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Marcelo Pacheco Machado

Doutor e mestre em Direito Processual pela Universidade de São Paulo – USP.


Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBDP.
Professor da Faculdade de Direito de Vitória – FDV, nos cursos de graduação e pós graduação.
Advogado. Sócio do Machado & Ferreira Neto Advogados Associados.

A CORRELAÇÃO
NO PROCESSO CIVIL
Relações entre demanda e tutela jurisdicional

2014

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CAP. 1

Conceito de demanda
SUMÁRIO • 1.1. O sentido das palavras e o direito – 1.2. Premissas: con-
ceito de demanda – 1.3. Demanda e seus sentidos legais – 1.4. Demanda
como ato processual – 1.5. Atos de parte: causativos e indutivos – 1.6. O
ato postulatório – 1.7. Atos postulatórios argumentativos e meros requeri-
mentos – 1.8. Identiicação e conteúdo da demanda – 1.9. Que signiica ins-
taurar ou alterar o objeto litigioso do processo? – 1.10. Estrutura da deman-
da – 1.11. Demanda: forma e conteúdo – 1.12. Demanda: agir por meio de
palavras – 1.13. Demanda e exigências axiológicas quanto ao formalismo.

1.1. O SENTIDO DAS PALAVRAS E O DIREITO


Como alertava Miguel Reale, as palavras nas ciências sociais ou humanas,
se comparadas àquelas no domínio das ciências físicas ou naturais, estão muito
mais intensamente submetidas à multiplicidade de signiicados. E há um motivo
simples para isso: o uso corriqueiro, informal e reiterado acaba por transformar
(multiplicar) o seu sentido.1
No âmbito do direito esta situação ica ainda mais clara, leis prescrevem
“conceitos” e “termos” jurídicos, na sua linguagem técnica – muitas vezes im-
precisa – e, nos foros, diferentes aplicadores vão lentamente atribuindo diferen-
tes sentidos às expressões.
Uma mesma palavra, assim, passa a ter diferentes signiicados em diferentes
contextos ou, em muitos casos, num mesmo contexto jurídico, gerando graves
problemas de comunicação, transvertidos em supostos debates a respeito da “na-
tureza jurídica” das coisas.
Dois interlocutores falam coisas distintas que têm o mesmo nome e acredi-
tam poder – validamente – opor argumentos e vencer o debate, assim falsamente
acreditam travarem debates doutrinários de alta profundidade.2
No âmbito do direito processual, a expressão “pedido”, não obstante possuir
bases históricas na evolução da dogmática e estar presente na linguagem técnica
de diferentes ordenamentos jurídicos, serve de bom exemplo para esse fenôme-
no. Muito cara aos foros e ao uso absolutamente aleatório, foi assumindo dife-
rentes sentidos ao longo do tempo. Um dos mais citados o deine como:

1. Cf. Filosoia do Direito, 1987, pp. 498-499.


2. Cf. Tarék Moysés Moussallem, Fontes do direito tributário, 2ª ed., pp. 29-30; e Osly da Silva Ferreira
Neto, Ações tributárias coletivas, 2013, pp. 22-23.

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“o conteúdo da demanda, a pretensão processual, o objeto litigio-


so do processo, o mérito da causa”[...]“é o anseio, a aspiração do
demandante, de que para aquela parcela da realidade social por
ele trazida na demanda e que lhe está sendo prejudicial, seja dada
a solução conforme ao direito segundo o seu modo de entender”.3

Todos estes fenômenos, não podemos negar, relacionam-se de certo modo


com a ideia de pedido que – de algum modo metafísico – acreditamos possuir
arraigada em nossa mente e isso será investigado mais adiante. Mas tratariam de
sinônimos? Seriam precisos o suiciente – do ponto de vista linguístico – para
encerrar um conteúdo unívoco? E o que é pior, o seu acatamento seria suiciente
para solucionar os problemas práticos que pairam a respeito da identiicação do
pedido no processo e de todas as consequências jurídicas daí decorrentes?
O mesmo problema se repete quando tratamos da demanda. Especialmente
neste caso, o termo não foi amplamente encampado pelo nosso direito positivo, de
modo que – como veremos adiante – o Código se vale de termos como “ação” para
designá-la (e.g. CPC, art. 28 e 37), e se vale dos termos “demanda” (e.g. CPC, art.
700, III), “demandado” (e.g. CPC, art. 12, § 2º) e “demandar” (e.g. CPC, art. 922)
para se referir a situações muito distintas da acepção técnica do vocábulo.
Diante destes problemas, em primeiro lugar, buscaremos deinir conceitos
precisos a partir da interpretação sistemática do direito positivo. Não acredi-
tamos na possibilidade de descobrir ou desvendar “o verdadeiro sentido” das
expressões ou “institutos” jurídicos e, portanto, este, em momento nenhum, será
nosso objetivo.4

