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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Introdução ao Direito II

Aulas teóricas Dr.ª Ana Margarida Gaudêncio

2º semestre
Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Introdução ao Direito II
2ª turma

Lição 13

Sumário:

B. O sentido específico do direito

III.

1. A determinação do atual princípio normativo do direito


a) sentido geral:
α) a exigência da consideração do princípio normativo do direito implicada pela
superação do positivismo jurídico;
β) o seu sentido geral e a sua objetivação na “consciência jurídica geral”;
γ) o seu tertium genus para além do jusnaturalismo e do positivismo.
b) análise da consciência jurídica geral:
α) o plano da assimilação sócio-cultural e político-social;
β) o plano dos “princípios jurídicos fundamentais”;
γ) o plano da dimensão axiológico-normativa última do direito:
αα) a pessoa e a comunidade;
ββ) corolários normativos: princípio da igualdade e princípio da responsabilidade
2. O princípio normativo e outras intenções alternativas:
a) a referência ao valor segurança no quadro global da axiologia jurídica;
b) o desvio do finalismo jurídico;
c) a hipótese de “alternativas radicais” ao próprio direito:
α) uma ordem de poder (ordem de necessidade);
β) uma ordem científico-tecnológica (ordem de possibilidade);
γ) uma ordem política (ordem de finalidade).

11/03

Propusemo-nos partir da reflexão que tinha sido o nosso ponto de chegada em


Introdução ao Direito I sobre o sentido normativo do direito nesta proposta, que sabemos que é
apenas uma proposta entre outras possíveis suas contemporâneas e com as quais estamos a
dialogar. Mas, nesta proposta que pretende fazer assentar o direito na evolução histórica que a
matriz europeia-ocidental nos reconhece, se nos apresenta como uma especifica normatividade,
entre outras igualmente vigentes no nosso contexto cultural, porém, reconhecendo-lhe (marca
fundamental desta proposta jurisprudencialista) que é uma manifestação de uma validade de
direito que exige uma reflexão sobre os seus fundamentos, características e efeitos de modo a
diferenciar essa normatividade e essa axiologia de outras normatividades e outras axiologias
alternativas que se propõem, não apenas noutras áreas como também como alternativas ao
próprio direito. Portanto, procurando substituir esse ideário normativo historicamente constituído
por outras ordens de organização da intersubjetividade. Mas, isso requer que aprofundemos mais
a abordagem do que seja o sentido normativo material do direito.

Falar em princípio normativo do direito como referente axiológico desta normatividade


implica que se identifique aquilo que historicamente, desde logo, se assumiu com base
fundamentante na matriz cultural da civilização ocidental. Evidentemente, que se alterarmos o

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pressuposto/contexto reflexivo iremos concluir, não apenas espacialmente, mas sobretudo


temporal-espacialmente, que outras experiências de construção daquilo que pode, ainda assim,
designar-se direito são substancialmente diferentes. Bastaria referirmo-nos às experiências
civilizacionais que não tendo passado pelas vicissitudes históricas que levaram à autonomização
entre a ordem ético moral religiosa e a ordem jurídica, apresentam ainda hoje direitos de base
referencial religiosa. Há um período absolutamente fundamental da autonomização do sentido
da prática humana face à referência transcendente e com isso do direito face a essa referência
transcendente, que é todo o período que anteveem desde a modernidade, do renascimento para
o presente.

Esta ideia de transcendência se assumiu com diferentes radicações/horizontes de


referência. Efetivamente, se o período pré-moderno que nos trouxe diferentes manifestações de
referente externo ao ser humano como ordem pressuposta em que o ser humano se inscreveria
– temos várias experiências, desde logo, do período da antiguidade clássica com a referenciação
à polis, na Grécia antiga, em Roma. A idade moderna traz uma referência onto-antropologica.
Significa isto que a ação humana se assume como fundamentada de uma ordem externa
pressuposta de ordem cosmológica. Depois, de ordem teleológica. De seguida, de ordem racional
humana. A racionalidade que constitui a fundamentação do ser e da ação humanos é afinal
racional cosmológica, racional teleológica e, por fim, racional humana. Sendo que, com isto,
reconhecemos que a referenciação a uma ideia de direito natural perdurou durante um longo
período de tempo, desde as referenciações cosmológicas gregas, é foi decisiva para a transição
para um positivismo. A referência ao direito natural está incita ao direito positivo ou noutras
perceções, a referência ao direito natural passa a ser supérflua, porque o direito positivo é todo
o direito – cisão entre o direito natural e o direito positivo. Entramos no positivismo como matriz
fundamental que dominou o pensamento no século XIX.

Daí para cá, num contexto dito pós-positivista as críticas ao formalismo e ao


descomprometimento pelo sentido axiológico que o direito transmita, foram apresentadas em
múltiplas direções. Uma das propostas visa a recuperação do sentido material do direito, portanto,
uma recuperação no sentido de axiologia normativa do direito. Podendo esta, também, ramificar-
se em diferentes perceções. Há outras perceções que compreendem que o direito deve visar fins.

Se há compreensões que recuperam o sentido material com base numa relação de


fundamento ou consequência – jurisprudencialismo – outras há que vão assentar a relevância da
materialidade na relação meio fim, ou seja, numa materialidade finalística. Kantorovich faz esta
distinção entre pensamento formalista e pensamento finalista. O primeiro teremos a continuação
da perceção de que o direto deve ser cientificamente pensado, criado e construído. O pensamento
finalista detém-se na prossecução de fins, de respostas para a vida prática, em vertentes mais
finalistas do direito ou em vertentes mais axiológico normativas que acentuam esta relação entre
fundamentação e consequência, como é o caso da perspetiva jurisprudencialista sobre a qual nos
estamos a debruçar.

Dentro da discussão em que tem o direito, por um lado, e a moralidade, por outro, que
hoje tem vindo a alimentar em boa parte a filosofia e a teoria do direito, sobretudo, no mundo
anglo-saxónico, mas não só. Essa é uma perceção que visa distinguir a determinação jurídica da
determinação ético moral e discutir as razões por que os sujeitos se conformarão por uma ou por
outra destas ordens normativas, ou por ambas conjugadamente, na medida em que o conteúdo
destas coincide. (Não vamos estudar estas perceções de positivismos e não positivismos a
propósito da diferenciação entre direito e moral.).

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Do lado do pensamento finalista, isto é, do reconhecimento que o direito prossegue fins


e deve prosseguir fins, porque é uma ordem que visa orientar a prática, só que nas correntes
finalistas algumas assumem: (1) a teleologia – o finalismo como referente decisivo para o direito,
aferidor da própria viabilidade e adequação (validade), ou seja, os fins são o critério aferidor da
viabilidade e adequação do direito, portanto, o direito será tanto melhor quanto mais atinja como
resultados os fins que lhe são impostos. Aqui temos os teleologismos que o século XX nos trouxe.

Não é esta ideia de teleologia que o jurisprudencialismo corresponde, ou seja, esta


proposta que estamos a analisar em que insistimos num sentido normativo material próprio do
direito é outra referência e compreensão. O jurisprudencialismo assume que o direito está ao
serviço da prática, mas não é um teleologismos. É, antes, teleonomologica, ou seja, significa que
incluímos na palavra “teleologia” a palavra “nomos” – a pressuposição integrante de uma ordem
normativa de valor que fundamenta o sentido do direito.

Assim, sendo o direito uma disciplina prática e o pensamento jurídico um pensamento


prático, há uma dimensão teleológica fundamental nesta perspetiva jurisprudencialista, mas ela
não é o núcleo essencial do sentido do direito. O direito é uma ordem normativa prática que
assenta na reflexão axiológica sobre o seu sentido e que visa prossecução de objetivos que integra
como sendo objetivos do direito. Simplificando: para os finalismos o direito vale em função dos
objetivos que prossiga e consequentemente consiga realizar com resultados. Para a perspetiva
jurisprudencialista o direito vale porque é direito, isto é, porque se fundamenta no sentido de
direito, se relaciona com a realidade e, consequentemente, vai produzir resultados de direito
como resposta que o direito dá, uma vez refletindo sobre os estímulos que a realidade lhe
apresenta e respondendo juridicamente. O direito, com isto, mantém uma autonomia material e
intencional sem se fechar. Portanto, numa autonomia relativa, reflexiva em que recebe os
estímulos da realidade e os filtra critico-reflexivamente para os traduzir juridicamente e, assim,
estabelecer as tais orientações de conduta (normatividade para a prática). O direito faz isto, quer
respondendo aos estímulos, quer antevendo eventuais alterações na realidade. Assim, o direito
não é só uma resposta à história, também tem uma dimensão prospetiva de conformação da
história. A teleologia é um elemento fundamental, porque o direito prossegue fins práticos, mas
o direito não é instrumento da teleologia externa. Nesta perspetiva, o direito produz efeitos na
sociedade, porque é direito. O direito por ser direito e por assumir uma certa validade e
normatividade produz efeitos na sociedade. Isto é radicalmente distinto de dizermos que o direito
vale porque produz certos objetivos que a sociedade lhe impõe.

Com isto a pressuposição de um sentido normativo material leva à identificação do


fundamento (horizonte de referência) e é esse fundamento que nós vemos sob espécie de
princípio normativo. Temos uma institucionalização histórica de um sentido que não é imposto
de fora aos sujeitos de direito, ou seja, o direito não é hétero determinado por um absoluto lhe
seja externo. Há autores que, ainda hoje, pensam o direito assim, como uma concretização
histórica sempre imperfeita de um absoluto histórico que o transcende. Mas não é isto que está
em causa. O que aqui se assume é que o sentido fundamentante do direito – princípio normativo
do direito – que vai implicado pela superação do positivismo, é construído intersubjetiva
ideologicamente na histórica, portanto, a historicidade é-lhe constitutiva. Porém, isso não significa
que o fundamento do direito seja um meramente contingente resultado de um consenso. Não é
mero consenso em torno de um conjunto de regras que contingentemente podem aplicar-se
agora e depois deixar de se aplicar pela mera contingência. No limite, se quisermos ver na validade
do direito uma ideia de absoluto, de algo que é indisponível, por ser uma conquista cultural temos
que ver a ser como um absoluto histórico, ou seja, o sentido do direito só é absoluto porque é
um pressuposto fundamental historicamente construído e não porque seja imposto de fora.

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Como vimos, a ordem jurídica é um pressuposto fundamental constituendo e que


representa uma base dogmática decisiva para a decisão prática do ponto de vista do direito, ou
seja, o jurista não parte diariamente do zero para construir as suas decisões. Nesse ponto de vista,
a herança histórico-cultural é crucial, não porque seja assumida como uma verdade indiscutível,
mas porque se manifesta como uma experiência reflexivamente discutida e que se vai
dialeticamente enternecendo ao ponto de na sua evolução se irem sempre convocando os
pressupostos anteriormente estabelecidos discutindo-os para se reconstruirem e
reconstitutivamente se tronarem aptos a responder às exigências da prática presente e futuro. Em
termos mais simples, isto significa que nós podemos discordar dos pressupostos, mas dificilmente
podemos dizer que eles não existem, porque, de facto, eles estão aí e manifestam-se perante nós
ao longo da história. É disto que se trata quando se fala da historicidade constitutiva do sentido
do direito e, portanto, a manifestação do princípio normativo como um constituendo – uma
normatividade em continua constituição.

Se o sentido do direito se constitui intersubjetivamente há que procurar perceber quem


são os sujeitos que o constituem - quem são, onde se encontram, em que tempo se manifestam.
Neste ponto, o Doutor Castanheira Neves propôs-nos a referenciação da construção do sentido
do direito à prossecução da ideia de existência de uma consciência jurídica geral. A consciência
jurídica geral, como o próprio nome indica, é a objetivação histórico-cultural da intersubjetividade
jurídica partilhada quanto ao sentido do direito. Uma consciência jurídica geral num certo
enquadramento e contexto temporal haverá um consenso, mais alargado ou mais restrito, em
torno do que deva ser direito, de quais os seus pressupostos e sentido que estão simultaneamente
em continua discussão. Esta consciência jurídica geral é, num momento e num espaço, a
objetivação histórica e continuamente constituída daquilo que deva ser direito.

A consciência jurídica geral vai apresentar-se-nos em diferentes níveis constitutivos. Se


partirmos de uma referenciação mais alargada e menos especifica, da origem da construção do
que seja, em sentido comum, para essa consciência jurídica geral, o direito. Se pensarmos numa
construção do direito a nível comunitário os laços são espontâneos e independentes de uma
prévia determinação de vinculação convencionada, ao contrário do que acontece na sociedade.
Nesta perspetiva jurisprudencialista devemos conjugar as duas dimensões, ou seja, a consciência
comunitária de a intersubjetividade pode ser logicamente anterior e independente da existência
da consciência imediata e da consequência convenção sobre a juridicidade – conjugação de
comunidade e sociedade.

Conjugando comunidade com sociedade, vamos encontrar nesta perspetiva


jurisprudencialista um consenso mais formalizado, mas também menos formalizado, sobre o que
seja o direito. Esse consenso na sua base e num primeiro nível da consciência jurídica geral é um
consenso em torno de um conjunto de opções e de compromissos que são juridicamente
relevantes. É aquilo que nos leva, em termos culturais e sociais, a dizer que este problema tem
relevância jurídica e exige uma resposta do direito. Isto surge da evolução histórica de que somos
tributados e com a qual temos de dialogar, assumindo-a como pressuposto com que nos
defrontamos. É a partir deste consenso que vamos encontrar o primeiro nível da consciência
jurídica geral. Este nível é ainda empírico e contingente, mas a consciência jurídica geral não se
fica apenas neste primeiro nível.

Vamos encontrar um segundo nível de direitos e princípios fundamentais que nos estados
constitucionais do nosso tempo vemos consagrados nas constituições. De seguida, um terceiro
nível, um nível último de referenciação da validade do direito que é exatamente correspondente
ao conhecimento intersubjetivo da pessoa enquanto sujeito com inigualável dignidade ética,

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exige que o sujeito seja dotado de autonomia e responsabilidade. Uma sem a outra implicaria
que já não estivéssemos perante direito, nesta perspetiva.

No primeiro nível da consciência jurídica geral há que perguntar pelas razões da


passagem ao segundo nível. A projeção no segundo nível da consciência jurídica geral já exige
alguma institucionalização e que tem que ver com a positivação de princípios e direitos
fundamentais que, nos estados constitucionais, se assumem como princípios e direitos
fundamentais. É aqui que vamos encontrar o princípio do Estado de Direito, o princípio da
proteção da confiança, o princípio da liberdade, o princípio da igualdade, ou seja, os pilares
fundamentais da construção da ideia de estado de direito. Mas, ainda não temos aí o referencial
último do sentido do direito nesta perspetiva, isto é, essa ainda não é a última linha da consciência
jurídica geral.

Há um referente pressuposto de sentido para lá do anterior que tem que ver com – o
terceiro nível da consciência jurídica geral – a identificação com o horizonte de referência de
validade, isto é, o que é que dá validade ao direito? O que dá validade ao direito (que no nosso
contexto já não é a perspetivação jusnaturalista, nem a redução à legitimação jurídico-política) é
antes, neste ponto de vista, o reconhecimento decisivo e recíproco da pessoa como horizonte
último de fundamentação do direito. O fundamento último do direito é o reconhecimento
axiológico da pessoa. A pessoa não é uma mera entidade antropológica, pois estaríamos a
identificar só um membro da espécie humana. A pessoa é uma verdadeira aquisição axiológica,
que faz com que possamos distinguir: (1) Individuo; (2) sujeito e (3) pessoa.

(1) Individuo como pressuposto autónomo que eventualmente se relaciona com o outro
vinculando-se
(2) Sujeito que é um ator, mas pode não ser livre
(3) Pessoa como sujeito com dignidade ética, autonomia e responsabilidade.

O facto de se considerar pessoa, neste sentido, como uma aquisição axiológica mostra-
nos que estamos a falar de um certo conceito cultural de pessoa. Muitos autores convocam a
pessoa, não necessariamente sempre no mesmo sentido, mas dentro deste enquadramento
cultural. Em termos contemporâneos, temos autores como, por exemplo, John Rawls, embora
numa nota de acentuação mais liberal, mas muito preocupado com a dignidade, ou seja, Rawls
não vê no sujeito de direito só um individuo.

Também, ainda, Ronald Dworkin que propõe a pessoa noutro sentido menos marcado
pela dimensão da construção convencional. É ainda um liberal, mas já com formações numa certa
ideia de comunidade, pois está muito preocupado com a ideia de aperfeiçoamento intersubjetivo
do ser humano.

Esta ideia de pessoa obriga a que têm de estar presentes as caraterísticas de autonomia
e responsabilidade em simultânea. Uma sem a outra implicaria que já não estivéssemos perante
direito. Se estiverem apenas deveres numa ordem, estamos perante uma ordem moral e não uma
ordem jurídica, porque na moral falasse na ideia de direitos prévios à ideia de direito. É preciso
perceber se os direitos morais são jurídicos.

Esta pessoa assim compreendida não vive sozinha, porque não faria sentido falar de
direito se não houvesse, pelo menos, duas pessoas. O direito está aqui a delimitar reciprocamente
a posição de certos sujeitos face a certos objetos. Qualquer um se nós isolado sem necessidade
de limitação provavelmente não necessitaria de direito. Direito surge porque há uma certa partilha
do mundo que é necessário delimitar. Já dissemos que não são todas as partilhas do mundo, ou

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seja, há domínios das nossas vidas em que o direito não interferirá. Mas, tal como diz Castanheira
Neves: “Um mundo é um só e nós somos nele muitos.”, põe a miude o problema da partilha do
mundo. A questão poe-se múltiplas vezes.

É preciso perceber que os problemas que exigem do direito uma resposta são problemas
particulares, específicos e que não admitem permanecer na indefinição. Se A invade a casa de B,
é bem diferente do que ser convidado por B a ir a sua casa. Esta segunda hipótese, na nossa
construção cultural, tem relevância jurídica. a questão está: o tipo de problema e a relação que
estabelece com o sentido do direito que se encontra vigente naquele contexto.

Para percebermos esta relação da pessoa e a coletividade em que se insere, temos que
acrescentar a ideia de comunidade que vai se vai conjugar com sociedade, mas que implica que
nós não vivamos isolados (não somos nómadas) e que nas nossas vidas nos encontremos uns
com os outros. Portanto, nos mais diversos pontos de vistas e não apenas do jurídico, a
comunidade é condição da pessoa.

É, desde logo, condição de existência ou condição vital, ou seja, isto significa que a
nossa subsistência, até do ponto de vista físico e humano, implica uma certa dependência
relativamente aos outros. Mais do que nunca no início, pois os seres humanos à nascença não
têm desenvolvidos instintos e mobilidade suficientes para a sobrevivência.

Além de condição vital, a comunidade é condição empírica, porque é na


complementaridade das tarefas, na divisão do trabalho, de contributo para a construção de uma
certa comunidade, aquilo que permite que não tenhamos que nos reunir todos de manhã para
decidir quem vai fazer o pão e quem vai dar aulas, por exemplo. Isto leva-nos a dizer que temos
aqui também uma condição empírica, isto é, nós não somos pessoas se não através da
comunidade neste ponto de vista organizacional.

Para além disso, a comunidade é uma condição ontológica, isto é, o nível de ser que
atingimos enquanto pessoas depende em muito das trocas de sentido, comunicativas do uso da
linguagem que estabelecemos uns com os outros. A ideia de ser, pessoa, passa pela relação com
o outro.

Ver a pessoa na comunidade, neste sentido jurídico, vai levar-nos a pôr questões cruciais.
De facto, mobilizando esta construção de que não vivemos isolados, mas que, simultaneamente,
nos apresentamos como sujeitos com autonomia perante a comunidade, ou seja, não somos
células de uma comunidade sem a qual não nos compreenderíamos enquanto sujeito autónomos.
A comunidade não nos absorve ao ponto de nos reduzir e suprimir à autonomia. O sujeito pessoa
de que estamos a falar vê na comunidade a sua condição vital, empírica e ontológica, mas também
se compreende autonomizando-se. Isto significa que o sujeito confronta a própria comunidade,
não perdendo a sua autonomia e dependendo da comunidade. É parcialmente autónomo e
parcialmente dependente da comunidade.

Essa autonomia e parcial vai apresentar-se-nos do ponto de vista do jurídico na


confrontação dialética entre autonomia e responsabilidade. A pergunta que se põe agora é:
“quanto-me” é juridicamente exigível? O quê e até que ponto se pode reciprocamente exigir
juridicamente num certo contexto? O que é a autonomia? O que é a responsabilidade? Quanto
de autonomia e quanto de responsabilidade é juridicamente exigível? Aqui chegamos a dois
corolários juridicamente essenciais que nos permitir discernir o que é e o que não é, em cada
contexto, juridicamente relevante.

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Por um lado, temos o princípio da igualdade, a afirmação crucial da autonomia. E, por


outro lado, o princípio da responsabilidade. Estas duas dimensões vão levar-nos a identificar, na
relação dialética que o sujeito estabelece com a comunidade e das relações que os sujeitos
estabelecem na comunidade entre si, a distinguirmos um polo de suum, ou seja, da afirmação de
um “eu pessoal” e um polo de commune, isto é, de integração comunitária.

Estamos no século XIX, onde pressupomos uma construção comunitária cultural e uma
construção societária jurídico-política, também, cultural. Na relação dialética entre estas duas
relações vamos afirmar a existência de um polo de autonomia para cada sujeito do ponto de vista
jurídico e, depois, de um polo de integração societária e comunitária do ponto de vista jurídico
que gera a ideia de responsabilidade. Se pensarmos no liberalismo e no consequente positivismo,
veremos que o espaço ocupado pela dimensão de suum (da individualidade) será muito mais
amplo do que o da responsabilidade comunitária. Diferentemente nos comunitarismos, onde a
dimensão de individualidade será muito mais restrita do que a dimensão da integração
comunitária.

Já na perspetiva jurisprudencialista o que se propõe é um equilíbrio, continuamente


discutível e constituendo entre uma e outra das dimensões. Aí está a dificuldade que vamos
encontrar da delimitação quanto ao conteúdo e quanto à forma do que seja juridicamente
relevante. O que está aqui em causa é tomarmos consciência da diferença entre o polo do suum
e polo do commune e percebermos do modo como esta perspetiva propõe que se delimite o
conteúdo e a forma do juridicamente relevante.

No polo do suum (na afirmação do “eu” pessoal) temos de ter presente que o direito está
limitado na forma como interfere no “eu” pessoal de cada um, ou seja, há domínios das nossas
vidas, mesmo intersubjetivas, em que nós não admitiríamos que o direito interferisse e em que o
direito não tem interesse em interferir. Portanto, há dimensões em que o direito não toca – temos
aqui uma dimensão axiológico-normativa negativa, isto é, uma espécie de definição de zona de
discrição. De um ponto de vista mais positivo, numa dimensão axiológico-normativa positiva –
temos já uma ideia de convivência, mas que resulta da atuação da autodeterminação de cada
sujeito (princípio pacta sunt servanda). Os sujeitos vinculam-se livremente no exercício da sua
autodeterminação a nível privado. Portanto, permanecemos nesta dimensão da afirmação do “eu”
pessoal.

No contra polo desta relação dialética, vamos encontrar um polo de commune e um


princípio de responsabilidade suprapositivo (um princípio é suprapositivo). O princípio da
responsabilidade é um princípio essencial deste tipo. A ausência da delimitação da
responsabilidade põe-nos muitos problemas. Se nós afirmamos apenas autonomia sem
responsabilidade, sabemos que podemos estar a pôr em causa a autonomia do outro. Mas, tão
importante quanto isso é sabermos até que ponto é que somos juridicamente responsáveis pelo
outro. No direito a responsabilidade pelo outro, não se coloca, na nossa matriz cultural, no mesmo
ponto em que se coloca a responsabilidade do ponto de vista ético-moral. Tendo em conta o
exemplo da caridade e tínhamos presente esta nota. A exigência e a imposição de consciência
moral que leva à ação caritativa não se coloca, as mais das vezes, no mesmo patamar de um dever
e de uma obrigação a que o sujeito está adstrito. Portanto, quando estamos a falar de um dever
jurídico, não estamos a falar de um dever moral.

NOTA: Princípio suprapositivo - porque é manifestação da fundamentação última do direito, ou


seja, é incito à ideia essencial e global do direito. Não é específico só de uma área do direito e é
essencial a todo o âmbito do juridicamente relevante. Não depende de estar positivado na lei,

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não é adstrito a um ramo do direito. É um princípio que perpassa todo o sentido do direito no
seu horizonte de fundamentação.

Neste sentido, temos que distinguir várias questões fundamentais:

a) Implicação axiológico-normativa negativa do princípio suprapositivo da


responsabilidade: a tal delimitação quanto ao conteúdo e quanto à forma do
juridicamente exigível que é uma fronteira difícil de estabelecer e sempre discutível.

Concentremo-nos, sobretudo, nesta alínea a). Nesta implicação axiológico-normativa


negativa que é, no fundo, a definição de uma zona de discrição (zona de proteção do sujeito)
vamos encontrar na delimitação do juridicamente exigível quanto ao conteúdo um princípio
fundamental – princípio do mínimo. Quanto à forma, vamos encontrar o princípio da
formalização.

No que diz respeito ao princípio do mínimo, temos de acentuar que tomando nós a
relação dialética entre autonomia e responsabilidade como o crivo fundamental para delimitar o
que é juridicamente relevante e exigível, reciprocamente, temos que procurar estabelecer a
fronteira dessa exigência e essa fronteira implica um certo conteúdo. O princípio do mínimo o
que nos vai mostrar é: uma tentativa de resposta à pergunta “Qual é o conteúdo do juridicamente
exigível?”. A resposta será no sentido de que o conteúdo do juridicamente exigível será aquele
que for essencial e só esse para garantir a realização da autonomia de um sujeito e da autonomia
dos outros sujeitos, em termos de proporcionalidade societariamente adequada. As limitações ao
exercício da autonomia do sujeito serão aquelas e apenas aquelas que sejam cruciais para o
desenvolvimento da autonomia dos outros sujeitos. Este princípio do mínimo representa uma
limitação às limitações que a responsabilidade nos pudesse impor. O conteúdo da
responsabilidade é aquele e apenas aquele que seja essencial para que o outro possa desenvolver
a sua autonomia e terá uma responsabilidade correspondente àquela que “eu”, enquanto sujeito,
tenho numa relação jurídica. Daqui temos o princípio da proporcionalidade em sentido amplo
que é crucial no direito público e no direito administrativo que se vai referir ao princípio da
exigibilidade da adequação e, depois, da proporcionalidade em sentido estrito. Estas três
vertentes mostram-nos o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, isto é, a intervenção
no âmbito público será aquela e estritamente aquela que é essencial para a prossecução dos
legítimos interesses públicos.

Quanto à forma temos o princípio da formalização que significa a tradução num esquema
reconhecível daquele conteúdo exigível. Por exemplo, o princípio da legalidade criminal é uma
manifestação do princípio da formalização, porque o conteúdo daquilo que é juridicamente
exigível do ponto de vista criminal é exatamente aquele que estiver consagrado nas normas
jurídicas que estabelecem crimes e estritamente no modo por que essas se dirijam à realidade.
Do ponto de vista da forma, o princípio da legalidade criminal exige que qualquer ação ou
omissão que deva ser reconhecida como crime deva sê-lo estritamente se e quando haja lei prévia
e certa de que determina essa ação ou omissão como crime. Sem isso não é possível
reconhecermos que uma ação ou omissão é crime.

Isto leva a que reconheçamos do lado da responsabilidade vários tipos de


responsabilidade. Nas responsabilidades perante as condições gerais da existência comunitária
encontramos a responsabilidade de preservação traduzida no princípio da corresponsabilidade,
ou seja, somos todos corresponsáveis pela realização dos bens jurídico-penalmente relevantes e,
portanto, somos todos responsáveis por que os bens jurídicos-penalmente relevantes sejam

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protegidos. Logo, todos respondemos perante todos se algum violar esses bens (a ideia da linha
ascendente da ordem jurídica na justiça geral que aqui está crucialmente manifestada).

Também, uma responsabilidade de contribuição, o princípio da solidariedade, por


exemplo, a obrigatoriedade de pagar impostos e depois traduzi-la na distribuição.

A responsabilidade por reciprocidade, comutativa em geral e contratual em particular.

E, por último, a responsabilidade pelo equilíbrio da integração que convoca a ideia de


justiça distributiva.

Podemos pensar, agora, o princípio normativo do direito neste horizonte axiológico para
vermos no direito uma referência axiológica que vai exigir-nos uma relação fundamental entre
justiça e segurança. Só a justiça sem a segurança não nos levará ao direito e só a segurança sem
a justiça igualmente também não. Para nos concentrarmos nas alternativas radicais ao próprio
direito. Podemos ter ordens muito eficazes até eficientes, que garantam uma sociedade pacifica,
porém, não seriam, nesta compreensão, reconhecidas como direito. Portanto, seriam alternativas
radicais ao próprio direito.

O exemplo das ordens de poder como ordens de necessidade ou uma ordem cientifico-
tecnológica (ordem de possibilidade) em que o direito seria tanto melhor quanto melhor se
adaptasse às potencialidades cientifico-tecnológicas. Exemplo: problemas ético-jurídicos postos
pela alteração genética. Por último, uma ordem de poder, de finalidade, mobilizando o direito
como instrumento para um projeto ideológico-político, sem que o direito tivesse a possibilidade
de discutir critico-reflexivamente.

Uma coisa é dizermos que o direito é instrumento ao serviço da sociedade e, como tal,
deve prosseguir os objetivos que a sociedade lhe impõe acriticamente. Outra coisa, bem diferente,
é dizer que o direito tem uma função na sociedade, produz efeitos na sociedade porque é direito,
portanto, em confronto com a sociedade e com essas outras dimensões, dialogando com elas e
partindo da sua própria perspetiva e densidade normativa e axiológica. O direito diálogo com a
política, a tecnologia, a economia, as ciências, a sociologia, a história, a ética, mas continua a ser
direito no diálogo com essas outras dimensões. Conta com elas, assume-as como referentes
cruciais de diálogo, mas há um conteúdo jurídico e uma racionalidade jurídica que exige o
tratamento especificamente jurídico das propostas externas, o que leva a que o direito tenha uma
palavra a dizer de modo diferenciado e critico-reflexivo à realidade. É nesta conjugação dialética
que falamos em autonomia relativa do direito do ponto de vista do seu sentido material.

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Lição 14

Sumário:

Capítulo II- O modo-de-ser do Direito

1. Modalidade de existência:
a) O modo de existência como vigência;
b) As suas relações com a validade e a eficácia.
2. Modalidades normativas: direito objetivo e direito subjetivo
a) O sentido geral da distinção;
b) As divergências quanto à conceitualização dogmática do direito subjetivo;
c) A problematização da distinção pela consideração do seu relevo numa
perspetiva histórica
d) O problema do sentido normativo-constitutivo da distinção para a
compreensão fundamental do direito;
e) Corolário positivo-normativo da dialética desse sentido da distinção.

17/03

1. Modalidade de existência:
c) O modo de existência como vigência;
d) As suas relações com a validade e a eficácia.

Vamos analisar o modo de ser do direito, ou seja, o que significa dizer que o direito é
positivo, que está aí e que se nos impõe. Que lhe dá força para se nos impor e qual o conteúdo
dessa imposição. Vimos já que o direito não se nos impõe apenas pela sua força vinculativa que
resulta do caráter sancionatório, mas o direito visa ser vigente através do cumprimento
espontâneo das suas prescrições. O que significa que os sujeitos que são, simultaneamente, seus
destinatários, mas são também elementos da comunidade que o constitui se identificam, ainda
que critico-reflexivamente, com o sentido material dessas prescrições. O direito de uma forma
positiva visa inspirar a ação dos sujeitos aos quais se dirige e que estão na sua origem e não,
apenas, impor-se pela força. Embora, a existência da sanção, seja ou não coercitiva, se nos
apresente como o referente limite da diferenciação do direito enquanto ordem normativa.

Se até aqui nos propusemos, primeiro, analisar o direito como fenómeno e, depois,
perguntar pelo seu sentido e partindo dessa primeira análise avançámos da estrutura para o
conteúdo – identificar a insuficiência jurídica e normativa da ordem jurídica. Depois dessa
compreensão do direito como fenómeno, da análise da ordem jurídica enquanto manifestação
objetiva do direito, passámos para a análise do conteúdo do direito. Quando entramos no sistema
jurídico o que dizemos é: o sistema jurídico é a organização interna da ordem jurídica, isto é,
aquilo que externamente vemos como ordem jurídica (estrutura que se nos impõe) é
internamento e, por isso, quanto ao conteúdo, um sistema.

Ainda antes de passarmos para o sistema jurídico, temos de ter presente duas notas
quanto ao modo de ser do direito. Vamos ver o modo de ser do direito enquanto modalidade de
existência e modalidades normativas. Depois, o modo de ser quanto ao sistema. Por fim, o modo
de ser do vir a ser, ou seja, como é que o direito de constitui ou como é que é visto o problema
das fontes do direito.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

O primeiro passo do modo de ser do direito é a modalidade de existência e as


modalidades normativas. O direito que se diz o “dever-ser” não passará de um voto ideal se esse
“dever-ser” não for cumprido. Portanto, o cumprimento é essencial e é, de facto, garantido pela
exigência da sancionabilidade. O direito não é um mero “ser” é um “dever-ser”, mas não é um
qualquer “dever-ser”, ou seja, não é uma ordem deontológica sem efetividade prática. O direito
é um “dever-ser” ao qual compete “ser (“Um dever ser que é.”). A questão está em saber o que
dá valor, o que sustenta e qual o porquê/fundamento desse dever ser. E este é o problema da
validade do direito, do qual depende a vigência.

