exposicáo, nao se pode furtar á impressáo de que os
povos sempre tenderam espontáneamente a reverenciar o corpo
humano.
Urna expressáo típica dessa atitude é a que se le ñas
obras do naturalista romano náo-cristáo Plínio o Antigo (f79
d. C), o qual fala de «urna religiáo do corpo» (cf. Hist. nat.
XI 103), significando «religiáo» nessa perspectiva o misterioso
e transcendente que marca o corpo humano.

Eis as palavras de tal escritor: «HominLs genibus quaedam et


religio inest, observatione gentium... Inest et alus partibus quaedam
religio; sicut dextra osculis aversa appetitur, in fide porrigitur. Os
joelhos do homem sao portadores de certa reverencia misteriosa, como
atestam os povos... Também as outras partes do carpo exprimem
reverencia: a máo direita deixa-se beijar pelos labios que a procuram,
e estende-se aqueles a quem se dá em confianca».

2. E como se explica tal respeito pelo corpo?


— Nao há dúvida, deve-se á consciéncia que os antigos
tinham, de que o corpo humano nao pertence simplesmente ao
homem, mas é fungáo e, ao mesmo tempo, expressáo ou símbo-

— 463 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 4

lo de urna realidade superior, náo-corpórea (a alma e, em


última análise, a sabedoria do Criador). É esta realidade supe
rior que, profundamente impregnada no corpo, impóe respeito
ao observador (antigo e moderno), fazendo que nao seja lícito
tratar o corpo segundo os caprichos do gozo, do comodismo ou
do utilitarismo materialista.

3. E quais seriam as manifestagóes de urna realidade


superior, espiritual, espelhada pelo corpo humano? Em outros
termos: como é que o corpo simboliza a presenga de algo de
maior ou transcendente?
— Eis aqui algumas das principáis revelagóes da alma ou
do espirito através da carne humana:

1) A estatura erecta

A mecánica nao explicaría que o corpo humano, pesada


massa de carne flácida cujas articulagóes sao propensas a se
dobrar todas simultáneamente, possa permanecer erguido sobre
a base táo exigua da planta de seus pés; urna vez morto, ésse
corpo cai, só podendo ser levantado pelas fórgas de dois ou
tres homens. E note-se que o equilibrio do corpo humano vivo,
contra todas as previsóes, nao é instável; resiste ao furacáo
e possibilita ao homem lutar em pé contra seus adversarios.
Essa burla infligida as leis da pura materia significa precisa
mente que o homem nao é apenas materia; o garbo de seu
porte constituí um sinal eloqüente do espirito que habita no
corpo e que é dignamente homenageado pela atitude erecta do
ser humano.
Ainda por outra via se percebe o valor simbólico da esta
tura erecta do corpo humano. Já o filósofo grego Aristóteles
(f 322 a. C.) lembrava algo que Sao Tomaz, na Suma Teoló
gica I 91, 3 ad 3, hayia por sua vez de inculcar: se o homem
nao tivesse porte vertical, seus membros anteriores se apoiariam
sobre o solo; por conseguinte, para apreender a sua presa,
deveria ter boca adequada (focinho oblongo, bico...), labios
duros e ásperos, língua rugosa, com a qual se defendería contra
os adversarios e os elementos que o cercassem. Conseqüente-
mente, nao poderia mais falar ou carecería desta expressáo
típica da inteligencia que é a linguagem (cf. «P. R.» 33/1960,
qu. 2). Donde s^ vé que a estatura erecta do homem é caracte
rística da sua dígnidade própria, dignidade que o coloca ácima
dos demais seres visíveis.

Contra o valor desta observacáo aponta-se o caso do pingüim,


que caminha veíticalmente sobre duas patas. Contudo a debilidade
das asas désse animal está em contradigáo com a sua estatura erecta,

— 464 —
RESPEITO AO CORPO E ESPORTE

constituindo quase um desmentido & sua tendencia para o alto. Mesmo


o macaco e o urso erguidos nao deixam de ser quadrúpedes; o eixo
do seu corpo pode ser tanto horizontal como vertical...

2) O caminhar para a frente

O homem, que tem a cabeca voltada para o alto, possui


também as articulacóes dos joelhos e dos pés configurados de
tal modo que lhe é necessário caminhar para a frente, numa
só direcáo. Marcha-ré, para o homem, significa acrobacia um
tanto perigosa; devendo recuar, o homem normalmente dá
meia-volta e entáo, mesmo retrocedendo, adianta-se. É ao
caranguejo e a certos tipos de máquinas que compete a facul-
dade de se mover indiferentemente em dois sentidos. Além
disto, note-se que o olhar humano, sempre voltado para a
frente, tende a perfurar indefinidamente o horizonte ou a
perder-se no insondável misterio do horizonte.
Assim dir-se-ia que a vocacáo a ultrapassar-se e a entre-
gar-se a algo de maior ou a um termo ainda nao possuido está
profundamente impregnada dentro da natureza humana. O
homem nao dá um passo normal que nao seja passo para a
frente; mesmo voltando atrás, desloca-se para diante. Nao
seria isto indicio do destino transcendente do ser humano?

3) O semblante translúcido

O semblante costuma ser a expressáo do que vai no íntimo


da personalidade; apresenta-se ora belo e atraente, ora desfi
gurado e feio, de acordó com o estado de alma, harmonioso ou
nao, da respectiva pessoa. Em alguns justos muito unidos a
Deus, dir-se-ia que o Divino lhes transborda na fisionomia, tal
é o encanto ou a «graga» que refletem. Tenha-se em vista,
por exemplo, o caso do santo Cura de Ars: homem simples,
filho de camponeses, conseguía atrair á sua paróquia multidóes
de pessoas, crédulas e incrédulas, que se compraziam profun
damente em ver e ouvir o homem de Deus.

A propósito escrevia o Pe. Lacordaire (tl861) a Perreyve, um


de seus jovens dirigidos:
«Ácima de tudo sé bom. A bondade é o que mais se parece com
Deus e o que mais desarma os homens. Tens vestigios de bondade
na alma, mas ésses sao sulcos que ninguém jamáis cavará suficiente
mente. Teus labios e teus olhos ainda nao sao táo benévolos quanto
possivel, e nenhuma arte lhes pode dar éste característico a nao ser
o cultivo interior da bondade».
Os labios e os olhos sejam benévolos... A respeito dos olhos
em particular, a sabedoria dos séculos acostumou-se a dizer que
sao o espélho da alma. Já Plínio o Antigo observava: «Hos (oculos)

— 465 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 4

cum osculamur, animum ipsum videmur attingere. — Quando oscula-


mos os olhos, parece-nos que tocamos a própria alma» (Hist.
nat. XI 53).
Considere-se especialmente o poder fascinante, hipnotizador, do
olhar de certas pessoas. É sinal bem claro da riqueza de vida ¡material
ou transcendente que cada urna dessas pessoas traz em seu intimo.

4) A máo e sua configuraclo

Já dizíamos atrás que as máos vém a ser o símbolo típico


da inteligencia humana. O homem, alias, é o único ser visível
que tenha máos, porque é o único ser corpóreo que possui
inteligencia.
Os mais recentes estudos sobre a origem e a evolugáo das
línguas revelam que a linguagem humana primitiva deve ter
consistido em clamores e gestos; antes do idioma própriamente
dito, o homem terá praticado em larga escala a linguagem
das máos (isto nada significa contra a veracidade do texto
bíblico, que apresenta Adáo, o primeiro homem, dotado do uso
da palavra e de ciencia preternatural; os predicados de Adáo
eram estritamente pessoais; tendo-os perdido, o primeiro pai
gerou prole sujeita as leis do desenvolvimento paulatino).
Até hoje as máos falam espontáneamente no homem, reve
lando, por vézes de maneira indiscreta, o que lhe vai no mais
íntimo da alma.

