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Jose de Faria Costa, 'Consenso, Verdade e Direito' (2001) 77 Bol Fac Direito U
Coimbra 421

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CONSENSO, VERDADE E DIREITO

JOSE de FAnIA COSTA

1. O empenhamento tefirico de circunscrever um quadro especi-


fico para, desse jeito, se poder agarrar tao vasto tema, parece ser a tarefa
primeira que compete justamente aquele que quer nele e sobre ele
reflectir de maneira minimamente aprofundada. E, pois, com um pro-
pssito de delimita§ao que se enunciam duas proposipfies e também
duas interrogapfies — todas elas acintosamente secas e redutoras — que
vao constituir o horizonte critico e problematico do presente estudo.
Enunciemos, pois, em primeiro lugar, as proposipfies afirmativas: I,) em
direito, o consenso é uma categoria do seu processo legiferante enquanto a
verdade é uma no{fio opera to ma dO S It D ap1ica âo, II) em direito, o
consenso pertence ao império da vontade e a verdade parte de um impeto
gnoseologico. Lancemos, agora, as proposipses interrogativas: I) cruzam-se
ou tocam -Se sequer, em direito, consenso e verdade?; II), finalmente, se
isso acontece, devemo-nos, entao, perguntar: em que tempo, em que
lugar e de que modo?

2. Estabelecido o quadro onde nos vamos mover cumpre, todavia,


antes de se avanpar para a sua analise fazer uma adverténcia. A
categoria, conceito on nopao de consenso que pressupomos — e aqui
limpida- mente ja assumimos uma pre-compreesao clarificadora — nao
se con- funde com a ideia de consentimento ou sequer de acordo.
Partimos, assim, de uma ideia de consenso que se revé, sobretudo, no
étimo fun- dante do assentimento geral. Arranca-se, por conseguinte,
bem se vé, do principio de que o consenso se verifica quando uma
ideia, opiniao, causa, ideologia ou crenpa beneficia da partilha mais on
menos genera-

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lizada de uma comunidade de pessoas ou de parte substancial dessa


mesma comunidade. Por outras palavras ainda se nos for permitido:
acentua-se no consenso que aqui se pressupfie, contrariamente a ideia
de consentimento, uma tsnica de assunpao de finalidades compartilha-
das por uma maioria e nao por uma so pessoa. Tornemos as coisas
claras através de um exemplo: A, multimilionario, deixa, em testa-
mento, toda a sua fortuna a um amigo com o encargo modal de tratar
dos seus caes e gatos. Porém, desse modo, alguns familiares chegados
ficam em situa§ao econfimica dificil. Acto testamentario que releva,
como se vé de imediato, da sua total disponibilidade de consentir, den-
tro dos limites legais, por certo, relativamente a bens patrimoniais.
Todavia, ja temos muitas duvidas — para nao se dizer certeza — de
que uma ta1 ac§ao, nao obstante estar totalmente coberta pelo legitimo
manto do consentimento, esteja ela propria revestida do beneplacito do
consenso. Em definitivo: o consentimento, de maneira diferente do
consenso, é um acto de realizapao individual que so pode ter lugar a
bens ou valores disponiveis. Uma acpao, por conseguinte, que nao tern
de ser partilhada por quem quer que seja. Legitima-se e realiza-se em
toda a sua plenitude através, precisamente, da vontade individual que
se autocompraz no acto da sua prspria realizapao. E, de certa maneira,
se quisermos utilizar um outro tipo de linguagem, a manifestapao ine-
quivoca da manifesta§ao de um “eu” volitivo que so encontra como
limites as determinapfies legais. Nesta perspectiva, o consentimento
entra, definitivamente e nao sS por defeito, dentro daquele conjunto
de acpoes que permitem ou sao mesmo adequadas a livre realizapao
“eu”, quer este se veja ou reveja mais através de uma tfinica indivi-
dualistica, quer se afirme em uma perspectiva de forte e empenhada
realizapao com o “outro”. Para além disso, frise-se ainda, sS se con-
sente, em definitivo, no que toca a bens que estejam na esfera de
disponibilidade daquele que, justamente, tern o direito de consentir,
enquanto no consenso o que se lanpa é um impulso para a partilha de
uma ideia, de uma causa ou de projecto. O patrimsnio espiritual
comum existente daquele que procura o consenso é ainda nenhum.
E talvez tao-so um desejo racionalmente fundamentado que procura a
con0uéncia de vontades. Nada mais. Mas também nada menos. Toda-
via, se o consenso se alcanpa, pela confiuéncia entrecruzada das varias
partilhas, entao, podera dizer-se que se atingiu a finalidade. Que se
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consolidou o minimo de coeréncia indispensavel para que o consenso