O modo de ser específico do direito quanto à sua existência é a vigência que não é senão
outro modo de dizer a positividade jurídica. A positividade é outro modo de dizer vigência. A
vigência do direito é afinal paralela à global vigência da cultura. Assim como a cultura se vai
dialeticamente desenvolvendo, também o direito se vai dialeticamente desenvolvendo,
relacionando com a realidade e os sujeitos nela e, assim, oferecendo respostas distintas consoante
da valoração que faz dessa realidade.

Se para a perspetiva positivista a juridicidade era definida pelo sistema, ou seja, o direito
é que determinava unilateralmente o que é juridicamente relevante ao ponto de o que estivesse
previsto no sistema ser juridicamente relevante e o que não estava previsto não seria
juridicamente relevante. A viragem que a superação do positivismo traz, em boa parte assenta,
que o caso enquanto problema posto ao direito seja um ponto de partida. Aqui temos uma
alteração radical de perspetiva – vamos progressivamente deixando de ver a acentuação da
definição da relevância jurídica do lado do sistema, para passarmos a vê-la a partir do caso-
problema. Isto leva a que a relação dialética que se estabelece entre a realidade e o sistema, no
fundo, se invertam, pois, o ponto de partida deixa de ser o sistema e passa a ser o caso. É o caso
no tipo de problemas que põe que interpela o direito. A relevância jurídica do problema vai
deixando de depender do facto de estar ou não previsto no enunciado literal de uma norma. A
perspetiva jurisprudencialista abraçou esta superação do positivismo, mas nem todas o fizeram.

Se estamos a falar da vigência da cultura como horizonte de referência da


intersubjetividade em geral, assim, também, falaremos do sentido do direito como instância
reguladora dos problemas juridicamente relevantes com o seu modo de ser vigência (na
confluência validade e eficácia). O direito é um “dever-ser” que é e, portanto, a vigência é a
subsistência histórico-social da normatividade jurídica.

A vigência é composta por duas dimensões: uma dimensão ideal/axiológica – a validade-


e uma dimensão empírica ou factual de operatividade prática – a eficácia. A validade – o direito é
um dever ser – a eficácia – que é.

18/03

As duas dimensões que constituem a vigência (a validade e a eficácia) confluem para que
o direito seja: seja presente como ordem normativa e como ordem normativa eficaz na
comunidade a que se dirige. Significa que a vigência de que estamos a falar implica essas duas
faces em simultânea – a validade (face ideal, axiológica de afirmação normativa de valores
comungados num contexto específico); a eficácia (face empírica ou factual de operatividade
prática e relevância social e sociológica). O direito é um “dever-ser” enquanto ordem de validade
e um “dever-ser” que é e ao qual compete ser. Esta efetivação corresponde à nota da eficácia.

O direito não existe como uma pura idealidade, o direito visa ser efetivo na realidade.
Neste sentido, se considerássemos como dimensão essencial exclusiva ao direito a validade

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

teríamos uma ordem normativa ideal a que poderia não corresponder a eficácia. Assim não é,
ainda mais quando, por que sabemos que o direito se distingue de outras ordens normativas
essas sim de manifestação ideal ou, pelo menos, sem a nota da efetividade que o direito visa
atingir sem o qual não é efetivamente direito. As outras ordens normativas são, por exemplo, as
ordens ético-morais na medida em que a afirmação da validade que apresentam não se considera
haver a eficácia do modo societariamente relevante. Dizermos que o direito não é uma mera
ordem ideal e que a relevância da dimensão axiológica de validade é dominante noutras ordens
normativas como sejam a ordem moral, não significa que essas ordens não tenham a sua
efetividade. Porém, essa efetividade não é comparável á efetividade que o direito pretende ter e
daí o caráter sancionatório absolutamente diverso. A consequência do incumprimento de um
critério ético-moral pode ser mais gravosa para quem a sofre do que uma consequência jurídica.

Esta ordem jurídica que o direito pretende alcançar está em constante alteração e
discussão quer do ponto de vista da sua validade, quer do ponto de vista da sua eficácia. Claro
que a confluência de reflexões em torne das prescrições vigentes é fundamental para garantir
quer a validade quer a eficácia do direito.

Isto também nos leva a concluir, por outro lado, que se uma norma for muito eficaz em
virtude de ser muito célere e eficiente, o processo da aplicação das sanções que estabelece não
nos garante que estejamos perante uma norma de direito, isto é, o direito não se carateriza
exclusivamente e não garantido prima facie pela sanção. O objetivo do direito enquanto ordem
conformadora da intersubjetividade societariamente relevante é a de que os sujeitos que se dirige
que, simultaneamente são autores das suas prescrições, se conforme por concordância
substancial com essas prescrições. Neste sentido, temos um direito que será tanto mais válido e
tanto mais eficaz, quanto menos dermos por ele. Isto significa que, se o cumprimento das
prescrições normativas resultantes da reflexão sobre a validade do direito se traduzir em
comportamento espontâneo (numa eficácia que não depende de uma invocação continua das
sanções quando haja incumprimento), então aí teremos um direito vigente no seu sentido pleno,
válido e eficaz, sem necessidade de recurso permanente há sanção. É verdade que a sanção é um
mecanismo fundamental e característico do direito. Porém, não define a natureza do direito, ou
seja, o direito é carateristicamente sancionatório, mas a sua dimensão de ordenação normativa
não depende, do ponto de vista da reflexão sobre os comportamentos e da orientação normativa
para os comportamentos, da sanção. A sanção é um meio ao serviço da efetivação da ordenação
normativa que o direito pretende conferir a uma sociedade.

Com isto, temos uma continua dialética entre a validade e a eficácia, porque a verdade é
que, se o direito tal como a cultura pretende ser vigente (embora em sentidos diferentes) essa
vigência resulta desta constituenda dialética continua entre a dimensão da validade e a dimensão
da eficácia. Isto pode ser mais clarificado convocando a prática se nos recordarmos de que o que
confere sentido e valor às prescrições normativas é a base axiológica em que se fundamentam,
mas ao relacionarem-se com a realidade vamos verificando que aquilo que comprova a validade
do direito e a sua especifica contra factualidade é, por um lado, alguma elasticidade quanto ao
cumprimento e incumprimento das suas prescrições e, consequentemente, a referência à sanção
como meio de efetivação da validade e da eficácia do direito. Por exemplo, nós compreendemos
a essencialidade da proteção da honra, da integridade física, do património, e sabemos que essa
proteção é crucial para a proteção de uma convivência pacifica. Mas também sabemos que o
direito ao definir a licitude admite, necessariamente, a ilicitude e, portanto, nós sabemos a
validade e da manutenção da validade, da honra da vida, da integridade física, do património,
mesmo quando nos confrontamos com crimes de difamação, de homicídio, de ofensa à
integridade física ou de dano.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

O facto de o direito prescrever condutas, não significa que não haja condutas contrárias
ao prescrito ou que não haja condutas que, enquadrando-se dentro do que está prescrito não
correspondem 100% à prescrição. Se o direito estabelece prescrições normativas imperativas,
aquelas que não admitem qualquer estabelecimento diverso das relações intersubjetivas
concretas, também estabelece regras dispositivas (aquelas em que confere o enquadramento
dentro do qual os sujeitos, na disponibilidade dos seus direitos, podem articular em concreto nas
suas relações intersubjetivas, segundo a sua autodeterminação, o conteúdo efetivo que
corresponderá aos direitos e deveres estabelecidos nessas mesmas relações). Exemplo: a lei não
define quais são os objetos de negócio jurídico possíveis, mas define os que não são admissíveis.
Vendo o artigo 280º do Código Civil, como exemplo.

No âmbito dos direitos disponíveis o direito não perde eficácia, porque o que o direito
faz é assegurar-se que certos limites não são ultrapassados. Por exemplo: os sujeitos podem
celebrar livremente negócios jurídicos independentemente de eles estarem ou não tipificados na
lei, isto é, nós temos contratos típicos (compra e venda, arrendamento), mas também podem ser
celebrados contratos atípicos (podem ser atípicos por não estarem mesmo previstos e podem ser
mistos por conjugarem elementos de contratos típicos com elementos externos). Não há perda
de eficácia, porque se os sujeitos são livres, no âmbito da sua autonomia privada, de preverem as
suas relações, o direito só tem a ganhar desse ponto de vista. O direito visa estabelecer as
condições para a convivência pacifica, estruturando as valorações essenciais e conferindo aos
sujeitos a possibilidade de agirem no contexto da sua relação e autonomia e a sua
responsabilidade. O direito não é mais ou menos eficaz. Se estivermos a pensar em normas
imperativas, que são estritas e em que não se admite nenhuma elasticidade, ou em normas
dispositivas. O direito não é menos eficaz se os sujeitos num contrato de arrendamento em vez
de a renda ser paga no domicílio do senhorio seja paga no domicilio do arrendatário.

A contra factualidade contrapõe-se à factualidade, da experiência. Esta distinção entre


factualidade e contra factualidade já vem de há muito tempo, ou seja, a ideia de que o direito é
uma afirmação do dever-ser contra factual vem desde a origem do direito. Mas, quem nos traz
mais proximamente esta distinção entre expetativas cognitivas e expetativas normativas é Niklas
Luhmann, que nos diz que as expetativas cognitivas têm que ver com aquelas que dizem respeito
a fenómenos da natureza ou até a empírico-explicativas. Por exemplo, nós esperamos que o sol
nasça a movimento de 24 horas, esperamos que a um dia se siga outro dia. Se um dia essa
expetativa se frustrar a determinação do movimento dos astros fica posta em causa. É
contraditada pela factualidade. Isso significa que as expetativas cognitivas garantem a veracidade
ou a falsidade das afirmações que as subjazem. Se uma expetativa cognitiva se frustrar ela implica
a falibilidade do pressuposto de afirmação de verdade que a sustenta. Exemplo: esperamos que
a água ferva se a submetermos a uma determinada temperatura. Se isto não acontecer temos
frustrada a nossa expetativa.

Não é uma expetativa normativa, porque a expetativa normativa que é contra factual é
uma expetativa de valor, ou seja, agora não é uma questão de verdadeiro ou falso, mas de
validade e invalidade, ou licitude e ilicitude. O direito afirma o valor da vida e esta afirmação não
perde enquanto houver uma confluência de reflexão axiológica face a esse valor pelo facto de
haver crimes de homicídio. Nesse caso a factualidade que contraria a expetativa normativa da
valoração normativa da vida não poe em causa a afirmação da validade da vida. O que é que vai
permitir reafirmar contra factualmente a validade da norma que valora a vida e protege através
do tipo de crime de homicídio no Código Penal? A reafirmação contra fáctica da validade da
norma é a aplicação da sanção. Claro que o reiterado incumprimento de uma norma pode levar

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

a que, em termos intersubjetivos, venha a ser posta em causa a sua validade, mas essa é outra
questão. Que também acontece.

Exemplo no âmbito do direito da família: o decreto-lei 476 de 1997 estabeleceu na consequência


da Constituição da República Portuguesa de 1976 uma alteração profunda ao direito da família
no ordenamento jurídico português, na sequência da revolução de 1974 e da Constituição de
1976. Levou a que, por exemplo, deixasse de haver um tratamento diferenciado, quer do ponto
de vista das responsabilidades parentais, quer do ponto de vista sucessório, entre filhos nascidos
na constância do casamento e filhos nascidos fora do casamento.

É já um exemplo de que a validade dessas normas estaria do ponto de vista intersubjetivo


em causa ao ponto de se considerar que, perdendo a sua validade, não podiam continuar
vigentes. Também se verifica do ponto de vista empírico, através do comportamento reiterado de
normas cuja validade está em queda, mesmo que isso não tenha sido ainda considerado nas
discussões do Estado.

Embora a validade seja uma questão intersubjetiva (não há na compreensão da


construção da validade do direito que nós estamos a considerar uma pressuposição de validade
necessária que se imponha aos sujeitos em convivência). Isto significa que a validade está em
continua discussão. Isso é que leva a que o direito vá mudando e, portanto, o direito não é imune
aos sujeitos que discordam da sua referência axiológica. Não, há muitas vezes, uma unanimidade,
o que há um acordo em torno de um certo núcleo comum de validade, mas esse núcleo é essencial
no sentido de ser determinante como a única reflexão da validade possível ou como enunciado
de verdade. É um núcleo consensual e histórico, ou seja, a ideia de absoluto histórico – o direito
enquanto acervo axiológico representa um absoluto histórico. Um absoluto porque há um
consenso em torno da validade das afirmações que o direito toma como cruciais para a
manutenção da convivência pacífica. Sendo que ao mesmo tempo há uma discussão em torno
dessa validade. Ela não é absoluta por ser intemporal ou indiscutível, ela é absoluta porque os
sujeitos que tomam parte da discussão assumem que aquele sentido deve ser vinculante para a
manutenção da convivência pacifica. Ao mesmo tempo a institucionalização deste referendo
consensual que vai gerar a determinação vinculante, vai também considerar os sujeitos que
reflexivamente possam discordar dessa compreensão.

O direito é uma afirmação cultural em torno de um certo consenso de validade que


assume vinculante e é filtrada institucionalmente através da estrutura representativa em que
vivemos, mas ao mesmo tempo esse núcleo implica que sejam tidas em conta as posições que
dele divergem. O direito ao mobilizar-se em torno de um consenso não está, com isso,
necessariamente, a pôr em causa opções alternativas. Por outras palavras, aquilo que num certo
momento histórico é juridicamente relevante e, com isso, lícito e ilícito, é fruto da relação dialética
entre a evolução anterior e a discussão presente. O que significa que aquilo que aquilo que é
válido e lícito hoje, poderia não o ser há pouco tempo atrás e também poderá não o ser no futuro.
Exemplos: se retrocedermos 25 anos, a valoração que o direito positivo dirigia às uniões de facto
era substancialmente diferente daquelas que dirige hoje.

A eficácia traduz-se na efetiva verificação na realidade do que é prescrito pelo direito.

2.Modalidades normativas: direito objetivo e direito subjetivo

a) O sentido geral da distinção;


b) As divergências quanto à conceitualização dogmática do direito subjetivo;

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

c) A problematização da distinção pela consideração do seu relevo numa perspetiva


histórica
d) O problema do sentido normativo-constitutivo da distinção para a compreensão
fundamental do direito;
e) Corolário positivo-normativo da dialética desse sentido da distinção.

Além de termos visto esta problemática da validade e da eficácia enquanto manifestação


do modo de ser do direito, da existência do direito na confluência entre a validade e a eficácia
como vigência, cumpre também compreender, associada a esta problemática, uma classificação
tradicional que é crucial para a compreensão, não apenas da relação entre os sujeitos e o direito,
mas também para a compreensão das diferentes áreas dogmáticas do direito – distinção entre
direito subjetivo e direito objetivo.

Se consideramos que o direito regula relações intersubjetivas, de facto, a própria


construção da teoria geral da relação jurídica passa crucialmente pela distinção e compreensão
cada uma destas modalidades normativas (direito subjetivo e direito objetivo).

Comecemos por uma abordagem num sentido geral desta distinção, sendo que já
analisámos o direito subjetivo a propósito da superação do positivismo quando falamos da
superação do juridicismo formal do século XIX por uma intenção jurídica material se dá através
da tomada de consciência que é, primeiro, judicialmente traduzida e, de seguida,
dogmaticamente construída e, por último legislativamente consagrada do instituto do abuso do
direito.

Não obstante, olhamos especificamente para estas modalidades normativas do direito.

Direito objetivo:

O direito objetivo corresponde à inteleção de um determinado corpus iuris, ou seja, o


direito objetivo corresponde à apresentação e manifestação fenoménica do direito de que os
sujeitos são destinatários. O direito que está fora dos sujeitos e que se impõe aos sujeitos. É o
direito enquanto normatividade vigente. É aqui que encontramos no âmbito dos sistemas de
legislação especificamente a lei, os diferentes ramos do direito (ex.: o direito civil, o direito
comunitário, o direito comercial, o direito administrativo, etc.). Isto significa que é o direito
objetivado na ordem jurídica como normatividade que se impõe aos sujeitos.

Neste sentido, o direito objetivo é o direito enquanto estatuto normativo, ou seja,


enquanto determinação, prescrição com que nos deparamos, enquanto sujeitos, e de que somos
destinatários. Impõe-se-nos na nossa conduta e tem os sujeitos como destinatários. Mais
sinteticamente ainda, o direito é, enquanto direito objetivo, visto da perspetiva da ordem jurídica.
é o sistema jurídico objetivamente estabelecido.

Direito subjetivo:

Porém, nós não somos apenas destinatários de direito apenas, nós também
titulamos/somos titulares de direitos de que podemos usufruir e que podemos impor a outra(as)
pessoa(s). Aqui estamos a falar do direito subjetivo, porque se trata do direito visto do ponto de
vista do sujeito como prerrogativa do sujeito. O direito que o sujeito titula, por isso pode dizer-
se que é seu. (ex.: o direito de propriedade, o direito de crédito, o direito pessoalidade, etc.).

O direito objetivo é o direito enquanto ordenamento normativo, o conjunto das normas


legais, dos princípios vigentes, das decisões judiciais estabelecidas que se dirigem aos sujeitos e

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

que se assume como seus destinatários. Enquanto o direito de titulado por cada sujeito concedido
por esse direito objetivo é direito subjetivo. Este direito é uma prerrogativa do sujeito.

O direito subjetivo vai ser um poder, uma faculdade, um interesse titulado no sujeito e
que lhe compete como seu. Portanto, implica o poder de uso e de imposição a outra e de
disposição. É uma expressão de autonomia individual, é o direito visto da perspetiva do sujeito
como titularidade e prerrogativa pessoal.

Esta distinção vai implicar que tomemos consciência, do ponto de vista histórico do
surgimento, não apenas do conceito, mas também da designação e da construção teórica, ou
seja, direito objetivo e direito subjetivo. E de perceber se o que está em causa é, sobretudo, a
consideração do direito subjetivo como interesse ou como poder de vontade.

Em termos históricos, podemos dizer que o direito subjetivo começou por não existir, isto
é, o surgimento do direito no contexto do pensamento jurídico romano não fazia autonomização
e diferenciação entre direito objetivo e direito subjetivo. Isto significa que para o pensamento
jurídico romano o direito era uma ordem objetiva que definia o estatuto dos cidadãos e
determinava a sua posição perante os outros e as coisas.

Nós vimos que, no contexto da antiguidade clássica, mas também da Idade Média, que o
ser humano se compreende não como, primeiro, livre e desvinculado e, depois, vinculado, mas
como nascendo já inserido numa comunidade que o agrega e que lhe confere sentido. Esta
pressuposição de uma ordem de sentido integradora gera a ideia de que o sujeito, na relação que
estabelece com o direito, é seu destinatário. Sabemos que o direito, neste contexto inicial (mas
também hoje), confere aos sujeitos estatutos e estes implicam direitos e deveres. É conferido pelo
direito objetivo aos sujeitos. É esse sentido que prevalece no pensamento jurídico romano. Isto é,
não quer dizer que não se conhecesse o fenómeno da titularidade de direitos. Porém, não há a
afirmação da noção da subjetividade antes e independentemente da definição pelo ordenamento
normativo desse status.

Só o pensamento moderno-iluminista, com o individualismo liberal é que vai assumir de


modo definitivo que o sujeito, primeiro, nasce livre e desvinculado e, depois, vincula-se, pela sua
vontade e em função dos seus interesses, com os outros sujeitos. Daqui nasce o fenómeno direito.
Neste pensamento já temos primeiro o direito subjetivo e, depois, o direito objetivo. Mas,
historicamente, não é isso que acontece. Historicamente, vemos que primeiro a noção de direito
aparece como direito objetivo (ordem normativa de que os sujeitos são destinatários).

Na Idade Média, vamos tendo alguns sinais de autonomização, ainda ténues. Porém, só
na Idade Moderna com a cisão relativamente à inscrição na ordem pressuposta cosmológica é
que se manifesta plenamente a autonomia do ser humano face às quais quer ordens comunitárias.
O individualismo e o contratualismo modernos são a matriz racional e crucial para a construção
teórica da ideia de direito subjetivo. Primeiro, o sujeito nasce livre (primeira manifestação da
titularidade do direito – ser livre de liberdade), que os sujeitos manifestam e, como tal, o
subjetivismo afirmar-se prima facie como constitutiva do ser humano. Esse subjetivismo a impor-
se a qualquer ordem objetiva. Aliás, a ideia de que a ordem objetiva resulta da afirmação da
subjetividade.

A ideia de direito subjetivo se apresenta como lógica, logicamente anterior à ideia de


direito objetivo, porque este último, como ordem objetiva, passa a ser visto como resultado do
contrato social. Nesta época (final do século XVIII), na projeção teórica-dogmática para o século
XIX, surgem várias teorias sobre a conceitualização dogmática do direito subjetivo.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Vamos considerar, no século XIX, as duas linhas preponderantes sobre a teorização sobre
o que seja o direito subjetivo. Uma linha dita “Teoria da vontade”, protagonizado, sobretudo, por
Savigny e a “Teoria do interesse”, protagonizada, sobretudo, por Ihering. Será que o direito
subjetivo é um poder de vontade reconhecido pelo direito objetivo? - Teoria da vontade. Será
que o direito subjetivo é um interesse juridicamente tutelado7protegdo? – Teoria do interesse.
Estas são duas reflexões fundamentais que à ideia de direito subjetivo têm vindo a ser dirigidas.

No diálogo que estabeleceram estas duas teorias há argumentos que permitem


reciprocamente rebater o facto de se ver o direito só como teoria da vontade ou só como interesse
juridicamente protegido.

Por exemplo, o facto de o direito subjetivo ser visto como um interesse juridicamente
protegido poderia levar a uma redução do direito ao interesse e nem sempre o direito subjetivo
se confunde com o interesse que através dele se prossegue. O facto de o direito subjetivo ser um
poder de vontade também reduz as faculdades jurídicas que a ideia de direito subjetivo pode
comportar. Exemplo: o sujeito pode ser titular de um direito, por exemplo, o direito de
propriedade e nem ter vontade de o exercer. São duas coisas diferentes – o gozo de um direito e
o exercício desse direito são coisas distintas. Portanto, o direito subjetivo é mais do que um poder
de vontade e também é mais do que o interesse que através dele se irá prosseguir.

Além de que há interesses que são prosseguidos pelo direito, mas que não se confundem
com direitos subjetivos. Quando dizemos que o direito prossegue como interesse um
determinado programa de ação educacional, esta construção não está compreendida nos direitos
subjetivos que venham nesse contexto a ser exercidos. Enquanto construção dogmática é anterior
e distinta dessa eventual titularidade que possa vir a ser reconhecida posteriormente.

De entre as várias teorias propostas e nas discussões que entre elas se estabelecem nós
encontramos, na proposta da teoria geral da relação jurídica que o Senhor Doutor Manuel de
Andrade nos deixou, uma noção técnica de direito subjetivo que agora congrega alguma
complexidade:

“O direito subjetivo é o poder jurídico reconhecido pela ordem jurídica a uma pessoa de,
livremente exigir ou pretender de outrem, um comportamento positivo (ação) ou um
comportamento negativo (omissão) ou de, por um ato de livre vontade, só de per si ou
integrado por um ato de uma autoridade pública, produzir determinados efeitos jurídicos
que, inevitavelmente, se impõe a outra pessoa (a contraparte ou adversário).”

Esta noção congrega vários sentidos dogmáticos de direito subjetivo. Primeiro que tudo
de que há uma relação dialética entre direito subjetivo e direito objetivo, porque o direito
subjetivo é um poder jurídico reconhecido a uma pessoa pela ordem jurídica. São duas faces do
direito – o direito subjetivo é conferido aos sujeitos pelo direito objetivo. Estamos já num patamar
diferente daquele que o individualismo liberal tinha afirmado. Temos uma solução dualista. Neste
sentido, temos neste contexto, que considerar este poder jurídico – direito subjetivo – como uma
conferência aos sujeitos pelo direito objetivo.

 “…poder de livremente exigir ou pretender…”: a exigibilidade é característica típica


do direito. A exigibilidade enquanto determinação da relevância da vinculatividade e da
exigência de cumprimento estrito das prescrições jurídicas que se distingue de quaisquer
outras pretensões, nomeadamente, daquelas que não sejam juridicamente relevantes.
Exigir de outrem é poder efetivar o seu direito através do cumprimento do dever
respetivo. Porém, há situações em que por razões relativas ao tipo de dever e ao tempo

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que tem valor fundamental nas relações jurídicas, certas prestações que consubstanciam
deveres não são ou já não são exigíveis e nesse caso o sujeito titular de direito já não
pode exigir, pode apenas pretender. O sujeito titular do dever jurídico deixa de estar
juridicamente titulado a cumprir, poderá não cumprir, porque se entende que deixou de
existir exigibilidade. Porém, se cumprir cumpre juridicamente bem e cumpre bem porque
cumpre uma obrigação jurídica.
 Exemplo (artigo 304º do CC): imaginemos um dever jurídico que corresponda a
uma obrigação pecuniária que está adstrita a um determinado prazo e que
prescreveu. Uma divida prescrita é considerada como não exigível, porque o
titular de direito subjetivo deixou passar o prazo da exigibilidade. Isso significa
que não poderá já exigir o cumprimento, porém, se o titular do dever de
pagamento entender cumprir, cumpre bem. Entende-se que cumpre um dever
jurídico, embora já não lhe fosse exigível. E, por isso, consequentemente, o titular
do direito subjetivo tem direito a reter a título de solução o montante recebido
e o titular do dever jurídico (devedor) que cumpriu não goza de condição de não
ser devedor, não pode pedir de volta aquilo que entregou cumprindo o seu dever
jurídico, mesmo que ele já não fosse exigível.
 Já no que diz respeito à própria natureza da obrigação temos obrigações naturais
(artigo 402º do CC) que não são juridicamente exigíveis. As dividas prescritas
acabam por se incluir nesta dimensão, pois que em virtude da passagem do
tempo deixou de haver um dever estritamente jurídico e judicialmente exigível,
mas a obrigação permanece como obrigação natural fundando-se num dever de
ordem social, mas que corresponde a um dever de justiça.
 “…livremente exigir ou pretender de outrem, um comportamento positivo (ação) ou
um comportamento negativo (omissão)…”: há situações em que os sujeitos podem
exigir um comportamento ativo da contraparte e de outras um comportamento negativo.
 Exemplos: nos direitos de crédito o comportamento do devedor é fundamental
(a entrega da coisa ou do montante pecuniário). Também, no âmbito do direito
de personalidade (direito à imagem, etc.).

Até aqui temos a noção de direito subjetivo propriamente dito: “o poder jurídico reconhecido
pela ordem jurídica a uma pessoa de, livremente exigir ou pretender de outrem, um
comportamento positivo (ação) ou um comportamento negativo (omissão).”. Daqui em
diante vamos encontra a noção de direito potestativo: “ou de, por um ato de livre vontade, só
de per si ou integrado por um ato de uma autoridade pública, produzir determinados
efeitos jurídicos que, inevitavelmente, se impõe a outra pessoa (a contraparte ou
adversário).”. Isto é, aqueles direitos cujo exercício implica, inevitavelmente, a produção de um
efeito jurídico na esfera jurídica da outra parte.

Exemplo de um direito potestativo (tendo em conta que há direitos potestativos constitutivos):


produz a constituição de uma relação jurídica por um ato unilateral do titular desse direito
potestativo, é o caso da constituição servidão de passagem em benefício de prédio encravado,
nos termos do artigo 1550º do CC. Em que, uma vez verificando que há um prédio encravado (um
prédio que não tem contato com a via pública) e não havendo estabelecimento contratual com
um dos prédios contíguos que tenha contato com a via pública, é possível unilateralmente, através
da ação judicial, que o titular do prédio encravado faça constituir sobre o prédio em que
estabelecer menor encargo uma servidão de passagem para garantir o acesso à via pública.
Quanto a isto, o proprietário do prédio serviente não poderá opor-se, no sentido de que, uma
vez provado que é aquele o local que menor transtorno produz, a servidão fica constituída.

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Nos direitos subjetivos propriamente ditos nós temos ainda que distinguir, por um lado,
direitos de crédito (direitos relativos) e direitos absolutos (direitos reais e direitos de
personalidade), por outro lado.

Os direitos subjetivos relativos são aqueles em que se contrapõe um direito subjetivo


titulado por uma pessoa a um ou mias deveres jurídicos titulados por outras pessoas. Isso significa
que neste tipo de direitos a satisfação do direito subjetivo depende do cumprimento do dever
por parte do devedor.

Diferentemente, os direitos subjetivos absolutos (direitos reais, direitos de personalidade)


são aqueles direitos onde aquilo que traduz a satisfação do direito subjetivo é a não interferência
desse direito por parte de todos os não titulares. São, por isso, absolutos não relativos.

Também na distinção entre direitos subjetivos propriamente ditos e os direitos


potestativos haverá que considerar que do lado passivo aos direitos subjetivos propriamente ditos
se contrapõe um dever jurídico. Ao passo que aos direitos potestativos no lado passivo se diz
sujeição.

Concluindo, o direito objetivo e o direito subjetivo são duas categorias dialeticamente


constitutivas da juridicidade. O direito subjetivo manifesta a dimensão de suum (autonomia dos
sujeitos) e o direito objetivo assimila a dimensão de commune. Assim, encontramos duas
dimensões fundamentalmente constitutivas do direito que nos permitem tornar inteligível o
modo como o direito se dirige aos sujeitos e como os sujeitos o encaram. Assim sendo, uma
norma consagrada em qualquer diploma legal (artigo 1305º do CC – consagra o direito de
propriedade, a título de exemplo), é direito objetivo. Já o direito de propriedade titulado por um
sujeito é direito subjetivo.

19
Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Lição 15

Sumário:

3. A objetivação da normatividade jurídica – o sistema jurídico (s.j.):


a) O direito como “sistema”: a assimilação superadora da dialética “ordem” /”
problema”. Alusão recapitulativa à conceção normativa do s.j. Referência à sua
conceção decisionista. Acentuação da especifica relevância metodonomológica
do s.j.
b) O s.j. na sua compreensão e composição atuais – a sua análise:
- O sentido do direito (a deveniente intenção irredutivelmente especificamente
da normatividade jurídica) – remissão.
- Os princípios normativos (o momento de validade da normatividade jurídica)
 Caraterização normativa
 Os vários tipos de princípios jurídicos – alguns dos mais importantes
problemas implicados pela sua consideração;
 A sua constituição jurídica

- As normas (o momento de imposição estratégico-política da normatividade


jurídica) –

 A sua estrutura lógica (a hipótese e estatuição);


 A sua índole normatividade: “poterius” problemático-normativo e não
puramente “prius” prescritivo (o sentido normativo e a sua função prática-
normativa das normas jurídicas: a norma, como critério de determinação –
o momento sociologicamente prático da norma; a norma, como critério de
valoração – o momento axiologicamente prático da norma; a norma, como
critério de decisão – o momento judicativamente prático da norma. Outras
classificações das normas jurídicas);
 Os elementos normativos constitutivos das normas jurídicas legais –
elemento racional ou fundamento e elemento imperativo ou autoritário.

- A jurisprudência judicial (o momento da concreta realização judicativo-decisória


da normatividade jurídica) – o seu específico sentido no horizonte de um sistema de
legislação.

- A dogmática (o momento de elaboração racionalmente fundamentante da


normatividade jurídica) – caraterização e importância atuais - especial acentuação
da função normativo-sistemática da dogmática

- A realidade jurídica (o momento de “ação histórica” da normatividade jurídica) –


o seu relevo como elemento do s.j. vigente.

- As regras procedimentais (o momento técnico-praxistico da normatividade


jurídica) – o significado dos arrimos resultantes da (obviamente revisível e
criticamente afinável) sedimentação da experiência dos juristas.

c) Alusão à problemática da autónoma relevância de cada um dos mencionados


estratos do s.j.

20
Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

d) A índole estrutural do s.j. aberto, material e regressivo (de histórica


reconstituição regressiva. Exemplos: a refração da emergência do critério normativo
do “abuso do direito” na compreensão dos direitos subjetivos; a redensificação do
direito de propriedade operada pelas exigências ecológico-jurídicas; a
reconstituição da normatividade das normas pela interposição dos casos
decidendos que fundamentadamente impliquem a respetiva mobilização).

24/03

3. A objetivação da normatividade jurídica – o sistema jurídico (s.j.):

a) O direito como “sistema”: a assimilação superadora da dialética “ordem” /” problema”.


Alusão recapitulativa à conceção normativa do s.j. Referência à sua conceção decisionista.
Acentuação da especifica relevância metodonomológica do s.j.