Tenha-se em vista, por exemplo, a situacáo de alguém que, a


contra-gósto, recebe urna visita de cerimónia; comporta-se com toda
a cortesía, sem deixar transparecer por alguma palavra o seu mal-
-estar interior; sorri, escuta e responde sensatamente. Eis, porém,
que a impaciencia dessa pessoa se concentra em suas máos; estas,
durante a conversa nao deixam de se agitar: a máo esquerda poe-se
a esfregar o rosto desde a orelha até o queixo, como se o paciente
estivesse acometido de comicháo; entrementes a máo direita, aguar
dando o momento de recomecar o trabalho interrompido, bate nervo
samente sobre a mesa com a ponta dos dedos...
Observe-se outrossim o seguinte: a mulher que durante um
coloquio pratica freqüentemente o gesto de arrumar os cábelos,
embora estes estejam devidamente penteados, manifesta assim suas
reservas e seu mal-estar. Ao contrario, se ela comeca a brincar
prazenteiramente com o colar ou os aneis, dá sinal de se estar rendendo
com simpatía ao seu interlocutor, embora aparente nao atribuir
grande importancia á conversa.
Em particular, a configuracáo e os traeos das máos tcm sido
muito explorados através dos séculos para se descobrir o tempera
mento próprio e até o curriculo de vida de pessoas consulentes. Na
maioria dos casos, porém, os oráculos foram e sao proferidos a
partir de criterios arbitrarios e insustentáveis, de acordó com u'a
mística fantasista, que constituí a «quiromancia» (ou a adlvinhacáo
por nielo da máo). Esta pouca ou nenhuma ateneáo merece. Recente-
mente, porém, os estudiosos, emancipando-se de quaisquer teses da
mística e da filosofía ocultistas, deram origem ao que se chama ra
RESPEITO AO CORPO E ESPORTE

Quirología» (estudo científico da máo): na base de experiencias e


estatísticas objetivas, conseguiram verificar que na realidade certos
tipos e traeos da máo estáo relacionados com determinados caracte
rísticos da personalidade; as máos, antes mesmo de exercer alguma
atividade, vém a ser a expressao do tesouro de vida íntima que todo
individuo traz em si. Cf. «P. R.» 21/1959, qu. 6.
A titulo de ilustracáo, vai aquí proposto o que a Quirología ensina
a respeito da configuracáo dos dedos.
Distinguem-se quatro tipos de dedos: os pontiagudos, os cónicos,
os quadrados e os espatulados (achatados).
Os dedos pontiagudos costumam denotar imaginagáo, intuicáo e
gósto artístico. É o que atestam a pintura e a escultura, apresentan-
do-nos as famosas figuras de Shakespeare, Maria-Antonieta, Musset,
Chateaubriand, Vítor Hugo...
Os dedos cónicos caracterizam as pessoas particularmente pren
dadas e compreensivas, de temperamento amável e de espirito conci
llante: Leonardo da Vinci, Mazzarino, Lamartine as exemplificam.
Os dedos quadrados sao os das pessoas práticas, positivas, metó
dicas, que tém a preocupacao de exatidáo e o senso da realidade;
tenham-se em vista as imagsns de Luís XIV, Turennc, Mansart,
Clémenceau...
Os dedos espatulados sao os do artífice, que estima o prego
do seu trabalho, e os do homem de acáo, que nao duvida do seu
valor; assim se apresentam Cromwell, Lavoisier, Napoleáo III.
Naturalmente, sendo a Quirología urna ciencia relativamente nova,
compreende-se que ainda se defronte com varias incógnitas, estando,
por conseguinte, sujeita a reformar futuramente urna ou outra de
suas conclusóes. Contudo o que aqui importa, é verificar como se
pode, mediante criterios seguros e científicos, atribuir as máos huma
nas o valor de símbolo ou sinal de urna realidade transcendente ou
misteriosa que anima a materia humana e que .se chama «a alma».

5) A nutrigáo

Seja aqui, antes do mais, recordado um estranho fenóme


no: o animal irracional que tenha apreendido a sua presa (um
«bom bocado»), isola-se ¡mediatamente para a saborear com
mais tranqüilidade. O homem, ao contrario, compraz-se em
comer com seus semelhantes, principalmente ñas ocasióes
solenes da vida; é em torno da mesa, ao compartilharem o
mesmo pao, que os membros da familia comunicam uns aos
outros o que tém de mais íntimo, isto é, suas alegrías e suas
tristezas; a alimentagáo em comum praticada pelos homens
torna-se destarte símbolo da entrega de confianga e de valores
íntimos.
O fenómeno é ainda em outro seu aspecto profundamente
expressivo: significa, sim, que pelo ato de comer o homem
nao serve apenas a si, realizando urna fungió egocéntrica, mas
desempsnha verdadeiro pontificado: é, sem dúvida, pela nutrí-
gao do homem que os elementos irracionais déste mundo passam
para um plano superior — o da vida humana, que é vida intelec-

— 46T —
. «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 4

tiva, animada por urna alma espiritual. Dai a importancia reli


giosa e, naturalmente, o simbolismo do «comer»; vem a ser
um ato pelo qual o homem executa um designio do Criador,
fazendo que os seres inferiores, elevando-se, concorram do seu
modo para glorificar o seu Autor Supremo.

Os antigos, mesmo antes de Cristo, sempre consideraran! a ali-


mentacáo como funcáo sagrada; principalmente as refeicóes de praxe
feitas no lar íoram associadas a ritos e preces mediante as quais
os convivas tomavam consciéncia de entrar em contato particular
mente Intimo com a Divindade. Acontecía mesmo que os sacrificios
na antigüidade ou os atos de devotar alguma coisa á Divindade,
se terminavam sempre com urna refeicáo sagrada, pela qual os
homens julgavam entrar_em comunháo com o Divino.
Ora a valorizagáo religiosa do comer encontrou no Cristianismo
a sua afirmacáo mais eloqüente: o cristao tem consciéncia de que,
se o homem come á semelhanca dos demais viventes corpóreos, come
numa atitude totalmente diversa: ele o faz, sim, para colaborar com
o Criador, exercendo um oficio medianeiro, de certo modo sacerdotal,
pois une destarte a térra com o homem, e o homem com o Céu
ou com Deus mesmo. É, por excelencia, no consumo do alimento
sagrado ou da Eucaristía, dada no decorrer de urna ceia sacrifical,
que o comer do cristao toma seu pleno sentido: nutre entao para
a vida eterna.

6) As (lóenlas do homem

Já em «P. R.» 32/1960, qu. 1 tivemos ocasiáo de nos


referir aos fatóres psíquicos que estáo na raiz de varias mo
lestias do corpo humano. A Medicina contemporánea, psico-so-
mática como é, reconhece cada vez mais o papel que compete
as aspiragóes e aos conflitos íntimos do individuo tanto no
surto como no tratamento das doengas. Em conseqüéncia,
fala-se do «simbolismo dos síntomas patológicos», tendo-se em
vista o seguinte: quando urna tensáo de ánimo ou urna emogáo
nao se pode exteriorizar por palavras ou por atos adequados,
ela se manifesta por meio de outras atitudes do corpo, ou seja,
pela voz das perturbares do metabolismo ou do funcionamento
dos órgáos. Eis aqui algumas aplicagóes désse principio:

Quando um doente tem dificuldade para engulir, sem que se


possa responsabilizar por isto algum órgáo, há margem para crer
que na sua vida existe talvez alguma coisa que ele nao consegue
moralmente «engulir» (nao poderá aceitar alguma situacáo, algum
dever...).
A náusea de estómago, nao provocada por um mal orgánico,
pode ser causada por um fator existente no ámbito de vida do
enfermo, fator que o doente nao pode «digerir».
Um sentimento de opressáo, acompanhado de dificuldade para
respirar, na falta de causas orgánicas, talvez seja indicio de que o
paciente tem alguma coisa que «lhe pesa sobre o coracao».

— 468 —
RESPECTO AO CORPO E ESPORTE

O doente que perdeu o apetite e por isto soíre seriamente de


sub-alimentacáo, talvez esteja frustrado na sua vida emocional, da
mesma forma como está físicamente esfomeado.
O cansago é provocado muitas vézes por um confuto emotivo, que
absorve parte táo grande das energías da vitima que estas lhe vém
a faltar quando délas precisa.
Urna tensáo emocional subconsciente traduz-se muitas vézes por
urna tensáo muscular, que gera dores a ponto mesmo de chegar ao
estado agudo de nevralgia. Urna dor no brago pode provir do desejo
que urna pessoa tem de espancar a outrem, desejo, porém, que
essa pessoa nao satisfaz por causa do respeito ou do afeto mesmo
que o adversario lhe impoe. Urna comicháo é nao raro conseqüéncia
de um mal-estar geral que alguém experimenta em seu ambiente
de vida: nao podendo vingar-se em outras pessoas, o paciente tende a
se martirizar cogando-se.
De modo geral, o aparelho digestivo é a via pela qual as
perturbacSes emocionáis encontram sua expressáo mais comum.