tivesse tido lugar. Criou-se, assim, uma ideia, uma causa, uma dou-
trina, uma ideologia, um projecto que é ja patrimsnio espiritual de
todos aqueles que acreditam e querem os objectivos que sustentam a
matéria consensual.

3. Delimitado, sobretudo negativamente, o ambito conceitual do


consenso com que vamos trabalhar, é tempo de nos abalanparmos ao
estudo da primeira proposi§ao atras enunciada. Verdadeiramente o
que quer significar, quais as implicapfies e ainda qual a precisa deter-
minapao de se afirmar que “em direito o consenso é uma categoria do
processo legiferante enquanto a verdade é uma no âo operafñria da sua
aplica âo”?

3.1. A primeira ideia que queriamos, desde ja, tornar clara, quando
tentamos desvendar o sentido preciso de tal afirma§ao, é a de que o
que se convoca, o que se tern como primeiro elemento para a analise
hermenéutica, é um processo legiferante. O que temos perante nss nao é,
nem de longe nem de perto, a re0exao sobre a razâo de ser ou o /uit-
damento do direito ou mesmo da lei positiva. Com efeito, também aqui
nos remetemos a uma perspectiva que aceita que o consenso nao é, de
maneira radical, pelo menos em nosso modo de ver, um pressuposto da
legitirnidade material do direito ou mesmo da prfipria lei positiva mas
antes e tao-so — aqui, reafirmemo-to também, de maneira irrenuncia-
ve1 — um elemento essencial da procedimentalidade que leva a uma
sustentada e legitimo-constitucionalmente fundamentada produpao do
chamado ius positum.
Prende-se, é evidente, esta separapao das aguas, quanto ao funda-
mento do direito e quanto a sua produ§ao, com a visao que temos no
que a tais matérias diz respeito. Assim, facil é de perceber que o direito
que se chama a debate é, por antonomâsia, o direito positivado e que,
para além disso, vemos no fundamento do direito — enquanto ideia
regulativa e dado onto-antropologico —, como raiz primeira, a inesca-
pavel tensao, conflitualidade, afirmapao de alteridades que a relapao de
cuidado para com o outro nao pode deixar de traduzir.
Ora, nao nos podemos esquecer que tanto do direito que nos
envolve, em todas as circunstincias, e que, do mesmo jeito, condiciona

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as nossas vidas nos gestos mais corriqueiros e comezinhos do nosso