Continuando a analisar o modo de ser do direito, avançando para uma outra perceção do
conteúdo do sentido do direito e que tem que ver com a manifestação substancial, ao nível do
conteúdo, daquilo que analisámos estruturalmente como ordem jurídica. Esta manifestação
fenoménica do direito, perante nós, enquanto conteúdo estamos a considerá-lo da perspetiva da
sua existência, das suas modalidades normativas, do seu conteúdo e a sua origem e processo
constitutivo (as fontes de direito – lição 17). Esta lição analisa o conteúdo o direito enquanto
sistema jurídico.

O ponto em que nos encontramos exige que façamos uma reflexão sintetizando o que
até aqui temos vindo a considerar. Muito brevemente, de forma a contextualizar esta inserção da
reflexão sobre o sistema jurídico.

Se do ponto de vista estrutural o direito vigente se nos apresentou como ordem jurídica,
do ponto de vista substancial, ou seja, quanto ao seu conteúdo, o direito vai apresentar-se-nos
como sistema. Como sistema no sentido de construção unitária e coerente e, assim, estrutural e
substancialmente unitária e coerente do direito vigente. Por outras palavras, o sistema jurídico é
a expressão do conteúdo, daquilo que estrutural e institucionalmente reconhecemos como ordem
jurídica – aquilo que é formalmente ordem jurídica é, de uma ótica material, um sistema.

O sistema constituirá o modo porque, ao nível do conteúdo, o direito se relaciona com a


realidade e esta com ele. Isso significa que quando estamos perante um ordenamento jurídico
(vigente, aquele que regula as relações intersubjetivas num certo contexto comunitário) teremos,
do ponto de vista estrutural-formal, a situação de dimensão de ordem institucionalizada e, do
ponto de vista, substancial-material, a referência ao conteúdo e à intenção e substância da
delimitação da juridicidade vigente. Neste sentido, para reconhecermos no direito um sistema
haveremos de encontrar no seu conteúdo e nos elementos que o compõe uma unidade racional,
por um lado, e uma coerência, por outro.

O que significa a coerência do ponto de vista de um sistema jurídico que se quer fazer
valer pelo sentido material das suas prescrições, mais do que pela organização lógica formal que
entre os seus elementos se estabeleça. O que não significa que não haja uma estruturação lógica,
pois que ela será crucial para que possamos falar de sistema enquanto unidade concatenada de
elementos racionalmente relacionados entre si.

O direito apresenta-se-nos como ordem. É como ordem que se nos dirige, é como ordem
que pretende resolver o problema a que se destina – o problema da regulação da vida
intersubjetiva e, assim, da integração comunitária. Neste sentido, temos no ordenamento jurídico

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

a projeção objetivada do conteúdo de juridicidade que estruturalmente se nos apresenta como


ordem.

Mas, o direito sendo ordem e, com isso, garantindo a integração comunitária e a


determinação de segurança, não é menos problema. Como dizer que o direito é problema? Vimo-
lo desde o início quando nos propusemos a analisar como questão prévia os problemas de quid
ius (para lá dos problemas de quid iuris) em que o direito se transforma no problema a considerar
e a compreender. O direito não se esgota em ser um conjunto de informações, de prescrições,
critérios para a ação, é também uma valoração da ação. O sentido dessa valoração é que faz do
direito o nosso problema, o objeto da nossa reflexão desse ponto de vista quid ius.

No limite, diríamos que o sistema se apresenta a nós como um topus articulador da


dialética entre a realidade e o direito. Nesse sentido, esta articulação dialética vai fazer com que
nos coloquemos de um modo decisivo perante duas categorias de inteligibilidade, isto é, perante
os dois mecanismos ou instrumentos de racionalização do direito e que serão o sistema, por um
lado, e o problema, por outro. É na relação dialética entre sistema/problema que a expilada
dialética constituenda do direito se nos apresenta. É nesse sentido que veremos a articulação
entre a realidade e o sistema.

Nem todos os sistemas se apresentam nesse sentido – se, por um lado, a dialética entre
ordem (direito visto na perspetiva institucionalizada de ordem) e problema (a realidade concreta,
onde surgem os casos juridicamente relevantes) sendo o sistema essa articulação racional entre
uma ideia de ordem e uma ideia de problema, vamos ver que há outros tipos de sistema em que
a relação entre ordem e problema não se apresenta do mesmo modo. O Senhor Doutor Pinto
Bronze, neste ponto, apresenta-nos conceções decisionistas e conceções normativistas de
sistema jurídico.

Por outro lado, sabemos que se o sistema garante a articulação entre ordem e problema
(relação entre o direito e a realidade) essa articulação dialética vai projetar-se decisivamente no
modo como o direito é realizado na resolução dos casos concretos. É nesse sentido que o sistema
jurídico assume uma relevância metodológica (metodonomológica) já que à racionalização do
iter constitutivo que visa atingir um objetivo, temos a referência ao “nomos” como a determinação
do sentido do direito como horizonte de referência, e o sentido do direito projetado no sistema
jurídico vigente a assimilar a relevância do contacto intersubjetivo e da determinação da
relevância jurídica dos casos concretos que surgem na realidade prática.

b) O s.j. na sua compreensão e composição atuais – a sua análise:

22
Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Temos vários tipos de modelos de sistema e temos vários critérios que nos permitem
identificar diferentes perspetivas de sistema jurídico. Estamos a guiar-nos pelo modo como o
Senhor Doutor Pinto Bronze nos propõe esta tipologia dos sistemas, mas em alguns pontos não
nos deteremos em pormenorizações.

1) Critério do modelo:

À luz do modelo de articulação da unidade dos elementos que compõe o sistema


podemos distinguir cinco tipos de sistema:

a) Sistema centrado numa “unidade por identidade formal e de conceitualização


abstrata”:
 Diz respeito aos sistemas do pensamento moderno-iluminista (no núcleo do
jusracionalismo) e do pensamento jurídico positivista do século XIX.

Estamos a considerar o modelo de relacionamento dos elementos do sistema jurídico que


lhes garante unidade (conferência de unidade racional aos elementos que compõe o sistema
jurídico) e por consequência a concatenação entre esses elementos.

No sistema centrado numa “unidade por identidade formal e de conceitualização


abstrata” nós vamos encontrar um sistema em que os elementos que o constituem se articulam,
tanto pode acontecer em termos de concatenação lógica de consistência axiomático-dedutiva –
o que acontece nos sistemas de princípios de direito natural do jusnaturalismo racionalista -,
como de recondução de identidade formal e conceitualização abstrata a uma relação entre os
elementos que compõem o sistema em função dos temas a que se dirigem de modo a que, ao
nível das normas encontrássemos disponível mais particularizado, e tivéssemos uma articulação
progressiva de conceitualização que exige não apenas uma identidade lógica, mas também uma
coerência do conteúdo. De modo a, por indução, criar conceitos logicamente estruturados e
relacionados entre si dos mais particulares aos mais gerais e abstratos, sendo que o sistema
jurídico estaria composto por normas na sua base e a partir delas seriam conceitos por indução e
princípios gerais de direito por abstração generalizante.

Este tipo de sistema posto assim é correspondente aquele que nos apresentou o
positivismo normativista do século XIX. Como experiência primeira e, sobretudo, na sua expressão
germânica. Se, por um lado, encontramos uma unidade por entidade formal em todos os sistemas

23
Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

que, logicamente concatenados e, por isso, também cabia aqui a construção lógica do
jusracionalismo – a unidade é garantida pela recondução aos princípios de direito natural.

Por outro lado, também encontramos identidade formal de conceitualização abstrata no


sistema jurídico, que sendo composto por normas, vê a unidade racional entre elas a depender
do seu agrupamento em função das áreas sobre que versam através de indução em conceitos
dos quais seria, também, possível por dedução e indução construir novos conceitos. Criando,
assim, uma sistematização em dois níveis: primeiro o nível das normas de base material de
sustentação e, por indução, os conceitos que abstraindo da materialidade da realidade a que as
normas se referem e das próprias normas leva a que se alheiem esses conceitos dessa
materialidade e, com isso, tenhamos a racionalidade do sistema garantida na racionalização lógica
dos próprios conceitos entre si.

Esta segunda modalidade de identidade formal – conceitualização abstrata – corresponde


ao sistema conceitual que a construção do positivismo jurídico alemão nos irá apresentar.

Num sistema jurídico organizado numa unidade por identidade formal e de


conceitualização abstrata o que temos é: uma relação lógica (pode ser estritamente de
consistência, mas pode implicar também coerência entre os elementos que compõe o sistema) e,
nesse sentido, a unidade racional é garantida pelas relações que se estabeleçam entre os
elementos do sistema, mais particulares e mais gerais, na articulação que lhes for atribuída. Não
temos uma construção hierarquizada, temos uma concatenação lógica. No normativismo do
século XIX, o que temos são normas em relação com normas, num todo articulado de normas das
quais é possível retirar princípios gerais de direito e conceitos. Nesse contexto, os princípios gerais
de direito e conceitos não serão mais do que desimplicações lógicas obtidas a partir das normas
e, portanto, substancialmente ainda normas.

b) Sistema polarizado numa unidade por redução a um único fundamento puramente


formal:

Um segundo tipo vai determinar a unidade do sistema jurídico através da redução de


todos os elementos a um único fundamento puramente formal. Este é tipicamente o modo
constitutivo do sistema jurídico do normativismo proposto por Hans Kelsen. Agora sim, temos
uma estruturação hierárquica, ou seja, temos um sistema em que a legitimação e validade dos
diferentes elementos que são normas (na perspetiva de Kelsen o direito é norma). A relação que
se estabelece entre as normas é diferente da que acabamos de ver anteriormente para o
normativismo do século XIX.

É importante considerar que já não estamos a falar do positivismo do século XIX, agora
estamos a falar de um positivismo do século XX em que permanece a referência ao direito como
exclusivamente o direito positivo – nesse sentido temos um positivismo – sendo que é um
positivismo normativista, porque o direito positivo é composto exclusivamente por normas.
Porém, neste contexto, vamos encontrar as normas em relação com normas organizadas
hierarquicamente.

Significa que teremos em todos os níveis normas, numa estruturação triangular ou


piramidal, em que, mais perto da base temos normas mais diretamente dirigidas à realidade e, à
medida que vamos subindo na pirâmide, vamos encontrando níveis de abstração e generalidade
mais amplos (vamos encontrar níveis hierarquicamente superiores).

Isto assim, em patamares sucessivos, até que chegando ao vértice dessa pirâmide,
encontramos a única norma que não é criada, mas sim é pressuposta, norma fundamental –

24
Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

grundnorm. A grundnorm é a única pressuposta como um pressuposto racional à priori, mas que
tem por prescrição a determinação de que a primeira constituição é obrigatória. Isto significa que
no nível hierarquicamente superior da pirâmide, anterior ao vértice, vamos encontrar a
Constituição – como a norma hierarquicamente superior. Abaixo desta vamos encontrar o nível
das normas ordinárias. Abaixo a regulamentação daquele nível ordinário e, abaixo, ainda, teríamos
a consideração das normas individuais que são as decisões construídas para os casos concretos,
ou seja, a própria decisão é vista como uma norma.

Temos aqui uma estruturação hierárquica em que a validade das normas de um


determinado nível depende de essas normas, desse nível, serem criadas pelo modo porque o nível
imediatamente superior determina que elas devam ser criadas. Temos uma validade que é
puramente formal. Esta construção dinâmica do sistema implica que a validade se traduza num
problema de legitimação quanto ao procedimento e da estrutura hierárquica, porque cada nível
da pirâmide se legitima e valida pela conformidade ao nível imediatamente superior e isto em
sequência até ao vértice em que encontramos a norma fundamental – grundnorm.

Mostra que o positivismo, embora já não com as mesmas vestes, permanece durante o
século XX. Prevalece para cá do século XX, simplesmente vão surgindo novas modalidades. Esta
vertente normativista é uma, muito diferente do positivismo do século XIX, porque ao nível da
decisão judicial vai chegar a conclusões muito diferentes daquelas que nós vimos para o
positivismo, sobretudo, quanto à aplicação lógico-dedutiva. A corrente do positivismo que se vai
desenvolver no século XX e XIX tem que ver já com a recuperação das teorias analíticas da
linguagem e a discussão entre o direito e a moralidade que vai sendo desenvolvida.

c) Sistema funcionalmente esquematizado segundo relações sociológicas de “input-


output”:

A referência ao sistema funcionalmente esquematizado segundo relações sociológicas de


“input-output”. Esta referência, posta assim, tem que ver com uma das fases do pensamento de
um autor da teoria dos sistemas – Niklas Luhmann – e que considerando que a sociedade é um
sistema composto por vários subsistemas vai analisar a comunicação entre esses subsistemas. No
que, especificamente, diz respeito ao direito uma obra vai analisar a relação que o direito
enquanto subsistema estabelece com os outros subsistemas que constituem o sistema social.

Estamos a frisar um autor cujo pensamento se vai desenvolver, sobretudo, nas décadas
de 80 e 90 do século XX, o que acontece é que temos uma reação aos instrumentalismos e
funcionalismos jurídicos que foram, por sua vez, fatores de superação do positivismo do século

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

XIX – o funcionalismo político e o funcionalismo económico. Resulta da necessidade de o direito


ter em conta o conteúdo e não apenas a forma, vai levar como que ao extremo da afirmação de
que o direito não apenas deve ter em conta o conteúdo, mas como deve ser instrumento ao
serviço dos outros conteúdos que a sociedade lhe apresenta.

O que Niklas Luhmann propõe é uma recuperação da autonomia do direito através do


descomprometimento do direito face aos objetivos que lhe são externos dizendo que: vamos
recuperar a pureza e autonomia do direito formalizando o discurso, isto é, descomprometendo-
o do conteúdo que é prosseguido pelos outros subsistemas. Portanto, vamos transformar o
direito num modo de redução da complexidade das relações sociais que se estabelecem nas
sociedades, por modo a que o direito possa ser um instrumento de articulação dessas relações
intersubjetivas sem se comprometer com os objetivos que essas outras dimensões lhe queiram
impor. Isto vai fazer com que o discurso se formalize, que o pensamento jurídico possa de volta
a ser considerado com uma determinação epistemológica dos conteúdos do direito positivado –
a dogmática jurídica volta a formalizar-se. No fundo, há um certo regresso a um normativismo só
que por via da superação das superações que visaram superar o normativismo do século XIX.

Luhmann propõe que o sistema jurídico que tinha sido considerado aberto na superação
do positivismo do século XIX, volte a fechar-se sobre si próprio para se proteger, que as
comunicações que lhe advêm do exterior sejam vistas como estímulos, ruido que o internamente
a reorganizar os seus elementos e a reconstituir-se de modo especificamente jurídico, para
responder de modo jurídico aos estímulos externos de outras índoles que os sistemas lhe
apresentam.

Temos aqui uma ideia de purificações do direito – a partir do discurso – entendendo que
(primeira fase) o sistema recebe comunicações do exterior como “inputs”, vai como filtrá-las
internamente e responde-lhes como “outputs” jurídicos (resposta jurídica autónoma da
pergunta). Mas, o autor vai evoluir para o facto de deixar de considerar esta possibilidade de
adaptação por variante do sistema ao meio (ambiente) para passar a considerar que não há
verdadeiramente “inputs”, ou seja, os estímulos não entram, constituem ruido (como que
comunicações que embatessem nas fronteiras externas do sistema obrigando a reestruturar
internamente e a responder juridicamente). É aqui que entra a distinção que já falámos entre
expetativas cognitivas e expetativas normativas, no sentido de que, ao direito cabe a proteção
das expetativas normativas, o que significa que no binómio “direito/contra o direito” o sistema
jurídico vai procurar oferecer respostas de direito.

Se o legislador está na fronteira externa do sistema (o que está mais próximo dos
estímulos-ruido, o que está mais sujeito aos impulsos que advêm do exterior), o juiz ao estar
protegido, está-o sobre a capa do programa condicional “se-então”. Com isso a decisão judicial
volta à aplicação lógico dedutiva e o juiz volta a um juiz descomprometido com o sentido
normativo das suas decisões.

d) Sistema de fundamentação:

Até aqui analisámos sistemas em que temos determinações de sentido único – o direito
é criado no sistema e proteja-te na realidade – estamos a considerar estruturas que são
fundamentalmente formais. O direito racional em virtude na forma e a unidade do sistema
também é, sobretudo, formal. Na alínea d) e e) vamos encontrar sistemas que se legitimam através
da fundamentação material.

26
Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Em primeiro lugar, um sistema de fundamentação que podemos encontrar na proposta


de Claus Wilhelm Canaris. O sistema passa a assumir a diferenciação entre os critérios e os seus
fundamentos. Há um problema de intensidade material que começa a ser crucial, mas ainda vê a
sua relação com a realidade só em termos de concretização, ou seja, só na relação entre o sistema
(primeiro) e a realidade (depois).

e) Sistema polarizado numa unidade normativa de dialética realização a posteriori e


regressiva:

O sistema polarizado numa unidade normativa de dialética realização a posteriori e


regressiva corresponde à perspetiva jurisprudencialista que temos estado a analisar e que vai
implicar que:

(1) O sistema jurídico seja um sistema aberto, ou seja, não temos uma comunicação só
do sistema para a realidade, mas também, a realidade influi na construção do sentido
normativo do sistema.
(2) O sistema jurídico seja material, isto é, não se cinge a um descomprometimento com
o sentido e intenção material das suas prescrições e da sua realidade. Ao invés, é um
sistema cuja racionalidade e a unidade racional é garantida pela articulação
substancial e intencional entre os elementos. Não é uma articulação hierárquica e de
lógica forma, é uma questão de dialética substancial entre os elementos. É a coerência
material que garante a unidade do sistema jurídico.
(3) O sistema jurídico seja um sistema pluridimensional, porque não é composto
exclusivamente por normas, vamos encontrar outros estratos – diferenciação crucial
entre critérios e fundamentos (encontramos no estrato dos princípios normativos).
(4) Um sistema jurídico que é de reconstrução regressiva e à posteriori. Se até aqui
vimos sistemas definidos à priori – primeiro o sistema, depois a realidade. Agora
temos uma relação dialética continua entre sistema e problema. Deste ponto de vista,
o sistema é à posteriori em sentido kantiano, construído na relação com e pela
influência da experiência. É um sistema de reconstrução regressiva, porque o sistema
se desenvolve na espiral dialética da relação entre a realidade que vai propondo
novidades e o sistema que com elas se confronta e, por isso, é instada a reorganizar-
se, a reconstituir-se, a repensar-se para responder de modo jurídico.

Esta alínea diferencia-se da alínea d), pois neste temos um sistema em que já há
preocupações de coerência material-intencional, há já diferenciação entre critérios e
fundamentos, mas a relação com a realidade dá-se só no sentido do sistema para o problema. Ao
passo que na alínea e) a relação entre o sistema e a realidade se faz, sobretudo, do problema para
o sistema, porque é a realidade que vai interpelar o direito.

25/03

A discrição que apresentamos na aula anterior do critério do modelo quanto aos sistemas
é uma descrição introdutória e, portanto, visou apenas mostrar que temos vários tipos/modelos
de sistema coevos (não há uma substituição de uns pelos outros em termos cronológicos ou de
subida de patamares) que vigoram contemporaneamente.

O direito no positivismo visa resolver problemas práticos, o modo como pretende


resolvê-los é que leva a que eles não sejam analisados na sua especificidade, mas sejam antes
analisados na condição de se enquadrarem como espécies do género que o sistema prevê. O

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

direito sempre pretendeu resolver problemas práticos, mas o modo como os encara é que se
altera ao longo da história.

 Continuação da análise das características do sistema polarizado numa unidade


normativa de dialética realização a posteriori e regressiva (fazendo a distinção com
o positivismo do século XIX):

Portanto, o sistema fechado será um sistema onde o direito se consagra em todo o


sistema, em que este pré-define a juridicidade e não vai dar relevância, especifica e autónoma a
cada caso concreto, vai é analisar se o caso concreto é uma espécie do género daquilo que prevê
e que pretende dar relevância jurídica. Se o problema não for considerado como uma espécie do
género e não houver mecanismo de auto integração que possa responder, o problema será
considerado juridicamente irrelevante.

Por outro lado, contraponto esse sistema fechado, temos um sistema jurisprudencialista
como um sistema aberto. A consideração de que a realidade tem uma relevância constitutiva
autónoma, isto é, os problemas que se apresentam ao direito são juridicamente relevantes pelas
suas características. O caso é juridicamente relevante porque o problema que põe é um problema
que exige do direito uma resposta, ou seja, é um dos problemas do tipo daqueles que o direito
pretende resolver, mesmo que não esteja completamente previsto no sistema. É uma
compreensão diferente daquilo que o positivismo tinha admitido.

No positivismo o sistema é um sistema formal, constituído por normas. Um sistema


jurídico que não vai considerar a especificidade dos problemas, mas vai fazer uma tipificação
lógica que exige que os problemas sejam correspondentes à enunciação do sistema. A contrapor
à compreensão do sistema material que o jurisprudencialismo vai assumir, dizendo desde logo
que o sistema é organização interna do conteúdo do direito. Portanto, é um sistema que se pauta
não pela prescrição daquilo que deva ser juridicamente relevante, mas pela valoração da prática
e pelo diálogo com essa prática e esse diálogo que lhe confere a sua especificidade. Sendo que
ao direito cabe fazer uma valoração própria – reflexão critica sobre a prática à luz do sentido de
validade que é especificamente jurídico.

O sistema unidimensional do positivismo do século XIX construído por um único estrato


– o das normas -, porque os princípios gerais de direito e os conceitos eram elaborações lógicas
obtidas a partir das normas. Ao passo que o sistema que o jurisprudencialismo nos propõe
assume um conjunto de estratos diversos, sendo que não é composto unicamente por normas,
embora naturalmente comporte normas legais, mas tem outros estratos.

Por fim, a tal ideia de construção progressiva do sistema tal como está consagrado para
os factos na perspetiva positivista e construção regressiva à posteriori em sentido kantiano
(através da experiência) na perspetiva jurisprudencialista.

2) Critério tipológico:
a) “Sistema regulamentar” e “Sistema axiológico”:

O sistema regulamentar é um sistema que se concentra na pré-objetivação de uma


planificação. É um sistema que se traduz na predefinição dos critérios que irão servir uma certa
planificação. No sistema regulamentar vamos ter uma regulação estabelecida previamente
relativamente ao momento da sua mobilização (é criado antes e independentemente da realidade
que possa vir a convocá-lo). Assim sendo, teríamos sistemas regulamentares no positivismo do
século XIX, mas também teremos sistemas regulamentares nos funcionalismos que assumam a
ideia de sistemas e visem que as regulações que estabelecem sejam prévias à sua realização.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Porém, a regulação que o positivismo normativista estabelece é logicamente prévia e


nessa sua précia determinação encerra a sua universalidade racional (a afirmação de norma vai
ser completamente independente dos objetivos que através dela se pretendessem assumir). Já
nos positivismos do século XX, que sejam inspirados pelos finalismos, isto é, as condições que
reduzem o direito ao direito positivo, mas que aferem da validade do direito, não pela sua estrita
formalidade e também não pela sua fundamentação, mas pelos objetivos que através dele é
possível atingir, também assumirão sistemas regulamentares.

Contrapõe-se a esta ideia de sistema regulamentar a de sistema axiológico, ou seja, um


sistema assente numa referenciação a valores. Um sistema em que faz assentar a sua validade não
puramente na forma, não puramente nos fins que através dele é possível atingir, mas nos valores
em que se fundamenta. Estamos próximos desta axiologia material que o jurisprudencialismo
afirma.

b) “Sistema normativista” e “Sistema decisionista”:

Os sistemas normativistas são aqueles que traduzem o direito em normas que são pré
escritas e reduzem a análise do direito à correta compreensão da determinação dessas normas.

Os sistemas decisionistas, por sua vez, concentram-se do lado da decisão. Este sufixo de
“ismo” implica uma redução, ou seja, teríamos uma redução do sistema e do direito à decisão. O
sentido que é pretendido com esta distinção é, antes, a de assumir que, enquanto os sistemas
normativistas se concentram na criação e análise de normas e fazem propender o direito na
norma, já o sistema decisionista significa um sistema em que a tónica está colocada na decisão
(não estamos a dizer que tudo se concentra na decisão). Isso é que justifica que possamos falar
de exemplos concentrados na decisão, desde logo, no sistema jurídico de pendor mais doutrinal
em Roma. Depois, mais hermenêutico na Idade Média, mas muito concentrado na decisão.
Mesmo nas esferas de sistemas de common law em que temos sistema a centrar-se na decisão.

3) Critério histórico:

O critério histórico leva-nos a retomar diálogo com os grandes períodos históricos.


Sabemos que o sistema jurídico em Roma era aberto e pluridimensional, composto por diferentes
elementos (costume, lei, jurisprudência e doutrina). Os casos tinham uma relevância crucial na
constituição do direito. Essa tradição é só parcialmente assumida pela Idade Média, porque a
assunção de que o direito é norma vai-se fortalecer a partir do Corpus Iuris Civilis, desde os finais
do século XI em Bolonha e, depois, projetar-se por toda a Idade Média. A evolução da ideia de
sistema vai toda, historicamente, no sentido da concentração na ideia de norma. Não que a norma
seja a única fonte do direito (vai acontecer no normativismo apenas), mas desde a Idade Moderna
que a concentração vai dirigir no sentido de que quem cria o direito é o legislador e quem aplica
é o jurista. Este encaminhamento para que o direito racionalmente constituído é o direito criado
sob a forma de norma, leva a que mesmo já nos jusracionalismos (jusracionalismos naturalistas
que recusam o estigma da experiência na construção da ideia de direito natural) não se imiscui
materialmente no conteúdo do direito positivo.

Daí para o normativismo o passo é cortar com a fundamentação do direito natural.


Também no normativismo vamos encontrar a ideia de que o direito é, sobretudo, norma, que o
sistema se concentra em normas, porém desaparece a referência à ideia de direito natural.

O sistema jurídico tal como vamos agora analisá-lo já constitui uma das propostas de
superação desta redução do direito a norma. É uma de entre várias soluções possíveis e, por isso,

29
Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

cumpre explicar como é que se constitui e porque é que se constitui conforme iremos descrevê-
lo.

Análise do sistema jurídico:

Sendo um sistema pluridimensional o sistema jurídico proposto pela perspetiva


jurisprudencialista abrange os seguintes estratos: 1º- o sentido do direito, 2º- os princípios
normativos, 3º- as normas legais, 4º- a jurisprudência judicial, 5º- a dogmática, 6º- a
realidade jurídica e 7º- as regras. Esta é a construção que o Senhor Doutor Pinto Bronze nos
propõe desenvolvendo a perspetiva que o Senhor Doutor Castanheira Neves nos apresenta. Há
duas especificações que são trazidas pelo Doutor Pinto Bronze – autonomização do primeiro
estrato (o sentido) e a autonomização do estrato das regras procedimentais. Os quatro estratos
que o Doutor Castanheira Neves inicialmente propôs (princípios normativos, normas legais,
jurisprudência judicial e dogmática) vêm a ser associados pela realidade jurídica.

Vamos analisar o conteúdo explicando esta evolução e diferenciações por modo a


entendermos a inserção do sentido do direito como estrato autónomo.

i. Estrato do sentido do direito (reflexão sobre a sua autonomização):

O Doutor Pinto Bronze autonomiza o sentido do direito e fá-lo como uma remissão para
a referência à validade com dimensão fundamentante constitutiva do direito, remetendo para a
construção de uma intencionalidade irredutivelmente especificamente da normatividade jurídica
– uma intencionalidade que é originariamente jurídica dada a diferenciação progressiva
historicamente entre a intencionalidade jurídica e as intencionalidades de outras ordens
normativas. Vê essa intenção como deveniente, porque ela não só não é necessária como não é
estática, portanto, é uma intencionalidade constituenda, em continua constituição.

Isso significa que o sentido do direito que está aqui autonomizado como estrato, está-o
enquanto pressuposto axiológica, fundamentante e de racionalidade que perpassa todos os
outros estratos. Na verdade, não faria sentido falar dos outros estratos sem convocar o estrato
do sentido do direito. Digamos que este estrato se assume como um pressuposto e, depois, se
vai derramando pelos estratos que se lhe seguem.

Entre os estratos não se estabelece uma relação hierárquica, mas sim uma relação que
exige a distinção entre fundamentos e critérios. O fundamento assumido como o horizonte de
referência, como base axiológica de fundamentação. Ao passo que o critério é um operador
prático diretamente mobilizável para a resolução de problemas. Os fundamentos não conferem
resposta imediata para a resolução dos problemas, mas sustentam o sentido de solução que os
critérios, enquanto mecanismo imediatamente mobilizáveis para a resolução de problemas, irão
construir. Posto assim, há que distinguir os estratos de fundamentação de estratos de critérios.
Nós vamos encontrar fundamentos neste sistema, mas também vamos encontrar fundamentos
no estrato dos princípios normativos.

ii. Estrato dos princípios normativos:

Os princípios normativos são a manifestação da fundamentação da juridicidade vigente.


Claro que estão substancialmente ligados ao sentido, são a primeira expressão do sentido. No
estrato dos princípios normativos, nós temos uma filtragem para o direito através do sentido do
direito, das valorações vigentes na comunidade.

No princípio normativo vamos ter um fundamento inspirado no sentido do direito (todos


os estratos do sistema estão inspirados no sentido do direito). Vamos ter os princípios como a

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

primeira filtragem daquilo que a realidade propõe ao direito. É a grande reflexão sobre o sentido
material filtrado para o direito. Os princípios normativos são os sentidos fundamentantes do
sentido prático, material do direito – horizonte de fundamentação que resulta dessa filtragem do
consenso axiológico da comunidade para o sistema jurídico. Esta filtragem pode ser feita através
do legislador (exemplo: o legislador constituinte que institucionaliza um determinado princípio
como princípio fundamental – princípio da igualdade, por exemplo), mas também podem os
princípios normativos ser criados pela dogmática. Assim como, também, podem ser criados a
partir da jurisprudência. Nota: filtragem é uma determinada valoração ético-moral.

Quando falamos em princípios normativos enquanto fundamentos materiais estamos a


falar dos fundamentos materiais que sustentam a construção de critérios. Vamos encontrar
critérios no estrato das normas legais, no estrato da jurisprudência (as decisões judiciais
previamente proferidas podem constituir critério para a resolução de casos futuros), assim como
nos modelos dogmáticos. Teremos critérios, a nível mais instrumental, nas regras procedimentais.
Na realidade jurídica vamos encontrar a realidade dos casos, mas como também vamos encontrar
manifestações de constituição do direito (law in action) pelos sujeitos na composição das suas
relações jurídicas, ai vamos encontrar alguns critérios (exemplo: o direito que resulta da
celebração de um contrato que vincula os sujeitos – tem critérios e não tem de ser a transcrição
da lei).

▪ Diferença entre princípios normativos, princípios de direito natural e princípios


gerais de direito:

Os princípios de direito natural são fundamentações, em alguns casos jurídicos e


noutros casos de ético-moral, que sendo externas ao direito positivo são heterónomas e impostas
de fora ao direito positivo. Traduzem um horizonte ideal, pode ser universal ou não, histórico ou
não, mas são sempre referências de ordem normativa externa ao direito positivo. Os princípios
normativos de que estamos a falar não são princípios de direito natural, porque eles são originária
e intencionalmente especificamente jurídicos. Quando surgem já são jurídicos, visto que, deles
resulta a filtragem para o direito de outras valorações que possam ter origem ético-social ou são
princípios técnicos que têm origem de dentro do direito.

Os princípios normativos também não são, por outro lado, princípios gerais de direito.
Enquanto os princípios normativos de que estamos a falar são referentes axiológicos, materiais
sustentadores/fundamentantes do direito positivo – são fundamentos dos critérios. Os critérios
resultam dos princípios, logo as normas legais são criadas a partir de princípios. Isto significa que
os princípios enquanto fundamento são a base de construção dos critérios, logo, as normas legais
são criadas a partir dos princípios e, por isso, consequentemente os outros estratos do sistema
são criados a partir dos princípios enquanto critérios.

Já nos princípios gerais de direito, no modo porque o positivismo do século XIX os


constituiu, temos os princípios como abstrações generalizantes retiradas de conjuntos de normas,
ou seja, os princípios gerais de direito são criados a partir das normas (de um conjunto de normas
que trata de uma determinada problemática abstrai-se um princípio geral de direito).

Os princípios gerais de direito sendo abstrações generalizantes obtidas a partir das


normas, primeiro: têm como matéria-prima as normas; segundo: sendo só abstrações
generalizantes do ponto de vista substancial nada de novo trazem relativamente às normas, são
como que normas mais gerais e mais abstratas, isto é, são enunciados mais abrangentes do que
as normas que não visam conferir solução direta para problemas práticos, mas que permitem

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agrupar em sentido lógico um conjunto de normas e que podem ser mobilizados em caso de ser
necessário convocar analogia iuris.

Nota: Na perspetiva positivista, se perante um caso omisso (uma lacuna) o facto não previsto na
hipótese de uma norma, não fosse possível proceder á integração através da submissão desse
facto omisso à hipótese de uma norma que previsse o facto análogo, ou seja, quando não fosse
possível a analogia legis, recorrer-se-ia à analogia iuris – a remissão direta, por indução, ao
princípio geral de direito que versasse sobre a área do direito em que se inserisse o facto omisso.

As normas são criadas a partir dos princípios normativos e obedecem-lhes quer na sua
direção, quer na sua interpretação, quer na sua consequente mobilização como critérios para a
resolução de problemas concretos.