7) A vida mística e a sensibilidade

Certos autores de opúsculos místicos julgam que a alma,


ao progredir na uniáo com Deus na vida mística, mais e mais
age sem o corpo.
Diante dessa tese, reconhecer-se-á que há, sem dúvida,
fenómenos místicos pelos auais a alma se afirma de maneira
quase soberana ou independente do corpo: tais seriam a levita-
sao, estado em que o orante paira ácima do solo, contrariando
as leis da gravidade; o éxtase, situagáo em que a alma está ex
ou fora, alheia aos sentidos corpóreos... Contudo convém
notar que levitagáo, éxtase e fenómenos congéneres nao cons-
tituem expressóes necessárias da vida mística. Esta, ao contra
rio, parece implicar em penetracáo e aproveitamento crescentes
dos valores do corpo por parte da alma do orante; é o homem
inteiro, alma e corpo, que sobe para Deus.

Tenha-se em vista, por exemplo, o fato de que na meditagáo, grau


inicial de oragSo, a fantasia é posta em atividade de modo a fornecer
imagens sensiveis, que devem excitar a contemplagáo e o amor
do orante. Um grau superior de oragáo é a chamada «oragáo afetiva»,
cujo nome se deriva precisamente das ampias partes que os afetos
sensiveis nela desempenham. Por fim, as visees que- o Senhor Deus
concede a almas muito agraciadas, freqüentemente se produzem por
meio das imagens sensiveis que o vidente concebe em sua mente
(cf. «P. R.» 19/1959, qu. 4 e 5).
Donde se vé que nem os graus superiores de vida mística ou de
uniáo da alma com Deus dispensam a intervengáo do corpo humano,
o qual fica sendo sempre o canal das afirmagóes da alma.

2. Reflexao e conchisáo

1. Acabamos de recensear fatos e tópicos pelos quais


se exprime o caráter que toca ao corpo humano, de consorte

— 469 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 4

indispensável e de sinal ou símbolo da alma. Na verdade, o


homem nao consta de espirito apenas, mas de corpo e espirito
destinados a colaborar harmoniosamente entre si.
É ésse destino que faz a nobreza do corpo humano, exigin-
do por conseguinte pleno respeito ás leis naturais que regem
seu funcionamento (principalmente ás que dizem respeito aos
dois apetites mais veementes da natureza: o da nutrigáo e o
da procriagáo).
Contudo tal concepeáo otimista requer breve advertencia.
Na realidade, nem sempre os movimentos das faculdades cor
póreas do homem estáo em harmonía com as aspiragóes mais
nobres do espirito; certas tendencias do corpo geram nao raros
conflitos do individuo (a Teología explica muito bem essa
desordem, atribuindo-a ao pecado de Adáo, que desencadeou
concupiscencia desregrada e luta da carne contra o espirito
dentro do ho:nem: cf. «P. R.» 30/1960, qu. 2 e 3). Por conse
guinte, nem toda e qualquer aspiragáo da natureza sensível
poderá ser irrestritamente aprovada por parte da pessoa que
deseje chegar ao ideal supremo do ser humano. Para garantir
a fungáo de símbolo e os auténticos valorea do corpo humano,
requer-se seja éste submetido a seria disciplina, que subordine
inteiramente a carne ao espirito. Em outros termos: a fim .de
que o corpo seja realmente sinal ou símbolo, faz-se mister que
o homem reduza á unidade as varias aspiragóes de sua natureza
bulicosa; passe da multiplicidade á unidade, traduzindo em todos
os seus atos urna só granda realidade: a vida eterna,... vida
eterna que comeqa no tempo pela adesáo cada vez mais conse-
qüente a Deus.

2. As idéias até aquí propostas tém aplicagáo particular


ao se tratar de tomar posigáo frente aos esportes e ao atletismo.
Estes constituem u'a modalidade especial de valorizagáo do
corpo. Vé-se, porém, que nao constituem por si mesmos um
fim da atividade ou da vida humana: assim como o corpo é
nobre em fungáo da alma, assim o atletismo do corpo será
nobre se fór exercido em vista do «atletismo» da alma, ou
seja, em vista da grandeza ou do aperfeicoamento da alma.
Será preciso continuamente lembrar aos homens de esporte
que o atletismo que obceca e apaixona, nao merece aprego; o
atletismo do corpo torna-se absurdo se é praticado de modo
a vincular e escravizar a alma, em vez de lhe proporcionar
novo vigor para se elevar a Deus. É o que o Sto. Padre o Papa
Pió XII expóe em urna de suas alocugóes a esportistas, profe
rida aos 8 de novembro de 1952:

«A sá doutrina ensina a respeitar o corpo, mas nao a estimá-lo


além do que é justo. A máxima é esta: cuidado do corpo, robusteci-

— 470 —
RESPEITO AO CORPO E ESPORTE

mentó do corpo, sim; culto do corpo, divinizagáo do corpo, nao...


O corpo nao ocupa no homem o primeiro lugar, nem o corpo terreno
e mortal, como é hoje, nem o corpo glorificado e espiritualizado,
como será um dia.
... No uso e exercicio intensivo do corpo, é preciso ter em
conta éste fato: assim como há certa ginástica e esporte, que com
a sua austeridado contribuí para reírear os instintos, assim também
existem outras formas de esporte que os despertam, quer pela vio
lencia do esfórco, quer pelas seducOes da sensualidade. Mesmo sob
o ponto de vista estético, com o prazer da beleza, com a admiracáo
do ritmo na danca e na ginástica, o instinto pode instilar o seu veneno
nos ánimos. Há, além disso, no esporte e na ginástica, no ritmo
e na danca, certo nudismo, que nao é nem necessário n3m conve
niente... Perante tal maneira de praticar a ginástica e o esporte, o
sentimento religioso e moral opóe o seu veto.
Numa palavra: o esporte e a ginástica nao devem mandar e
dominar, mas servir e ajudar. É a sua funcáo, e nisso encontram
a sua justificacáo.

... O maior mérito nao seja atribuido ao individuo que possui


os músculos mais fortes e mais ágeis, mas ao que também demonstra
maior capacidade de sujeitá-los ao imperio do espirito.
... Elevar a ginástica, o esporte e o ritmo com todos os seus
complementos á categoría de fim supremo da vida seria na verdade
pouco demais para o homem, cuja primaria grandeza é formada por
multo mais elevadas aspiracóes, tendencias e qualidades.
É, por isso, dever de todos os esportistas conservar éste reto
conceito do esporte, nao para perturbar ou diminuir a alegría que
déle recebem, mas para se preservarem do perigo de desprezar
deveres mais altos referentes á própria dignidade e ao respeito para
com Deus e para consigo mesmos» (transcrito da «Revista Eclesiás
tica Brasileira» XIII [19531 206-8).
Dir-se-ia numa palavra: o cristáo procurará ser bom atleta do
corpo, para tornar-se ainda melhor atleta da alma.

Também no que diz respeito á alimentacao, urna breve observacáo


se impóe. Ao contrario do que se poderla crer, a sobriedade c as
restrigSes de nutricáo vém a ser garantía do bom funcionamento do
corpo. O sabio francés. Prof. Bouliére, nos descreve a seguinte
experiencia:
«Separei dols grupos de ratos recém-nascidos. A um administrei
alimentacao abundante; viveram urna media de 700 dias. Aos outros
dei pouco alimento; foram severamente racionados. Viveram u'a media
de 1400 dias, isto é, o dóbro dos seus congéneres bem nutridos»
(citacao feita por Varenne, Fique sempre jovem e viva mais tempo.
1960, 23).
Tal experiencia foi repetida em numerosos laboratorios e com
outras especies de animáis, levando sempre os observadores as mesmas
conclusóes. Estas se aplicam reconhecidamente também ao regime
alimentar do homem...

3. Por íim, notaremos que a realizagáo mais perfeita do simbo


lismo do corpo tem lugar no culto sagrado ou na Liturgia. Todo o
corpo. por sua linguagem, por seus gestos e suas atitudes, faz-se
entáo, por excelencia, eco da Palavra eterna de Deus.

— 471 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 5

KLEINBERG (Porto Alegre):

5) «Quisera unía palavra de esclarecimento sobre a mas-


turbacao.
Ha médicos que a aprovam, ao passo que os moralistas
a condenam».

