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Segurança jurídica e o sistema brasileiro de precedentes judiciais.

A segurança jurídica, inegavelmente, é um dos princípios basilares de


qualquer ordem jurídica, na medida em que visa a promoção da igualdade e da
liberdade de todos perante o direito. Na prática, a segurança jurídica importa a ideia
de que os jurisdicionados devem ter clareza a respeito de como devem agir
conforme o direito, podendo planejar e organizar sua vida de maneira estável,
mediante a tomada de decisões juridicamente orientadas. Assim, os pressupostos
fundamentais de um ordenamento juridicamente seguro são a cognoscibilidade, a
estabilidade e a confiabilidade do direito.

Da mesma maneira, se mostra pertinente a análise do referido princípio à luz


da atividade interpretativa do direito, partindo-se da premissa de que a interpretação
consiste na construção do direito através da outorga de significado aos predicados
legais. Rompe-se, portanto, com a ideia de que os textos legais possuiriam um
significado estático e previamente estipulado. Acerca do tema, e da distinção
conceitual entre texto e norma, Humberto Ávila leciona:

Sendo assim, a interpretação não se caracteriza como um ato de discrição


de um significado previamente dado, mas como um ato de decisão que
constitui a significação e os sentidos de um texto1. (2) A questão nuclear
disso tudo está no fato de que o intérprete não atribui “o” significado correto
aos termos legais. Ele tão só constrói exemplos de uso da linguagem ou
versões de significado -sentidos-, já que a linguagem nunca é algo
pré-datado, mas algo que se concretiza no uso ou, melhor, com o uso2.3.

1
GUASTINI, Ricardo, “Interprétation et description de normes”, in Paul Amselek (org.),
Interprétation et Droit, pp.97-98 apud Ávila, Humberto. Teoria dos princípios jurídicos, 20ªed. rev.
atual. São Paulo: Malheiros, 2021 pp.51 e 52.
2
MULLER, Friedrich, “Warrum Rechtslinguistik? Germeinsame Probleme von
Sprachwissenschaft und Rechtstheorie”, in Wilfried Erbguth, Friedrich Muller e Volker Neumann
(orgs.), Rechtstheorie und Rechtsdogmatik im Austauch. Gedächtnisschrift für Bernd Jeand’Heur,
p.40; Manfred Herbert, Rechtstheorie als Sprachkritik. Zum Einflub Wittgensteins auf die
Rechtstheorie, p.290. apud Ávila, Humberto. Teoria dos princípios jurídicos, 20ªed. rev. atual. São
Paulo: Malheiros, 2021 pp.51 e 52
3
Ávila, Humberto. Teoria dos princípios jurídicos, 20ªed. rev. atual. São Paulo: Malheiros,
2021 pp.51 e 52
2

Com efeito, o advento do Código de Processo Civil de 2015 reavivou o debate


alusivo ao princípio da segurança jurídica, a partir do estabelecimento do sistema de
precedentes que, salvo melhor juízo, persegue a unidade do direito mediante a
uniformização de sua aplicação. Contudo, o referido sistema vem gerando certa
desuniformidade entre os operadores do direito, em especial no que se refere à
compreensão da função dos Tribunais em nosso ordenamento jurídico. Sobre a
função tribunais brasileiros no sistema de precedentes, Daniel Mitidiero propõe a
cisão entre Cortes de Justiça e Cortes de Precedentes, ainda, vale destacar a
definição conceitual do autor acerca dos precedentes judiciais:

O ideal é que apenas determinadas cortes sejam vocacionadas à prolação


de uma decisão justa e que outras cuidem tão somente da formação de
precedentes. Assim, uma organização judiciária ideal parte do pressuposto
da necessidade de cisão entre cortes para decisão justa cortes para
formação de precedentes - ou, dito mais sinteticamente, entre Cortes de
Justiça e Cortes de Precedentes. [...]

Precedentes são razões necessárias e suficientes para a solução de uma


questão devidamente precisada do ponto de vista fático-jurídico obtidas por
força de generalizações empreendidas a partir do julgamento de casos pela
unanimidade ou pela maioria de um colegiado integrante de uma Corte
Suprema.4

Portanto, as Cortes de Justiça estariam incumbidas de controlar as decisões


proferidas, ao efeito de proporcionar uma decisão justa aos jurisdicionados,
enquanto às Cortes de Precedentes, ou Cortes de Vértice, caberia a atividade de
outorgar sentido ao direito, através da formação de precedentes.