3. A deinição retrata exatamente a ambiguidade de que sofre o termo e é um bom começo na tentativa
de solucionar o complicado problema de delimitação de um conceito. Pela sua abrangência, acaba por
retratar uma gama de questões – não muito bem resolvidos – a pairar sobre o que é (rectius o que deve
ser) efetivamente “pedido” para o processo civil brasileiro. A deinição resume diferentes posições,
correlacionando o pedido com ação, demanda, mérito, técnica processual, objeto litigioso do processo,
pretensão, relação de direito material, tutela jurisdicional (solução) e vontade da parte. Cf. Milton Paulo
de Carvalho, O pedido no processo civil, 1992, p. 97.
4. Os textos legais são constituídos a partir de linguagem técnica, passível de admitir diferentes sentidos, a
partir da sua utilização. Há elementos históricos que determinam o sentido das palavras, mas estes podem
facilmente serem corrompidos pelo uso e pela aplicação. O sentido de ação pode ser compreendido a partir
do conceito romano de actio, a partir do sentido moderno da expressão na doutrina italiana ou mesmo a
partir da linguagem do foro brasileiro. Nenhum desses sentidos coincidirá, correndo-se ainda o risco de se
observar que, mesmo nos citados contextos, há variabilidade de sentidos para a mesma expressão, vide a
polêmica sobre a actio que originou os debates de Windscheid e Muther. Por este motivo, acreditamos que
não cabe ao jurista procurar saber a “essência das coisas” ou a “natureza jurídica” dos institutos, cabe-lhe
descobrir o possível signiicado dos conceitos jurídicos, à luz dos critérios adequados de interpretação do
direito positivo. A respeito da questão, Tarék Moysés Moussallem aponta que tal problema metodológico
é fonte de inúmeros pseudoproblemas no estudo do direito, tais quais as discussões sobre a “natureza
jurídica da contribuição social”, sobre a “natureza jurídica da posse” (fato ou direito?), “natureza jurídica
da letra de câmbio” e a “natureza jurídica do casamento”. (Cf. Fontes do direito tributário, 2ª ed., pp.
29-30).

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Conceito de demanda

Em segundo lugar, também à luz do direito positivo, buscaremos desenvol-


ver conceitos que tenham aptidão – quando efetivamente aplicados às regras
jurídicas às quais se relacionam – de produzir os resultados mais adequados aos
escopos do processo (de acordo com os critérios hermenêuticos aplicáveis).
Este aspecto, especialmente, se dá, pois a relevância dos conceitos jurídi-
cos – muito longe de ser a busca da natureza jurídica ou da essência das coisas
– é justiicada pelo fato destes constituírem o antecedente normativo de diferen-
tes normas jurídicas, i.e. estarem presentes na linguagem prescritiva do direito
(“texto das leis”), de modo que a delimitação precisa de seu sentido acaba por
inluenciar o conteúdo da própria norma (fattispecie), da sua moldura normativa
e do seu sentido deôntico.
Assim veremos.