O termo «masturbacao», oriundo provávelmente de «manibus


turbare», significa a provocagao dos órgáos genitais por meio da
máo ou de outro estimulo inadequado. Mais precisamente: masturba-
Cáo é a polucáo voluntariamente provocada num ato solitario; é a
satisfagáo sexual do individuo de si para si.
Abaixo procuraremos formular um juizo sobre ésse fenómeno,
tanto do ponto de vista físico-psíquico como do ponto de vista moral.
A seguir, enunciaremos algumas normas de conduta oportunas frente
a tal afirmacáo da natureza.

1. Que dizer.. .?

a) ... do ponto de vista psico-somático

, A tendencia sexual de todo ser humano é naturalmente


> Jjvoltada para um semelhante pertencente a outro sexo; ésse
í semelhante há de ser capaz de complementar o físico e o
psíquico de quem o procure. Normalmente é numa atmosfera
de^ amor, ou seja, em fungáo do amor, em fungáo de um ato
em que toda a personalidade se empenha com o que ela tem
de mais nobre, que se realiza o encontró sexual entre os
, seres humanos. Á luz déstes principios, verifica-se que a cha
mada «masturbagáo» ou!o uso da fungáo sexual por parte de
um individuo que vise sátisfazer-se a sos, constituí urna aber-
ragáo contra a própria natureza humana; éji volta do indi-
; ^ víduo a si. mesmo mediante um ato que de per si tendería
s^a levar a personalidade para fora de si.

A masturbagáo pode tornar-se um hábito, cujas causas sao assaz


variadas: as vézes decorre da curiosidade simplória com que a crianga,
nos seus primeiros anos de idade, comega a observar as atividades
de seu corpo; suscita entáo inocentemente o funclonamento de seu
órgáo; contudo a partir dos seis ou sete anos, o hábito assim adquirido
provoca sensacoes cada vez mais acentuadas podendo tornar-se forte-
mente arraigado c avassalador. Outras vézos, o vicio deve-se aos
exemplos ou as seducOes provenientes de adultos ou de outros jovens.
Em outros casos, o costume se deriva de disposigóes psicopáticas
do individuo, disposicoes que, mediante a prática do ato solitario,
causam um estado doentio cada vez mais marcante (um dos síntomas
mais comuns désse estado mórbido sao os sonhos de natureza perversa
que ás vézes precedem, provocam ou acompanham a masturbagáo).
Os fenómenos psicopáticos que possam estar na base do vicio
solitario, sao entre outros: o narcisismo (tendencia do individuo a

— 472 —
MASTURBACAO

se contemplar e admirar exageradamente), o homo-erotismo (amor


ao mesmo sexo), o temor anormal para com o sexo oposto.
Feitas estas observac6es, já se percebe como julgar a masturbacáo.

Do ponto de vista fisiológico,^a prática do ato solitario,


equivalendo a um desvio da natúreza humana, nunca pode ser
recomendável; nunca será aconselhável, nem mesrno em propor-
cóes pretensamente moderadas, como solucáo ou paliativo para
urna situacáo anormal ou aflitiva em que alguém se encontré.
Nao raro se verifica que o hábito da masturbacáo toma índole
de obsessáo ou mania, prejudicando..a_saúde, principalmente
o equilibrio nervoso da vítima. Mesmo quando nao atinge tais
proporgóes, o vicio solitario nao pode deixar de afetar o caráter
da pessoa que se lhe entrega voluntariamente: esta se torna
mais e mais desatenta e distraída, sujeita as vacilagóes dos
caprichos, mais ou menos indiferente aos grandes valores da
vida. Em particular, o individuo, no qual o vicio solitario se
instala, é pessoa pouco adaptada ao genuino amor conjugal,
pois nao estima devidamente o tu ou a personalidade alheia,
tendendo a devaneios nos setores do irreal e do sonho.

Estas conseqüéncias comunicam u'a marca especialmente humi-


lhante ao vicio da masturbagSo. Alias, nao se poderia esperar outra
coisa, pois ninguém contradiz impunemente as leis da natüreza, que
deu as íuncóes sexuais ao ser humano em vista do casamento
(como as fungfies digestivas loram dadas em vista da conservacao
do individuo, nao própriamente para o deleite do .sujeito). É vá a
alegacáo: «Nao prejudico a alguém, quando cometo o ato solitario»;
na verdade, o masturbador contradiz á orientacáo natural do seu
amor, _o_qual tende espontáneamente a_se._yolta_r para outrem, de
modo "que qiiem viola essá tendencia priva o próximo de um diréito
seu e de certo modo desfigura a si mesmo. Nao poucas pessoas, alias,
dentre as que se díio ao mau hábito, dotadas de temperamento mais
delicado e sensível, tém consciéncia da hediondez do vicio: horrori-
zam-se por ver constantemente burlado o seu ideal de pureza, podendo
chegar ésse horror a provocar perturbagSes neuróticas por todo o
resto da vida, caso nao consigam em tempo libertar-se dos griUiSes
do vicio. V i t

b) ... do ponto de vista moral. '' ' *

Aos olhos da consciéncia moral, a masturbacáo, sendo


violagáo da natüreza, constituí um pecado ou urna violacáo
da Leí de Deus. Vista a importancia da materia respectiva,
tal pecado é em si grave. Subjetivamente, porém, a culpa pode
ser muito atenuada, dado que o masturbador nao proceda
com pleno conhecimento de causa ou com vontade deliberada.
Ao se tratar de um pecador que já tenha concebido o firme
propósito de se emendar e que empregue seriamente os meios
para o conseguir, pode-se crer que as suas eventuais reincidén-

— 473 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 5

cias nao constituem sempre pecado grave, pois ainda ocorrem


por fórca do hábito anteriormente adquirido, ou seja, dentro
de um clima de certo automatismo, no qual a liberdade de
arbitrio nao tem plena conivéncia. Será muito importante
lembrar isto aos penitentes sinceramente dispostos, pois tal
advertencia os preservará de cair no desánimo ao empreende-
rem a luta contra o vicio.

Também se faz mister frisar que as polucoes noturnas (as quais


nos meninos se verificam desde os 12/14 anos), assim como as
polucoes diurnas meramente nervosas e involuntarias, nao tém que
ver, do ponto de vista moral, com a masturbacáo pecaminosa, a qual
supSe sempre conhecimento de causa e vontade deliberada. Há, porém,
casos em que a polucáo. embora nao tenha sido diretamente provo
cada, ocorre em conseqüéncia de remota e. imprudente excltacáo da
sensibilidade; tal derramamentc participa entáo do grau de culpa
que toca á imprudencia anteriormente cometida. Nao é em váo, alias,
que os moralistas recomendam ás almas fiéis o controle geral dos
sentidos, mesmo independentemente de alguma tentacáo ao pecado;
o afrouxamento dessa disciplina pode ser culpado e ocasionar culpas
remotas.
Note-se bem que a própria natureza, mediante polucoes espontá
neas, prové devidamente as suas funcSes, de sorte que nao é necessário
ao individuo provocar pela masturbacáo o uso dos órgáos sexuais;
tal provocacáo, longe de ser consentánea com a natureza, só se regis
traría em circunstancias que contrariam as leis naturais do ato
sexual (éste — repita-se — foi concebido polo Criador como íuncño
do amor,... e do amor conjugal,... amor cuja finalidade primaria
l!é a procriacáo da especie). E nao se faca objeeáo por parte da saúde:
esta é muito mais assegurada pela observancia das normas ou da
ordem da natureza do que por qualquer violacáo da mesma.

2. Como remediar?

Após o que dissemos, vé-se que nao merece audiencia a sentenca


dos que pretendem remediar a estados de desequilibrio nervoso
mediante a prática sistemática e controlada da masturbacáo. Tal
método só concorre para agravar o mal psíquico, de mais a mais que
I íreqüentemente as masturbadores desejam ardentemente libertar-se
do seu hábito indigno.

Também nao se alegará que o costume da masturbacáo


é incurável, de sorte que baldado se torne todo esfórco contrario.
É verdade que nao há urna vía única de cura, aplicável a toda
e qualquer situacáo; os meios de combate deveráo, antes, ser
concebidos de acordó com as circunstancias de cada caso.
Como quer que seja, o tratamento oportuno será sempre um
tratamento de base, visando o íntimo da personalidade da
vítima, em conformidade com os seguintes principios:
1) A vontade do paciente há de ser corroborada e sujei-
tada a urna disciplina. O uso e abuso da liberdade de conduta
em nossos dias provoca naturalmente urna excessiva tensáo

— 474 —
MASTURBAQAO

sexual. Entre outros fatores de disciplina, enuncia-se o trabalho


ou a entrega do paciente a urna tarefa seria que lhe desperté
e prenda o interésse. Certas restrigóés na comida e na bebida
concorrerio para amortecer o instinto sexual e fortalecer a
vontade. Semelhante efeito ssrá obtido pelo dominio da imagi-
nagáo e o controle dos olhares.