Cumpre ainda dizer que os princípios normativos não são normas, desta perspetiva: a
norma tal como o próprio nome indica é não apenas uma ordenação normativa para a ação (é
um operador diretamente realizado para a resolução de casos concretos). O princípio, por seu
turno, não é um operador realizado para a resolução de problemas concretos, mas é sim a
referência axiológica fundamentante em que a norma se inspira e se louva. O princípio
fundamenta a norma e limita-a positiva e negativamente, pois no seu conteúdo encontramos um
acervo axiológico de que a norma é uma seleção, mas essa seleção tem de continuar a obedecer
ao sentido do princípio. O princípio estabelece uma orientação em sentido de delimitação positiva
e negativa (fronteira externa que a norma já não pode transpor sob pena de ser inválida). O que
confere validade a uma norma legal é a adequação do seu sentido material ao princípio ou aos
princípios normativos em que ela se fundamenta. Sem isso não temos uma norma válida.

Isto significa que os princípios normativos não se confundem com as normas legais: os
princípios são fundamentos, enquanto as normas legais são critérios.

 Distinção entre princípios como ratio, princípios como intentio e princípios


como ius:

Princípios como ratio: serão os princípios que acabamos de identificar como princípios gerais
do direito do positivismo do século XIX, isto é, são emanações racionais que resultam de
abstração generalizante, obtidas a partir das normas, mas que são construções lógicas e não têm
uma densificação material diferente ou mais enriquecedora ou sustentadora da validade das
normas.

Princípios como intentio: permitem-nos considerar a existência de princípios que sendo


extrajurídicos, por exemplo, princípios morais, adquirem juridicidade e passam a ser jurídicos se
e quando forem convocados para a resolução de um problema concreto (decisão judicial) ou para
a construção de uma lei. Além de que podem, numa fase intermédia, ainda não como jurídicos,
auxiliar na interpretação de uma norma. Porém, enquanto não forem projetados para a lei ou
utilizados para a resolução de um problema judicial não terão juridicidade.

Isto significa que quando afirmamos que os princípios normativos, no sentido da


perspetiva jurisprudencialista, são originariamente direito (ius) estamos a posicionar-nos numa
posição distinta, porque mesmo que eles tenham origem em valorações comunitárias
extrajurídicas, ao ser assimilados para o direito, não significa que estejam a ser assimilados para
o direito positivado. Os princípios normativos quando estão a ser mobilizados, mesmo que a
consciência da sua utilização ocorra no momento da construção de uma lei ou da decisão judicial,
não passam a ser norma, continua a ser um princípio – princípio sob a forma de norma. Nos
sistemas de legislação como o nosso a consagração sob a forma de norma garante certa e

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segurança quanto: à juridicidade do princípio e quanto aos seus contornos (qual o conteúdo e
fronteiras formais da exigência).

Quando o direito aborda o princípio e o filtra toma para si como que esse princípio
assume uma outra figura, isto é, passando a ser construído do ponto de vista jurídico o seu
conteúdo e os seus limites formais passam a ser aqueles que o direito lhe confere. O princípio
normativo como ius quando se forma e quando o pensamento jurídico o cria já o cria jurídico.

Exemplo: o princípio da igualdade pode ter conteúdo e contornos formais distintos do sentido
que podem assimilar noutras ordens normativas práticas (ético-morais, por exemplo). A própria
ideia de justiça implica a pressuposição do sentido do direito na abordagem da valoração. É isso
que faz desses valores princípios normativos, como que se transmutam em princípios jurídicos
como princípios normativos.

Os princípios normativos são princípios que exprimem o sentido de direito e que também,
projetados como princípios vigentes serão princípios do direito. É preciso verificar que o facto de
os princípios normativos poderem ser positivados sob a forma de norma legal, não lhes altera a
sua natureza, permanecem sendo princípios. Daí que tenhamos na nossa Constituição múltiplos
princípios consagrados sob a forma de norma constitucional e continuam a ser princípios (estão
sob a forma de norma). Os princípios são jurídicos, porque são princípios normativos.

07/04

Algumas notas essenciais:

Na última aula o tema que estávamos a considerar era o do sistema jurídico, e tendo
caraterizado este sistema, genericamente, considerando-o como um sistema polarizado numa
unidade normativa de dialética realização à posteriori regressiva, vimos o seu conteúdo e
identificámos sete estratos. Começámos por referir o sentido do direito enquanto a construção
intersubjetiva da normatividade jurídica – a intencionalidade normativa que o sistema jurídica
encerra e transmite. Avançámos para o momento da validade nos princípios normativos.

Enquanto princípios normativos reconhecemos uma manifestação da fundamentação


material do direito vigente, partindo de uma distinção que apresentámos – fundamentos e
critérios – que nos levou a dizer se o sentido do direito perpassa todo o sistema, o estrato do
princípios normativos propõe-se apresentar cristilizadamente o sentido normativo que o direito
vai estabelecer numa certa evolução e historicidade constitutiva. Esta cristalização não implica
uma solidificação – o sentido dos princípios normativos é, como todos os outros, constituendo e,
portanto, eles estão em continua dialética e dialógica constituição.

Os princípios normativos implicam que reconheçamos que não estamos perante nem
princípios de direito natural, nem perante normas legais. A distinção entre fundamentos e critérios
leva-nos a essa conclusão. Os princípios são antes manifestações do sentido material do direito
que não oferecem operadores diretamente mobilizáveis para problemas concretos, ou seja, não
oferecem sentidos de solução em termos imediatos para os problemas práticos. Porém, ainda
assim, não são também de utilização residual ou supletiva (não são convocados apenas se e
quando não haja norma ou outros critérios). Antes estão sempre presentes, quer do ponto de
vista da constituição do direito a partir da compreensão dominante num sistema de legislação
através da lei, mas não apenas da lei, também da constituição do direito feita quer ao nível da
dogmática jurídica, quer ao nível da decisão judicial.

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Significa isto que os princípios normativos que se se nos apresentam como direito fazem-
nos perguntar pela sua juridicidade e pela sua justiciabilidade.

Quanto à juridicidade dos princípios temos de ter em conta quer a origem, quer a sua
densificação normativa – ser um princípio de direito implica desde logo que não estejamos a falar
de meros valores, mas de filtragem para o sistema jurídico do sentido de alguns valores aos quais
vai devida uma compreensão de determinação da intersubjetividade do ponto de vista do direito.
Esta é uma opção histórico-civilizacional que faz com que um mesmo princípio possa não ter o
mesmo conteúdo em todos os locais e em todos os tempos. Ao mesmo tempo que nem todos
os princípios estarão vigentes em todos os ordenamentos jurídicos. Significa isto que para
falarmos da juridicidade dos princípios temos que os ver tanto como princípios de direito, tanto
como princípios do direito.

» Como princípios de direito estamos a considerar os princípios normativos como


manifestação do sentido de direito histórico-culturalmente constituendo – são os
princípios enquanto manifestação da ideia de direito, com diferentes
densificações. Para se nos apresentarem como princípios de direito hão de os
princípios corresponder, do ponto de vista normativo e prática:
 a uma consonância de fundamentação, ou seja, o princípio há de ser
manifestação do sentido normativo último do direito;
 a uma consonância de função, isto é, o princípio há de corresponder à
reflexão sobre a juridicidade e a delimitação da intersubjetividade
jurídica num certo contexto em que se afirma como vigente. Temos uma
referência à operatividade prática – os princípios hão de ser valorações
de juridicidade que se possam dizer mobilizáveis para a resolução de
problemas práticos e que exigem uma resposta do direito.
» Princípio do direito: temos de considerar os princípios do direito, de uma certa
normatividade vigente. Contextualmente, pode dizer-se válido e eficaz num
concreto sistema jurídico.

Além do problema da juridicidade dos princípios temos de considerar o problema da


justiciabilidade dos princípios, ou seja, a constatação efetiva de que são princípios suscetíveis de
serem mobilizados para a construção de uma decisão judicial e que o sejam efetivamente.
Significa que os princípios normativos não cumprem uma função meramente subsidiária, mas
estão sempre presentes, quer no momento de constituição e construção da legislação, quer na
realização concreta daquela criação, mas que, simultaneamente, é ela própria normativamente
constitutiva.

Com isto se diz que o relevo metodológico dos princípios normativos implica que estejam
sempre presentes no momento da realização judicativa do direito, quer haja, quer não haja critério
suscetível de ser imediatamente mobilizado como modelo de resolução para o problema
concreto. Significa que os princípios normativos enquanto fundamentos são referente essencial
quer tínhamos critérios que diretamente possam mobilizados para resolver o problema concreto
(por exemplo, se o critério for uma norma legal, os princípios são uma referência importante e
fundamental na própria interpretação da norma legal), quer não exista critério pré disponível no
sistema para responder àquele problema concreto - sendo que uma vez comprovada a relevância
jurídica desse problema concreto haverá que constituir um critério para a sua resolução e isso
possa implicar a convocação direta do princípio normativo para essa construção.

Para intensificar a importância fundamentante dos princípios normativos, cumpre


classificá-los considerando os critérios que nos são propostos.

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▪ Classificação dos princípios quanto à posição que ocupam no sistema:


» Princípios positivos ≠ Princípios Transpositivos ≠ Princípios Suprapositivos

Nem todos os princípios normativos são imediata manifestação do sentido último da


ideia de direito, porque em alguns casos são concretizações de outros princípios, esses sim
correspondendo a todo o sistema jurídico e, como tal, a qualquer área dogmática do direito.
Cumpre compreender, por um lado, a relação que se estabelece entre os diferentes princípios e,
por outro lado, a relação entre os princípios e os outros estratos (à luz da relevância que possam
ter em termos práticos na fundamentação dos outros estratos).

Nota: O princípio normativo prevalece sobre a norma legal no sentido de que é


fundamento da norma legal – é condição essencial da sua validade -, logo, a norma
legal ao ser criada há de sê-lo como concretização do sentido do(s) princípio(s)
normativo(s) em que se fundamenta. A norma ao ser interpretada, há de sê-lo à luz
do sentido normativo desses mesmos princípios.

Este critério tem uma relevância crucial na delimitação recíproca da relevância dos
diferentes princípios como no próprio tratamento do problema da fundamentação do direito mais
amplamente.

Quando falamos na posição que os princípios normativos ocupam no sistema jurídico,


estamos a considerar princípios que diretamente emanam de e manifestam o sentido último do
direito – pilares fundamentais do ordenamento jurídico vigente. Depois, irão concretizar-se para
as diferentes áreas dogmáticas sendo que não necessitam de estarem positivados sob a forma de
norma para serem considerados princípios normativos (princípios jurídicos e juridicamente
vinculantes).

Requer que compreendamos de que falamos quando estamos a considerar estes


princípios:

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Suprapositivos (pilares fundamentais de todo o ordenamento jurídico): os que emanam


diretamente da ideia de direito e se manifestam diretamente como horizonte da referência última
da juridicidade.

Estes princípios suprapositivos são a manifestação imediata e mais próxima da afirmação


da ideia de direito globalmente considerada. São os princípios que determinam o sentido material
e formal da juridicidade.

Quando analisamos a construção do princípio normativo do direito – distinguimos o polo


de suum (de afirmação da autonomia e com isso as exigências da igualdade) do polo do commune
(da afirmação da responsabilidade como contra polo que exige do direito uma resposta e que faz
com que a intersubjetividade jurídica se distinga de quaisquer outras intersubjetividades) – vimos
que a delimitação da juridicidade assenta na distinção entre os dois polos e na necessidade de
estabelecer os limites materiais e formais do juridicamente exigível.

Se ao direito cabe a delimitação de uma intersubjetividade especifica – que se confronta


com a autonomia e a responsabilidade – de modo a delimitar a atuação dos sujeitos numa
convivência pacifica do ponto de vista do juridicamente relevante. Os princípios vão ser
manifestação dessa relação entre autonomia e responsabilidade e sê-lo-ão independentemente
do nível da posição que ocuparem no sistema jurídico. Porém, há princípios que são imediata
manifestação do sentido do direito num certo sistema jurídico. Portanto, princípios que referem
imediatamente à relação entre autonomia e responsabilidade como delimitação última da
bilateralidade característica do direito.

Sabemos que no polo do suum encontramos as exigências fundamentais da tutela da


autonomia dos sujeitos e sabemos que no polo do commune enquanto manifestação de
responsabilidade – integração comunitária que traduz uma responsabilidade – constitui um limite
à afirmação do polo do suum. Se ao direito cabe a definição dessa relação entre autonomia e
responsabilidade é necessário conhecer os limites que cada uma dessas dimensões implicam para
que a intersubjetividade jurídica possa constituir-se e desenvolver-se. Significa isto que, nesse
primeiro horizonte de referência – em que os princípios são imediata emanação do sentido do
direito, enquanto princípios suprapositivos – vamos encontrar a delimitação do polo de suum e
do polo de commune, assumindo que se o polo do commune que institucionaliza a
responsabilidade é um limite ao polo do suum, esse limite não pode indefinido e ilimitado.

Assim sendo no polo do commune vamos encontrar do ponto de vista formal e


substancial a definição de princípios que constituem que mostram os limites do limite que o polo
do commune enquanto institucionalização da responsabilidade constitui à autonomia dos
sujeitos. Os princípios fundamentais da igualdade e da responsabilidade que são do ponto de
vista teórico e metodológico considerados princípios suprapositivos (princípios que perpassam
todo o sistema jurídico como horizontes de referência último da manifestação da ideia de direito).
Do lado da responsabilidade vemos concretizados enquanto limites à responsabilidade, o
princípio do mínimo quando ao conteúdo e o princípio da formalização quanto à estrutura,
esquema e forma.

O princípio do mínimo estabelece a definição do conteúdo juridicamente exigível, será o


mínimo para a manutenção de garantia da realização recíproca das autonomias. Para que esse
conteúdo da exigibilidade jurídica seja conhecido o princípio da formalização define os limites
dessa responsabilidade.

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Transpositivos: Aqueles que sendo sua concretização se apresentam como pilares fundamentais
de cada área dogmática e, por isso, apresentar-se-ão como condições normativo-transcendentais
do sistema jurídico vigente iluminando cada área dogmática.

Ao nível dos princípios transpositivos encontramos nas diferentes áreas do direito


diferentes realizações deste sentido dos princípios do mínimo e da formalização. Os princípios
vistos como suprapositivos irão projetar-se nos diferentes domínios/áreas do direito em distintos
princípios.

Os princípios transpositivos em concretização dos princípios suprapositivos são


condições transcendentais (condições de possibilidade) em termos materiais e em termos formais
do sentido e da inteligibilidade da área do direito a que respeitam. São os pilares fundamentais
de cada área do direito vigente.

Se à pouco vimos o princípio do mínimo como um princípio suprapositivo poderemos a


concretização, sobretudo no direito público (direito constitucional, direito administrativo) desse
princípio do mínimo ao nível do princípio da proporcionalidade. Considerando as suas dimensões
da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, em que do ponto de vista do
conteúdo a intervenção há de ser a mínima para aquele específico domínio do direito público.
Com isto teremos o princípio da proibição do excesso como uma manifestação do princípio
suprapositivo do mínimo.

Enquanto manifestação de princípio transpositivo do princípio da formalização temos,


por exemplo, um pilar fundamental de delimitação de responsabilidade para a área do direito
penal, no princípio da legalidade criminal (nenhuma ação ou omissão pode ser considerado como
crime se não estiver como tal prevista em lei prévia à sua verificação que a defina como tal). Este
princípio da legalidade criminal mostra-se como um pilar fundamental, um condição de
inteligibilidade até do próprio direito penal. Não o compreenderíamos enquanto última ratio da
prática intersubjetiva se não fora esta exigência do princípio da legalidade criminal. Temos a
delimitação institucional ao nível da forma de procedimento da intersubjetividade.

Temos outro exemplo de concretização do princípio transpositivo do princípio


suprapositivo da formalização que é, de facto, o princípio do caso julgado.

São transpositivos, porque estando embora sobretudo nos sistemas constitucionais tais
como o nosso ordenamento jurídico vigente manifesta, se encontrem consagrados em norma
legais e constitucionais, não são fundamentais por estarem consagrados em normas
constitucionais. Desse ponto de vista, significa que ser transpositivo não necessita de estar
positivado para ser juridicamente vigente. Embora no ordenamento em que nos encontramos na
maioria o estejam, sendo uma garantia da efetividade.

Positivos: Princípios que não sendo pilares fundamentais de uma especifica área do direito se
nos apresentam como orientações que implícita ou explicitamente o legislador vai apontando
para assim fixar o sentido por que opta na medida em que outros sentidos seriam possíveis sem
porem em causa a índole da área do direito a que se referem.

Já os princípios positivos não constituem pilares essenciais e/ou condições de


inteligibilidade num certo domínio do direito. São princípios que manifestam a concretização do
sentido do direito a níveis mais operativos. Por essa razão os legisladores tendem a consagrá-los
sob a forma de norma e positividamente. Consagram-nos legislativamente sobretudo porque
haveria a possibilidade de, sem pôr em causa a índole da área do direito que respeitam, ainda
assim continuassem a ser considerados normativamente adequados.

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Isto significa que há princípios que o direito vigente consagra de forma explicita ou
implícita – que o sistema jurídico se vê constrangido a objetivar porque outras alternativas seriam
possíveis no enquadramento da mesma área do direito sem que essa área do direito ficasse posta
em causa. Isso não aconteceria com o princípio da legalidade criminal – se este fosse posto em
causa deixaríamos de ter a exigência da previsibilidade da classificação das ações ou omissões
como crime.

Exemplo: artigo 219º do CC estabelece o princípio da liberdade de forma ou da consensualidade


entre os negócios jurídicos, estabelecendo que, em princípio, os negócios jurídicos serão válidos
independentemente da forma que revistam. A exigência de forma para todos os negócios
jurídicos, poderia não pôr em causa a índole do direito das obrigações, mas colocaria muitos
obstáculos até logísticos à celebração de qualquer negócio jurídico. Imaginemos termos de
redigir um contrato escrito cada vez que comprássemos um café.

08/04

▪ Critério do modo da objetivação:


» Princípios normativos escritos e (ainda) não escritos

Princípios normativos escritos: aqueles que o legislador entendeu positivar são-no por razões
de certeza e segurança, num sistema de legislação como aquele que nos encontramos os
princípios escritos implica que haja um maior conhecimento e certeza quanto ao seu conteúdo e
delimitação formal.

Há princípios que não se encontram escritos ou ainda não se encontram escritos. É o caso do
princípio da confiança que não está assim definido legislativamente e que o estão numa fase da
sua constituição em que ainda se encontram em constituição, o que significa que são princípios
que se vão propondo a partir das reflexões que se vão fazendo. Exemplo: princípio da tolerância,
princípio do poluidor pagador. Estes princípios de origem dogmática, numa certa fase do seu
desenvolvimento mantêm-se como princípios não escritos. O que conferem normatividade e
positividade jurídico é o facto de serem mobilizados como fundamento para a realização do
direito. Na possibilidade de convocar os princípios para resolução de problemas concretos. Esses
princípios ainda não escritos mostram-se relevantes em qualquer momento do desenvolvimento
do direito.

▪ Critério da intencionalidade normativa:


» Princípios normativos abertos e em forma de norma

A abertura pode ter que ver com a fase de desenvolvimento, mas com as possibilidades que
abrem e que podem nem sempre estar consagradas em forma de norma. Os princípios abertos
podem ser ainda assim operadores mobilizáveis para a resolução de um problema concreto no
sentido de orientação fundamentante na resolução desses problemas.

Além desses princípios abertos – que podem ou não estar escritos – temos princípios em forma
de norma. Se o princípio tiver forma de norma em sentido estrito vai assumir-se na prática como
um operador, mas isso não significa que se transformou em norma, isto é, um princípio
consagrado em forma de norma continua a ser um princípio. Exemplo: em primeiro lugar, o
princípio da consensualidade ou da liberdade de forma dos negócios jurídicos – este dá-nos a
resposta à pergunta: “Este negócio jurídico é válido”. Outro exemplo, o artigo 1306º do CC – só
são considerados direitos reais aqueles direitos que tenham essa qualidade positivada. Este
princípio é um dos exemplos de que há princípios que estão consagrados sobre a forma de norma.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

▪ Critério da origem normativa:


» Princípios que são imediatas explicitações da normatividade da ideia de
direito: princípios que assimilam juridicamente valores e padrões ético-
sociais; princípios que se revelam originária e especificamente jurídicos
▪ Princípios que são imediatas explicitações da normatividade da ideia de direito -
exemplo: princípio da igualdade e princípio da responsabilidade.
▪ Princípios que assimilam juridicamente valores e padrões ético-sociais – exemplo:
princípio da boa-fé.
▪ Princípios que se revelam originária e especificamente jurídicos – exemplos:
Princípios da culpa, do dispositivo, do contraditório, princípio do caso julgado.

Em conclusão, o estrato dos princípios normativos goza de uma presunção de validade, ou


seja, concentra-se na dimensão de formação axiológica do direito, a presunção de que os
referentes de fundamentação são materialmente válidos. Os valores que o direito apresenta como
seus fundamentos presumem-se válidos. Não significa que os princípios normativos sejam
universais e intemporais. Não garantido numa matriz cultural material diversa um princípio tenha
o mesmo conteúdo. O sentido que o direito assume em termos culturais marca todas as suas
dimensões. Os princípios normativos são eles próprios, como todo o direito, continuamente
constituendo. Portanto, vamos encontrar uma maleabilidade e uma historicidade intrínseca ao
próprio sentido dos princípios. O diálogo com a realidade é crucial para a compreensão desse
princípio. Por exemplo, o princípio da igualdade vai reconhecendo alterações ao longo da história
– após o 25 de abril deixou-se de considerar diferença entre filhos nascidos no casamento e filhos
nascidos fora do casamento.

Os princípios normativos têm uma relevância metodológica crucial, são sempre convocados
quer haja quer não haja critério para a resolução de problemas jurídicos concretos. Não são um
recurso supletivo para a realização prática do direito.

iii. Estrato das normas legais:

As normas legais como operadores práticos para a resolução de problemas, são os critérios.
Nos sistemas de legislação as normas são critérios. As normas legais como critérios – sem
esquecer que não lhes confere um precedência hierárquica dos critérios – as próprias
interpretações das normas são consideradas sempre á luz dos princípios normativos. Na proposta
que estamos a considerar sendo as normas critérios fundamentais elas não operam isoladamente
na resolução de problemas juridicamente relevantes.

αα) a sua estrutura lógica (a hipótese e a estatuição):

Olhando para as normas enquanto momento de objetivação temos uma ligação entre o
sentido do direito e a necessidade de implementação de programas práticas e da realização de
projetos. Olhemos para as normas na sua estrutura lógica. Tem duas dimensões fundamentais:
hipótese e estatuição. A norma enquanto critério que dá norma para a ação juridicamente
relevante, há de apresentar uma hipótese à realidade que se dirige e uma estatuição.

δδ) a sua índole normativa: “posterius” problemática-normativo e não puramente “prius”


prescritivo:

No que diz respeito à sua índole normativa, a norma é um critério geral e abstrato – visa
aplicar-se a todos os sujeitos e estabelece uma tipificação de casos, não trata de casos concretos
no seu enunciado – e por isso é abstrata. Esta sua caraterização mostra-nos que a norma com

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

esta sua estrutura formal e no modo porque a identificamos será vista como a premissa lógica
pré-estabelecida, pré positivada para uma eventual posterior aplicação lógico-dedutiva. Neste
sentido, a norma seria como uma definição do direito e como “prius” metodológico (elemento
cristalizado para a aplicação). Pré definição da juridicidade na norma e a necessidade de verificar
se a realidade seria da espécie da norma.

A norma está no sistema antes e independente da sua aplicação aos factos – a norma sai
do sistema, seja lógica e dedutivamente aplicada aos fatos e regressa ao sistema.

A proposta que estamos a considerar é diferente. O ponto de partida para a apresentação


da problemática da juridicidade é não a definição ex ante do sistema jurídico, mas antes encontra-
se no caso concreto. Seguindo a proposta de Castanheira Neves, podemos concluir que o que
nos leva à consideração e à tomada de consciência de problemas jurídicos é a índole dos
problemas. São juridicamente relevantes, porque apresentam uma interpelação ao sentido do
direito, podendo ou não estar previstos numa norma. Este problema é do tipo daqueles que tem
relevância jurídico a, portanto, um problema juridicamente relevante. De seguida, é preciso
encontrar critérios e fundamentos que possam sustentar. A norma deixa de ser considerada como
uma premissa que delimita a juridicidade, para passarmos a ter uma relação entre o caso e a
norma, em que o caso interpela o sentido do direito, vai invocar por normas e estas serão
interpretadas à luz desse caso e tendo em conta os estratos de fundamentação do sistema
jurídico.

γγ) os elementos normativos constitutivos das normas jurídicas legais – elemento racional
ou fundamento e elemento imperativo ou autoritário:

A norma tem uma dimensão ou elemento imperativo ou autoritário e um elemento


racional e de fundamentação. Quanto à dimensão autoritária, a lei é o resulta da atuação do poder
legislativo. As normas legais apresentam-se-nos enquanto critérios com uma determinação
perspetiva de autoridade já que provêm do poder legislativo.

A norma não é só um imperativo, é um critério de valoração da prática na


intencionalidade jurídica que encerra e um critério judicativo. Quando estamos a considerar a
norma jurídica enquanto critério normativo, estamos a considerá-la como lei, ou seja, olhamos
para o interior da norma.

No seu sentido interno, vamos encontrar uma dimensão racional e dimensão


fundamental. A ratio legis (relação entre a norma e a realidade) prende-se com a consideração do
seu objetivo da sua razão de ser – a norma é uma resposta para problemas da realidade. A norma
não é apenas ratio legis, é também ratio iuris, em que encontramos o confronto entre a teleologia
pragmática e o sentido do direito que a fundamenta que reside nos princípios normativos. é a
interpelação da sua validade. A norma há de ser a concretização dos princípios normativos em
que se fundamentam.

As normas legais não podem ser consideradas em qualquer dimensão isoladamente, ou


seja, a norma legal só faz sentido em relação com a realidade a que se dirige, mas também
conjugadamente na sua relação com os princípios normativos que a fundamentam.

As normas legais gozam de uma presunção de autoridade. A presunção de autoridade


das normas sem a consideração de validade dos princípios. A própria dimensão de abertura do
sistema jurídico ver-se-á em todos os estratos.

Classificações das normas legais:

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

1) Quanto à estrutura ou “módulo lógico” e à independência ou autossubsistência da


solução-conteúdo” (plenitude do sentido):

Este critério conjuga duas dimensões. A classificação das normas legais quanto à estrutura
faz com que distingamos duas normas – as normas completas: são normas que compreendam
uma hipótese e uma estatuição. As normas incompletas são aquelas que não contêm toda ou
parte da hipótese, e aquelas que contêm toda a ou parte da estatuição.

Quanto à independência ou autossubsistência as normas completas serão autónomas e


as normas incompletas serão normas não autónomas.

1.1. Normas autónomas:

A norma no seu sentido estrito é uma prescrição para ação que contém uma descrição
da realidade a verificação dessa realidade. As normas autónomas são estruturalmente e
substancialmente autónomas, expressam um conteúdo independente e produzem efeitos só por
si. Uma norma penal incriminadora, por exemplo.

1.2. Normas não autónomas: normas remissivas explicitas, normas remissivas


implícitas (ficções, presunções iuris tantum e presunções iuris et de jure):

As normas não autónomas necessitam de outras normas que lhes complementem o


conteúdo e não produzem efeitos só por si. Dentro destas, há alguns exemplos: normas
remissivas explicitas e normas remissivas implícitas. Essa remissão tanto por ser expressa
como implícita. As normas remissivas explicitas podem ser globais – as regras de conflitos, sobre
a aplicação de leis no espaço, são normas remissivas.

De facto, as normas remissivas explicitas podem remeter para um artigo da mesma ou de


outra lei, como podem remeter em bloco para um instituto ou até para um diploma legal.
Exemplos: por exemplo, no âmbito do artigo 939º do CC – refere-se a um instituto de compra e
venda. Já as remissões implícitas não remetem expressamente para outra norma, mas
estabelecem, na sua prescritividade, que para se compreender o sentido daquela norma seja
necessário recorrer a outras. Vai remeter ou remeter para uma situação de outras, ou vai exigir
que uma certa situação seja tratada como outra apesar de não o ser – diferença entre presunções
e ficções legais.

As presunções são uma ilação de uma facto conhecido para retirar a verosimilhança de
um facto desconhecido, do ponto de vista jurídico apresentam-se-nos assim partindo do artigo
do CC. As presunções podem ser legais (feitas pela lei) ou judiciais (feitas no contexto da decisão
judicativa).

As presunções legais podem ser ilidíveis, ou seja, postas em causa e consideradas simples,
admitem prova em contrário. Ao passo que as presunções judiciais são inilidíveis e absolutas.
Neste sentido, consideramos alguns exemplos que nos permitem considerar o que está em causa:
Artigo 1260º do CC – posse de boa-fé. A presunção iuris tantum encontramos no artigo 1260º, n.
º2, do CC. O n.º 3 reflete uma presunção iuris et de jure. Sem a presunção seria muito difícil a
prova. São recursos que o ordenamento jurídico utiliza para efetivar e estabilizar as relações
jurídicos.

Se nas presunções temos uma ligação entre um facto conhecido e um facto


desconhecido, noutro recurso – ficções legais – não há ligação entre facto conhecido e facto
desconhecido, mas sim a certeza de que aquilo que se ficciona não ocorreu, isto por razões de

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

possibilidade de prova e efetivação das relações jurídicas. Na ficção o legislador assume como
existente um facto que não aconteceu. Para poder permitir a efetivação de direitos.

As ficções são completamente estranhas à verosimilhança, vai tratar-se como certo um


facto que a realidade desmente. Estas ficções mostram-se a possibilidade de se efetivarem as
prescrições jurídicos. Por exemplo: artigo 805º do CC – momento da constituição in mora
(momento a partir do qual o devedor se considera atrasado no cumprimento). O exemplo que
queremos é o do artigo 805º, n.º 2, al. c), do CC. Se o devedor fraudulentamente cria mecanismos
para evitar ser constituído in mora, o legislador considera in mora da data devia ter sido.

1.3. Proposições não normativas: definições legais, classificações legais, regras


meramente qualificativas:

Além das presunções e das ficções, temos as proposições normativas – definições legais:
a definição não dá norma para a ação (artigo 202º do CC – define “as coisas”); classificações
legais: artigo 203º do CC – apresenta a classificação das “coisas” e regras meramente
qualificativas: são normas que assentam na qualificação de certas relações jurídicas – artigo
1722º do CC.

2) Quando à articulação ou coerência sistemática (âmbito de validade espacial e


âmbito pessoal de validade):
2.1. Critério da “especialidade” territorial:

Quanto ao âmbito de validade espacial normas universais, globais ou nacionais;


normas regionais e normas locais. As normas universais são aquelas que se aplicam em todo o
território em que vigora o mesmo ordenamento jurídico. As normas regionais só se aplicam em
determinadas regiões. As normas locais são aquelas que se aplicam apenas nas autarquias, por
exemplo.

2.2. Critério da “especialidade” material:

Do ponto de vista material ou pessoal: normas gerais ou comuns, normas especiais;


normas excecionais.

As normas gerais são aquelas que estabelecem um regime regra e se aplicam sempre que
não haja norma especial. As normas especiais são aquelas que não contrariam o regime geral. As
normas excecionais são aquelas que consagram um regime oposto ao regime regra. São
exigências especificas de cada setor.

As normas excecionais serão estabelecidas para situações que o justificam e sempre que
não haja regime excecional aplica-se o regime regra.

14/04

3) Quanto ao vínculo lógico com a ação (relação) combinada com a perspetiva da


autonomia privada (relação com a vontade dos destinatários):

Relação a norma e a vontade dos destinatários. Há circunstâncias em que a norma se impõe


independentemente da vontade dos destinatários – normas imperativas. Mas há normas em que
é possível estabelecer um regime jurídico diferente daquele que a norma legal define – normas
dispositivas.

3.1. Normas imperativas, injuntivas ou cogenses – precetivas e proibitivas

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

A aplicação destas normas não depende da vontade dos sujeitos seus destinatários, ou
seja, esta norma impõe-se independentemente da vontade dos destinatários. Significa que temos
normas cruciais no estabelecimento das exigências que o direito apresenta às relações jurídicas.

Dentro das normas imperativas temos duas: exigem um comportamento positivo –


normas precetivas – preceitos que os sujeitos estão obrigados a fazer. No caso em que o
cumprimento exigido é negativo – normas proibitivas – proíbem uma conduta. Exemplo: no
direito penal vamos encontrar nas normas penais incriminadoras normas imperativas.

3.2. Normas permissivas ou dispositivas – facultativas ou concessivas ou


atributivas, interpretativas stricto sensu, supletivas

Nestas normas há uma margem em que os sujeitos podem livremente compor o


conteúdo das relações jurídicas que estabelecem entre si.

As normas permissivas são normas que permitem comportamentos e que admitem que
os sujeitos no âmbito da sua disponibilidade e dentro dos limites definam o conteúdo das suas
relações jurídicas.