quotidiano encontra a sua fonte — para se continuar a usar uma meta-
fora tao cara a todo o pensamento juridico — na lei positiva. Dai que
fapa todo o sentido centrar a aten§ao critica sobre o processo que leva
a produpao de tal lei, de tal direito.
De sorte que, como se nao descoiihece, o firgâo, constitucional-
mente legitimo para levar a cabo a feitura de leis em sentido estrito, é o
Parlamento, a Assembleia da Republica. O que nos faz logo extender
quanto é fundamental a categoria do consenso para se ter uma exacta
perceppao do funcionamento do jogo democratico de decisao que se
opera dentro daquela Cimara. Nao nos esquepamos que uma das regras
de ouro da democracia parlamentar, da democracia em geral, podemos
dize-lo sem medo de cometer erro palmar, é a de que todas as decisses
politicas, e por consequéncia também as da mais estrita politica legis-
lativa, se fazem por meio do axioma da maioria simples. Uma lei é, nos
casos normais, aprovada, no Parlamento, quando colhe um numero de
votos maioritariamente favoraveis. Isto é: o consenso que é preciso
estabelecer em torno dessa decisao legislativa tern sS de se estender ao
universo de urna maioria simples. Neo precisa — e bem — de exigir a
unanimidade ou qualquer maioria qualificada. Ou seja: entende-se que
a partilha das finalidades, dos meios e dos valores que se querem ver
preservados com aquela precisa decisao legislativa é suficiente quando o
consenso atinge a regra da maioria simples.
De certa maneira, a tao decantada vontade do legislador exprime-
-se através de uma partilha onde confiui a expressao multipla e inte-
grada de varias autfinomas vontades. E se a volonté generals, de tfinica
rousseauniana, é ainda uma forma operatfiria para procurar o sentido e
a razao de prossecupao da finalidade da decisao politico-legislativa, nao
é menos verdade que o consenso expresso por aquela mesma volonte
générale nao pode ser confundido, como de ha muito se sabe, com a
mera soma aritmética das vontades particulares e autfinomas que se
comprometeram com um propfisito de con0uéncia de vontades. Pro-
pssito esse que levou a consagra§ao de uma determinada lei.
Por outro lado, mesmo que muita da produ§ao legislativa, nos
actuais estados de direito democratico, nao su a, nem de longe nem de
perto, do Parlamento mas, ao invés, dos Governos, do Executivo, isso
em nada infirma, pensamos, a asserpao principal donde se parte. E nao

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infirma e antes corrobora, porquanto as grandes linhas das politicas


leglslativas, enunciadas a comunidade dos cidadaos, sao por esta sufra-
gadas, através da legitimidade do voto. Ou seja: a maioria que emerge,
de um acto eleitoral, arrasta consigo, precisamente, o consenso da
prossecupao de ta1 politica legislativa. E que, por conseguinte, o Exe-
cutivo que encabepa essa legitimidade tern por obrigapao cumprir.
Consenso que, acrescente-se a propssito, nao so vale para a aceitapao
das finalidades e do modo de as atingir mas que se traduz também em
um proposito que, de certa maneira e em sentido translato, se impfie
como obriga âo de fins.
Explicitemos melhor o que por ultimo se acabou de ponderar.
A manifestapao de vontade que cada cidadao exprime no acto eleitoral
nao é a mera passividade para a prossecupao de determinada politica
legislativa que o Executivo deve levar a cabo. Benn ao contrario: ele
realiza esse acto de vontade politica para que se encontre o consenso
que a maioria legitima e, desse jeito, dar todo o espapo normatlvo para
que tal acontepa sem desculpas. O consenso, neste contexto, permita-
-se-nos a expressao, nao pode deixar de ser visto como um consenso
manifestamente consignado. Por outras palavras ainda: o consenso que se
cristaliza na determinapao das politicas legislativas nao é a projecpao de
uma vontade de itoa facere mas, irresistivelmente, a projecpao de uma
vontade de/arere.
Em sintese: a poiética legislativa, dentro de um modelo de organi-
zapao politico-constitucional democratico, passa, necessariamente, nao
so pela intenpao da procura de consensos, como, para além disso, estes
se mostram co-naturais ao prsprio acto de fabricapao legislativa. Toda-
via, tal como ja se defiou insinuado, o consenso nao é o fundamento
do juridico. Este encontra-se no conflito. Na tensao relacional de cui-
dado que é também conflito. Dat que a densificapao articulada, em ter-
mos politico-organizacionais, de tais tensses se realize e concretize pelo
valor instrumental-final do consenso.

3.1.1. Passemos, de seguida, ao estudo da segunda parte da afir-


mapao que constitui ainda o nosso horizonte critico-argumentativo.
Tentemos perceber o szgnificado de se dizer: em dzreito, a verdade é
uma nopao operatfiria da sua aplicapao.