2) Visto que a masturbacao habitual suscita muitas vézes na


vítima urna tendencia (consciente ou inconsciente) a desprezar a si
mesma, será preciso que o diretor e os amigos do paciente néle
restaurem o senso de sua dignidade moral assim como urna confianca
equilibrada em si. Mesmo nos casos de recaídas Ireqüentes, faz-se
mister reavivar sempre a coragem do interessado, a sua vontade
de combater, assim como a esperanca de Vitoria; inculque-se-lhe
continuamente que ele nodejíjieve recuperar-se.
3) Trate-se a vitirna com bondade sincera e compreensiva. O
fato de ser o masturbador um individuo íechado sobre si mesmo se
explica nao raro por jamáis ter ele experimentado a íórca do autén
tico amor. Esta norma vale de modo particular para os pais e
mestres de urna crianca viciada ou tendente ao vicio da masturbacao;
procurem os genitores e educadores em geral fazer do lar e da
escola um ambiente simpático, no qual haja ritmo de vida equili
brado: repouso suficiente, exercicio íisico, amizades sadias tanto com
rapazes como com mocas... • TU

4) Quanto ao paciente mesmo, após alguma queda ou


recaída, nao se deixe ficar numa situacáo de perplexidade
indecisa, mas sem demora arrependa-se e renové seü'bom pro
pósito; se possivel, empreenda mesmo um ato adequado de
penitencia (renuncia a tal ou tal divertimento, privacáo de
alguma guloseima, prática de caridade para com o próximo...).

5) Para quem possui a graga da fé, o recurso aos meios


sobrenaturais é nao sómente imprescind'.yel, mas até soberano,
tínicamente pelo auxilio de Deus recebido através da oragáo
e dos sacramentos (confissáo e comunháo) pode haver genuína
espsranga de vitória sobre a natureza. A fé ajuda o paciente a
restaurar sobre novas bases a sua personalidade, mostrando-lhe
que a grandeza de todo individuo está justamente em sair de
si, esquecer e desprezar a si; ao passo que o egocentrismo
depaupera a personalidade, a abertura em demanda de Deus
e do próximo a dilata e enriquece. — Muito valioso é também
o recurso a um bom diretor espiritual.

O jufzo que acaba de ser proposto a respeito da masturbacao


talvez pareca severo demais e pouco adaptado á mentalidade moderna.
— Nao há dúvida, o homem contemporáneo tende a ceder k onda,
abrindo máo dos mais tradicionais e preciosos valores da consciéncia
moral; muitos pretendem confeccionar urna «ética de situacáo, exis-
tencialista», isto é, urna ética norteada apenas pelos elementos que
parecem convenientes ,ao sujeito na situacáo em que «aqui e agora»
se acha.

— 475 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 5

A essa tendencia deve-se fazer a seguinte observa cao: é certa-


mente necessário que a Moral leve em conta as circunstancias precisas
ñas quais um individuo se encontra; á consciéncia bem formada
compete justamente a tareía de aplicar os preceitos da lei a cada
[caso concreto. Nao compete, porém, ao individuo, nem ás modas e
aos tempos, retocar as normas da lei natural; esta é perene e imutável
como a natureza humana. Ora é a natureza humana que assinala á
funcáo sexual a sua finalidade própria, independentemente da qual
o uso de tal fungáo vem a ser desvirtuado ou abusivo.
Embora em meio á onda laxista de nossos dias estas verdades
) parecam arduas, o cristáo sabe que o Senhor Deus. nao impOe preceitos
' impraticáveis, mas, junto com a obrigacáo, confere sempre a graca
para que a criatura cumpra integralmente o seu dever. É a cons
ciéncia disto que dá ánimo e otimismo ao discípulo de Cristo, impe-
dindo que se deixe arrastar por modas dissolutórias contemporáneas.
— Naturalmente, na medida em que a masturbacáo tenha um fundo
doentio e involuntario, sua culpabilidade é atenuada; pode ser mesmo
nula, portanto isenta de julgamento e punlcáo da parte de Deus.

6) Nos casos em que o vicio solitario parega provir de


um fundo psíquico anormal, consulte-se um psiquiatra, o qual
procurará descobrir a raiz do mal e indicará a terapéutica
adequada, terapéutica, porém, que nunca dispensará a colabo-
racáo consciente do individuo na medida em que ele a puder
prestar.

7) Póe-se agora urna questáo derradeira: o casamento será


remedio para o vicio da masturbacáo?
Em resposta, dever-se-á distinguir:
a) Caso o mau hábito carega de fundo patológico, sendo mero
produto de debilidade moral, pode ser extinto ou, pelo menos, notá-
velmente mitigado, pelo matrimdnio, pols éste oferece ao paciente
a ocasiáo legitima de satisfazer á sua necessidade de vida sexual.
Mesmo assim, porém, o casamento nao dispensará o individuo da
aplicacáo da sua fdrea de vontade.
b) Dado que o vicio provenha de um estado neuróticojni doentio,
o casamento nao solucionará o mal, podendo mesmo agfavá-io. tíím";
a vida conjugal geralmente nao cura o desequilibrio nervoso e o
narcisismo, de sorte que o enfermo continua a se satisfazer a sos,
mesmo depois do matrimonio, acarretando entáo infelicidade para a
sua própria comparte.
Eis alguns casos que ilustram tal afirmacáo:
A Sra. N. certa vez se apresentou a um psiquiatra, por sofrer
de terríveis crises de depressáo ñervosa, experimentando sentimentos
de odio generalizado para com os homens, inclusive seu marido, e
para com Deus mesmo. Casara-se havia dezessete anos com um homem
muito bom, que lhe dispensava todos os cuidados, mas limitara suas
relagfies conjugáis á noite das nupcias e a urna única ocasiáo depois
disto. — Pois bem; ficou averiguado que tal marido praticava a
masturbacáo antes de se casar; esperava curar-se do vicio mediante
o matrimdnio, mas infelizmente no decurso da vida conjugal verificara
que mais se comprazia em seu antigo hábito solitario do que em
relacfles conjugáis. Dai a aflicao e a desgraca da esposa...
Tanrcbém se relata o caso da Sra N. N., que foi procurar um psiquia
tra por sofrer de obsessáo nervosa. Seu mal tinha historia assaz

— 476 —
HISTÓRICO E SIGNIFICADO DO ROSARIO

longa: costumava, sim, pratlcar o vicio solitario antes do matrimonio.


Urna vez casada, nunca conseguiu experimentar plena satisfagáo em
suas relacdes conjugáis; queixava-se de que o marido era pouco
compreensivo e nenhuma experiencia de vida sexual possuia. Seus
antigos hábitos continuavam a deleitá-la de modo tal que resolveu
dar-lhes de novo livre expansáo, vindo a sofrer naturalmente do
confuto decorrente da nova situacao.
Estes dois episodios (consignados na obra de J. H. Vanderveldt
e P. Odenwald, Psychiatrie et Catholicisme. Paris 1954, pág. 532s)
bem demonstram que o casamento, longe de resolver sempre a situa
cao desequilibrada devida ao vicio da masturbacao, pode contribuir
para a agravar. Consciente disto, o sacerdote será especialmente
cauteloso ao julgar as conveniencias de matrimonio de pessoas dadas
ao vicio solitario. Em casos de dúvida, poderá com vantagem mandar
consultar ou consultar um psiquiatra experimentado.

IV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

NUNES (Rio de Janeiro):

6) «Qual a origem do Rosario?


E como se poderia justificar tal forma de oracáo, em que
a rotina e o mecanicismo tanto tendem a prevalecer?»

Por «Rosario» entende-se aqui a modalidade de oracáo que con


siste em recitar quinze dezenas de «Ave María», precedida cada qual
por um «Pai Nosso» e seguida de um «Gloria ao Pai»; a cada dezena
está associada a contemplacáo de um misterio, ou seja, de um dos
principáis acontecimentos da vida de Cristo ou de sua Mae Santissima.
Tendo em vista as questóes ácima apresentadas, dividiremos nossa
resposta em duas partes, propondo primeiramente o histórico da
devocáo ao Rosario; a seguir, anallsaremos o seu significado na vida
de piedade.