Por um lado, temos normas facultativas ou concessivas ou atributivas – são aquelas


que permitem ou facultam certos comportamentos e concede faculdades. Exemplo: artigo 1305º
do CC que define o conteúdo que compõem o direito de propriedade, ao conferirem ao
proprietário o poder de usar, fruir ou dispor da coisa.

As normas interpretativas em sentido estrito são normas de estabelecem o sentido


com que outras normas ou expressões podem valer, determinam o alcance e o sentido que certas
normas legais para delimitar o âmbito da sua vigência e aplicabilidade. Exemplo: artigo 1022º do
CC temos a noção de locação. No artigo 1023º do CC encontramos uma norma interpretativa do
artigo 1022º do CC.

As normas supletivas da vontade que suprem a falta da manifestação da vontade dos


sujeitos da relação jurídica sobre determinados aspetos que a ordem jurídica considera
necessitarem de regulação. Há, portanto, normas legais que se estabelecem deixam margem aos
sujeitos a que se destinam para dispor diferentemente nas relações jurídicas, aplicando-se sempre
(vinculativas) os sujeitos da relação jurídica nada disponham. Exemplo: regime jurídico de bens
no casamento: o nosso ordenamento jurídico considerar 3 tipos de regime. (1717º do CC).

4) Quanto à sanção:

Temos várias referências a fazer, desde logo, da história do direito. Quanto à sanção
vamos distinguir as normas em função da sanção que implicam.

4.1. leges plus quam perfectae: são leis a cuja violação correspondem mais do que uma
consequência, ou seja, são aleis que implicam que o sancionamento implica dois tipos de
sanção. Implicam a nulidade do ato se manifesta, o ato que viola a norma é nulo. Por
outro lado, é aplicado uma pena ao infrator. Exemplo: negócios jurídicos contrários à lei
são nulos, se o seu objeto o implicar podem ser classificados como crime. Outro exemplo
são os impedimentos matrimoniais já que o casamento de que é casado é inválido
(anulável), ao mesmo tempo que o infrator decorre num crime de bigamia.
4.2. leges perfectae: só determinam a validade dos atos que a viola. Exemplo: uma
compra e venda de bens imóveis que não cumpre as formas serão nulas por vicio de
forma.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

4.3. leges minus quam perfectae: a sanção é diversa da invalidade do ato que viola a
norma, mas temos a determinação de que o ato não produz todos os efeitos que através
dele se pretendia produzir. Exemplo: casamento de um menor sem a autorização dos pais
ou do tutor ou sem o suprimento. Por um lado, temos um casamento válido, mas que
não produz todos os efeitos que produziria.
4.4. leges imperfectae: não impõem ao infrator qualquer tipo de sanção. Exemplo:
normas constitucionais programáticas em que não é estabelecida uma sanção. Outro
exemplo são as obrigações naturais. Esta obrigação já não é judicialmente exigível, mas
se o devedor cumprir cumpre bem. Quem cumpre uma obrigação natural não goza da
condição de não ser devedor.

Quanto às normas legais cumpre referir a consideração da presunção de vinculação com


que vigoram no ordenamento jurídico. É uma presunção de autoridade, já que as normas legais
gozam de uma conjugação entre uma validade jurídica que lhes é conferida, mas de uma
legitimação política que o sistema jurídico institucionalizado lhes confere.

iv. Jurisprudência judicial

A consideração do estrato da jurisprudência judicial corresponde ao momento da


concreta realização judicativo-decisório da normatividade judicial. Encontramos as decisões
judiciais, quer no momento da sua construção, quer enquanto precedentes que constituem
critérios para a resolução de problemas concretos e análogos futuros.

A jurisprudência judicial é a tradução da atividade dos juristas dissidentes. Como


resultado dessa atuação a mobilização de precedentes judiciais como critérios para a resolução
de casos concretos análogos futuros.

A dimensão vinculativa dos precedentes judiciais não se confunde com a relevância nos
sistemas de common law. Nestes os precedentes judiciais não podem deixar de ser considerados
como os critérios por excelência para a resolução de casos. No sistema de common law os
precedentes podem ser afastados (distinguishe e overruling). Temos a considerar que estas
decisões judiciais se assumem como autênticos critérios que no sistema de legislação se nos
apresentam com relevância metodológica e institucional diversas.

Num sistema de legislação como aquele em que nos encontramos (separação de


poderes) encontramos a consideração de que essa autonomia se liga com a relevância crucial da
lei como fonte do direito. Está sempre presente no momento em que consideramos as decisões
judiciais. Efetivamente o sentido das decisões judiciais anteriores é crucial para a resolução dos
casos presentes - exigências de unidade e coerência: na construção da decisão judicial o jurista
dissidente há de convocar não apenas os critérios normativo-legais, mas os restantes critérios dos
outros estratos do sistema, mas ainda os fundamentos. Temos na mobilização do sistema para a
resolução a convocação de critérios e fundamentos que irá garantir uma resolução
normativamente adequada. A consideração do sistema jurídico em bloca (critérios e
fundamentos) para a resolução de problemas juridicamente relevantes.

Alguns autores (James Kant, Robert Alexy, etc.) vêm reforçar a relevância metodológica
dos precedentes judiciais no sistema de legislação através de uma presunção de justeza, no
sentido de adequação normativa. Esta presunção de correção traduz-se e presume-se que a
decisão de compõe o critério oferecido pelo precedente judicial que manifesta a justeza no
âmbito do sistema jurídico. A justeza implica uma coerência da decisão judicial com o problema
e o sistema. Esta justeza existe nas duas dimensões com igual relevância. É tão relevante que a

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

decisão seja adequada ao sistema, como ao problema como ponto de partida de convocação do
direito.

Esta presunção de justeza vai implicar, por um lado, um princípio de inércia (as decisões
anteriormente consideradas são adequadas). Mas, não significa que os precedentes não possam
ser afastados para a realização do caso concreto.

15/04

v. Dogmática (o momento da elaboração racionalmente fundamentante da


normatividade jurídica); funções da dogmática; a presunção de racionalidade)

A dogmática enquanto o momento da elaboração racionalmente fundamentante da


normatividade jurídica. a dogmática enquanto. A dogmática jurídico traduz a tarefa do
pensamento jurídico ao considerar quer o direito já vigente estabelecendo um diagnóstico dessa
vigência e em muitos casos na proposta de soluções ex novo e propostas do ponto de vista do
direito a constituir. Isto significa que na dogmática temos o conjunto das reflexões de especialistas
sobre o direito relativamente ao direito vigente e também nas propostas de direito ex novo. Temos
o direito dos juristas.

Do ponto de vista interno temos o direito dos juristas (enquanto especialistas que
refletem sobre o direito) a englobar quer a dogmática, quer a jurisprudência. Cabe à dogmática,
descrever e refletir sobre o direito vigente, mas também propor resoluções para problemas novos
que vão surgindo. A dogmática jurídica teve papeis muito diversos. No contexto das fontes a
dogmática surge desde o direito romano. A dogmática teve sempre uma tarefa crucial, mas não
sempre a mesma intencionalidade.

Se a dogmática visou ser ciência, então teve que adotar um método científico positivista.
O que significa que à dogmática cabia conhecer o direito pré dado, ao passo que na escola
histórica do direito, a fonte fundamental não é a lei, tem um papel secundário – o costume. Seja
dado na lei, seja no costume, o direito é para a perspetiva positivista cognoscível. A tarefa da
dogmática é a construtivista perspetivação do direito já pré dado, cabe à dogmática e ainda
construir a partir da coerência entre as normas conceitos – definições de figuras jurídicas obtidas
por indução a partir das normas. Caberia, assim, a essa dogmática positivisticamente
compreendida uma tarefa cognitiva e construtivista. Daqui o dualismo intencional que o
positivismo apresenta.

No contexto da superação do positivismo a recuperação da filosofia prática. É nesta linha


essa intencionalidade por força de que os problemas têm de ser compreendidos através do seu
sentido,

As tarefas que a dogmática assume hoje é uma dogmática constitutiva de direito – o


pensamento jurídica cria direito. A dogmática jurídica é muito próxima da prática. O pensamento
jurídico sobre uma determinada área do direito e que versa sobre a intencionalidade e a realidade
a que vai referir. Os contributos da dogmática encontramos nas referências dos especialistas –
teses, artigos, etc. A construção reflexiva do direito resulta das reflexões materialistas que os
especialistas fazem a cerca do direito.

A dogmática antecipa problemas ao estudar a relação da realidade e do sistema jurídico.


Basta estarmos atentos aos grandes meios de comunicação em massa. A relevância de modelos
de solução novos para problemas novos e antigos prende-se com o facto de serem contributos
para a prática.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

A dogmática tanto pode criar critérios que resultem na questão da interpretação, por
exemplo. Assim como também pode criar princípios (por exemplo, o princípio da tolerância). Há
princípios que surgem primeiro na dogmática e, depois, vão sendo projetados para a legislação
e mesmo que não sejam projetados para a legislação eles são ius (direito) por eles próprios.

A dogmática apresenta uma presunção de racionalidade (de fundamentação sustentada


por uma argumentação).

As funções da dogmática jurídica:

(1) Função estabilizadora de sentidos – a dogmática fornece sentidos que a prática jurídica
vai assimilando;
(2) Função heurística – a dogmática propõe soluções ex novo;
(3) Função desoneradora – a dogmática ao fornecer acervos de sentido (exemplo: conceito
de boa-fé);
(4) Função técnica – confere aos juristas instrumentos técnicos de fixação de sentido
(5) Função de controlo – vai formando linhas de estrutura de pensamento que vai
dominando a prática.

vi. Realidade jurídica (o momento de “ação histórica” da normatividade jurídica); a


presunção de eficácia

A existência deste estrato no sistema jurídico mostra uma inovação decisiva entre as
outras compreensões de direito, porque, apesar das preocupações materiais com o sistema à
realidade, não se reconhecem, normativamente, contributos materiais da realidade ao sistema.

Relação dialética da realidade e do direito, no ponto em que se pressupõe um sentido normativo


de direito que vai dirigido à realidade e que é de construção histórico-comunitária

Nesta perspetiva jurisprudencialista que tomamos, encontramos propostas em que são-


nos apresentadas relações dialéticas entre o sistema e a realidade que implicam que, por um lado,
as novidades que a realidade apresenta se projetem no sistema de modo a participar na sua
reconstituição e, por outro lado, se pense que a realidade é o ponto de partida da determinação
da relevância jurídica, i.e., não é o facto de uma certa realidade estar definida no sistema jurídico
como juridicamente relevante que lhe garante a relevância jurídica – o que faz de um problema
juridicamente relevante é o tipo de problema que esse problema é.

Historicamente, a realidade terá nascido primeiro que o direito. Ser direito, no nosso
contexto atual, implica uma fundamentação, uma intencionalidade e uma regulação/ordenação
normativa, fazendo com que, historicamente, haja oscilação na determinação da relevância de
algumas questões juridicamente relevantes (p.e., o adultério já foi considerado um crime no
passado, ao contrário do que é hoje). Assim, há domínios na vida prática que vão ganhando,
perdendo ou alterando a feição da sua relevância jurídica, em função da própria realidade1 e da
valoração sobre a realidade que o direito vai fazendo, de forma dinâmica e em contínua
constituição. A realidade, de facto, tem uma dinâmica normativamente constitutiva indiscutível,
pois é a realidade que interpela o direito – se o direito existisse predefinido num sistema e não
se dirigisse à realidade do modo pelo que ela atualmente se apresenta, de nada servia (“o direito
ou é positivo/vigente ou não é direito”).

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Se o direito é interpelado pela prática, interpelando-a e reconhecendo-lhe uma relevância


normativamente constitutiva, a realidade, na sua riqueza, interpela o direito de modo decisivo,
levando-o a refletir internamente sobre o sentido das suas prescrições e, consequentemente, a
ordenar normativamente essa prática, i.e., o direito adaptar-se à realidade. Mas que adaptação?
Se o direito for uma adaptação acrítica à realidade, não passa de uma instrumentalização dessa
mesma realidade; o direito será tanto mais adequado quanto mais reconhecer as interpelações
empíricas que a sociedade lhe apresentar. Essa adaptação, portanto, não é acrítica, desde logo
porque o direito é uma instância crítica, de validade normativamente constitutiva da prática e que
assume uma normatividade própria que responderá de uma certa forma à realidade através de
um juízo jurídico específico.

Então, o direito é uma reflexão crítica sobre a prática no seu tempo próprio e a realidade
é crucial para o desenvolvimento do direito, sendo, por isso, projetada no sistema jurídico como
estrato. De referir que, retomando a expressão tipicamente anglo-saxónica que distingue a law in
books da law in action, concluímos que a realidade implica a law in action de vários modos:

✓ concretização dos mecanismos que o direito disponibiliza aos sujeitos membros de uma
comunidade e que estes irão mobilizar para a composição das suas relações
intersubjetivas e para o exercício da sua autodeterminação

Exemplo da realidade jurídica constitutiva e vinculante como realidade: um contrato, enquanto


relação intersubjetiva bilateral, implica uma vinculação recíproca; no seu clausulado, sendo uma
manifestação do exercício da autonomia privada, o contrato irá permitir que, no âmbito
delimitado pelo direito, os sujeitos tenham margem de manobra para a livre fixação do conteúdo
desse contrato sem que estejam adstritos a reproduzir as determinações legais. Temos, deste
modo, o estrato da realidade a mostrar-se como projeção de outros estratos e a constituir,
autonomamente, direito.

A realidade apresenta-se como a realidade política, cultural, económica, científico-


cultural, entre outras, a confrontar e a serem confrontadas pelo direito na dinâmica constitutiva
do sistema jurídico.

Presunção de eficácia

À realidade vai corresponder uma presunção de eficácia, i.e., se o direito for uma
manifestação ideal sem qualquer ligação efetiva na prática não será uma efetiva regulação para a
vida intersubjetiva. E, como o direito quer ser uma regulação para a vida intersubjetiva, teremos
de encontrar um equilíbrio dialético entre a realidade e o sistema jurídico.

vii. Regras procedimentais (o momento técnico-praxistico da normatividade jurídica);


a presunção de prestabilidade

Trata-se do momento técnico-praxistico da normatividade jurídica nas regras


procedimentais. Esta dimensão procedimental apresenta-nos um conjunto de regras de decisão
(os operadores técnico-argumentativos, os arrimos metodológicos, etc.), i.e., o conjunto de
critérios técnicos que os juristas mobilizam no desempenho da sua função (tanto de decisão
judicial como de construção legislativa e dogmática). Os cânones metodológicos mobilizados
(para a seleção e interpretação de normas, bem como para a sua relação com o caso, entre outros),
considerando o múnus do juristas na construção da normatividade jurídica vigente, são
suscetíveis de ser considerados como sendo operadores práticos essenciais para o desempenho
da função.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

c) Alusão à problemática da autónoma relevância de cada um dos


mencionados estratos do sistema jurídico

Depois do que se estudou acerca da vigência e das fontes do direito, soará menos
estranha a afirmação da pluridimensionalidade do sistema jurídico.

Pensada a vinculação num sentido amplo, irredutível ao seu tradicional entendimento em


termos prescritivo-autoritários num quadro político-constitucionalmente institucionalizado,
admitem-se vários modos dessa vinculatividade do direito, de acordo com a relevância autónoma
de cada um dos estratos do sistema e as respetivas presunções de vigência: desde a
referencialidade (do sentido) à eficácia (da realidade), passando pela validade (dos princípios), a
autoridade (das normas legais), a justeza (dos precedentes jurisdicionais), a racionalidade (dos
modelos práticos de decisão preconizados pela dogmática) e a prestabilidade (dos bordões
procedimentais).

d) A índole estrutural do sistema jurídico: aberto, material e regressivo (de


histórica reconstituição regressiva).

Cada um dos estratos do sistema jurídico identificados e caracterizados apresenta uma


relevância prático-normativamente constitutiva e metodológica diversa, confluindo todos no
direito vigente e no diálogo entre esse e a realidade que o interpela e a quem esse direito também
interpela. Portanto, o sistema jurídico é:

- Aberto, ao nível do próprio sentido (a historicidade do sentido do direito é uma manifestação


dialeticamente constitutiva do sentido do direito, em que o presenta comunga do passado e se
projeta no futuro) e ao nível de todos os estratos (porque todos eles se relacionam, diversamente,
com a realidade a que o direito vai dirigido).

- Pluridimensional, composto por várias dimensões (correlacionadas entre si e com a vida prática).

- Material, já que este sistema efetivamente está concentrado no conteúdo que pretende projetar
na realidade, i.e., existe a preocupação em ver no direito não é uma regulação descomprometida
com os fundamentos mas sim uma regulação normativamente constitutiva.

- de desenvolvimento regressivo a posteriori, já que a constituição do direito se se dá do lado do


direito (p.e., pela via legislativa) não acontece senão por referência à realidade que se vai
apresentando; a própria legislação, inclusive, possui uma índole prospetiva da própria realidade
a que vai dirigida no presente e no futuro pois o direito não é apenas o resultado repositório
daquilo que a realidade lhe impõe, mesmo quando é interpelado por ela e se constitui a partir
dela, respondendo criticamente e em forma de resposta jurídica. Este ponto verifica-se, muito
especialmente, na articulação crucial entre o problema e o sistema que a decisão judicativa dos
problemas concretos apresenta, i.e., dizer que o sistema é de constituição regressiva (de frente
para trás) implica dizer que a histórica reconstrução regressiva do sistema jurídico reside em,
perante os problemas concretos e novos, o direito ser convocado globalmente no seu sentido
como orientação de resposta e, ao responder, essa resposta nova retroprojeta-se no sistema já
vigente, enriquecendo e transformando-o.

Breve proposta metodológica para a resolução judicativa de problemas juridicamente


relevantes

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Observa-se, assim, como ponto de partida, o tipo de problema que é posto no caso em
interpelação ao direito e a pergunta ao sistema jurídico por um sentido de resposta: o que não
quer dizer que sai uma norma do sistema para responder ao problema, mas sim a convocação de
todo o sistema em todos os seus estratos para se relacionar dialeticamente com o problema
concreto – a questão está em saber se aquele problema é análogo aos problemas a que o sistema
jurídico vigente intenciona dar resposta; se o for, haverá que procurar no sistema os critérios e
fundamentos suscetíveis de sustentar o sentido de orientação da resposta jurídica àquele
problema. O que, por um lado, implica que não se convoquem normas isoladamente, por outro
lado, não vai apenas responsabilizar o jurista pela aplicação lógico-dedutiva (que o restringia e
desonerava) mas também vincular à consideração da norma e de todos os elementos
normativamente relevantes que o sistema jurídico disponha para a resolução daquele tipo de
problema que virá espelhar-se no problema em concreto.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Lição 16

Sumário:

2. As fontes do direito.
1) O problema e a perspetiva da sua consideração: a superação da (positivística)
perspetiva “político-constitucional” (polarizada ao poder) por uma
compreensão “fenomenológico-normativa” (polarizada na vigência).

21/04

O problema das fontes do direito que apela a uma metáfora atribuída a Cícero implica
que estejamos perante a consideração do modo de constituição do direito, ou seja, estamos a
analisar os modos por que se o direito constitui. Isso significa que o problema será visto de
diferentes perspetivas consoante a compreensão do direito e do pensamento jurídico e as fontes
do direito que estivermos a considerar.

Na perspetiva positivista o problema das fontes do direito apresentava-se como


resolvido, ou seja, sendo identificada uma ou várias fontes do direito como as fontes do direito
fundamentais teríamos indicada a origem do direito vigente e já dada a resposta no próprio
direito positivo.

Dizer que a Constituição, as leis, os decretos-leis, as portarias são fontes do direito


mostra-nos o problema já resolvido e acabado, não nos diz nada sobre o modo e processo de
constituição da normatividade jurídica vigente que aí já está manifestada.. De facto, para o
positivismo o problema das fontes do direito seria suscetível de resolução através da consideração
do direito já constituído. O que se trataria então seria de saber quem teria poder para criar direito
vigente. Se nos reportarmos ao positivismo legalista a pergunta seria: quem tem poder para criar
normas jurídicas obrigatórias? A resposta seria o poder legislativo. O problema das fontes do
direito para uma perspetiva de índole positivista se resolveria com o conhecimento e
interpretação das normas legais que determinassem quais os modos de criação do direito
possíveis – assumir uma perspetiva “politico-constitucional” do ponto de vista institucional, já que
a pergunta pelas fontes do direito nos levaria a questionar quem tem poder para criar direito e a
resposta ser-nos-ia oferecida através das determinações que o poder legitimado para criar direito
estabelecesse sobre quais as fontes do direito admissíveis. E do ponto de vista teórico e
metodológico esta perspetiva seria conjugada com uma intencionalidade hermenêutico cognitiva
– saber quais as fontes do direito admissíveis implicaria conhecer e interpretar as normas legais
que estabelecessem pelo poder legitimado as fontes do direito admissíveis.

No nosso sistema jurídico vigente e o nosso Código Civil estabelece nos seus primeiros
quatro artigos as fontes do direito tal como o legislador em 1966 as propôs. Temos no artigo 1.º
as fontes imediatas – as leis e as normas corporativas. No artigo 2.º encontramos como epigrafe
“assentos” e apenas a referência de que este artigo foi revogado. No artigo 3.º o valor jurídico
dos “usos”. No artigo 4.º temos o valor da equidade.

Da leitura destes quatro artigos concluímos que a lei tem aqui, numa perspetiva
institucional, uma prevalência como fonte imediata e como condição para a admissibilidade de
outras fontes. Esta é uma proposta que se centra crucialmente na lei como fonte fundamental.
No sistema de legislação como o nosso a normatividade jurídica se objetiva sobretudo na

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

legislação. Porém, não significa que a lei seja a fonte exclusiva. Estes quatro artigos já são eles
próprio resultado do processo constitutivo do direito – apresentam-se como direito positivo.

Se perguntamos ao direito positivo como se constitui e manifesta o direito positivo,


estamos a tornar a pergunta em resposta sem identificar o processo que está em causa, ou seja,
dar já por concluído o problema da sua constituição. Isso vai levar-nos a pôr o problema de outra
perspetiva. O que pretendemos saber ao perguntar “quais as fontes do direito?” é saber como se
constitui o direito vigente – como se constitui e manifesta a normatividade jurídica numa
comunidade histórico-concreta? Estamos a perguntar sobre fontes de juridicidade, mas também
a procurar analisar o próprio problema da constituição do direito (as razões por que e os modos
por que a lei se apresenta como fonte do direito e a pergunta por outros modos de constituição
do direito para além da lei).

Se pressupusermos como o pensamento positivista legalista fez que a lei é fonte


primordial do direito, concluiremos que tudo o que for criado com base na lei é direito. e o que
o direito será exclusivamente criado sob a forma de lei. Essa é uma impostação possível das coisas,
mas não a única. O que está em causa é perguntar pela juridicidade (o que faz do direito, direito)
e investigar o próprio processo constitutivo das diferentes fontes do direito. O que nos vai levar
a concluir que outras fontes se podem manifestar ao lado da lei e não necessariamente
dependente desta.

É claro que a normatividade jurídica se manifesta através da lei, mas essa não tem que ser
a sua única referência constitutiva. O que se trata de saber é como advém a juridicidade ao sistema
– o que é que faz do direito vigente, direito vigente. Vamos reconhecer que a criação do direito
é um processo com vários passos constitutivos e que resultará, consoante as instâncias
constitutivas, em diferentes experiências jurídicas constituintes – legislativa, consuetudinária e
jurisdicional.

2) Os tipos fundamentais da experiência jurídica constituinte – consuetudinária,


legislativa e jurisdicional - … acompanhados de uma meramente remissiva
introdução à problemática da reflexão jus comparatística.

Estamos a considerar uma perspetiva em que o direito vem à nossa presença como um
constituendo cuja vigência se irá concentrar na relação validade e eficácia – perspetiva
fenomenológico-normativa. Como é que o direito se nos apresenta como fenómeno. Neste
contexto vamos distinguir nas diferentes experiências jurídicas constituintes as três diferentes
fontes constitutivas do direito:

Experiência jurídica constituinte consuetudinária (costume):

A experiência jurídica consuetudinária aquela que resultará na fonte do costume é a que


é historicamente mais remota. O costume jurídico concentra-se na observância reiterada de
comportamentos que quer pelo seu conteúdo e fundamento, quer por essa constância se
assumem como intersubjetivamente vinculantes. O direito é constituído pela comunidade em que
se projeta como vigente, por isso, temos a identificação de que é um modo constitutivo do direito
de índole social. O costume diferenciado de uma outra experiência – a experiência dos “usos”.

O conteúdo do costume jurídico enquanto fonte implica a associação de dois elementos


– elemento externo ou objetivo que é o comportamento reiteradamente observado (corpos) e
o elemento interno ou subjetivo (animus) enquanto convicção da obrigatoriedade desse
comportamento. O costume distingue-se dos usos, porque estes apresentam a dimensão de
corpos, mas não de aminus. Como tal, os usos são práticas reiteradas, mas não acompanhadas da

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

convicção da obrigatoriedade desse comportamento. O costume enquanto fonte do direito não


se encontra autonomamente estabelecido no âmbito deste elenco de fontes do direito no CC,
mas isso não significa que o costume esteja afastado das possibilidades de constituição do direito
que o nosso CC admite. Exemplo: artigo 248º do CC confere relevo específico ao direito
consuetudinário.

Esta experiência jurídica constituinte assenta no fator tempo.

Experiência jurídica constituinte legislativa (lei):

A experiência jurídica legislativa assumiu progressivamente a partir da Idade Moderna um


protagonismo a ser considerada a fonte primordial do direito. Neste sentido, temos que
considerar um modo radicalmente distinto de constituição do direito. Desde logo, a experiência
jurídica legislativa já não assume a dimensão com índole social que o costume transmite, para
passarmos a ter uma distinção fundamental – assume uma índole estatal, uma remissão ao poder
político para criar direito sob a forma legislativa. Vai cumprir-se na prescrição de normas com
uma intenção de regulamentação para o futuro, para uma contextualizada comunidade ou
sociedade que assume como destinatária. Há uma instância criadora de direito – o legislador - e
uma instância destinatária – a sociedade.

A construção do direito apresenta-se como um conjunto pré-determinado de normas ou


regras que se destinam a uma aplicação futura. Temos como dimensão temporal essa
predefinição – o futuro é a dimensão temporal característica da experiência jurídica legislativa. Do
ponto de vista institucional há o conhecimento de um poder político-constitucionalmente
legitimada para criar direito sob a forma legislativa. Na dimensão de futuro temos a
intencionalidade prospetiva a manifestar-se no modo como as prescrições são estabelecidas, na
estrutura que a admitem e, com isso, precipitando-se numa projeção para a frente na
conformação da comunidade à qual se destinam.

Enquanto num sistema de legislação a decisão judicial será feita sempre tendo em conta
a referência legislativa e numa compreensão mais formalística e positivística primordialmente e
até unicamente a referência legislativa, na construção dos sistemas de common law a primeira
referência, mesmo que haja lei, será um precedente judicial em que essa lei tenha sido convocada
para orientação para a resolução.

Experiência jurídica constituinte jurisdicional (:

Da perspetiva fenomenológico-normativa em que estamos a pôr o problema a


experiência jurídica jurisdicional é suscetível de ser convocada como fonte do direito. Desde logo,
mesmo que consideremos a lei como fonte primordial, a ideia de que resolver um problema
confere vinculativamente a resposta do direito para a situação em concreto já nos mostra uma
ideia de concretização que leva a que se considere a decisão judicial é constitutiva do direito.

A perspetiva positivista que o século XIX nos ofereceu assumiu que a decisão judicial não
tinha qualquer relevância constitutiva do direito. Neste sentido, a aplicação lógico-dedutiva seria
uma mera declaração em concreto do direito constituído em geral em abstrato. Por isso, a
realidade estaria fora do sistema jurídico e a própria decisão judicial seria considerada fora do
sistema jurídico.

A perspetiva jurisprudencialista vai responder muito diferentemente ao problema de


saber da relevância constitutiva das decisões judiciais. A posição que vamos assumir não colhe a
unanimidade nas correntes atualmente em diálogo do ponto de vista dogmático e metodológico

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

português. Este tipo de experiência jurisdicional que se concentra no juízo decisório – estamos a
considerar o momento da constituição em concreto do sentido que o direito estabelece no
diálogo que vai fazendo com a prática – assume uma índole prudencial, porque o que está em
causa é um juízo (enquanto ponderação prática sustentada numa fundamentação material e num
discurso estruturado argumentativamente) de articulação entre a relevância especifica que o
problema concreto apresenta, enquanto intencionalidade problemática, e a relevância normativa
que o sistema jurídico confere aquele tipo de manifestação problemática.

O direito é criado no momento em que se realiza para o caso concreto e, portanto, a


dimensão temporal já não é o passado como no costume, nem o futuro como na legislação, mas
o PRESENTE.

22/04

3) A teoria tradicional das fontes do direito.


α) O seu sentido e temática – crítica.

Vamos olhar para o modo como o pensamento jurídico que vai culminar no CC de 1966
abordou a temática das fontes. Leva-nos aos primeiros quatro artigos do CC.

Vimos que o artigo 1º estabelece como fonte fundamental as leis e as normas


corporativas. Se estamos num sistema de legislação herdamos o modo constituinte vindo do
direito romano. A validade normativa das normas resida na relação substancial de fundamentação
que as normas enquanto critério estabelecem com os princípios normativos. No que diz respeito
às leis enquanto fonte fundamental temos que considerar que a lei tem uma prorrogativa
fundamental na constituição do direito, embora não seja a sua via única. Do ponto de vista da
estruturação do Estado direito há que reconhecer o princípio de separação fundamental como
também a própria independência dos tribunais, e ainda a identificação de quais atos normativos
(artigo 112º da CRP). A lei fundamental é a CRP, em termos hierárquicos. Reconhecendo essa
prerrogativa fundamental que se concentra no princípio da legalidade como pilar fundamental
do estado de direito, há a considerar outras dimensões cruciais.

β) Alusão particular ao problema dos “assentos”.

No artigo 2º prende-se com a problemática dos assentos. Os assentos apresentam-se


como revogados. O assento (artigo 2º na sua versão de 1966) é um mecanismo que provém dos
tribunais e que permitia aos tribunais fixar doutrina obrigatória geral quando a lei o permitisse. É
muito antigo e que constitui uma solução encontrada para garantir a uniformização de
jurisprudência no reinado de D. Manuel I. a própria designação assento é muito anterior.

De facto, a designação assento tem origem histórica remota em que podemos reconhecer
os “Assentos da Casa da Suplicação” que eram mecanismos de esclarecimento de dúvidas quando
a interpretação da lei e tinham como que força legislativa. Dizem respeito à necessidade de
institucionalizar o esclarecimento de dúvidas que anteriormente estaria submetido ao monarca.
Os assentos são confirmados pela Lei da Boa Razão. Quando foi instituído o Supremo Tribunal de
Justiça não se estabeleceu a designação de “assento”. Esta situação pressupõe problemas, mas
este instituto permanece no ordenamento português até 1966, no Código Civil.

Neste âmbito concreto o que era o assento. O assento era uma prescrição que o STJ
funcionado reunir em pleno imitia para resolver um problema da jurisprudência. O assento era o
resultado de o recurso específico quando houvesse contradição de julgado no âmbito da mesma
legislação e sobre a mesma questão de direito e resultaria em o STJ reunido em pleno tirar um

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

assento. Em termos mais explícitos, o assento era uma decisão judicial que procurava responder
a um problema concreto. Nesse sentido tínhamos uma decisão judicial com força reforçada em
que era resolvida a questão.

Atualmente, temos nos artigos 688º e seguintes do CPC o regime dos recursos para
uniformização da jurisprudência. Regressa, mas não com a força de assento. Os assentos tais
como estavam estabelecidos no CC de 1966 foram revogados.

Podemos ainda ver que há outras fontes referidas. Avançamos para o artigo 3º do CC que
nos fala dos usos. O uso que é uma prática reiterada, o ordenamento jurídico não poe de parte
os usos. São relevantes mesmo ao nível do direito internacional e até no próprio ordenamento
jurídico interno, desde logo, no CC. Encontramos, por exemplo, no contrato de locação. De facto,
é conferida a possibilidade de revelar aquilo que os usos determinam para a determinação do
local do pagamento da renda (artigo 1039º/1 do CC). Mostra a relevância dos usos.

Há ainda a considerar o valor jurídico da equidade. A equidade surge como instrumento


de racionalização da construção da decisão judicativa, mas também surge como uma fonte
mediata do direito que poderia compensar o formalismo que o direito estabelecesse. A ideia da
equidade irá muito além daquilo que será a delimitação. Esta visão acaba por submeter a
admissibilidade legal à equidade.

4) “Tópicos para uma (reconstituída) teoria das fontes do direito” (consoante com
o pré-determinado sentido do direito)
α) A perspetiva

Não estamos a consideração fundamental o que a história nos traz, mas precisamos de
compreender o que está em causa nesta teoria das fontes do direito sobre o que está em causa
quando se fala em construção do direito vigente. Se nos propusermos refletir sobre esta teoria
das fontes (pressupondo o sentido do direito que determina essa compreensão) teremos que ver
que:

(1) Esse processo constitutivo implica vários momentos e etapas de constituição do


direito vigente. As fontes do direito admissíveis serão aquelas que se apresentarem
como constituindo direito vigente. Está em causa quando pensamos nesta
experiência jurídica.