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3.1.1.1. A primeira decorréncia que se pode extrair deste final


da proposi§ao que, ora, se trabalha é a de que a problematica da ver-
dade se nao coloca, em regra, no momento genético do acto legife-
rante. Assumindo-se uma ideia simples do iter normal de realizapao de
uma determinada norma podemos atribuir-ltte dois momentos essen-
ciais: o da sua consagrapao dentro do ordenamento juridico-positivo e
o da sua concreta aplicapao. Sendo certo que este ultimo, a sua con-
creta aplicapao, é aquele especial instante em que, entre a mera enun-
ciapao da normatividade e a densidade do caso concreto, a sua im-
pregnante factualidade, se estabelece a relapao unica e verdadeira em
que a norma e, sobretudo, o direito se realiza: isto é, a relapao em que
o justo se concretiza. Dat que, se a existéncia da norma é o pressu-
posto refiexivamente fundante para a sua aplicapao, esta, a concreta
aplicapao, nao pode deixar de ser olhada como inegavel expressao da
sua validez.
Todavia, para bem perceber aquilo que nos preocupa, atenhamo-
-nos a um exemplo bem simples do nosso quotidiano: A é acusado de
ter morto B. Ora, para que a A se possa aplicar a norma incriminadora
relativa ao homicidio mister é que se determine, que se certifique, que
foi A que causou dolosa on negligentemente a morte de B e que, para
além disso, na circunstancia, nao opere ou interceda qualquer causa de
justificapao ou de exculpapao. De um modo comunicacionalmente
sustentado no valor de uso da linguagem poder-se-a lanpar o mote
pertinente de que o que se quer saber é se é ou nao verdade ter sido A
a matar B. E, por conseguinte, esta finalidade de adequapao dos factos,
de adequapao da realidade a sua representapao intelectual que esta aqui
em causa. Isto que se acaba de mostrar, talvez de um jeito particular-
mente linear mas, impressivamente, racionalizavel através do mais sim-
ples instrumentarium, tern dado azo as mais profundas e acesas
discussfies. Também aqui — socorrendo-nos, alias, do legitimo beneficio
da 1imi- tada intenpao ou propfisitos deste trabalho que nos permite
poupar razfies e argumentos utilizemos uma formulapao tendencialmente
apodictica: a verdade que se alcanpa no momento da aplicapao da
norma de homicidio é tao-sS uma verdade intra-sistematica processual-
mente vâlida. Nao é a verdade ontolfigica. Nao é a verdade do juizo
existencial. Nao é a verdade sequer do juizo histsrico. E a verdade que
as regras processuais permitem e que a decisao jurisdicional legitima.

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CONSFsNSO, VERDADE E Dlmrro 427

O que mostra ou, pelo menos, indicia de maneira inequivoca que na


concreta aplicapao do direito entra um irrecusavel ou indesmentivel
momento de verdade.

4. Passemos, de seguida, i segunda proposipao afirmativa que,


nao obstante a sua clara autonomia de sentido, deve ser valorada com
tanto daquilo que ja se ponderou nos pontos referentes ao estudo da
primeira afirmapao que nos serviu de psrtico. Debrucemos, pois, nesta
perspectiva, a nossa atenpao sobre a seguinte formulapao: em direito, o
consenso pertence ao imperio da vontade e a verdade parte de um impeto
gnoseolâgico.