1. Os precedentes do atual Rosario

1. O costume de rezar breves fórmulas de oracáo consecutivas


e numeradas mediante um artificio qualquer (contagem dos dedos,
de seixos, de ossinhos, de graos...) constitui urna das expressSes
espontáneas da religiosidade humana, independentemente do credo
que alguém professe (veremos no § 2 o «porqué» dessa espontaneidade).
Entre os cristáos, tal hábito já estava em uso entre os ereiritas
e monges do deserto (séc. IV/V): ávidos de manter sempre o espirito
unido a Deus em estado de oracáo, diziam centenas de breves preces
controladas por um sistema de calcular: sendo insuficiente para isso
o uso dos dedos das máos, comegaram a recorrer a seixos.
Paládio, historiador cristáo do séc. V, refere que um eremita do
séc. IV, chamado Paulo, fez o propósito de recitar diariamente 300
oracóes dispostas em determinada ordem; desejoso de nao omitir
alguma por descuido, recolhia entáo 300 pedregulhos que ele guardava
cm seu regaco e ia lancando fora, um por um, cada vez que rezava
urna prece (Hist. Lausiaca 20). O messmo historiador menciona dois
outros ascetas, dos quais um recitava 700 oragoes e o outro 100 por
dia — o que faz crer que o costume do eremita Paulo nao devia

— 477 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960. qu. 6

ser caso isolado. Contudo o sistema dos pedregulhos, por mais útil
que fósse, nao podia ser adotado em quaisquer circunstancias: seria
impraticável, por exemplo, por parte de monges que quisessem rezar
coletiyamente na igreja. Daí o recurso a novo artificio: passou-se
um fio ou cordel através dos graos previamente perfurados, fabri-
cando-se assim pequeñas correntes ou colares.

Éste uso, que é, como se vé, muito antigo na Igreja, tomou


incremento especial no Ocidente: no fim do séc. X havia-se
implantado entre os fiéis o costume de rezar a oragáo do
Senhor, o «Pai Nosso», certo número de vézes consecutivas.
Tal praxe teve origem provávelmente nos mosteiros, onde
muitos cristáos professavam a vida monástica, sem, porém,
possuir grande capacidade para o estudo; nao estavam, por
conseguinte, habilitados a seguir a oragáo comum e oficial da
Igreja, que compreendia a recitacáo dos salmos. Em conse-
qüéncia, para ésses irmáos ditos «conversos» ou «leigos», os
Superiores religiosos estipularam a recitacáo de certo número
de «Pai Nosso» em substituigáo do Oficio Divino celebrado
solenemente no coro.

Ao se tratar de sufragios por defuntos do mosteiro, enquanto


os monges mais capacitados rezavam 150, 100 ou 50 salmos, os
conversos diziam 150, 100 ou 50 vézes a oracáo do Senhor («P. N.»).
Ñas Ordens militares da Alta Idade Media, cujos membros eram
leigos, a praxe se tomou mais e mais comum: assim os Templarios,
para sufragar um irmáo defunto, estavam obrigados a recitar 100
«P. N.» por dia durante urna semana inteira.
Para favorecer ésse exercicio de piedade, foi-se aprimorando a
confeccáo das correntes que serviam á contagem das preces: cada
um désses cordeis de graos se dividía geralmente em cinco décadas;
cada décimo grao era mais grosso do que os outros a fim de facilitar
o cálculo (portanto, ainda nao se usavam, como hoje, series de dez
graos pequeños separados por um grao maior, pois só se dizia o
«P. N.»). Tais instrumentos eram chamados «Paternóster» tanto na
Franca como na Alemanha, na Inglaterra, na Italia, ou, menos fre-
qüentemente, «numeralia, fila, computum, preculae»; os seus fabri
cantes constituiam prósperas corporagSes, ditas dos «Patenotriers»
ou dos «Paternosterer».

Ao lado de tal praxe, ia-se desenvolvendo entre os fiéis


outro importante exercicio de piedade, ou seja, o costume de
saudar em tom filial e alegre a Virgem Santissima; fazendo
isto, os fiéis intencionavam evocar principalmente as alegrías
de María aqui na térra, em particular a alegría da anunciacáo.
Com éste fim, repetiam a saudacáo do anjo a Maria («Ave,
cheia de graca...», Le 1,28) acompanhada das palavras de
Elisabete («bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o
fruto de tuas entranhas»; Le 1,42. A invocagáo subseqüente
«Santa Maria, Máe de Deus, rogai por nos...» ainda nao estava
em uso na Idade Media).

— 478 —
HISTÓRICO E SIGNIFICADO DO ROSARIO

Em conseqüéncia, por volta do ano 1150 ou pouco antes


(época em que a saudacjio angélica já era muito usual), os
fiéis conceberam a idéia de dirigir a María 150, 100 ou 50
saudaQóes consecutivas, á semelhanga do que faziam repetindo
a oracáo do Senhor: cada «Ave María» era acompanhada de
urna «venia» ou de um gesto de reverencia, que ao mesmo
tempo dava caráter penitencial ao piedoso exercício. Cada urna
das series de saudac.6es (as quais cá e lá se acrescentava o
«Pai Nosso») devia, segundo a intengáo dos fiéis, constituir
urna coroa de rosas ofertada á Virgem Ssma.; daí os nomes
de «rosario» e «coroa» (em francés, «chapelet», isto é, orna
mento da cabega) que se foram atributado a tal prática; a
mesma era outrossim chamada «Salterio da Virgem Santis-
sima», pois imitava as series de 150, 100 ou 50 «Pai Nosso»,
que faziam as vézes de salterio dos irmáos conversos nos mos-
teiros. Destarte se vé que os «Paternóster» e posteriormente
os «rosarios» entraram na vida de piedade dos fiéis á guisa
de Breviario dos leigos, com o fito de entreter nos fiéis a estima
para com os salmos e a orasáo oficial da Igreja; o Rosario
tem assim o seu cunho de mentalidade e de inspiraeáo bíblicas.

Quanto ao nome «rosario», wn particular, foi muito fomentado


por urna historieta popular do séc. XIII: narrava-se entáo que um
monee cisterciense se comprazia em recitar freqüentemente 50 «Ave
Maria», as quais emanavam de seus labios como rosas que se iam
depositar na cabec.a da Virgem Ssma.!

Um passo ulterior no desenvolvimento do Rosario se deve


ao monge cartuxo Henrique de Egher ou de Calcar (y 1408).
Éste redigiu um poema intitulado «Psaiterium Beatae Mariae»,
no qual estimulava a recitagáo de um «Pai Nosso» antes de
cada dezena de «Ave María»; ora éste uso, de mera devocáo,
foi encontrando espontánea aceitac.áo por parte dos fiéis e veio
a tornar-se comum.

Outra etapa importante foi a associaqáo de meditacáo á


recitagáo vocal das «Ave María». No séc. XIV tal praxe estava
em vigor nos mosteiros das monjas dominicanas de Toss e
Katharinental. Contudo a difusáo e a paulatina generalizac.áo
désse costume devem-se a um cartuxo, Domingos Ruteno, que
viveu no inicio do séc. XV; Domingos propunha a recitacáo de
50 «Ave María», cada qual com seu ponto de reflexáo (ou
seu misterio) próprio. Outros sistemas de meditagáo entraram
aos poucos em vigor: houve quem se aplicasse a 150,165, 200.. .
pontos ou misterios. O dominicano Alano da Rocha (fl475)
sugería a recitagáo de 15 «Pai Nosso», 150 «Ave María», asso-
ciados á contemplacáo de 150 misterios, que percorriam os

— 479 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 6

principáis aspectos da obra da Redencáo desde o anuncio do


anjo a María até a morte da Virgem Ssrna. e o juízo final.
Mais urna faceta da evolugáo do Rosario, já insinuada
pelos precedentes, foi a inclusáo dos misterios dolorosos da
Paixáo do Senhor entre os temas de meditacáo. Isto se explica
pelo caráter sombrio e tristonho que por vézes tomou a piedade
popular no fim da Idade Media: o grande cisma do Ocidente
(1378-1417), a guerra dos Cem Anos, o flagelo de pestes, os
temores do fim do mundo muito chamaram a atengáo dos
fiéis para as tristezas da vida, em particular para as dores
de Cristo e de Maria; muitos entáo, além das sete alegrías de
María, focalizavam devotamente as suas sete dores.. .