Entendo, porém, que as Cortes brasileiras, em geral, ainda se encontram em


processo de adaptação com o sistema de precedentes, bem como com os deveres
processuais decorrentes de sua aplicação. Em certa medida, me parece que o
sistema judiciário vem se utilizando dos precedentes judiciais, equivocadamente,
para o julgamento de casos em massa, o que não se sustenta diante da
necessidade da decisão em dialogar com os precedentes invocados, à luz da
exigência de fundamentação analítica (artigos 93, IX, da CF/88 e 489,§1º, do CPC).

4
MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 2ª ed.. São Paulo: Editora
RT, 2017, pp. 76 e 89.
3

A exemplo de tal constatação, me permito compartilhar um caso que fez parte


do meu processo de aprendizagem sobre o tema. No referido caso, em sede de
embargos de declaração, opostos em face do julgamento da apelação manejada
pela União Federal, a parte invocou a aplicação de precedente que, no entanto,
deixou de ser apreciado pela Corte de Justiça. Porém, com a interposição de
recurso especial, o E. Superior Tribunal de Justiça (Corte de Precedentes),
reconheceu a nulidade do acórdão proferido pela Corte de Justiça (Tribunal
Regional Federal), precisamente pela falta de diálogo entre a decisão e o
paradigma:

[...] verifica-se que o Tribunal de origem não se pronunciou acerca da


alegação apresentada nos embargos de declaração de que "a matéria
dos autos envolve a natureza jurídica das parcelas para os fins de
incidência da contribuição previdenciária, quota do TRABALHADOR,
diferentemente daquela retratada no Tema 985 que faz menção
expressa 'pagos pelo empregador'". [...] Para fins de conhecimento do
recurso especial, é indispensável a prévia manifestação do Tribunal a quo
acerca da tese de direito suscitada, ou seja, a ausência de
prequestionamento impede o conhecimento do recurso (Súmulas 282 e 356
do STF e Súmula 211/STJ). Assim, tratando-se de questão relevante para
o deslinde da causa que foi suscitada no momento oportuno e
reiterada em sede de embargos de declaração, a ausência de
manifestação sobre ela caracteriza ofensa ao art. 1.022 do CPC/2015.
Verificada tal ofensa, em sede de recurso especial, impõe-se, em regra, a
anulação do acórdão proferido em sede de embargos de declaração,
para que seja proferido novo julgamento suprindo tal omissão. (STJ -
RECURSO ESPECIAL Nº 1930781 - RS (2021/0098413-6), Rel. Min. Mauro
Campbell Marques, 15/05/2021) (Grifei).

Nesse sentido, entendo que o sistema de precedentes trouxe consigo um


dever de fundamentação para os aplicadores do direito, não bastando sua mera
aplicação sem realizar a comparação entre o caso concreto e o paradigma invocado.
Para tanto, se faz necessário identificar a ratio decidendi do precedente, ou seja, a
“individualização dos pressupostos que dão vida aos casos e a busca por
semelhanças ou distinções relevantes”5. Em outras palavras, como corolário da
segurança jurídica, é dever do julgador realizar um diálogo entre o precedente
invocado e o caso concreto.

5
MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 2ª ed.. São Paulo: Editora
RT, 2017, p. 100.
4

REFERÊNCIAS

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios jurídicos, 20ªed. rev. atual. São Paulo: Malheiros,
2021.

GUASTINI, Ricardo, “Interprétation et description de normes”, in Paul Amselek (org.),


Interprétation et Droit, pp.97-98 apud Ávila, Humberto. Teoria dos princípios jurídicos, 20ªed. rev.
atual. São Paulo: Malheiros, 2021.

MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 2ª ed.. São Paulo: Editora


RT, 2017.

MULLER, Friedrich, “Warrum Rechtslinguistik? Germeinsame Probleme von


Sprachwissenschaft und Rechtstheorie”, in Wilfried Erbguth, Friedrich Muller e Volker Neumann
(orgs.), Rechtstheorie und Rechtsdogmatik im Austauch. Gedächtnisschrift für Bernd Jeand’Heur,;
Manfred Herbert, Rechtstheorie als Sprachkritik. Zum Einflub Wittgensteins auf die Rechtstheorie.
apud ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios jurídicos, 20ªed. rev. atual. São Paulo: Malheiros,
2021.

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