4.1. Independentemente de se estar ou nao dentro do estrito


dornlnio do direito nao é dificil perceber que a problematica atinente
ao consenso gravita em redor da vontade. A esta apreensao de cariz
generalizante deve acrescentar-se uma outra afirmapao de nao menor
teor genérico: o pensamento ocidental, o pensamento £tlosfifico oci-
dental, com todas as diferenpas, cruzamentos, sobreposi§fies, hege-
monias que se possam encontrar relativamente as duas nopfies que, de
momento, curamos —, sempre admitiu como suas categorias funda-
mentais a vontade e a cognoscibilidade. E se se pode dizer, sem estulta
ou epidictica retfirica, que o consenso nao é uma categoria refractaria a
verdade, da mesma forma é licito afirmar que a verdade nao repele,
sem resto, a prspria ideia de consenso.
Ilustremos, por consequéncia, o que se acaba de ponderar. For-
mulemos um exemplo muito simples. A e B estao em casa em uma das
suas divisfies. A viu passar ao longe, dentro de casa, um pequeno vulto
e disse: era o nosso cao. B que estava em igual posipao presenciou o
mesmo facto e disse: era o nosso gato. Se cada uma daquelas pessoas
continuasse a afirmar a sua convicpao quanto ao juizo de realidade, se
cada uma continuasse a propugnar ou a defender a sua “verdade” é
Sbvio que tudo continuaria indefinidamente igual. Isto é: A a dizer
que era o cao; B a asseverar que era o gato. Todavia, se A e B puderem
chegar a aceitapao, absolutamente racional, de que o que viram foi, por
seguro, um nriirnd/ doméstico, entao, pode afirmar-se que ao ser encon-
trado um consenso se encontrou também um juizo de verdade. E nao
se pense que o que se fez esta inquinado pelo vicio formal do mero

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jogo de palavras. Efectivamente, pensamos que a determinapao con-


ceitual — a determinapao de verdade — encontrada na nopao de ani-
ma1 doméstico é aquela que logicamente corresponde ao sentido
extensional dos objectos nocionais sobre que se conflituava. Con0ito
que desaparece quando, justamente, se chega ao consenso integrador
que o “animal doméstico” representa.

4.2. Todavia, quando entramos no mundo do direito as coisas


tornam-se diferentes, porquanto, sobretudo processualrnente, as regras
estao previamente definidas e nao se podem encontrar — e ainda bem
— categorias fora daquela anterior definipao. Tentemos no sentido
de mostrar a legitima coerpao que o direito impfie a procura de “con-
sensos verdadeiros” transpor o exemplo anterior para um dominio
plausivel da juridicidade.
Assim, aceitemos que A esta acusado de homicidio para com B e
que sao relevantes para a dilucidapao do caso duas testemunhas oculares
(C e D). Consideremos ainda que a testemunha C afirma ter visto o
potencial homicida e nao ter duvidas — juizo de verdade em consi-
derar ser ele do sexo masculino. Por outro lado, a testemunha D, com
o mesmo grau de certeza auséncia total de duvidas — jura ser o
homicida do sexo feminino. Ora, é evidente que de nada serve, aqui, dizer-
se que a responsabilidade da morte de B deve ser imputada a um “ser
humano”. Solupao que seria analoga a que se encontrou para o caso
anterior. Com efeito, nao sS isso se mostraria irrelevante, porque em
nada contribuiria para a concreta e precisa determinapao de saber quem
matou B, como poderia até fazer desencadear um principio orientador e
fundante da determinapao, da certeza, juridico-penal- mente relevante,
no especifico mundo do direito criminal. Isto é: a afirmapao de dois juizos
de existéncia, absolutamente contraditfirios, pode ter efeitos juridicos
relevantissimos. Poderia suscitar uma duvida para além do razoavel na
livre convicpao do julgador e, entao, este outra coisa nao po deria fazer
senao deter minar a absolvip ao do acusado. Ou seja: por aqui fica
claramente demonstrado que a decisao judicial, a verdade da sentenpa, é
conformada por outras variaveis que o aparentemente facil juizo de
existéncia pode sugerir. Contudo, tam- bém liquido se torna que de nada
vale as testemunhas procurarem o consenso ou o acordo em uma categoria
que as poderia satisfazer a