A consideragao déstes tópicos de historia mostra claramente que


durante séculos a maneira de celebrar o «Salterio de Maria» variou
muito, íicando ao arbitrio da devocüo dos fiéis a forma precisa de
honrar a Virgem por essa via. Papel de relevo na orientagáo geral
da prática do Rosario coube, sem dúvida, a benemérita Ordem de
S. Domingos, á qual foi sempre muito caro ésse exercício de piedade:
através de Irmandades do Rosario, assim como por meio de pregagóes,
escritos, devocionarios, etc., os dominicanos difundiram largamente
a devogáo.
De passagem diga-se: vé-se destarte quanto é váo afirmar, como
faz um folhetinho espalhado em nosso público, que o Rosario é inova-
gáo introduzida no Cristianismo em 1090. Quem o lé. colhe a impressño
errónea de que o Rosario se originou a toque de decreto da suprema
autoridade da Igreja!

Foi finalmente um Papa dominicano, Sao Pió V (1566-


1572), quem deu ao Rosario a sua forma atual, determinando
tanto o número de «Pai Nosso» e «Ave Maria» como o teor
dos misterios que o devem integrar. O Santo Pontífice atribuiu
á eficacia dessa prece a vitória naval de Lepanto, que aos 7
de outubro de 1571 salvou de grande perigo a Cristandade
ocidental; em conseqüéncia, introduziu no calendario litúrgico
da Ordem de S. Domingos a festa do Rosario sob o nome de
festa «de Nossa Senhora da Vitória». A solenidade foi em 1716
estendida á Igreja universal, tomando mais tarde o nome de
festa «de Nossa Senhora do Rosario». A devogáo foi de entáo
por diante mais e mais favorecida pelos Pontífices Romanos,
merecendo especial relevo o Papa Leáo XIII, que determinou
fósse o mes inteiro de outubro dedicado em todas as paróquias
á recitagáo do Rosario.

2. Independentemente de quanto acaba de ser dito aqui, está


difundida urna narrativa que visa explicar a origem do Rosario em
termos diferentes: haveria sido diretamente entregue, em visáo, pela
Virgem Santissima ao glorioso S. Domingos quando éste no séc. XII,
em sua ardua missáo contra a heresia albigense, pedia o auxilio da

— 480 —
HISTÓRICO E SIGNIFICADO DO ROSARIO

Máe de Deus, no mosteiro de Prouille (onde S. Domingos instituirá


um centro de pregagáo e o prhneiro cenobio dominicano feminino).
Abalizados críticos católicos nao reconhecem a autenticidade dessa
narrativa. Urna das mais fortes razóos por éles evocadas é o silencio
das fontes históricas: nenhuma das pegas antigás do arquivo de
Prouille, nem os sete primeiros biógrafos de S. Domingos, nem algum
outro documento dos séc. XHI/XIV refere algo da apregoada visáo.
O primeiro a mencionar a aparicáo da Ssma. Virgem a S. Domin
gos é o religioso dominicano Alano da Rocha (f 1475), o qual, após
referir a visáo, celebra S. Domingos como restaurador e arauto da
prece do Rosario, prece já usual nos tempos dos Apastólos! O teste-
munho désse autor, além de tardío, é por si pouco fidedigno; Alano
julgava ter sido ele mesmo agraciado por visóes que lhe haveriam
mostrado toda a vida de S. Domingos!...

3. O costume antigo de repetir oracoes á guisa de coroa espiritual


nao se concretizou apenas no Rosario de Nossa Senhora. Além déste,
estao em uso entre os fiéis outras coroas espirituais representadas por
um colar de contas correspondente. Assim:
a) a coroa dos Cruciferos: tem a mesma forma que o Rosario
mariano, e recita-se do mesmo modo, sem obrigagáo, porém, de
meditar os misterios; é apanágio da Ordem dos Cónegos da Santa
Cruz ou Cruciferos;
b) a coroa do Senhor: consta de' 33 «Pai Nosso» em memoria
dos 33 presumidos anos da vida terrestre de Cristo, 5 «Ave Maria»
em memoria das cinco chagas do Redentor, e um Credo em honra dos
SS. Apostólos. Teve origem na Ordem dos monges camaldulenses;
c) a coroa das Sote Dores de Alaria: compoe-se de sete series
de 1 «Pai Nosso» e 7 «Ave Maria»; acrescentam-se 3 «Ave Maria» em
honra das lágrimas da Virgem Dolorosa; durante a recitacáo medi-
tam-se as sete Dores de Maria. É devogáo muito cara a Ordem dos
Sor vos fie Maria;
d) a, coroa das Sete Alegrías de Maria: divide-se em sete décadas,
cada qual constando de 1 «Pai Nosso» e 10 «Ave Maria». Acrescen
tam-se mais duas «A. M.», a fim de perfazer o número de 72 saudacSes
angélicas; dizem-se, por fim, 1 tP. N.», l «A. M.» e 1 «Gloria» segundo
as intenc6es do Sumo Pontífice. Esta coroa se prende especialmente
á historia das familias religiosas franciscanas;
e) a coroa angélica, em honra de S. Miguel Arcanjo e dos nove
coros angélicos. Constituirse de nove series de 1 «P. N.» (grao maior)
e 3 «A. M.» (graos menores), ás quais se seguem 4 «P. N.» (graos
maiores); além disto, compreende invocagóes aos coros angélicos;
f) a coroa de Sta. Brígida: constava, a principio, de 6 dezenas
(cada qual de 1 «P. N.»f 10 «A. M.» e 1 Credo), seguidas de 1 «P. N.»
e 3 «A. M.» (63 «Ave Maria» corresponder iam aos 63 presumidos anos
de vida da Virgem Ssma. sobre a térra). Foi posteriormente reduzida
a cinco dezenas. Esta devocáo, aínda usual em nossos dias, teve surto
na antiga Ordem de Sta. Brígida, hoje nao mais existente.

%. O significado do Rosario como forma de oragao

O Rosario tem provocado reservas e objegóes baseadas na índole


aparentemente mecánica désse tipo de oracáo: muitos o tém na conta
de exercício fadado ao automatismo e á rotina, apto a esterilizar a
vida de uniáo com Deus mais do que a estimulá-la.

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^PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960, qu. 6

Nao obstante, verilica-se que tanto os santos como grandes sabios


cristáos muito estimaram o Rosario. — Pergunta-se entao: como
entender o valor atribuido a essa devocáo?
Nao se poderia formular um juízo adequado sobre tal prática,
caso se levasse em conta apenas a sua face externa. A repeticáo de
preces vocais pode realmente dar a impressáo de que se mecaniza
e materializa a oracáo (a qual é essencialmente elevacáo da alma a
Deus); pode destarte parecer incorrer na condenacao que Jesús
proferiu no Evangelho: «Quando orardes, nao multiplicareis as pala
das, como fazem os pagaos, os quais julgam que seráo atendidos
em vista da multidáo de suas palavras» (Mt 6,7). Neste texto, nao
há düvida, o Senhor reprova a concepcüo que faz coincidir oracáo
com repeticáo de vocábulos, como se o homem pudesse influir sobre
a Divindade pelo aparato de sua %'erbosidade.
Nao é, porém, por efeito dessa mentalidade que se repetem as
«Ave Maria» na .recitagáo do Rosario. Nao; estas tém valor totalmente
subordinado; visam apenas criar urna atmosfera, um clima, dentro
do qual o espirito mais compassadamente se possa elevar a Deus;
é a contemplado interior, acompanhada de atos de amor, que constituí
a finalidade da repeticáo de fórmulas no Rosario. A oracáo vocal,
no caso, pode ser comparada ao corpo, ao passo que a contemplagáo
faz as vézes da alma do Rosario. Ora, assim como a alma humana,
em condigOes normáis neste mundo, precisa da colaboragáo do corpo
até mesmo para exercer as suas íungóes mais sublimes, assim também
a elevacáo da alma a Deus na oragáo precisa de um esteio sensivel,
que, no caso do Rosario, vem a ser a recitagáo das «Ave Maria»;
esta cria como que um «espago» espiritual dentro do qual a meditacáo
e o afeto se devem desenvolver; a monotonía das fórmulas é quebrada
pelo ritmo progressivo da meditacáo ou da contemplacáo. Destarte
o Rosario poe em acáo todas as potencialidades do homem, tanto as
espirituais como as corporais, para promover a uniáo com Deus.
A luz do que dissemos, o Rosario há de ser tido como expressáo
característica da natureza humana colocada na presenca de Deus.
É mesmo expressáo táo auténtica ou natural que ela tem seus para
lelos fora da piedade ocidental. Assim entre os cristáos orientáis está
muito em uso, tanto na liturgia comum como na devogáo particular,
o chamado «hiño acatisto*: consta de um proemio poético e de 24
estrofes, cada qual iniciada por urna letra do alfabeto grego, cele
brando o anuncio do anjo a Maria (cf. Le 1,26-36). Nesse hiño 156
aclamacóes a. Virgem Ssma., precedidas cada qual da mesma saudacáo,
correspondem de certo modo ás 150 «Ave Maria» do Rosario. Como
atestam os viajantes, nao há cristáo oriental que nao saiba de cor
o hiño acatisto. '
Mesmo ñas principáis religiñes da Asia e no Islamismo é costume
rezar mediante a repeticáo da mesma fórmula. Ora o fato de que tal
praxe esteja difundida entre homens de civilizaedes e temperamentos
táo diversos significa que ela bem corresponde ás disposicóes mais
espontáneas da natureza humana.
Estas consideracóes concorrem para que se entenda a posicáo
que o S. Padre o Papa Pió XI tomou frente ao Rosario, declarando:
«Quanto estáo longe do caminho da verdade aqueles que rejeitam
ésse método de oracáo (o Rosario) qual fórmula fastidiosa e cantilena
monótona, conveniente apenas a criancas e mulheres simples!... A
piedade se comporta á semelhanca do amor: mesmo que repita sempre
as mesmas palavras, estas nao exprimem sempre a mesma eolia;
mas algo de novo por elas se traduz, algo de novo inspirado por