β) A experiência constituinte do direito

Analisando os momentos do processo constitutivo do direito cumpre percorrer esta


proposta e considerar cada um. Estamos a considerar que a intersubjetividade jurídica se forma
numa comunidade historicamente concreta e que ao mesmo tempo a constituição da juridicidade
é marcada por uma historicidade especifica que dialogo com a historicidade que globalmente
marca a evolução da historicidade. O que significa que os fundamentos e os critérios jurídicos não
são universais e gerais, são concretos. Os próprios fundamentos estão em continua discussão.

O direito apresenta-se-nos como um projeto cultural, com características muito


especificas. Mais do que ser um técnico sobre o direito, o jurista há de assumir e refletir
criticamente sobre. As soluções jurídicas de hoje, não têm de ser as de ontem e não serão as de
amanhã. É importante perceber os limites.

Estes momentos a que se refere o processo constitutivo do direito sucedem-se em ordem.

αα) Momento material

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Este momento material diz respeito à matéria-prima do direito que é realidade social.
Nem todos os domínios das nossas vidas, subjetivas e intersubjetivas, são juridicamente
relevantes. Há domínios em que não admitiríamos que o direito interviesse e há domínios em que
o direito não tenciona intervir.

É crucial porque o corpus iuris não se constitui abstrato, o direito vigente é constituído
para uma determinada comunidade histórico-concreta e por ela. É uma conquista civilizacional,
não reduz o direito nem há dimensão comunitária e societária. Acentua que o direito seja criado
pelo membros da comunidade concreta, como projeto de realização cujos conteúdos se
retroprojetam-se sobre a comunidade que lhe deu origem. Só neste sentido é que
compreendemos que a vinculatividade jurídica não é externa à comunidade jurídica, é antes
aquilo que goza do consenso qualitativo sobre a existência de conteúdos que, fazendo parte de
uma construção de uma comunidade de direito, são vinculantes para essa comunidade – auto-
transcendência axiológica.

Neste sentido, se compreende que já não temos uma referência ao direito natural, implica
o diálogo com a realidade jurídica. O direito é uma das dimensões da vida, uma dignidade que
herdamos historicamente, desembocam na compreensão da pessoa jurídica.

O momento é a base da sustentação, é a matéria-prima. São as relações sociais que, para


uma certa comunidade, são juridicamente relevantes. A relevância jurídica não depende da
positivação legal.

ββ) Momento da validade

As relações intersubjetivas a que se dará relevância jurídica. a realidade prático cultural a


que o direito vai dirigido só adquiri a relevância jurídica quando lhe associamos o momento da
validade. No momento da validade temos o juízo de valor que vai dirigido ao momento material
(à realidade). É neste momento de validade é que vamos conhecer que certos problemas são
juridicamente relevantes e do sentido da solução desses problemas, ou seja, que sentido é que o
direito deve reconhecer àquela relevância jurídica.

O momento material e o momento de validade, os dois conjugados, é que vão permitir


que venha a constituir-se direito vigente. Já teremos direito constituído? Ainda não.

γγ) Momento constituinte. Especial referência à legislação. O


reconhecimento para além dos limites funcionais, dos limites normativo-
jurídicos da lei (limites objetivos, intencionais, temporais – as normas caducas e
obsoletas – e da validade); a respetiva caraterização; a abertura, por mediação
daqueles limites, de um espaço para a afirmação (nomeadamente) da
jurisprudência judicial como instância de constituição do direito vigente.

Só vamos ter direito constituído quando a dialética que constitui aqueles dois momentos
se projetar numa instituição em que a comunidade em concreto considera legitimada. Pode
gerar-se costume, legislação ou jurisprudência judicial. Como é que sabemos? Através da
institucionalização que se gera. A instituição gera um reconhecimento na comunidade concreto
que uma prática reiterada é juridicamente obrigatória – gera costume. O costume pode
manifestar-se de acordo com a lei, pode ser um costume contra a lei e pode ser um costume que
vigora em matéria que a lei não toca. Há certas comunidades que escapam até às fronteiras
nacionais, há aldeias que se dividem em Portugal e Espanha.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

A experiência aglutinadora do direito, hoje, é a experiência jurídica constituinte legislativa.


Esta vai sê-lo por várias ordens de fatores: ordem política, ordem histórica, ordem social. Há
razões relevantes para que a lei se apresente como o modo de constituição do direito polarizador:
pelas garantias políticas que apresenta, pela institucionalização que o processo constitutivo
permite, pela legitimidade da sua entrada em vigor, pela propensão que têm de constituir um
referente comum, etc.

No momento constituinte a legislação como polo fundamental da constituição do direito


vai trazer-nos as razões para que a lei é a a fonte mais mobilizada, mas pelo lado negativo
compreendermos que a lei está limitada. Desde logo, nas suas funções e limites normativos –
limites que as normas legais apresentam por serem normas legais (limites normativos objetivos,
limites normativos intencionais, limites normativos temporais, limites normativos de validade).

28/04

A ordem jurídica se nos apresentar nos sistemas de legislação como constituída por lei,
sobretudo. A lei é o modo constituinte polarizador, não significa monopolizador. Se a lei tem um
conjunto de características e vai ligada a um conjunto de referências sociopolíticas que lhe
concede o papel essencial, ao mesmo tempo não significa que não haja outras fontes de direito.

As razões por que a lei nos apresenta como uma fonte essencial são razões de ordem
política, sociológica e funcional. Quanto às razões de ordem política podemos recordar as já
conhecidas, as consequências da consagração do princípio da separação de poderes e do
princípio da legitimação democrática, que irá reconduzir-se a reserva de lei, por exemplo.

Há fatores de ordem sociológica, efetivamente os tipos de sociedades em que nos


movemos no nosso tempo dada a sua complexidade constitutiva, levam-nos a concluir que a
constituição do direito dificilmente podia ser feita …. No nosso tempo a velocidade a que se
desenvolvem os acontecimentos e a diversidade das perspetivas leva-nos a reconhecer que fontes
do direito como o costume não assumiram o protagonismo que a lei assume. A lei permite uma
racionalização da intersubjetividade que vai com maior certeza, segurança e celeridade responder
às novidades que a realidade vai apresentando. Vamos ver que há limites.

Temos que reconhecer fatores de ordem funcional. De facto, as características normativas


da lei permitem-lhe desempenhar um conjunto de funções práticas que nenhuma outra fonte
logra cumprir com o mesmo grau qualitativo. Há que reconhecer à lei funções político-sociais e
jurídicas. Quanto às primeiras encontramos a lei a exercer uma função de organização político-
social e reformadora que traduz a capacidade à lei da definição jurídica do programa social, ou
seja, da determinação programática das opções da ordem. Por outro lado, cumpre à lei uma
função instituinte e planificadora regulamentar, porque é à lei que cabe institucionalmente criar
órgãos, demarcar competências e estabelecer de modo planificadora roupagem de estado.

A lei também desempenha funções especificamente jurídicas. Estas funções que se


apresentam, por um lado, como m meio de integração e construção de uma convivência pacifica
mesmo em horizontes complexos e heterogéneos, em que a falta de consenso em torno das
valorações da limitação do lícito, ilícito, válido, se nos apresentam como fatores desagregadores.
Num momento em que a construção de um consenso sobre um sentido material de direito vai
sendo confrontado com continuas manifestações de dissensos, a lei constitui o fator último de
integração da intersubjetividade.

A instituição que a lei garante permite que num certo tempo e num certo espaço permita
uma cristalização das valorações, que integra os sujeitos estabelecendo alguma previsibilidade

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dos comportamentos. Vai projetar-se numa função jurídica de garantia quanto já ao


procedimento, porque a objetividade e a certeza do conteúdo do juridicamente relevante exigi
simultaneamente o conhecimento das fronteiras desse conteúdo e a preservação da segurança
da relevância desse conteúdo. Através do princípio da legalidade, com base na função de garantia
jurídica.

Tudo isto nos mostra a relevância que a lei assume como fonte de direito. reconhecendo
esse acervo fundamental há que reconhecer também que estes fatores que conferem à lei a
relevância também vai implicar que reconheçamos que a lei não pode tudo, isto é, há também
limites aos mais diversos níveis às possibilidade de construção do direito através da lei. São
provenientes de fatores políticos, sociológicos e funcionais. Sabemos, do ponto de vista político,
há domínios em que a prática e a realidade continua a mostrar que o direito possa constituir-se
de modos outros. A lei é indubitavelmente o modo de construção do direito que polariza a
experiência constituinte do nosso tempo, no entanto, não significa que não haja a existência de
outras fontes.

Há outras fontes o que nos leva a reconhecer que a lei apresenta limites funcionais e,
depis, limites normativos. os limites funcionais apresentam-se-nos num limite negativo de tudo
o que só a lei deve ser chamada a fazer no âmbito de um estado direito como o nosso. Advém
de razões sociológicas, políticas e funcionais. Há uma delimitação em que estas razões
determinam que seja a lei a constitui direito, mas há fora delas áreas/temáticas em que resta
espaço para construção de direito por outras fontes.

Podemos recordar experiências de construção estatuária associativa ou a própria


construção convencional – no direito contratual com a celebração de contratos.

Para lá destes limites funcionais temos os limites normativos. estes são os limites a que
a lei por ser lei apresenta. São intrínsecos ao sentido e à estrutura que as normas legais
apresentam e devem apresentar. Estes limites apresentam-se-nos em diferentes sentidos, ou seja,
há diferentes tipos de limites normativos da legislação. Temos de identificar limites normativos
objetivos, intencionais, temporais e de validade.

Limites normativos objetivos:

Os limites normativos objetivos dizem respeito à relação entre as normas legais e a


realidade a que se dirigem. Consistem na tomada de consciência de que a realidade é sempre
maior e mais ampla do que o acervo das normas legais predisponíveis e suscetíveis de ser
mobilizadas. Em termos tradicionais a realidade é sempre mais rica do que aquilo que o legislador
prevê. Remete-nos para o problema das lacunas. Traduzem a situação em que não há norma legal
disponível suscetível de ser mobilizada para a resolução de um problema juridicamente relevante.

A compreensão de lacuna implica a verificação da existência de um caso, um contra polo


da previsão literal da norma em que essa previsão não se verifica. Tradicionalmente a lacuna seria
a situação em que um determinado facto não tivesse correspondência na previsão literal de uma
norma. A temática das lacunas está do ponto de vista metódico no artigo 10º do CC. O limite
normativo objetiva da legislação mostra a contra face da previsão que uma norma possa fazer.

Há que considerar a comparação entre a intencionalidade problemática jurídica que o


caso em si apresenta e a intencionalidade problemática normativa que a norma encerre. O juízo
gerador da consideração da relevância jurídica é um juízo analógico.

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Cumpre dizer que, assim sendo, o limites objetivo não se reduz ao problema das lacunas.
Mostram todas a situações que a problema se apresenta como juridicamente relevante. Mesmo
que o sistema jurídico não encerre o sentido de orientação da resolução do problema concreto.

Assim, nem todas as situações da realidade comprovadamente apresentadas como


juridicamente relevantes estão previstas como normas legais. As normas legais por serem
constituídas como são (cristalização que não se reduzindo a um texto têm um suporte textual)
também ficam limitadas. Estamos perante um limite normativo objetivo quando …

Limites normativos intencionais:

Os limites normativos intencionais são verificáveis em todas as normas desde que


sejam gerais e abstratas. Estão limitadas do ponto de vista intencional. De facto, as normas
situam-se num plano geral e abstrato, ao passo que os problemas são concretos. A generalidade
ao dirigir a norma a todos os sujeitos desconsidera algumas especificidades desses sujeitos. A
distância traduz o limite intencional. Este reside na constatação de que a intencionalidade da
norma é geral e abstrata, ao passo que o caso é concreto e particular.

Significa que este percurso entre a distância é ela própria constitutiva. Esta distância
intencional corporiza os limites intencionais da legislação.

Limites normativos temporais:

Temos ainda os limites normativos temporais decorrem da passagem do tempo, vão


obrigar-nos a referir outro tipo de problemas. Nestes limites vamos por a norma em relação com
a realidade e a relação entre a norma e o seu horizonte de fundamentação.

Influencia do tempo nas normas legais ao ponto de lhe constituírem um limite. As normas
são abstratas e como tal tendem a ser intemporais e vigorar de modo indeferido no tempo até
que, se tal suceder, outra norma venha pôr em causa essa vigência. De um ponto de vista formal,
há critérios secundários sobre a entrada em vigor a cessação da vigência das normas legais. Pode
suceder que uma norma esteja em vigor, mas que ao relacionar-se com a realidade e com o seu
horizonte de fundamentação fique limitada. No momento da mobilização norma para a resolução
de problemas concretos constatar que a norma está temporalmente limitada. nos limites
normativos temporais essa limitação que decorre da passagem do tempo refere-se a normas que
estão formalmente em vigor.

Temos normas que estão formalmente em vigor, que são gerais e abstratas e, por isso,
universais e intemporais, mas que estão sujeitos à erosão do tempo, no momento em que elas
são convocadas para resolver problemas concretos. A norma vai estando em vigor confrontar-se
com limitações do ponto de vista temporal.

Podemos ter situações em que a norma está formalmente em vigor +e convocada para a
resolução de problemas concretos e no momento da analisa comparativa entre as
intencionalidades se vem a concluir que o problema na realidade não se apresenta já pelo modo
por que a norma legal intenciona aquele tipo de problemas. Temos uma situação em que a norma
legal não eficaz, foi perdendo ao longo do tempo a sua eficácia, porque a realidade deixou de a
convocar ou porque a realidade já não se apresentar do modo por que a norma a apresentava.
Nestas situações diz-se que essa norma é obsoleta.

A limitação normativa temporal pode resultar, por outro lado, da perda da validade. Uma
norma legal que no momento em que foi constituída era a concretização normativamente
adequada dos princípios normativos em que se fundamentava, pode ver por força da passagem

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

do tempo e da alteração dos princípios normativos em que se fundamentava posta em causa


progressivamente a sua validade. A norma legal pode perder a validade em virtude de os
princípios normativos em que ela se fundamenta tendo sofrido alteração. Diz-se caducidade, a
norma torna-se caduca. Pode estar, ainda em vigor. Em nenhum destes casos a norma foi
revogada.

29/04

Estivemos a analisar os limites normativos da legislação, limites intrínsecos à própria


índole e às caraterísticas da lei enquanto lei. Neste sentido, cumpre continuar a analisar os limites
normativos temporais. Vimos que nas situações em que a realidade que foi prevista em termos
normativamente adequados no momento em que alie for criada se alterou ao ponto de não
convocar aquela norma ou de já não colocar no modo em que a colocava aquando da sua criação.
Temos alterações da realidade. Temos uma perda progressiva da eficácia da norma o que pode
não contender com a sua válida, sendo que esta perda conduzirá à obsolescência da norma – é
uma norma obsoleta (relação que vai deixando de estabelecer com a realidade). Diversamente
temos a relação da norma legal e os princípios em que se fundamentava no momento em que foi
criada. Sabendo que a validade da norma está interligada com a validade dos princípios
normativos em que se fundamenta, o que verificamos é que em virtude da passagem do tempo
os princípios normativos em que a norma vai referida sofreram alteração no seu conteúdo. Sucede
que a norma vai perdendo validade. Exemplo: princípio da igualdade e as suas várias formas. A
caducidade da norma resulta da alteração do sentido normativo dos princípios normativos em
que ela se louvava – resulta da relação da norma com os princípios normativos.

Limites normativos de validade:

Não há qualquer repetição nesta classificação, já que a norma legal que sofrer deste limite
de validade não está em consonância intencional com o sentido normativo dos princípios a que
deveria ir referida, desde o momento em que entrou em vigor. Se isto acontecer as normas
deverão ser consideradas inválidas e desclassificadas como leis já não integrantes.

Em abstrato, muito provavelmente nenhum destes problemas se apresentariam. Só


damos conta destes limites quando perante casos concretos que ponham problemas que
interpelam o direito. Só conseguimos chegar à conclusão de que a norma legal sofre destes limites
se e quando utilizamos como critério para resolver um problema juridicamente relevante em
concreto. Claro que estamos a analisar historicidade constitutiva do direito e temos a
eventualidade de a norma legal não tocar um determinado caso concreto e se concluir que não
há critério normativo-legal, o que significa que este problema não é juridicamente relevante.

Estas limitações têm do ponto de vista metodológico outras implicações. Para além do
problema da norma obsoleta, do ponto de vista dos limites normativos temporais do lado da
perda de validade vamos encontrar outros problemas. Do ponto de vista metodológico é
relevante convocar desde já.

Vejamos que resultados da interpretação se podem aqui encontrar, muito


introdutoriamente. Se uma norma legal é positivada e entre em vigor num determinado momento
não impede que os sentidos dos princípios normativos em que ela se louva se altere. Se tal se
suceder e em consequência disso a norma vier a apresentar-se em concreto como numa relação
falhada teremos que admitir que é ainda é possível recuperar parcialmente o sentido da norma
interpretando conforme aos princípios e operando uma correção conforme aos princípios –
correção diacrónica. Se, porém, essa passagem do tempo implicar que a norma passe a estar em

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contradição com os princípios normativos teremos de reconhecer que essa norma se está
disforme e terá de ser superada – superação conforme aos princípios e então afasta-se a norma.
Se a contrariedade existir ab initio não falaremos de superação, mas de preterição conforme aos
princípios.

δδ) Momento da objetivação.

Uma vez constituídas as fontes resta-nos analisar a precipitação do direito constituído. O


momento em que o direito se torna vigente. Este sentido assim constituído deve ser incluído no
direito vigente. A vigência ocorrer em momentos diversos. Para o costume não é determinável o
momento com data e hora da entrada em vigor. Mas, para a legislação isso é possível. Sabemos
com base no CC, na lei 74/98 que uma lei entra em vigor no momento em que ela própria
manifesta ou decorrido o prazo de vacatio legis. Na decisão judicial isso também é determinável,
mas em modos diversos, no momento em que a decisão judicial é proferida. Em termos genéricos,
que o processo judicial em boa parte das formas de processo não termina no momento em que
a sentença é proferida em primeira instância, o que significa que a cristalização só se dá com o
trânsito em julgado. Mas sabemos que é possível determinar o momento em que a decisão
judicial produz efeitos para os sujeitos.

Isto significa que se o problemas das fontes é um problema que sendo incito à
normatividade do direito vigente é um problema pressuposto é, desde logo, um problema
teórico, ou seja, diz respeito à determinação critico reflexiva. O problema das fontes é também
um problema prático. É hoje impensável para um jurista prática a identificação do direito à lei. A
dialética que entretece o momento material e o momento da validade vai projetar-se no
momento constituinte e, assim, constitui direito vigente.

Não é indiferente pressupor que as fontes do direito são os modos constitutivos que
designam os processos de constituição do modo como o direito está em vigor, e não assumir
como problema acabado.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Lição 17

Sumário:

II Parte:

A metodonomologia (e a concorrência de normas no tempo)

Uma temática diversa que é a da metodonomologia. É fundamental que compreendamos


o que está em causa. Em primeiro lugar, estamos a considerar uma proposta que o Sr. Dr. Pinto
Bronze nos apresenta ao falar de metodologia jurídica. o caminho racionalizantemente percorrido
para atingir um determinado objetivo jurídico.

A realidade interpela o sistema e por via do sentido normativo que o sistema jurídico vai
concretizante. A metodonomologia é a prática racionalizada judicativa do direito. Estamos a tratar
do sentido da construção da projeção prática do direito. esta projeção é normativamente
constitutiva, o momento da decisão judicativa é constitutivo do direito, daí que perca o sentido –
a cisão entre o direito e a sua dita aplicação. Ao estudarmos esta introdução estamos a analisar a
construção racional da decisão judicativa.

O grande objetivo é fazer um contraponto entre o nosso interlocutor histórico e os modos


atuais da compreensão da interpretação e da construção da decisão judicial. Neste sentido, vamos
propor-nos analisar historicamente as origens do direito, por um lado, mas, sobretudo, da
metodologia jurídica, por outro – cruzamento entre o século XIX, o século XX e o século XXI –
percebendo que a proposta que temos para apresentar, distinguindo-se das propostas que
dominaram o século XIX e das que perduram do século XX e do século XXI, tem um sentido e
uma razão de ser. A nota fundamental será saber como é que um critério jurídico será mobilizado
para resolver problemas concretos.

1. Preliminares. O objeto fundamental da metodonomologia: a prático-


normativamente racionalizada realização judicativo-decisória do direito.

A metodológica jurídica tem por objeto a prática-normativa racionalização judicativa-


decisória do direito. A metodonomologia concetra.se no juízo decisório e um ponto crucial para
a vida de um jurista prático, porque o direito apresenta-se-nos como uma tarefa
problematicamente constituenda. Estamos internamente em termos prático-normativamente
reflexivos a analisar o pensamento que o direito no momento em que é mobilizado para a sua
realização judicativa faz sobre si próprio. Esta não é uma compreensão unívoca, nem em termos
sincrónicos nem em termos diacrónicos. Nesta metodologia vamos encontrar esta racionalização
do juízo decisório. Nem todas as perspetivas do pensamento jurídico assumem esta índole
prático-normativa.

Entramos numa reflexão que vai levar-nos pelas lições 17º, 18º e 19º e 20º.
Verdadeiramente, ao analisarmos de um ponto de vista histórico as escolas metodológicas que
se destacaram vamos retomar grande parte das características do nosso antecessor. Cumpre
perceber do que se trata quando se fala desta racionalidade jurídica. ao analisarmos esta evolução
vamos sempre ter presente quer o tipo de racionalidade quer a compreensão da interpretação.

2. As projeções metodológicas do pensamento jurídico até ao fim do século XVIII


(alusão)

Não sem antes nos recordarmos de que o problema metodonomológico é naturalmente


contemporâneo de todas as compreensões do direito. A autonomização em Roma dá-se por

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

razões do direito como disciplina autónoma e a de que o pensamento jurídico é um pensamento


distinto. Nesta estrutura devemos reconhecer que em Roma a racionalidade mobilizada pela
construção judicativa é uma racionalidade retórico-prudencial. O caso é constitutivo do direito e
do sistema jurídico.

Verifica-se, ainda, na Idade Média o sistema jurídico é assumido como pluridimensional,


mas também do ponto de vista da construção da projeção do direito na realidade, vamos
encontrar uma racionalidade hermenêutico dialética do estudo dos textos de autoridade,
incluindo os jurídicos. Temos o pensamento jurídico medieval que é muito determinado pela
recuperação do Corpus Iuris Civilis. A ideia de que pensar o direito é conhecer a prescrição dos
textos de autoridade e aplicar essa prescrição aos casos.

3. Ideias fundamentais sobre algumas das mais importantes orientações


metodonomológica desde o início do século XIX.

Com a Idade Moderna a racionalidade é cada vez mais uma racionalidade que se vai
progressivamente tronando teorética e não já prático-argumentativa. Esta ideia de que pensar é
conhecer vai deixar de ser considerada, para assumir como ponto de partida do conhecimento
de um objeto a partir do qual se constroem teorias sobre esse objeto. E esta construção que
dominar o pensamento jurídico do século XIX. Isto é, se o direito é uma ordem regulativa da
prática assumida em diversos sentidos, o sentido do pensamento que lhe corresponde foi,
todavia, sempre muito diverso e assume, ainda assim, hoje, múltiplas orientações. Pensar é
conhecer o direito pré-dado como objeto. Temos a aplicação do método científico ao
pensamento jurídico. Significa que as escolas teoréticas são as escolas positivistas, quer os
positivismos exegéticos quer os positivismos dogmáticos. Nos primeiros temos o positivismo
exegético francês e nos segundos o positivismo dogmático alemão.

O método jurídico positivista é uma compreensão conjugada da proposta metódica da


Escola da exegese e da proposta metódica da Escola Histórica do Direito e da sua consequente
Jurisprudência dos Conceitos.

Temos três momentos da interpretação: momento hermenêutico, momento dogmático e


o momento científico. Quanto aos dois primeiros momentos devemos considerar em algumas
teorias primeiro o momento hermenêutico e noutros primeiro o momento científico dogmático.

Significa que cumpre tomar consciência daquilo que são os momentos e do papel que
desempenham nas propostas. Esta fixação do método jurídico positivo nos momentos implica
que tenhamos que reconhecer que o direito é constituído antes e independentemente à realidade
a que se vai aplicar, ou seja, ao criar normas legais a entidade legitimada estamos a verificar uma
construção que é logicamente prévia ao momento da interpretação, ao momento da
conceitualização e também ao momento da aplicação. O direito é no sistema, é interpretado,
conceitualizado e num momento posterior poderá relacionar-se com a realidade. A norma sai do
sistema é aplicável logico-dedutivamente aos fatos e regressa incólume ao sistema jurídico. Com
isto o sistema permanece fechado – isto do ponto de vista da perspetiva positivista.

A interpretação tem lugar em abstrato no âmbito do sistema, nestas perspetivas


positivistas. Só faz sentido interpretar a norma para concluir sobre o sentido único e verdadeiro
na norma.

Nas perspetivas de superação, diferentemente, vamos assumir que a interpretação é uma


operação que tem lugar em concreto, ou seja, na relação com o problema e o sistema.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

05/05

4. As orientações teoréticas: o positivismo exegético (Ècole de l’exégèse) e o


positivismo sistemático-conceitual – caraterização geral e referência ao “método
jurídico” em que acabaram por fundir-se.

Temos de ter em conta o positivismo exegético francês – Escola da Exegese - e o


positivismo sistemático-conceitual alemão – Escola Histórica e a jurisprudência dos Conceitos.
São as três compreensões teoréticas que dominaram o século XIX quanto ao pensamento jurídico.

» Escola da Exegese:

1) O direito identificado com a lei:

Relativamente à Escola da Exegese, estamos a considerar, primeiro que tudo, a exegese


do Código Civil Francês de 1804. É muito interessante analisar a interpretação jurídica como
exegese, porque é disso que se trata num culto do texto da lei que faz primordial a sua letra e
que nos vai exigir que consideremos as razões históricas que conduzem a essa compreensão do
direito.

2) Lei como a única fonte do direito:

O CC de 1804 foi publicado nesse ano como o Código Civil dos Franceses. Em 1807, passa
a assumir a designação de “Código de Napoleão”. O problema que se nos apresenta é o de
primeiro reconhecermos que temos aí a fonte fundamental do direito na lei. Isso acontece no
direito civil como paradigma do direito privado e ao mesmo tempo como paradigma da
codificação. É certo que a Constituição francesa era já anterior, mas a verdade é que este culto da
lei posto assim e pensado a partir desta unificação do direito privado – a consideração de atingir
uma construção histórica e praticamente crucial para a unidade do sistema jurídico é que dá força
fundamental ao CC de 1804.

Nesta escola o direito identifica-se com a lei, é esta lei criada que resulta da
institucionalização da separação de poderes no estado demoliberal que vai concentrar-se numa
referência constitucional e que, depois, nos diferentes ramos do direito, vai propor construções
codificadas. Este movimento codificatório que culmina no CC francês e que vai influenciar todas
as codificações contemporâneas é crucial para que se compreenda o modo como o direito vai
aqui proposto, pensado e aplicado na prática.

Se o Direito se identifica com a lei quase que na contra face desta moeda temos a lei
como a única fonte do direito. Tudo o que é criado sob a forma de lei legitimado enquanto tal
será direito e, portanto, o direito é exclusivamente criado sob a forma de lei.

3) Dogma da plenitude lógica do sistema jurídico:

A estas afirmações associa-se o dogma da plenitude lógica do sistema jurídico, ou seja,


significa considerar que é o direito no sistema jurídico positivado sob a forma de lei que define a
realidade juridicamente relevante, é ao direito enquanto norma legal positivada considerar qual
a realidade a que vai dirigir.

A realidade não é juridicamente relevante se não quando o próprio direito a define


enquanto tal na lei. Este “define enquanto tal” é mais do que haver uma correspondência parcial
ou uma ligação intencional entre a realidade e esse direito positivado. É a exigência de uma

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

correspondência literal. Esta aglutinação do direito pelo código implica que se concentre na
relevância determinante da letra o sentido da consideração da relevância jurídica.

4) A interpretação da lei – incondicional fidelidade aos textos legais: “o culto do texto


da lei”; o subjetivismo histórico:

A ideia da concentração no sistema jurídico da definição da juridicidade de modo lento,


acabado e autossubsistente implica que ao nível da interpretação da lei que compõe os códigos
seja feita tomando por base a fidelidade aos textos legais. O culto do texto da lei implica um
sentido interpretativo vinculativo. Qualquer sentido interpretativo a que o intérprete pudesse
chegar não tivesse atinência com a letra da lei seria, só por isso, excluído dos sentidos possíveis
da interpretação.

Na Escola da Exegese o juiz é obrigado a julgar mobilizando os mecanismos que o Código


contém textualmente. Isto significa que a consideração de que todas as determinações de
relevância jurídica estão codificadas (estão no direito positivado sob a forma de lei) conduz a que
o juiz seja obrigado a julgar com base exclusiva dos textos legais. Como é que se chega aqui?
Teriam os redatores do Código intenção de o estabelecer constituindo intencionalmente um
dogma da plenitude lógica no sistema jurídico, seria esse o plano? Não. A ideia não era fechar o
sistema positivado. Mas foi isso que acabou por acontecer, quer por razões políticas quer por
razões científicas.

Logo na abertura do Código Civil, no âmbito do projeto, havia um artigo 9º que permitia
o recurso à equidade no sentido de uma recuperação do direito natural que desapareceu na final.
Mas, permaneceu um outro artigo dessa dimensão preliminar que é o artigo 4º - proíbe a
denegação de justiça: “o juiz que recuse julgar sob pretexto do silêncio, da obscuridade ou da
insuficiência da lei poderá ser perseguido como culpado de negação de justiça”. Significa que,
por um lado, os juízes seriam obrigados a julgar e, por outro, seriam obrigados a julgar com os
critérios constantes no código.

5) Casos omissos: as propostas para a aceitação do non liquet, o sistema do référé


législatif; o reconhecimento legislativo (artigo 4.º CC Francês – 1804): auto-
integração – analogia legis e a analogia iuris:

Entretanto, uma vez entrando em vigor, o que acontece é que os exegetas do Código se
viram obrigados a considerar exclusivamente as respostas contidas no código ao mesmo tempo
que não poderia considerar que o juiz poderia optar pela ausência de resposta clara para o
problema concreto. Perante isso várias possibilidades se puseram.

Isto significa que, por um lado, a resposta está no Código e, por outro lado, esta resposta
terá que estar no código, porque para a Escola da Exegese não seria possível mobilizar elementos
externos ao código. O que significa que se põe de parte a auto integração de lacunas, restam os
mecanismos de auto integração que são a analogia legis – através de uma lei – e a analogia iuris
– através do recurso aos princípios gerais de direito.

6) Construção conceitual-sistemática do direito positivo, com vista a uma aplicação do


direito objetiva e segura, prevenção dos casos omissos e domínio técnico do direito
positivo:

Temos uma construção conceitual sistemática do direito positivo – o direito é o sistema


– o que visa uma aplicação do direito objetiva e segura. Implicava, do ponto de vista da
interpretação que, também por razões políticas e por razões científicas, o objetivo da

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

interpretação se concentrasse na determinação da vontade do legislador no momento em que a


lei foi criada. Temos o objetivo, do ponto de vista político de fazer perdurar no tempo o ideário
que culminou na construção do código e, do ponto de vista científico, o desidrato de lograr no
sentido interpretativo atribuído às normas legais.

O que significa falar em subjetivismo histórico? O subjetivismo histórico implica, nas


suas duas dimensões, que o objetivo da interpretação seja subjetivista – determinação da vontade
do legislador constante no texto da lei (subjetivismo quanto ao objetivo da interpretação). Por
outro lado, será a determinação da vontade do legislador expressa no texto da lei analisada ao
momento em que a lei foi criado (histórico).

Nas diferentes fases da Escola da Exegese as coisas irão passar de modos muito diversos.
Nos primeiros 30 anos do século XIX à fase de instalação, algumas referências ao direito natural,
ainda uma certa hesitação quanto a convocar ou não convocar a ideia de direito natural, como
interpretar o artigo 4.º. Mas, na fase de apogeu, entre 1830 e 1880 as coisas tornam-se mais claras
e mais intensas, no sentido de que a determinação da vontade do legislador expressa no texto da
lei é crucial para a construção da escola.

O grande objetivo que a escola visa é fazer perdurar no tempo o sentido político e jurídico
que o código comporta. Irá tentar construir-se, abraçando este subjetivismo, um conjunto de
sentidos interpretativos que sejam manifestação dessa manutenção do ideário inicial. A
purificação da construção formal da teoria da interpretação vai chegar a pontos como: procurar
não apenas a vontade real, mas também a vontade hipotética do legislador que permitia à ciência
do direito muito mais do que aquilo que seria à partida de esperar. De facto, a Escola da Exegese
foi mais produtiva do que aquilo que numa análise muito breve poderíamos concluir.

7) Esquema lógico-dedutivo de aplicação da lei:

Do ponto de vista da aplicação da lei temos a recuperação do esquema lógico-dedutivo.


Estas compreensões das escolas metodológicas referidas em termos históricos constituem um
interlúdio para a entrada nas propostas metodológicas.