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CONSENSO, VERDADE E D HE ITO 429

titulo meramente individual mas que se mostra imprestavel dentro das


apertadas regras do jogo processual penal. Assumindo o risco da
repeti- Rao dolosamente querida, poder-se-a sustentar que é
absolutamente irrelevante, juridicamente irrelevante, que o depoimento
das testemu- nhas conflua na proposipao consensual de que quem
matou B foi um “ser humano”.
O que nos per mite concluir, também neste particular, que, qual-
quer forma de assentimento — seja o consenso, seja o consentimento,
seja o acordo — arranca de uma manifestapao de vontade e, nesse
quadro, entra irremediavelmente no império da vontade. Mas também
podemos sustentar, com igual dose de convicpao que a verdade, juridi-
camente relevante, nao obstante estar condicionada pelo cumprimento
rigoroso das determinapfies processuais — cristalizadas em principios,
regras e axiomas —, se sustenta na cognoscibilidade, se ancora na nossa
capacidade de entender se aquele pedapo da realidade se adequa a sua
prspria representn(an Stem qtierermos entrar em mois aprofiindamen-
tos que se mostrariam, em nosso juizo, desadequados e talvez mesmo
supérBuos, sempre se podera afirmar que a cognoscibilidade, por mais
fortes e diferenciadas que se mostrem as variaveis, absolutamente
legitimas, que condicionam o puro raciocinio de existéncia é ela, ainda
e sempre, o reduto ultimo para que o justo, nao se afaste, insuportavel-
mente, da verdade.

5. E tempo de olharmos para as interroga§Ses enquanto ele-


mento integrador da cr›mplexidade argumentative com que qiiisemos
trabalhar o Lritmotir que nos foi dado e que aceitamos como born.
Relembremos, por conseguinte, as perguntas: em direito, con-
senso e verdade cruzam-se ou sequer tocam-se? E se ta1 acontecer, em
que tempo, em que lugar e de que modo?
As considera§fies anteriores podem induzir — com alguma razao
acrescente-se, porquanto se estabeleceram cortes nitidos na perceppao
da realidade juridica relativamente aquelas duas nopfies — que o con-
senso e a verdade, que a vontade e a cognoscibilidade, no mundo do
direito, correm sempre de modo paralelo e que nem sequer no infinito
se encontram. Que sao realidades imicisveis. Que pela vontade consen-
sual se altera o mundo e o direito. Que pela verdade cognoscivel per-
cebemos o mundo e o direito.

ByD 77 (200 \), p. 42t —432


430 £SCRITOS

Ora, sem se querer fazer a apologia de um qualquer relativismo


â outrance nao podemos deixar de perceber, sobretudo, quando nos
defrontamos com uma disciplina da razao pratica, que as coisas nao
podem ser vistas de maneira tao extrema e com uma tao cortante e
impregnada separapâo. Por outras palavras: um direito construido,
ainda que com o mais amplo dos consensos, que nao tivesse em conta a
ver- dade dos dados cientificos, a verdade da experiéncia comum, a
verdade da resisténcia do real verdadeiro, seria uma ficpao, um nao-
direito que espalharia rapidamente o caos social. Da mesma forma, um
direito construido exclusivamente nas chamadas verdades cientificas,
no paro- xismo de um cientismo redentor ou em uma verdade religiosa
ou mesmo em uma mais fragil verdade moral seria tudo menos direito,
seria tudo menos manifestapao do justo, mas seria a exaltapao da mais
terrivel das tiranias. Logo, vontade consensual e verdade cruzam-se no
direito. E cruzam-se em proporpfies, esta born de ver, que variam con-
forme o tempo histfirico da sua realizapao do direito, o lugar da sua
especifica concretiza§ao e variam através de modos diferentes tendo
em vista os objectivos que se querem alcanpar.