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HISTÓRICO E SIGNIFICADO DO ROSARIO

novos e novos aíetos do amor» (ene. «Ingravescentibus malis> de


25 de set. de 1937; A. A. S. XXDC [1937] 376).

O Pe. Lacordaire (tl861), por sua vez, escrevia:


«O racionalista sorri, vendo desíilarem multiddes a repetir sempre
a mesma palavra. Aquéle, porém, que é iluminado por melhor luz,
compreende que o amor só tem urna palavra e que, ao proferi-la
continuamente, o amor jamáis a repete» (Vie de Saint Dominique c. VI).
A guisa de conclusáo, ainda se impóe breve observacáo sugerida
pela sinceridade e a honostidade: apesar dos varios títulos que reco-
mendam a recitagáo do Rosario, verifica-se que na prática nao é fácil
rezá-lo como ele deve ser rezado. Sao Luís-Maria Grignion de Montfort
(tl716), certamente grande amigo das devogñes marianas, julgava
que o Rosario é, ao mesmo tempo, «o método mais fácil de meditacáo»
e «a mais difícil das oragoes vocais».
Por isto, se um crista o, por mais fiel que seja á graga de Deus,
nao consegue familiarizar-se com esta forma de devocáo, será preciso
respeitar a agao do Espirito Santo em sua alma e nao lhe impor
como obrigagao de consciéncia tal modalidade de oragao (a menos
que !he seja prescrita por Regra ou por voto); cada justo tem sua
personalidade própria, que a graga de Deus costuma nao destruir,
mas antes desenvolver e aperfeigoar.

CORRESPONDENCIA MIÚDA

CATEQUISTA interroga : "Será necessário incutir a agáo de gra


gas após a Santa Missa de Comunháo ou pode-se admitir que os comun-
gantes se retirem da igreja logo após terminada a Missa ?"
— Quom comunpra deva normalmente permanecer em agáo de gragas
depois da S. Missa pelo intervalo de dez ou quinze minutos durante os
quais se conservam as sagradas especies e, por conseguinte, a real pre
senta do Senhor no comungante. Para ilustrar a importancia desta praxe,
costuma-se relatar que S. Filipe Neri (t 1595), certa vez ao ver urna
senhora sair da igreja logo após a S. Missa em que comungara, mandou
que dois coroinhas a arompanhassem, levando cada qual urna tocha acesa
na máo.
Este episodio sugere nao gómente o dever, mas também os motivos
da agáo de grabas após a S. Missa de Comunháo :
1) enquanto as especies sagradas permanecen» no comungante, éste
é de certo modo asseinelhado ao tabernáculo do altar e ao casto seio da
Virgem. Vc-su entüo que cometería irreverencia quem se dcscuidasse de
permanecer explícitamente em presenga do Senhor durante tal espago
de tempo.
2) O Senhor Jesús na Comunháo se dá aos seus fiéis na plenitude
de seu amor e de sua liberalidade (dom maior do que a S. Comunháo nao
se poderia desojar aqui na térra). Como entáo se pode conceber, nao
haja da parte do comungante urna atitude de entrega e doacáo corres
pondente, atitude que o leve a escutar o Senhor e a falar-Lhe de maneira
pessoal e íntima após as oraches comunitarias da S. Missa ? As preces
oficiáis da Liturgia da Missa após a Comunháo, longe de dispensar a
oracáo particular dos fiéis, exigem que cada um procure assimilar pessoal-
mente a agáo de gragas litúrgica num intenso coloquio particular com
Deus. Em vista disto, nao convém (fora circunstancias excecionats) que
o sacerdote ocupe o tempo da agáo de gragas com a recitagáo do Oficio

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 35/1960

Divino (ou Breviario), recitado essa obrigatória independentemente da


S. Missa.
Os santos mu ¡tas vézes afirmaran! que um dos momentos mais pre
ciosos da vida espiritual é justamente a a;áo de gragas após a Euca
ristía. Durante o agradecimento deve haver, confoi-me o Pe. Garrigou-
-Lagrange :
contato da ssma. alma humana de Jesús, unida ao Verbo de Deus,
com a nossa alma,
uniáo íntima da inteligencia humana de Jesús, iluminada pela luz
da gloria, com a nossa inteligencia, muitas vézes obscurecida, esquecida
de nossos grandes deveres, embotada em relac.áo as coisas de Deus,
uniáo da vontade humana de Cristo, imutávelmente fixa no bem,
com a nossa vontade vacilante,
uniáo da sensibilidade puríssima de Jesús com a nossa sensibilidade
por vézes muito apaixonada ; na sensibilidade do Salvador existem as
virtudes da fortaleza e da virgindade que fortalecem e virginizam (puri-
ficam) as almas que se apiesentam a Cristo.
Justamente urna das razóes mais comuns pelas quais a S. Eucaristía
nao produz nos comungantes os frutos almejados é a negligencia na
asáo de gragas ; em conseqüéncia, diz-se que pode haver cá e lá "muitas
comunhóes, mas poucos bons comungantes".
Consciente disto, a S. Igreja tem sucessivamente recomendado a
acáo de grasas após a Eucaristía, devendo-se a última declara;áo, a
éste propósito, ao Santo Padre o Papa Pió XII :
"A asáo sagrada... nao dispensa a asáo de grabas daquele que sa-
boreou o alimento celeste ; é coisa, alias, muito conveniente que, recebido
o alimento eueaiústico e terminados os ritos públicos, se recolha e, inti
mamente unido ao Divino Mestre, se entvetenha com Ele tanto quanto
as circunstancias permitani, em suavíssimo e salutar coloquio. Afastam-s<;,
pois, do reto caminho da Verdade aqueles que, baseando-se em palavras
mais do que no sentido da realidade, afirman) e ensinam que, acabada a
Missa, nao se deve prolongar a asáo de grasas, nao só porque o Sacri
ficio do altar é por sua natureza urna asáo de grasas, mas também por
que isto pertence á piedade particular, pessoal, e nao ao bem da comu-
nidade... A S. Liturgia, longe de sufocar os íntimos sentimentos par
ticulares dos clistaos, os facilita e estimula para que sejam assimilados
a Jesús Cristo e por meio d'Éle dirigidos ao Pai... Ao Divino Redentor
agrada ouvir as nossas orasóes, falar de corasáo aberto conosco e ofere-
cer-nos refugio no seu corasáo ardente" (ene. "Mediator Dei").

NIHIL : nos números de "P. R." de dezembro e Janeiro próximos


encontrará respostu ás questóes sobre a santidade de Deus, o demonio e
o pecado.
Temos diantc dos olhos varias cartas de nossos amigos, ás quaís
sentimos nao poder responder por falta de enderéso.

D. ESTÉVÁO BETTENCOURT O.S.B.

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
BEDAQAO ADMENISTRAgAO
Caixa Postal 2666 R. Real Grandeza, 108 — Botafogo
Bio de Janeiro Tel. 26-1822 — Rio de Janeiro

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