» Escola Histórica do Direito:

Do lado da Escola Histórica, isto é, contemporaneamente à Escola da Exegese temos na


Alemanha uma orientação diversa, sobretudo, quanto aos materiais que constituem o direito mais
do que propriamente relativamente às fontes. Temos uma semelhança do ponto de vista
científico, mas não já do ponto de vista político-institucional.

1) Repúdio do jusnaturalismo iluminista:

Na Escola Histórica do Direito vamos encontrar uma certa recuperação do historicismo


que partilha de uma proposta kantiana de construção do direito. É certo que nos mais dos autores
desta Escola Histórica Alemã há um repúdio do jusnaturalismo iluminista para fazer concentrar na
compreensão orgânica da evolução histórica de uma certa comunidade o sentido e o conteúdo
do direito que rege esse povo.

Há considerações cruzadas que visa, repudiando a pressuposição do ideário do direito


natural intemporal e universal, estabelecer uma construção histórica do direito e com isso vai
gerar um momento de oposição à codificação – direito legislação. Há várias razões de ordem
política e de ordem científica que o próprio Savigny irá abraçar na justificação da ausência de
unificação em torno de uma codificação para o direito civil na Alemanha, no início do século XIX.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

A polémica é acesa e reportada ocorreu entre Savigny e Tibbo a propósito da viabilidade política
e científica da codificação do direito civil na Alemanha.

Do ponto de vista político, a Alemanha não é, até à década de 70 do século XIX, um país
unificado como o foi depois. Assim, não havia do ponto de vista político uma coesão considerada
suficiente para que houvesse uma codificação. Mas, sobretudo, do ponto de vista científico, tendo
em conta que esta proposta de que o direito é uma manifestação da construção histórica de um
povo assumiu uma relevância crucial na oposição à construção de direito legislado.

Se nos concentrarmos no pensamento de Savigny isto é absolutamente notório no modo


por que considera a constituição do direito. O que está em causa na proposta de Savigny é não
verificar uma determinação pré-institucional do direito posto de fora, mas antes de o ver como
uma manifestação do orgânico desenvolvimento interno do espírito desse povo. Com isto cumpre
considerar que a fonte fundamental do direito não poderia ser a lei. A fonte fundamental do
direito seria, nesta proposta, de base consuetudinária (o costume). A lei e a ciência do direito
constituiriam fontes secundárias.

2) Natureza histórica do direito, por oposição à codificação, ao direito-legislação

Cumpre reconhecer que, por exemplo, para Savigny o que está em causa na constituição
do direito e, por isso, aquilo que vai traduzir-se por instituto jurídico não é o resultado da
produção legislativa, mas o conjunto de práticas que correspondem à constituição do direito
nessa fonte. Por outras palavras… enquanto a Escola da Exegese (proposta que herdámos) vê
um instituto como o conjunto dos preceitos jurídicos que regulam uma certa figura jurídica (o
instituto do contrato, o instituto da propriedade, o instituto do casamento, etc.), para Savigny um
instituto não é um conjunto de normas legais e preceitos jurídicos é sim um conjunto de práticas.
Isto significa que é a construção orgânica de uma figura jurídica composta pelas práticas que
efetivamente as consubstancializam (por exemplo, o instituto do casamento não é aquele que
regula as normas legais do casamento, é o conjunto das relações que se estabelecem entre os
cônjuges – independentemente da existência de uma lei que pré-defina essa figura).

Em Savigny encontramos duas grandes fases. Embora seja partidário desta compreensão
orgânica e histórica da construção do direito, Savigny é ao mesmo, logo no início do século XIX,
que fará a análise e a sistematização do objeto e dos elementos da interpretação que a perspetiva
hermenêutico-cognitiva consagrada (teoria que domina o século XIX e que perdurou para o
século XX e XXI).

A teoria da interpretação jurídica na compreensão que herdamos do século XIX assenta


em quatro temas cruciais: o objeto da interpretação, o objetivo da interpretação, dos elementos da
interpretação e dos resultados da interpretação. Savigny propõe-nos uma construção que vai ser
mobilizada ao longo do século XIX, XX e até XXI.

− Quanto ao objeto da interpretação, este autor entende que o objeto da


interpretação é o texto da lei. Só que o texto não corresponde apenas à letra da
lei – para Savigny o texto da lei é composto pela letra ou elemento gramatical,
pelo elemento histórico e pelo elemento sistemático.

Esta compreensão global do texto implica que não estejamos apenas a considerar a sua
letra. Na Escola da Exegese isto também acontece, por razões diversas na origem e de
aproximação entre os dois métodos de interpretação. É uma compreensão global do texto e
constitutiva do texto, isto é, a fonte do direito (a lei) não é sem o seu texto – o texto é constitutivo
da lei – o que vai corroborar a afirmação de que: para que uma determinada realidade seja

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

juridicamente relevante tenha de estar prevista no enunciado textual da lei e primordialmente


referida literalmente na dimensão gramatical (uma das dimensões constitutivas do texto).

Para Savigny os elementos da interpretação seriam o elemento histórico, gramática e


sistemático – elementos intratextuais. Ao passo que o elemento teleológico seria considerado
extratextual e, por isso, à partida nesta primeira fase, excluído da interpretação. Veremos que a
partir da segunda metade do século XIX o autor vai assumir a relevância desse elemento
teleológico.

Se quanto às fontes do direito a Escola Histórica e Escola da Exegese se distinguem,


quanto à intencionalidade com que o pensamento vai dirigido a essas fontes já se aproximam.

06/05

O pressuposto constitutivo do direito, tanto para a Escola da Exegese como para a Escola
Histórica e para a Jurisprudência dos conceitos, é a norma. Para a Escola da Exegese é a norma
legal. Para a Escola Histórica e consequentemente para a jurisprudência dos conceitos tanto
podemos ter como base a norma legal como podemos ter diretamente a base consuetudinária –
quer uma quer outra serão traduzidas em preposições normativas pela ciência do direito e essas
serão o objeto do conhecimento jurídico.

Significa isto que, se para a Escola da Exegese o direito é um dado cognoscível - dado
legal, para a Escola Histórica e para a Jurisprudência dos conceitos o direito é um dado
cognoscível – dado material histórico – tanto pode ser conferido pela lei quanto pelo costume.
Originariamente sê-lo-á, na construção da teoria das fontes que Savigny propõe quando assume
essa predominância, pelo costume.

Assim, o elemento constitutivo do direito, quer para a Escola da Exegese quer para o
positivismo dogmático alemão, a norma. É das normas que se criam e resultam os princípio gerais
de direito. Os princípios gerais de direito do positivismo são abstrações generalizantes obtidas a
partir de normas, logo como que normas mais gerais e mais abstratas. A matéria-prima
constitutiva do direito está concentrada nas normas, é das normas que resultam os princípios
gerais do direito, por abstração generalizante.

Quais as funções atribuídas à jurisprudência judicial e à dogmática?

A jurisprudência judicial tem por função a aplicação do sentido do sistema à realidade.


No sentido inverso não há relação. São os factos o campo de aplicação das normas. Neste sentido,
são factos empíricos considerados isoladamente. Dificilmente se podia, deste ponto de vista
positivista, considerar um caso concreto e o problema que poe do ponto de vista da sua
complexidade, porque dificilmente permitiria a subsunção. A análise da realidade a que o direito
vai dirigido é análise da realidade desmembrada em factos isolados – factos discretos – que são
a contra face do que está definido literalmente na hipótese das normas. Significa que à
jurisprudência judicial cabe aplicar normas (tarefa fundamental). Daí que a jurisprudência judicial,
nesse contexto, não fosse assumida como fonte do direito.

Do mesmo modo, a dogmática jurídica também não seria verdadeiramente fonte do


direito, seria um pensamento jurídico construtivistico, teorético-cognitivo ao qual caberia
conhecer o direito dado (dado objeto cognoscível), interpretá-lo (a teoria da interpretação é
fundamental e muito pormenorizadamente define pelas teorias positivistas) e criar sobre esse
dado objeto, como se de um fenómeno se tratasse, leis sobre a regularidade das vicissitudes
ocorridas com esse fenómeno direito. Procurar criar teorias sobre o direito.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Isto significa que o sistema sendo composto por normas (sistema fechado), das normas
são criados princípios gerais de direito (na jurisprudência dos conceitos são criados, também,
cruciais conceitos. A jurisprudência dos conceitos vai concentrar-se na dimensão científica como
construção conceitual). Com isto temos a perspetiva do sistema jurídico e da sua relação com a
realidade. Se era assim na Escola da Exegese, também o era assim na Escola Alemã.

O positivismo exegético francês e o positivismo dogmático alemão partilham da


compreensão do direito como objeto cognoscível e do pensamento jurídico como pensamento
teorético-cognitivo sobre objeto cognoscível. A dimensão científica é que vai permitir que, na
confluência, encontremos o método jurídico positivista. Identificar o método jurídico positivista
nos seus três momentos fundamentais: o momento hermenêutico, o momento cientifico-
dogmático e o momento técnico da aplicação. Os dois primeiros momentos são considerados os
momentos nobres da ciência do direito, verdadeiramente científicos. O momento hermenêutico
é o momento da interpretação, o momento cientifico-dogmático é o momento da construção de
princípios e de conceitos. O momento técnico da aplicação considerado até aproblemático,
porque todos os problemas científicos estariam já resolvidos nos dois momentos anteriores, é
visto como técnico e o que está em causa é a aplicação lógico-dedutiva através do silogismo
subsuntivo.

Nota crucial da interpretação já no contexto do positivismo:

Com isto cumpre dizer que a interpretação sendo uma tarefa crucial pode ser levada a
cabo pela dogmática (pensamento jurídico em geral) como pela jurisprudência (ou seja, pelo
próprio juiz) o que significa que não poderá dizer-se que o juiz não interpreta. O que acontece é
que a interpretação é uma operação que tem lugar antes e independentemente da mobilização
da norma como premissa para a dedução. Mesmo que seja o juiz a fazê-lo, quando interpreta fá-
lo de modo autónomo relativamente à realidade. O sentido científico fixado há de ser o único
verdadeiro sentido com que a norma deve vigorar, e ser mobilizada como premissa para as
deduções que vierem a ocorrer.

Já do lado positivismo científico alemão encontramos uma perspetiva radicalmente


diferente, quer do ponto de vista político (não havia unificação política da Alemanha que
permitisse o estabelecimento de condições para a fixação de uma unificação codificada do direito
civil). Para Savigny, a compreensão histórica faz residir na evolução histórica e superação
progressiva que essa evolução histórica tem na construção do espírito de um povo, a fonte
fundamental do direito. Ao mesmo tempo que identifica as figuras jurídicas a partir das práticas
que as constituem e não das leis que a definam. Com isto temos uma referência fundamental a
uma compreensão histórica e orgânica do direito.

Irá ter consequência na entrada em vigor do Código Civil Alemão, com entrada em vigor
em 1900.

3) O direito como dado e objeto de conhecimento; o pensamento jurídico como


“ciência do direito”:

A ideia de que o direito surge como direito consuetudinário do ponto de vista da


constituição. Mas, do ponto de vista do pensamento jurídico é um dado material histórico (e não
dado legal) que é objeto do conhecimento. A tesa da natureza histórica do direito vai implicar
que o direito se ofereça como já dado nas especificas objetivações culturais em que existe.

4) Com a dimensão histórica devia concorrer uma dimensão “sistemático-


filosófica”:

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Com isto, verificamos que com a dimensão histórica vai concorrer uma dimensão
“sistemático-filosófica” – uma dimensão científica. Isto não é contingente, é uma convicção de
que com a dimensão histórica deve concorrer uma dimensão sistemático-filosófica para a Escola
Histórica do Direito.

A tarefa científica dogmática jurídica vai implicar, por influência de Kant, a construção de
um sistema. Do ponto de vista da construção, quer-se privilegiar a construção histórica, mas do
ponto de vista sistemático-científico já se visa a construção de um sistema que não pretende ser
contingente histórico, mas pretende formal sentidos universais com estruturas invariantes. O
dado material histórico que é objeto de conhecimento é conhecido pelo pensamento jurídico
como ciência e a partir desse dado material histórico afastando-se do seu caráter empírico vai a
ciência do direito construir sobre esse dado material histórico, mas já depurando-se da sua
contingência, enunciados de verdade.

É com esta nota que se vai dar a passagem da Escola Histórica alemã para a Jurisprudência
dos conceitos. A dimensão sistemático-filosófica vai vencer a dimensão histórica. O autor de
transição, Puchta, vai procurar construir já conceitos gerais e abstratos formais, a partir de um
dado material histórico, mas separados dele. Depois, será desenvolvido por Ihering. Vamos
encontrar mais desenvolvida a construção teorética dos conceitos.

» Jurisprudência dos conceitos:


1) O direito como entidade ideal-subsistente, alheio à realidade social e histórica:

A jurisprudência dos conceitos vai alhear-se ainda mais da referência ao dado material
histórico que serve de origem à construção do sistema jurídico para afirmar a prevalência da
construção científica. O grande objetivo é a dedução de princípios jurídicos a partir do dado
material histórico e com esses princípios a construção de conceitos. Aqui temos o núcleo
fundamental da temática da jurisprudência dos conceitos.

O que está aqui pensado e que é fundamental para a constituição do direito que iremos
analisar é o facto de considerarmos que se o direito tinha essa origem histórica e apesar disso,
apresenta-se ainda assim como uma referência material e consequentemente será enquanto
direito pré-dado elaborado cientificamente ao ponto de se gerar um direito científico. Esse direito
vai assumir decisivamente a sua cientificidade e o rigor exigido ao pensamento jurídico neste
contexto.

2) A plenitude lógica do sistema: o direito lógico-conceitual, totalidade unitária e


fechada, que apenas admite um desenvolvimento implícito (a explicitação do
logicamente pressuposto, do a priori conceitual): as aparentes lacunas referem-se a
casos não-jurídicos, porque não abrangidos pelo sistema, ou traduzem apenas um
insuficiente conhecimento (insuficiente explicitação) dos conteúdos do sistema:

▪ Puchta:

Temos aqui duas propostas fundamentais a considerar. Puchta vai falar-nos numa
pirâmide conceitual que é constituída através de uma genealogia dos conceitos. Puchta é um
neo-kantiano e, por isso, vai pressupor que o sentido do direito é uma forma pura à priori que
orienta racionalmente toda a construção do sistema jurídico. Vai propor que, partindo do tal dado
material histórico, se elaborem conceitos progressivamente mais gerais e mais abstratos (menos

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

materialmente ricos) à medida que se sob nos níveis que propõe para a pirâmide de conceitos
que nos apresenta. Como é que nos propõe?

Como a partida compreendemos o conceito é a delimitação de um sentido de uma certa


figura. Com isto podemos ilustrar, através de um exemplo, aquilo que consistiria no tratamento
dos diferentes conceitos nesta pirâmide.

Exemplo de Larenz:

Partimos do conceito de servidão de passagem. A servidão de passagem é a delimitação


de um certo prédio por onde se estabelece uma passagem que é reconhecida como um direito –
construção consuetudinária. Por outras palavras, existindo um prédio rústico ou urbano que não
tem ligação com a via pública, é necessário garanti-la e o direito civil define que: se essa ligação
não for estabelecida espontaneamente (através de um contrato entre o titular do prédio
encravado e um dos proprietários vizinhos que tenham acesso à via pública, por exemplo), há um
mecanismo judicial para especificamente constituir essa servidão de passagem. Uma vez
constituída a servidão de passagem o titular do prédio encravado ou dominante tem direito a
passar numa determinada zona que venha a ser delimitada, contratual ou judicialmente, pelo
prédio em que causar menor prejuízo e pelo local em causa menor prejuízo ao prédio serviente.
Portanto, o titular do prédio encravado passa a ter o direito a passar.

Conceito de servidão de passagem: o direito de um proprietário de um prédio encravado de exigir


a passagem que sujeito o prédio alheio – prédio serviente. Este direito assim definido estaria na
base da pirâmide. Vamos prosseguir por níveis sucessivamente mais gerais e mais abstratos até
chegarmos ao vértice da pirâmide onde vamos encontrar o conceito de direito de inspiração
kantiana.

Ao subir o nível, este direito é um direito sobre um prédio alheio para fruição. Este
segundo nível é mais geral e mais abstrato e agrupa outros conceitos de direitos subjetivos.

Cabe ao conceito que lhe é imediatamente superior do ponto de vista lógico (mais geral
e mais abstrato) de um direito sobre uma coisa alheia. À medida que vamos subindo alarga-se o
espetro de abrangência. O direito sobre coisa alheia cabe dentro do direito sobre uma coisa,
subindo assim mais um nível na pirâmide. Por sua vez, o direito de coisa cabe no direito subjetivo
e que, por sua vez, caberá no conceito de direito, chegando ao vértice da pirâmide.

-
p
a
r
a
o
+
a
b
r
a
n
g
e
n
t
e

70
Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Para Puchta teria o conhecimento pleno do direito quem logra-se percorrer a pirâmide
no sentido descendente e ascendente, indutivo e dedutivo. Uma vez constituído o primeiro
conceito os outros seriam obtidos indutivamente e dedutivamente obtidos a partir desse já tocar
o dado material histórico que lhes deu origem. A certa altura a jurisprudência dos conceitos cria
conceitos e relaciona-os entre si sem já voltar ao dado material histórico que lhe serve de base
constitutiva. O que vai valer-lhe a consideração de estéril pelos críticos, pois acaba por se fechar
num jogo lógico entre conceitos.

Além da compreensão de Puchta, ainda temos a proposta de Ihering que não podemos
deixar de fazer referência.

▪ Ihering:

Ihering ao explicar esta indução e dedução vai exatamente convocar o vocabulário da


química falando-se de uma química de conceitos. O direito objeto que é absorvido pela ciência
do direito – o tal dado histórico – vai ser alvo de diferentes tratamento do pensamento jurídico.
Na proposta de Ihering vamos encontrar dois momentos fundamentais: divisão entre
jurisprudência inferior e jurisprudência superior.

Na jurisprudência inferior os materiais jurídicos dados (consuetudinários ou legais) vão


ser utilizados para a formação de princípios gerais de direito. Os princípios gerais de direito são
resultado de duas operações: (1) análise jurídica e (2) concentração lógica. Para esta proposta os
princípios gerais de direito são resultado da abstração generalizante a partir das normas – sejam
elas de base consuetudinária ou de base legal – isto é, a partir desse dado material histórico, o
pensamento jurídico vai, relacionando diferentes dados, agrupá-los de modo a abstrair desses
grupos princípios que possam, num nível mais geral e mais abstrato, agregar esses diferentes
dados e critérios. É com isso que podemos identificar alguns dos princípios que continuamos a
encontrar positivados no direito vigente – princípio da legalidade, princípio da igualdade,
princípio da segurança – só que aqui vistos como emanações de conjuntos de normas que tratam
de uma certa figura jurídica ou de figuras jurídicas próximas. Os princípios gerais de direito nada
de novo trazem do ponto de vista substancial para além daquilo que as normas já têm, são apenas
o resultado de uma abstração a partir da regulamentação concreta que as normas estabelecem
para as organizar logicamente no conjunto do sistema.

Esta tarefa da construção de princípios gerais de direito bem como a tarefa da


interpretação, para Ihering estão concentradas na jurisprudência inferior.

Já a jurisprudência superior diz respeito à construção conceitual e à organização


sistemática dos conceitos. É aqui que vamos encontrar a operação de indução – de construção
lógica a partir da ligação de coerência substancial entre diferentes normas reunindo-as em
institutos e agrupando os critérios como o conjunto regulativo dessa mesma figura. O instituto é
o conjunto regulativo, a figura é o conceito. Portanto, o conceito de contrato resulta por indução
do conjunto de normas que regulam a matéria contratual.

Para Ihering, o objetivo seria chegar, por indução progressiva aos corpos simples do
direito. Como se uma destilação progressiva se tratasse até chegar aos conceitos mais gerais e
mais abstratos de todos – corpos simples de direito.

Neste sentido, vamos encontrar na jurisprudência dos conceitos uma concentração


fundamental na proposta de construção do sistema – o sistema de conceitos – a verificar-se como
a autossubsistência racional do sistema. Há uma ontologia do sistema que faz com que o direito
seja no sistema jurídico. É aí que o vamos encontrar como direito racional, universal e logicamente

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

concatenado. É claro que é ainda o próprio Ihering que, em duas obras fundamentais, vai assumir
expressamente que o direito deve servir a vida e essa é uma passagem fundamental para a
corrente da jurisprudência dos interesses.

3) O método subsuntivo:

A aplicação deste direito assim interpretado conceitualizado vai ser feita através do
método subsuntivo. Temos um momento técnico do método jurídico positivista a confluir na
compreensão do silogismo subsuntivo que também a Escola da Exegese afirmava como modos
operandi que o julgador deveria mobilizar para a projeção do direito logicamente concatenado
no sistema na realidade.

5. As orientações práticas:

Propor que o direito como ordem normativa prática que faz parte da construção
intersubjetiva da ação dos sujeitos então há de ser pensada através de uma racionalidade prática.
O que significa que: 1. Se irá progressivamente considerar que o direito não é identificável com a
lei ou com as proposições normativas (consideração do direito consuetudinário em lei) ou da
própria lei → o direito não se reduz à lei. 2. As decisões judiciais podem ser normativamente
constitutivas, são criação do direito para os casos concretos que resolvem.

Com isto, o núcleo constitutivo essencial – o ponto de partida para a compreensão do


direito no pensamento jurídico – vai progressivamente transitar da norma para o caso. A viragem
para a realidade e para o pensamento prático vai marcar decisivamente a evolução para as Escolas
metodológicas de orientação prática.

(1) Contributos mais relevantes:


α) a “Livre Investigação Científica do Direito”, de F. Gény:

1) Crítica ao postulado fundamental do positivismo exegético (identificação do direito com


a lei e suficiência do sistema legal):

É uma proposta muito interessante de um autor muito dinâmico e criativo e que nos fala
desta livre investigação científica do direito, sobretudo, em duas obras fundamentais: “Método
de interpretação e fontes em direito privado positivo” de 1899 e “Ciência e técnica em direito
privado positivo” de 1900. Estamos na viragem para o século XX.

Este autor vai diretamente criticar a perspetiva da Escola da Exegese – esta escola
percorreu todo o século XIX e quando chegamos à última fase existe uma decadência em que os
pressupostos desta escola começam a ser postos em causa. As críticas começam a pesar mais do
que os pilares fundamentais. É nessa fase que “entra” Gény que vai criticar os pilares fundamentais
do positivismo exegético. Desde logo, é criticada a identificação do direito com a lei e criticada
a autossuficiência do sistema legal (ideia de que o sistema é completo, concluso e fechado). A
afirmação de que o direito positivo deve constituir uma regulamentação prática da vida social e
não se fechar numa construção alheada da realidade e pensada de modo meramente científico
sem considerar as vicissitudes dessa realidade.

2) Reconhecimento da material insuficiência do direito legal:

Gény vai reconhecer a existência de lacunas e dirá que estas são efetivas ausências de
regulamentação legal no sistema jurídico. A Escola da Exegese considerava que as lacunas eram
falsos problemas ao entender que se se verificasse a ausência de previsão numa norma, haveria
de ser possível resolver o problema fazendo-o corresponder à hipótese de outra norma que

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

previsse o facto análogo (analogia legis) ou de recorrer à analogia iuris – aos princípios gerais de
direito para absorver aquele facto omisso.

Este autor vai considerar que há, desde logo, outras fontes para além da lei. Há fontes
que podem vir a concretizar-se como lei quando são institucionalizadas, mas que são de outra
origem não apenas do legislador. Vai implicar que o direito é constituído na sociedade, por um
lado, e que se recupere uma certa ideia de direito natural, por outro lado, ou seja, há princípios
que estão para lá daquilo que o direito positivo pode consagrar.

3)A distinção entre ciência e técnica “le donné” e “le construit”:

Gény vai sistematizar estas propostas através da distinção entre ciência e técnica –
diferença entre o dado (“le donné”) e o construído (“le construit”). Na sua proposta a ciência
referida ao dado e a técnica referida ao construído.

A ciência, que se vai ocupar do dado, vai investigar os elementos objetivos, ou seja, os
dados que estão na origem do surgimento do direito. São dados pré-legais, porque nada obsta
que estes dados vão confluir na fonte do direito lei. Estes dados são de quatro tipos: dados reais
ou naturais, dados históricos, dados racionais e dados ideais. Os dados reais ou naturais são
as condições da vida humana em comum. Os dados históricos são aqueles que comportam as
tradições, os costumes, etc. Os dados racionais que implicam uma remissão para o direito natural
racional do jusnaturalismo iluminista. Por fim, os dados ideais, ou seja, os ideais que orientam os
homens na sua vida em sociedade.

Estes dados assim postos, que são reconhecidos pela ciência, vão ser depois construídos
pela técnica – a técnica é a elaboração das fontes formais do direito dentre as quais vai destacar-
se a lei, mas não exclusivamente a lei.

Apesar destas notas de superação do formalismo da Escola da Exegese, Gény não supera
absolutamente o positivismo. Portanto, continua a referir a lei como fonte do direito, embora
admita que não é a única, tem o mérito de denunciar o caráter lacunoso do sistema jurídico e vai
assumir, muito relevantemente, quanto à interpretação uma posição subjetivista histórica.

Do lado do pensamento jurídico alemão temos de distinguir o “Movimento do Direito


Livre” e a Jurisprudência dos Interesses. Estamos nas primeiras décadas do século XX. O
pensamento jurídico prático pode ter simultaneamente a prossecução de fins e a sustentação em
fundamentos.

β) O “Movimento do Direito Livre”:


1) Natureza radicalmente lacuna da lei (mesmo nos domínios formalmente regulados):

Temos aqui dois autores que são absolutamente fundamentais – Kantorowicz e Isay – e
que vão afirmar, desde logo, é que ao contrário daquilo que o positivismo inclusive o da
jurisprudência dos conceitos tinha afirmado, o sistema jurídico não é autossubsistente e sem
lacunas. A lei é naturalmente lacunosa, portanto, mesmo nos domínios em que há lei pode
acontecer que ao relacionar essa lei com o caso a que se dirige se conclua que ela afinal não é
adequada para o resolver.

2) O direito manifesta-se e cumpre-se na vida jurídica através da decisão de casos


concretos:

O Direito livre é todo o direito livre da lei, ou seja, o direito que não seja criado por lei. no
sentido mais amplo, o direito livre vai exprimir todo o direito que se constitui e se manifesta para

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

além do direito legislado. Em sentido mais específico o direito livre a que o “Movimento do Direito
Livre” se refere especificamente é apenas a modalidade de construção judicial de direito extralegal
– centra-se no julgador.

3) O fundamento (criador) de direito não é a razão, mas a vontade (voluntarismo) – “O


primado da vontade” (Kantorowicz):

Para estes autores a sentença surge como um ato de vontade. Um ato de vontade que o
jurista decidente deve tomar sem que em qualquer caso pudesse vir a aplicar uma norma contra
aquilo que fosse o seu sentimento de justiça. O “Movimento do Direito Livre” vai propor a
superação do racionalismo do positivismo exegético e, sobretudo, do positivismo conceitual e vai
procurar substituir esse racionalismo formal do positivismo por uma construção prática que
remete a um certo voluntarismo. Não é um voluntarismo cego, mas é uma projeção para a
vontade do jurista decidente do sentido a tomar as decisões que na sua intuição concreta do justa
sejam as adequadas.

4) A validade da decisão contra legem (Isay, Kantorowicz):

Isto valeu a critica fundamental de que o “Movimento do Direito Livre” estaria a admitir
contra o racionalismo um irracionalismo voluntarista. Mas, a proposta dos autores não foi tão
radical quanto isso. Havia critérios estabelecidos para admissibilidade das decisões baseadas no
direito livre, porque o que acontece é que no “Movimento do Direito Livre” estes autores vão
dizer que o direito não se reduz à lei, o sistema jurídico não é fechado e sem lacuna – porque a
realidade é muito mais rica do que aquilo que a lei pode prever. Por isso, justificam-se em muitas
circunstâncias a admissibilidade da decisão contra legem.

Há duas condições cumulativas que tinham de estar reunidas para que se admitisse a
decisão contra legem: a lei não oferecer uma solução indubitável e o jurista decidente concluir
livre e conscientemente que o poder estatal existente no momento da decisão não teria
consagrado aquela solução que está prescrita na lei a mobilizar. Na conjugação destas duas
dimensões aceitar-se-ia abertamente uma decisão contra legem. É contra esta proposta que se
insurgirão múltiplas vozes, mesmo aquelas críticas e superadoras do positivismo do século XIX,
dentre as quais a voz de Heck que irá propor, alternativamente, a jurisprudência dos interesses.

12/05

γ) A “Jurisprudência dos interesses”, de Ph Heck:

1) Perspetivação do direito pelos interesses:

A jurisprudência dos interesses apresenta-se como uma corrente metodológica também


das primeiras décadas do século XX que vai ser muito mais bem-sucedida na medida em que
assume como ponto de partida fundamental a obediência pensante à lei. Além de uma proposta
de racionalidade prática contra a racionalidade teorética das Escolas positivistas, também uma
certa critica que é alimentada por uma componente de manifestação de elementos que vai acabar
por caricaturar as situações em que o formalismo geraria soluções irracionais ou absurdas.

Heck além de propor a tal obediência pensante à lei (o que demonstra uma inteligência
critica que lhe vai permitir contornar as tais críticas aos voluntarismos) simultaneamente também
aborda com grande ironia as situações em que o formalismo acabaria por se contradizer a si
próprio ou produzir soluções irracionais. É interessante percebermos quais as razões por que Heck
opta por essa assunção de uma perspetiva prática ou pragmática e sociológica do direito.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

A jurisprudência dos interesses que surge nas primeiras décadas do século XX, na
Alemanha, teve uma influência muito importante na Escola de Coimbra na superação do
positivismo. A Escola de Coimbra sofreu uma grande influência da jurisprudência dos interesses
na superação do positivismo, também apontando críticas. A viragem metodológica centra-se,
sobretudo, na afirmação do caso e não já da norma como ponto de partida para a construção e
realização do direito. Isto significa que esta perspetiva assume, pela primeira vez, que o prius
normativo e o prius metodológico no âmbito do direito é o caso e não a norma, é a realidade que
interpela o sistema jurídico e não a predefinição no sistema jurídico da realidade juridicamente
relevante. Assumir isto assim implica pôr em causa todos os pilares dos formalismos antecedentes
e pilares fundamentais que de correntes que continuam a afirmar essa primazia da pressuposição
no sistema da definição estrita e fechada da relevância jurídica.

Ao longo da segunda metade do século XX esta tomada de posição vai desenvolver-se


decisivamente, sobretudo, no contexto alemão ao ponto de propor várias vertentes das
referências fundamentais que a Escola de Coimbra tem vindo a assumir. No entanto, vamos
encontrar um diálogo entre várias propostas de pensamento sobre o direito e sobre a
metodologia jurídica.

2) Conceção da lei como solução valoradora de um conflito de interesses:

Rodolf Von Ihering, que foi um dos grandes teorizadores da jurisprudência dos conceitos,
foi afirmando progressivamente a ideia de que o direito prossegue objetivos e objetivos práticos.
A própria construção da química dos conceitos e dos discurso naturalista que mobiliza são já
sintomas da perceção de que mesmo a conceção teórica seja essa na verdade o direito visa a
resolução de problemas práticos e da vida. Esse primado da vida sobre o primado da lógica vai
prosseguido por Heck. A jurisprudência dos interesses nasce assim em aberta polémica com a
jurisprudência dos conceitos.

A jurisprudência dos interesses vai assumir que o direito visa a prossecução de interesses
práticos, ao contrapor a vida aos conceitos vai propor a consideração de que o caso concreto
assuma a primazia na problematização da relevância jurídica. Vai considerar que os casos
concretos se caraterizam como conflitos de interesses. O direito é perspetivado a partir dos
interesses. Quando estudámos o direito subjetivo vimos exatamente isto, que para Ihering o
direito subjetivo era um interesse juridicamente protegido – o direito visa a resolução de conflitos
de interesses.

Este é um pressuposto fundamental que o autor nos apresenta e nesse sentido vai olhar
para o direito como uma seleção dentre os interesses que estão em conflito de um deles para o
proteger. Portanto, a própria construção das normas legais vai ser feita a partir da consideração
dos interesses em conflito (interesses causais – interesses que estão na origem da criação de uma
norma). A norma surge como solução valoradora de conflito de interesses. Os interesses que estão
na origem do surgimento da norma, os tais interesses em conflito, dizem-se interesses causais.
O interesse que a norma vai selecionar para proteger é o interesse de opção ou de ponderação.
A lei assim constituída é composta por duas dimensões:

− dimensão ou face imperativa (dimensão de comando) que consiste na dimensão


estrutural/formal da norma, ou seja, corresponde ao enunciado escrito da norma;
− dimensão ou face dos interesses que é considerada a partir da dimensão interna
da intenção normativa da norma. É a exposição dos interesses em conflito e a
seleção e proteção do interesse de opção ou de ponderação.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Os interesses em conflito vão surgir como a base constitutiva das normas, por um lado.
Por outro lado, a relação entre os interesses e até com a própria fundamentação e fim da proteção
de certos interesses. Efetivamente, Heck assume que o direito é composto por normas e não irá
distinguir a dimensão de norma face à dimensão de princípio, acabando por reconduzir a
fundamentação e o critério para a resolução dos interesses. Podemos dizer que estaremos
próximos de um positivismo sociológico, pois põem a base do direito nos interesses da realidade
em conflito e simultaneamente considerar que a seleção feita pelas normas é ainda baseada na
própria ponderação sobre esses mesmos interesses.