5.1. Ilustremos, todavia, o que se acaba de dizer através de alguns


exem$los.
E indesmentivel que muitas das actividades humanas, sobretudo
depois da Revolupao Industrial, sao manifestamente perigosas. Ou seja:
é uma verdade, sustentada na mais rigorosa anâlise estatistica, que andar
de carro, de aviao, produzir energia nuclear etc. etc. sao actividades
perigosas. No entanto, nao passa pela cabepa de ninguém proibir, de
forma absoluta, todas estas actividades. O que se forma é uma vontade
consensual, expressa pela lei, de fazer com que tais actividades se
desenvolvam dentro de uma ideia de risco permitido. De um risco, que a
sociedade consensualmente esta pronta a aceitar, mas que cientifica-
mente sabe que tais comportamentos estao longe, muito longe, de
poderem ser vistos como de potencial de risco igual a zero.
Ninguém duvida, por outro lado, que o emprego, em processo
penal, do chamado poligrafo ou do pentatol de sfidio, possibilitaria
encontrar a chamada verdade processual de maneira mais consistente,
eficaz e, porque nao dize-lo, com um claro menor grau de erro.
to entanto, aqui, esta verdade — rectius, os meios de a encontrar

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CONSENSO, VERDADE E DIREITO 431

— cruza-se com vontade consensual, nao em um sentido positivo


como se descortinou na i1ustra§ao anterior mas antes e definitiva-
mente para afirmar a rejei{âo de ta1 “verdade”. E encontra-se esse
campo de comsensualidade porque se define como limite intransponi-
ve1 a dignidade da pessoa humana. Mas nao se pense que a redexao
suscitada pelo referido cruzamento é, por inteiro, inficua. Nada de
mais errado jugaria quem assim pensasse. De facto, ta1 cruzamento é
— muito embora de exclusao da via lan§ada pela chamada verdade
cientifica — ainda benéfico, porquanto serve a solidificar a vontade de
rejeipao de uma doutrina, uma ideia, uma ideologia ou um projecto.
Serve a ter vigilante e tenso o arco da razao critica.
E também hoje inquestionavel — para darmos uma ltima ilus-
trapao a este propfisito — que a ciéncia pode alterar o patrimfinio
genético da humanidade. Todavia, este dado nao vale por si e em si.
Ele tern de ser sustentado pela vontade consensual. Tern de se saber
quem, de que modo e com que finalidade pode levar a cabo tais alte-
raffles. Ou se quisermos ser ainda mais radicais: se essas modificapfies
sequer devem ser produzidas. No entanto, mesmo que se aceite que a
modificapao do patrimfinio genético da humanidade deve ser prosse-
guida o que se fara porque a historia nos mostra, sem um unico
caso contrario, que toda e qualquer descoberta cientifica, susceptivel
de alterar a realidade nunca deixou de ser aplicada, mesmo que peri-
gosa ou de alto risco — o que se tern de discutir é a sua legitimidade.
E encontrar a vontade consensual que possa dar um rumo limpido
claro e transparente a via ou ao caminho que se quer prosseguir. Nesse
momento e sS nesse deve intervir o direito. Pensar que o direito deve
intervir para dominar, d tort ct â travels, uma certa forma de fazer cién-
cia ou de procurar as verdades cientificas que a histfiria vai sedimen-
tando é, nao sS uma ilegitima prepoténcia do dever-ser juridico mas é,
por sobre tudo, uma quixotesca manifestapao de vontade absoluta-
mente ineficaz perante o curso normal do desenvolvimento cientifico.
Este, por certo, pode ter limites éticos. Sem duvida. Mas o que nao
pode ter, sobretudo de maneira aprioristica, é a barreira castradora da
conjunpao legal que mais do que tentar parar o tal desenvolvimento
cientifico ou tecnolsgico o que faz é satisfazer as boas consciéncias
farisaicas.

BID 77 (2001), p. 421—432


432 ESCRITOS

O que nos pode levar a seguinte conclusao: se no direito ha um


impulso para a verdade e para o consenso, o que se procura sempre, em
definitivo e em verdade, é a legitimidade para todo e qualquer compor-
tamento dos homens. E isso que, em derradeira instincia, o direito
per mite através da verdade e do consenso: legitima os comportamentos
de intenso relevo comunitario.

BFD 77 (2001), p. 421—432

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