1.2. PREMISSAS: CONCEITO DE DEMANDA


A demanda é um ato singular para o processo civil, importando a instauração
do mecanismo estatal de resolução de controvérsias e a delimitação de seu objeto
litigioso, da matéria que será objeto da tutela jurisdicional, a ser potencialmente
concedida por meio do processo. Para Dinamarco: “o ato de vir ao juiz pedindo
tutela jurisdicional” [...] “tem por conteúdo uma pretensão de quem o realiza”.
[...] “demanda é um ato e não se confunde com ação, que é um direito, ou poder.
Não é correto dizer que se propõe uma ação, mas uma demanda: é esta que se
considera proposta, ou seja, posta diante do juiz à espera de satisfação”.5
Este ato se difere profundamente dos meros requerimentos, que não possuem
conteúdo jurídico/fático relevante (argumentação), e também dos atos postulató-
rios de mera defesa, na medida em que em seu conteúdo não há manifestação da
vontade da parte em alterar o objeto litigioso do processo.
Pela regra, o réu pode receber a mesma tutela jurisdicional (extinção do pro-
cesso ou improcedência), ainda que não tenha oferecido defesa alguma, o autor,
no entanto, pode apenas receber tutela jurisdicional (procedência) caso, antes,
tenha formulado demanda. Do mesmo modo, a demanda se difere dos atos re-
cursais, na medida em que estes não ampliam o objeto litigioso do processo, mas
apenas prorrogam a litispendência e permitem a revisão de um julgado.
Tudo isso, conforme demonstraremos, depende das escolhas feitas pelo di-
reito positivo, que aloca determinados atos em categorias jurídicas, com “nomes
distintos”, decorrendo daí várias consequências jurídicas relevantes, tais quais a
admissibilidade, o procedimento, os efeitos, etc.

5. Cf. Dinamarco, Instituições de direito processual civil, vol. II, p. 102 e vol. I, p. 301.

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Feitas estas considerações, e levando em conta os compromissos airmados


acima, chegamos ao seguinte conceito de demanda, que a seguir será mais bem
deinido: ato processual da parte, indutivo, postulatório, essencial e argumenta-
tivo, pelo qual se manifesta claramente a vontade de instituir ou alterar o objeto
litigioso de um processo.
Em conformidade com o quadro abaixo, analisaremos a demanda e suas
repercussões no modelo constitucional de processo para, posteriormente, estu-
darmos em qual sentido o termo é empregado pela ordem infraconstitucional,
quais são suas características fundamentais e em qual classe de atos processuais
a demanda se insere.

DEMANDA
Fato relevante para o direito. Apto a criar, modiicar ou extinguir situações
Fato Jurídico
jurídicas.
Fato jurídico realizado a partir da manifestação da vontade humana (fato +
Ato Jurídico
vontade manifestada).
Ato jurídico que tem como objetivo a criação, modiicação ou extinção de
Processual
uma situação jurídica dentro do processo.
Parcial Realizado por sujeito parcial do processo (parte).
Indutivo Não tem aptidão para causar de per se o resultado proposto ou desejado.
Visa a inluenciar psicológica-mente o juiz na emissão de um futuro ato
Postulatório
jurisdicional.
Essencial Caso não realizado, torna impossível a produção dos efeitos desejados.
Contém conteúdo cognitivo relevante. Diferencia-se dos meros requeri-
Argumentativo
mentos.
Expressa vontade de instituir (inicial) ou alterar (ulterior) o objeto litigioso
Fim especíico
de um processo.

1.3. DEMANDA E SEUS SENTIDOS LEGAIS


O termo “demanda” permaneceu por muito tempo “excluído da dignidade
do uso da linguagem mais técnica e apurada do direito processual civil brasi-
leiro”. E o Código de Processo Civil de 1973 é retrato desse fenômeno, dado a
multiplicidade de sentidos que concede à expressão; utiliza-a como sinônimo de
(1º) litígio, de (2º) pleito ou solicitação, ou mesmo de (3º) causa, (4º) processo
ou (5º) relação jurídica processual. Institutos que deveriam apresentar sentidos
distintos.6

6. Cf. Dinamarco, Instituições de direito processual civil, vol. II, pp. 103-104.

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Conceito de demanda

O termo é inicialmente usado para designar conlito de interesses deduzido


em juízo, tal como na redação do artigo 700, inciso III, ao falar do “prejuízo do
que perder a demanda”.
A mesma expressão é utilizada como sinônimo de processo (instrumento
estatal de resolução de controvérsias), quando o Código se vale dos termos “cus-
tear a demanda” (CPC, art. 852, par. único) ou “demanda pendente” (CPC, art.
593, III, 835, e 1.016, § 2º) ou “natureza da demanda” (CPC, art. 277, § 4º).
No particípio passado (“demandado”), o Código a emprega para designar
(i) o sujeito que ocupa o polo passivo da relação jurídica processual, em face de
quem o pedido foi formulado, como em sociedades demandadas (CPC, art. 12,
§ 2º), e em “demandado” (CPC, art. 94); ou mesmo (ii) o bem jurídico, material
ou imaterial, que de algum modo se relacionada ao pedido, i.e. bem ou coisa
demandada (CPC, art. 62, 69, II, 70, II e 286, I).
O artigo 460, por sua vez, vale-se da palavra “demandado” para designar fe-
nômeno completamente distinto, qual seja, o conteúdo do pedido, esclarecendo
sua necessária e lógica correlação à sentença: “É defeso ao juiz proferir sentença,
a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em
quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado”.
Ademais, o uso do verbo no ininitivo “demandar” designa alguma providên-
cia solicitada pela parte ao Estado, tal como ocorre nas expressões “demandar
em nome de outrem” (CPC, art. 315, parágrafo único), “demandar declaração”
(CPC, art. 521), demandar proteção possessória (CPC, art. 922), “demandar res-
tituição de terrenos” (CPC, art. 974) e demandar a inclusão no inventário (CPC,
art. 1001).
A mesma expressão é também utilizada pelo art. 984 do Código, no plural,
ao se referir à impossibilidade de conhecimento das chamadas questões que “de-
mandarem alta indagação” no curso do procedimento especial de inventário e
partilha.7
Os sentidos da expressão “demanda”, embora em grande parte relacionados
ao fenômeno processual, é dizer: (i) por qual meio se demanda, (ii) o que se de-
manda, ou (iii) quem demanda ou é demandado, não atendem a uma exigência
mínima de precisão conceitual.
E as impropriedades não param por aí. Por não incluir de forma sistemática
o termo “demanda” em seu vocabulário, o Código se vale do termo “ação” para
designar, exatamente, o ato de pleitear em face do Estado a concessão da tutela

7. O sentido utilizado não possui qualquer relação com a temática tratada, na medida em que demandar,
aqui, signiica apenas “exigir” investigação profunda, e não solicitar algo a alguém.

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jurisdicional (ideia mais próxima do conceito adotado acima), assim é que se


refere a “propor ação”, “intentar ação”, “ação proposta”, “fundamento da ação”,
“ações conexas”, etc. (cf. CPC, arts. 28, 37, 90, 94, 100, II e III, 103, 104, 106,
215, § 1º, 219, § 1º, 263, 268, V, 281, 283, 285, 301, § 1º a 3º, 315, 319, 326, 332
e outros).8
Estas observações demonstram que a linguagem técnica dos textos normati-
vos – como sói de ocorrer – não apresenta critérios adequados para a delimitação
precisa do sentido das palavras que emprega, exigindo uma investigação mais
apurada. Para este mister, pretendemos analisar os atos processuais mais a fundo,
de modo que possamos identiicar as características especíicas da demanda que
permitem identiicá-la.

1.4. DEMANDA COMO ATO PROCESSUAL


O processo civil é constituído de fatos jurídicos, é dizer, eventos empíricos
– que dependem ou não dependem da vontade humana – e cuja ocorrência se
submete à hipótese legal (fattispecie ou antecedente normativo, ora chamado
“P”) de determinada norma jurídica.
O resultado da incidência dos fatos (ora chamados “S”) previstos ao antece-
dente da norma deve ser a produção dos efeitos previstos pelo seu consequente
(sanctio iuris ora chamado “C”).
Assim é a estrutura lógica da norma jurídica, e da norma jurídica que
trata do processo civil (regra): dado tal fato (antecedente normativo ou
fattispecie) → deve ser tal consequência jurídica (consequente normativo).
Vejamos Karl Larenz:
“uma proposição jurídica completa, segundo o seu sentido lógi-
co, diz: sempre que a previsão P está realizada nua situação de
facto concreta S, vale para S a consequência jurídica C. A pre-
visão P, conformada em termos gerais, realiza-se numa determi-
nada situação de facto quando S, do ponto de vista lógico, é um
caso de P. Para saber que consequência jurídica vigora para uma
situação de facto – cuja procedência – e sempre dada – tenho,
portanto, que examinar se esta situação de facto é de subordinar,
como <<caso>>, a uma determinada previsão legal. Se assim for, a
consequência jurídica resulta de um silogismo que tem a seguinte
forma: Se P realizada numa situação de facto, vigora essa situação
de acto a consequência jurídica C (premissas maior). Esta determi-
nada situação de facto S realiza P, quer dizer, é um <<caso>> de P
(premissa maior). Para S vigora C (conclusão)”.

8. Essa é exatamente a linha da crítica de Dinamarco, confeccionada a respeito da redação do Código de


Processo Civil. Cf. Instituições de direito processual civil, vol. II, 3ª ed., p. 105

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