3) A “ciência do direito” ou o pensamento jurídico não teria uma intenção teorética ou de


puro conhecimento, mas uma intenção eminentemente prática e com uma tarefa
especificamente normativa: a distinção entre “problemas normativos” e “problemas de
formulação” e entre “sistema interno” e “sistema externo”

Do ponto de vista do pensamento jurídico temos a superação de uma intencionalidade


teorética por uma intencionalidade prática. De facto, é uma dimensão crucial. A assunção de que
os problemas da vida não são suscetíveis de serem conhecidos, mas apenas pensados, nesse
sentido compreendidos e depois resolvidos leva a que a Jurisprudência dos interesses apresente
fundamentalmente a problemática da racionalidade do direito a partir de uma racionalidade
prática. É fundamental que na construção do direito haja uma ponderação pragmática das
consequências que a opção por um dos interesses face ao outro vai implicar, porque o legislador
quando cria uma norma vai criá-la a partir desse conflito de interesses, vai ter de optar por um
deles face ao outro e, posteriormente, no momento da interpretação o interprete irá reconstituir
historicamente a evolução que levou o legislador a consagrar aquele sentido de ponderação e
não outro.

Neste momento estamos a assumir que as normas legais assim criadas enquanto soluções
valoradora de conflito de interesses vão ser mobilizadas para a resolução de problemas concretos
mesmo que esses problemas concretos não representem a concretização pura e simples das
normas. A dimensão de comando da norma (dimensão formal) vai associada à sua dimensão
intencional (intenção normativa da norma). Se o que convoca o direito é o caso só faz sentido
interpretar uma norma se e quando ela vai ser mobilizada para resolver um caso concreto. A
interpretação deixa de ter lugar em abstrato para passar a ter lugar em concreto. Significa isto
que o interprete quando perante um caso que é um conflito de interesses vai procurar no sistema
jurídico uma norma em cuja intencionalidade normativa esteja presente uma ponderação de
interesses em conflito análogos aos interesses que estão em conflito na situação concreta. A
construção da relação analógica e da comparação entre o problema posto em concreto e o
problema resolvido em abstrato é crucial para se concluir pela suscetibilidade de mobilizar aquela
norma para resolver aquele caso – o ponto de partida deixa de ser a relação literal entre os factos
e a norma, para passar a ser a relação entre o problema posto no caso concreto e a intenção
normativa da norma. Significa que o interprete vai reconstituir historicamente essa ponderação
de interesses. O interprete vai analisar o conflito de interesses e procurar determinar quais são os
interesses causais. De seguida, vai analisar as razões por que o legislador selecionou um interesse
para proteger – vai identificar o interesse de opção ou de valoração. Posteriormente, vai como
que repetir em concreto a opção que o legislador fez em abstrato.

Este pensamento jurídico assim pensado vai propor na sua intencionalidade


iminentemente prática uma tarefa de especificação e sistematização normativas muito peculiar
quando comparada com as construções de sistema que até aí tinham dominado.

Como é visto o sistema jurídico nesta perspetiva?

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

O sistema jurídico vai ser aqui assumido como aberto ao diálogo com a novidade que
os casos trazem e assumidamente lacunoso. O suposto é a possibilidade de existirem casos não
previstos em normas faz parte do desenvolvimento da vida. Heck também vai propor, depois, a
teoria da integração de lacunas. O que é interessante, porque por um lado considera que a
relevância jurídica não corresponde à previsão literal, corresponde à intencionalidade normativa
da norma, ou seja, no limite a dimensão dos interesses prevalece sobre a dimensão de comando.

A construção do sistema jurídico vai implicar uma distinção que Heck propõe entre
“problemas normativos” e “problemas de formulação”. Os problemas normativos identificam-
se com os problemas juridicamente relevantes, no fundo, os problemas normativos são os
conflitos de interesses que cumpre solucionar em termos prático-teleologicamente adequados.
Os problemas de formulação dizem respeito à organização sistematicamente articulada das
soluções dos problemas normativos que vai conduzir à organização interna do sistema jurídico.

Internamente temos a construção dos problemas normativos e das suas soluções, ou


seja, no sistema interno temos o conteúdo do sistema e a exposição dos problemas normativos
e das suas soluções. No sistema externo temos a organização desses problemas normativos e
das respetivas soluções – ordenação sistemática do conteúdo do sistema.

4) Teoria da interpretação: interpretação teleológica; a proposta da interpretação corretiva

A interpretação passa a fazer sentido quando em concreto a norma vai ser convocada
para resolver um problema e, por isso, a interpretação só faz sentido em concreto e vai implicar
uma reconstituição histórica dos interesses causais, do interesse de ponderação e a concretização
no presente daquilo que foi pensado para a resolução daquele conflito de interesses.

δ) A superação da “Jurisprudência dos interesses” em resultado da sua consideração crítica


(a “insuficiência da sua base sociológica”, a “insuficiência criteriológica”, a “insuficiência
sistemática”, a inconcludência da sua cripto fundamentante “conceção do direito”).
Referência ao pensamento jurídico causal” – o sociologismo radical da proposta de Muller.
A “jurisprudência da valoração”. A recuperação da racionalidade tópico-retórico-
argumentativa e hermenêutica por parte do pensamento jurídico atual e a autonomização
da especificidade prático-normativa da metodonomologia – a traduzirem uma linha de
superação da “Jurisprudência dos interesses” já descomprometida daquele sociologismo e
prático-jurisprudencialismo inucleada.

A jurisprudência dos interesses apesar de todos os sucessos que logrou obter acabou por
sofrer críticas nomeadamente dirigidas à insuficiência da sua base sociológica, visto que, não
faz distinção entre fundamentos e critérios (esta proposta assume os fundamentos e os critérios
como interesses). Também será consequentemente criticada pela sua insuficiência criteriológica
porque se reduz às normas do ponto de vista dos critérios. Ainda, à sua insuficiência sistemática,
porque embora reconhece o sistema interno e o distinga do sistema externo, ao não reconhecer
a diferenciação entre fundamentos e critérios acaba por reconduzir todo o sistema a normas.

Estas críticas associadas ao facto de a jurisprudência dos interesses assumir como


interesses causais apenas os interesses em conflito, vai levar a que outros autores proponham
soluções alternativas. Vai mesmo levar à sua superação, embora recuperando-se aquilo que dela
são as grandes conquistas – consideração autónoma da relevância dos casos, teoria da
interpretação com a assunção da perspetivação teleológica, a abertura do sistema, a construção
analógica das soluções sociais.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

No pensamento jurídico causal de Muller encontra-se a critica ao facto de o direito se


constituir a partir apenas de interesses em conflito, ou seja, os interesses causais que dão
surgimento ao direito não têm que estar necessariamente em conflito, podendo estar em
concordância e ainda assim gerar direito.

Assim, esta superação da jurisprudência dos interesses consiste, perante a insuficiência


de fundamentação, criteriológica e sociológica da jurisprudência dos interesses. Em primeiro
lugar, quanto á fundamentação o facto de não ter distinguido fundamentos de critérios. Em
segundo lugar, quanto à criteriologia por ver nas causas do direito interesses causais, também o
critério de seleção da relevância jurídica seria esse e no momento da realização concreta
continuaremos a ter o interesse como critério fundamental de opção e de solução valoradora do
conflito de interesses. Essa dimensão criteriológica acaba por não considerar aquilo que as
correntes da jurisprudência sociológica, por exemplo, que admitiam que os interesses que estão
na origem do direito, mesmo que se assuma que o direito resulta de interesses e que visa a
prossecução de interesses, poderão não estar em conflito. É desse ponto de vista que vamos
analisar a ligação entre a insuficiência criteriológica e insuficiência sociológica, porque esse
pressuposto constitutivo da norma como solução valoradora de conflito de interesses apresenta-
se como redutor da construção do direito para as perspetivas críticas.

Quanto à insuficiência da fundamentação as propostas que se seguem quanto à


jurisprudência da valoração irão assumir a necessidade de identificação de um fundamento
material para a validade dos critérios jurídicos e, consequentemente, para a construção da
realização judicativa do direito. Desse ponto de vista, já na metade do século XX, vamos ver a
desenvolver-se um conjunto de propostas metodológicas que assentam nessa dimensão material
substancial de fundamentação e que irão projetar-se numa compreensão analógica prático-
normativa, com a construção de uma estrutura argumentativa para a construção da decisão
judicial.

Assim, no eixo que perpassa boa parte da dogmática jurídica alemã da segunda metade
do século XX, autores como Muller, que irão prosseguir a proposta de constituição da decisão
judicial concentrada no caráter problemático do caso e na sua especificidade para a interpelação
do sistema jurídico.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

13/05

Lições 19 e 20

Sumário:

5. A interpretação jurídica

Tendo em conta a teoria tradicional (hermenêutico-cognitiva) vamos analisar as temáticas


do objeto, do objetivo, dos fatores e dos resultados da interpretação. Vamos analisar, de seguida,
a superação desta intenção material que é tributária de toda a evolução que as Escolas
metodológicas de orientação prática nos legaram. Assim, vamos fazer este percurso fazendo a
diferenciação entre duas grandes orientações que englobam várias correntes de pensamento e
numa tentativa de sistematização que nos aparece aqui como se de contraposição entre duas
opções se tratasse – não são duas, mas sim conjuntos de compreensões que aqui serão
aproximadas do ponto de vista da sua intencionalidade fundamental para podermos estruturar o
nosso pensamento, nomeadamente, quando confrontados com o nosso grande interlocutor
histórico (positivismo do século XIX).

Para as perspetivas de índole positivista a interpretação irá concentrar-se na


compreensão do sentido das normas conhecidas – conhecimento e compreensão do sentido em
termos hermenêuticos.

Já para a perspetiva prático-normativa esta irá assumir a interpretação jurídica como a


determinação do sentido normativo de uma fonte jurídica. Esta perspetiva prático-normativa só
pode considerar este sentido quando por relação direta com a resolução de um problema
concreto. Portanto, a perspetiva deixa de ser, no que diz respeito à consagração e critérios
orientadores da tarefa interpretativa, jurídico-positiva para passar a ser problemático-
metodológica.

1) O sentido do problema – não hermenêutico-cognitivo, mas prático-normativo – no


quadro da judicativo-decisória “realização do direito por mediação da norma” (ou do
critério) predisponível no “corpus iuris”.

A interpretação jurídica suscita um problema particular no quadro global da metodologia


jurídica, o que só em si nos mostra que estamos aqui perante dois grandes sentidos de opção
quanto ao papel que a interpretação jurídica desempenha na atividade do jurista e quanto ao
problema que põe.

De facto, para as perspetivas hermenêutico-cognitivas, com origem no positivismo do


século XIX, a interpretação era vista como uma operação que tinha lugar num dos momentos do
método jurídicos positivista – momento hermenêutico – visava conhecer e determinar o sentido
único da norma jurídica interpretada, sentido este com que a norma havia de ser mobilizada para
a aplicação lógico-dedutiva, ou seja, como premissa para a dedução. Neste sentido, podemos
reconhecer que a interpretação era aí uma operação que teria lugar em abstrato, isto é, antes e
independentemente da mobilização da norma para a aplicação lógica-dedutiva.

Falarmos aqui em norma não significa estarmos a limitar o objeto da interpretação. Por
um lado, o positivismo legalista concentrou-se, sobretudo, na Escola Exegética Francesa e
naquelas que influenciou. Aqui a fonte fundamental do direito é a lei e, portanto, é essa enquanto
norma legal que será objeto da interpretação. Por outro lado, no positivismo científico ou
dogmático a fonte fundamental do direito não seria a lei, embora também houvesse lei, mas a
própria constituição consuetudinária do direito será para a ciência do direito assumida como

79
Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

norma. Portanto, é de normas que se trata, porque a ciência do direito elaboraria enunciados
gerais e abstratos com hipóteses e estatuição a partir das práticas consuetudinárias. Assim, do
ponto de vista hermenêutico e do ponto de vista sistemático, nós vimos confluir o positivismo
legalista francês e o positivismo dogmático alemão. É, por isso mesmo, que aqui se fala de norma
como objeto da interpretação.

Por outro lado, para a perspetiva prático-normativa que assume como ponto de partida
para a realização prática do direito não as normas/o sistema, mas o caso/problema posto pelo
caso concreto, vai assumir a interpretação jurídica como uma das operações que o jurista
dissidente tem de levar a cabo no momento da resolução de um problema juridicamente
relevante. Com isto, deixamos de ter a interpretação como um momento lógico e
cronologicamente separado e anterior ao momento da aplicação lógico-dedutiva, para passarmos
a assumir a interpretação como um dos momentos constitutivos da própria decisão constitutiva.
A interpretação passa a ter lugar apenas em concreto e por referência ao problema que interpela
o sistema jurídico.

Podemos estar a falar da interpretação de uma norma legal, mas não são apenas as
normas legais os critérios que o sistema jurídico consagra. Desde logo, os critérios da
jurisprudência judicial e os critérios que resultam dos modelos dogmáticos. Isto significa que
qualquer um destes critérios é objeto da interpretação, no sentido de que para dele se poder
retirar o sentido normativo com que irá ser mobilizado para orientar a resolução do problema
judicando aí teremos a consideração da perspetiva prático-normativa para a construção dessa
interpretação.

Isso significa que para percebermos o sentido da interpretação jurídica temos que ter em
conta a conceção fundamental do direito que lhe corresponde e também a perspetiva por que o
pensamento jurídico é compreendido. Afirma-se que há interpretação jurídica se reconhecesse,
hoje, desta perspetiva prático-normativa, uma índole profundamente problemática. Portanto,
deixa de existir aquela estabilização em abstrato de definição de verdade e cientificidade no
sentido das ciências empírico-explicativas que pudesse valer como sentido único para todas as
aplicações a que a norma fosse chamada. Em termos muito amplos, teremos na interpretação
jurídica o sentido normativo de uma fonte jurídica. Em termos mais restritos, a interpretação
jurídica é um ato metodológico de determinação do sentido jurídico-normativo de uma fonte
jurídica por modo a obter dela o sentido de orientação para a realização do direito nos casos
concretos.

Sobre a exigência da interpretação e a sua necessidade muito se tem dito desde o direito
romano. De facto, uma orientação tradicional que ainda acaba por relevar em algumas correntes
contemporâneas e que entendia que se a fonte interpretanda se exprimisse num texto claro e
inequívoco não haveria lugar a interpretação dado que a clareza justificaria a desnecessidade
dessa mesma interpretação – é o que a tese non fit interpretativo visa descrever.

Se este modo de ver as coisas ainda é afirmado em algumas compreensões da


interpretação e metodologia jurídicas a verdade é que há muito que há vozes muito contrárias a
esta construção. Já não fará sentido, porque o objeto da interpretação já não se reduz à ideia de
texto da norma interpretanda e, sobretudo, porque se assume que a clareza não é incita às
palavras que compõem o texto da lei já que a clareza há de resultar da interpretação que da
norma se faça. O que está em causa numa perspetiva prático-normativa é a determinação do
sentido normativo da norma para lá da pressuposição da literalidade, ou seja, não vamos
considerar que o objeto da interpretação é o texto da norma enquanto texto, mas a norma
enquanto problema – a norma na sua intencionalidade problemática, a norma enquanto

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

resolução em geral e abstrato de um problema que irá corresponder ao modo por que um
determinado problema se nos apresenta em concreto.

A perspetiva hermenêutico-cognitiva (teoria tradicional da interpretação) acaba por se


escudar na perspetiva do texto como objeto e daí resulta não apenas os diferentes resultados
possíveis, como também a própria delimitação da juridicidade, ou seja, a diferença entre a
previsão e a ausência de previsão de uma certa realidade concreta – por outras palavras a
diferença entre interpretação de normas legais e integração de lacunas.

Se do ponto de vista intencional não assumiremos uma perspetiva hermenêutico-


cognitiva iremos abraçar uma perspetiva prático-normativo e cumpre compreender como é que
cada uma delas abrange cada um destes quatro problemas que anunciamos como sendo as
temáticas centrais que a teoria tradicional privilegiou e que, em contraponto, vamos critico-
reflexivamente considerar.

No âmbito da interpretação jurídica nós vamos encontrar, do ponto de vista técnico,


algumas distinções que temos de considerar antes de analisarmos as diferentes perspetivas.

a) Distinção entre interpretação autêntica e interpretação jurisprudencial:

Esta é uma distinção que vem desde a Idade Média. Os critérios que presidem a esta
distinção são: o agente interpretativo e a diversidade de relevo jurídico ou metodológico-jurídico
que corresponde a cada um destes tipos de interpretação.

Quanto ao agente interpretativo – a interpretação autêntica pode dizer-se também


interpretação legislativa obrigatória. É a interpretação levada a cabo pela entidade emitente da
própria fonte jurídica interpretanda. Na compreensão tradicional, a interpretação autêntica é
interpretação de uma norma legal pelo legislador. De facto, o legislador tem essa prerrogativa da
interpretação das normas legais que emana e ela está consagrada no artigo 13.º do Código Civil.
Este artigo determina a admissibilidade da interpretação autêntica. Esta interpretação visa
esclarecer dúvidas quanto ao sentido interpretativo por que uma certa norma legal deve vigorar.
A lei interpretativa é a lei cujo objeto é a interpretação de uma outra lei e cujo objetivo é o
esclarecimento das dúvidas sobre essa interpretação que o legislador pretende esclarecer.

Quanto à força normativa – a interpretação autêntica tem força de lei e, portanto, é


interpretação obrigatória.

A interpretação autêntica distingue-se da interpretação jurisprudencial que assumida


assim em sentido amplo vai abranger a interpretação usual e consuetudinária e a interpretação
jurisdicional e doutrinal. Quanto ao seu autor - a interpretação jurisprudencial é aquela que é feita
pelos especialista em direito e pela jurisprudência judicial. Neste sentido, temos a reflexão sobre
uma norma legal levada a cabo pela dogmática e pela reflexão que faz sobre o direito vigente e,
também, levada a cabo pela jurisprudência judicial e pela interpretação que faz sobre o direito
vigente com efeitos diversos. A dogmática visando fazer um diagnóstico do direito vigente para
propor a continuação de ou a alteração de sentidos normativos para o futuro. A jurisprudência
judicial visando determinar o sentido normativo da norma para a sua realização em concreto. A
interpretação pode ter como objeto uma norma legal, mas também decisões judiciais ou os
próprios critérios. Quanto à força vinculativa da interpretação – na interpretação jurisprudencial
é uma interpretação cuja força resulta da sustentabilidade dos argumentos em que se louva e dos
sentidos que se verificam prático-normativamente adequados para a relação entre o sistema
jurídico e o problema. ~

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

b) Interpretação em sentido restrito, amplo e global:

A interpretação em sentido restrito será a interpretação estritamente da lei, a


determinação rigorosa dos sentidos distantes no texto da norma interpretanda. Num sentido
mais amplo, a interpretação poderá abranger a ideia de integração de lacunas. Por último, a
interpretação em sentido global vai abranger ambas – interpretação e integração – e, além
disso, a admissibilidade de um desenvolvimento autónomo do direito, por sua autónoma
constituição. Isto obriga a que se deixe de considerar como referência fundamental para a
realização judicativa a previsão da realidade em normas legais e admita a possibilidade de um
desenvolvimento autónomo do sistema jurídico e, com isto, a criação ex novo de sentidos de
decisão que não estando já consagrados no sistema será nesse sentido integrada no sistema para
a resposta ao problema concreto.

c) Interpretação dogmática e interpretação teleológica:

A interpretação dogmática é uma interpretação que visa reconduzir os sentidos


interpretativos aos sentidos já pré-estabelecidos no sistema. É um sentido de interpretação que
reporta ao direito interpretado ao direito já previamente conhecido. O que está em causa é reduzir
ao pressuposto jurídico dogmático aos sentidos já admitidos, aos sentidos que aquela fonte
jurídica interpretanda pode assumir.

A interpretação teleológica tem em conta a intencionalidade prática e pragmática da


fonte interpretanda e também tem em conta a relação entre a fonte interpretanda e o problema
a que vai dirigida. Esta interpretação teleológica que é acentuada a partir da jurisprudência dos
interesses vai implicar que o elemento teleológico (o objetivo prático da norma) possa superar a
vinculatividade literal. É aqui que temos a grande viragem para a perspetiva prático-normativa da
interpretação jurídica.

TEORIA TRADICIONAL DA INTERPRETAÇÃO JURIDICA:

Esta teoria tradicional da interpretação jurídica é a perceção contra a qual as perspetivas


prático-normativas irão apresentar-se. Ela é dita tradicional porque assumida não apenas pelas
perspetivações positivistas e por tudo o que elas de anterior convocaram e concretizaram, mas
em boa parte das evoluções pós-positivistas. NO ENTANTO, estas perspetivas perduram e que
permanecem com a vinculatividade do texto como objeto da interpretação.

2) O objeto da interpretação – não a norma (critério)-texto, mas a norma (critério)-


problema.

O que significa interpretar um critério? O que é o critério? Porque é que o critério é objeto da
interpretação? O critério é uma norma? Como irá ser compreendido? Como é que foi
compreendida a norma legal enquanto objeto da interpretação pelas perspetivas formalista?
Como é que é na perspetiva prático-normativa?

O objeto da interpretação é aquilo que é interpretado e aquilo sobre que recai a


interpretação. Com o legalismo do século XIX, sabemos que a interpretação jurídica passou a
ser sobretudo a interpretação da lei – o positivismo reduziu o direito ao direito positivado e o
positivismo legalista reduziu o direito ao direito positivado sob a forma de lei. Portanto, nesse
sentido, o objeto da interpretação é o texto da lei já que o texto da lei assumia uma função
constitutiva, ou seja, o texto constituía a lei. A norma não é se não no seu texto e no sentido que
desse texto emana-se. A norma é no texto. Os seus sentidos, a sua aplicação está adstrita à
delimitação textual. O texto constitui a norma. É esta a herança que o positivismo legalista nos

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deixa e que nos é deixada pela proposta do pensamento germânico – proposta de Savigny. Para
Savigny o texto é constitutivo da norma interpretanda. Neste sentido, o texto da lei vai não apenas
identificar a lei como delimitar a interpretação possível. Para Savigny a interpretação jurídica seria
a interpretação do sentido incito ao texto da norma.

Para este autor, o texto da lei não se reduzia ao elemento gramatical. Portanto, há que
distinguir os elementos intratextuais da lei e o elemento extratextual. Deste ponto de vista, o texto
da lei seria composto por: elemento gramatical, elemento histórico e elemento sistemático. Estas
três dimensões seriam consideradas incitas ao texto da lei. Nestas teorias tradicionais, o elemento
gramatical desempenha uma função de delimitadora, traduzida quer na sua dimensão negativa,
quer na sua dimensão positiva – o elemento gramatical desempenha uma função positiva e uma
função negativa.

A função negativa do elemento gramatical é autónoma e vinculativa, no sentido de


que qualquer interpretação da norma que não tivesse ligação com os sentidos literalmente
admissíveis estaria excluída. O interprete não poderia selecionar no âmbito da interpretação
sentido que não tivessem ligação com a construção literal (letra da lei interpretanda). Esta função
negativa é negativa, porque é de exclusão, é autónoma porque é desempenhada isoladamente
pelo elemento gramatical e é vinculativa pois essa exclusão não é reversível.

− Há autores que entendem que a letra é a fronteira da interpretação e assim uma


interpretação mais exigente da correspondência literal (Karl Larez).
− Mas, há autores assumindo uma proposta menos exigente admitem que sejam
considerados todos os sentidos que tenham com a letra da lei uma correspondência
mínima e, portanto, só seriam excluídos aqueles não tivessem a correspondência mínima
aos sentidos literais (Karl Engisch) – Teoria da Alusão. Os sentidos teriam de ser aludidos
pelos sentidos literais das palavras que compusessem o texto da lei interpretanda. Esta
teoria vai ter referência no artigo 9.º do CC.

Uma vez cumprida a função negativa haveria de cumprir a função positiva. A função
positiva determinaria que os sentidos a admitir como possíveis teriam que ter essa ligação – essa
ligação poderia ser mais ou menos forte, ou seja, mais próxima da letra ou mais afastada. Uma
vez excluídos os sentidos, para cumprir a função positiva o elemento gramatical já não é nem
autónomo nem vinculante. Para o sentido ou função positiva do elemento gramatical é necessário
contar com os outros elementos e o sentido a que se chega já não é apenas aquele a que letra
determine. É necessária a conjugação entre o elemento gramatical e os outros elementos
intratextuais (elemento histórico e elemento sistemático).

Além destes elementos seria necessário considerar um elemento extratextual – elemento


teleológico – que Savigny considerava, em primeira instância, que deveria ser excluído da
interpretação. Mas, que veio a admitir quando houvesse dificuldade em obter um sentido claro
da conjugação dos elementos textuais.

Há uma distinção tradicional que permite separar letra de espírito que é muito
convocada para a descrição quer dos elementos quer dos resultados da interpretação e que exigir
alguma explicação para se possa distinguir e conjugar daquilo que acabámos de dizer. De facto,
a letra corresponde ao elemento gramatical e o espírito corresponderia aos outros elementos
(elemento histórico + elemento sistemático + elemento teleológico).

3) O objetivo da interpretação:

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Em segundo lugar, cumpre referir o objetivo da interpretação e este é aquilo que pretende
obter-se através da interpretação – a finalidade da interpretação. O objetivo da interpretação
implicou a consideração de uma polémica que se desenvolveu ao longo do século XIX e que
contrapôs as correntes subjetivistas (o subjetivismo) que se inclui na interpretação dogmática às
correntes objetivistas (o objetivismo) que também se inclui na compreensão da interpretação
dogmática – em ambas o objetivo é reconduzir o sentido com que a lei deve valer aos sentidos
já consagrados no sistema. No entanto, estas duas correntes são muito diferentes entre si.

α) O subjetivismo e o objetivismo – os argumentos em que se louvam e a sua


inconcludência:

Ao longo do século XIX, primeiro surgiu a teoria subjetivista e só depois a teoria


objetivista, estas que vão desenvolver-se ao longo da segunda metade do século XIX. Ao
desenvolverem-se irão ser um do embriões da superação da própria teoria tradicional da
interpretação jurídica, porque vão acentuar a relação entre a norma e a realidade à qual vai ser
aplicada. Quer para o subjetivismo quer para o objetivismo o objeto da interpretação é o texto
da norma interpretanda.

A teoria subjetivista sustenta que o objetivo da interpretação está na averiguação da


vontade do legislador expressa no texto da lei. O subjetivismo é, sobretudo, um subjetivismo
histórico, porque visa a determinação do objetivo da vontade do legislador expressa no texto da
lei no momento em que a lei foi criada. No entanto, há algumas propostas de subjetivismos
atualistas – uma espécie de reconstituição da vontade que o legislador teria no momento em que
a norma vai ser aplicada.

Contrapõe-se a esta a teoria objetivista. Para esta teoria o objetivo da interpretação será
a determinação da vontade expressa pelo próprio texto da lei, autonomamente relativamente à
vontade do legislador. Também falamos de objetivismo histórico e de objetivismo atualista. O
primeiro visaria determinar a vontade incita à lei no momento em que foi criada. O segundo a
adaptação dessa vontade à realidade que se vai apresentando.

» Ponto comum entre estas duas teorias: a consideração do texto como objeto da
interpretação.

Há muitos argumentos que estas correntes mobilizaram para se defender, por um lado,
e para se criticarem mutuamente, por outro lado. Por exemplo, o objetivismo tinha como objetivo
fundamental do ponto de vista científico e político a obediência estrita ao poder constituído. O
que visto à luz do desenvolvimento histórico se reportaria a fazer perdurar no tempo a vontade
inicial correspondente ao ideal revolucionário liberal que esteve subjacente à construção dos
documentos legislativos. Daí o subjetivismo histórico.

Já o objetivismo vai concentrar-se muito mais em assegurar a justeza e a retidão das


soluções face ao modo como a realidade se apresenta. Aqui temos o embrião da abertura que vai
levar à acentuação da realidade sobre a adequação da vontade do legislador que a segunda
metade do século XIX traz. É uma compreensão mais comunitária e mais objetiva da manifestação
do direito. Quando o objetivismo surge, surge sobretudo para criticar o facto de a interpretação
subjetivista ficar apegada à instância criadora e ligada ao passado, também ao facto de o
subjetivismo pretender ligar o objetivo da interpretação a uma certa vontade subjetiva como se
o legislador fosse uma pessoa e não um conjunto de pessoas. Há um argumento muito
interessante do objetivismo segundo o qual pode suceder que quando relacionado com a prática

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a norma legal se manifesta mais capaz de resolução de problemas concretos do que aquilo que
o legislador pode dela pensar quando a criou.

β) As orientações mistas e gradualistas e a sua refração no artigo 9.º do CC (alusão


à problemática do valor normativo do cânone metodológico):

“Artigo 9.º do Código Civil INTERPRETAÇÃO DA LEI:

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos
o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema-jurídico,
as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições especificas do tempo que
é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não
tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que
imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o interprete presumirá que o legislador
consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos
adequados.”

No nosso Código Civil encontramos refração quer da compreensão do objeto da


interpretação quer do objetivo, quer da problemática dos elementos. Vamos parcelarmente
abordar este artigo 9.º do CC. A perspetiva hermenêutico-cognitiva que visa determinar um
sentido verdadeiro e único que a norma deve valor, também se associa à consideração de que a
interpretação é suscetível de ser orientada por critérios metódicos – critérios que são fixados pelo
próprio legislador.

O artigo 9.º, no seu número 1, começa por dizer que “a interpretação não deve cingir-se
à letra da lei”, ou seja, não se poe a possibilidade de fazer uma interpretação literal e exclusiva.
Mas, “reconstituir a partir dos textos”. Os textos aqui têm uma relevância fundamental. Já no
número 2 do mesmo artigo diz-nos que não pode ser “considerado pelo intérprete o pensamento
legislativo que não tenha na letra da lei o mínimo de correspondência verbal”.

Do ponto de vista do objeto, continuamos a ter aqui uma referência ao texto e assumindo
a referência à sua relevância literal do ponto de vista da função negativa do elemento gramatical
já que temos uma consideração possível da perspetivação mais aberta da função excludente a
estabelecer uma consagração da Teoria da Alusão – numa formulação ainda mais aberta “ainda
que imperfeitamente expresso”. Estamos já numa fase de transição em que a relevância da letra da
lei começa a ser confrontada com outras perspetivações e que nos vai levar a pôr o sentido na
sua vinculatividade do ponto de vista negativo.

Quanto ao objetivo, o nosso legislador não utilizou propositadamente as expressões


“intenção do legislador”, “intenção da lei”, “vontade do legislador”, “vontade da lei”. O nosso
legislador usou a expressão “pensamento legislativo”, como que a abre a possibilidade de o
interprete poder problematizar consoante as circunstâncias no sentido por que, na conjugação
entre os diferentes elementos, o critério haja de valer do ponto de vista da interpretação. Nesta
construção do ponto de vista do objetivo da interpretação, vamos encontrar uma opção por uma
teoria mista ou gradualista já que vamos verificar uma compatibilidade entre a formulação do
artigo 9.º e alguma vertente subjetivista, mas o domínio da expressão “pensamento legislativo” é
uma abertura à relevância do objetivismo. A expressão “condições específicas do tempo que é
aplicada” remete-nos para um objetivismo atualista.

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No número 3 do artigo 9.º temos consagrada a dita presunção do legislador razoável


e que, por sua vez, é uma nota de objetivismo. Presume-se que o legislador consagrou as soluções
mais acertadas (presunção do legislador razoável quanto ao conteúdo) e não é necessário ir
investigar qual é a vontade do legislador e, presume-se também que soube exprimir o seu
pensamento em termos adequados (presunção do legislador razoável quanto á formulação).

4) Os fatores ou elementos da interpretação – os elementos tradicionais da


interpretação (o “elemento gramatical”, o “elemento histórico”, o “elemento
sistemático” e – depois de vencidas algumas hesitações – o “elemento teleológico”)
e a sua evolutiva mudança de sentido.

Os elementos da interpretação são os fatores interpretativos, são a construção interna do


sentido da norma. Na formulação que Savigny nos propõe os elementos da interpretação são os
elementos gramatical, histórico, sistemático e teleológico.

Do ponto de vista histórico, a autonomização de cada um destes elementos não nos pode
deixar indiferentes, porque boa parte deles sempre estiveram presente, no entanto, a sua maior
enfase na medida em que influenciam a dita teoria tradicional vai sendo progressiva – ao longo
da história vão tendo enfases distintas e a sua acentuação é crucial para consagração da teoria
positivista da interpretação. Para a Escola dos Glosadores o elemento literal é absolutamente
fundamental – interpretação filológico-gramatical. A Escola dos Comentadores já vai muito mais
para além da letra da lei e aí já temos um embrião daquilo que é a teoria da interpretação jurídica
a que estamos a referir-nos. Para os comentadores o elemento literal não estaria propriamente
dentro da temática da interpretação, mas seria uma antecâmera. Depois de considerar a letra da
lei, avançar-se-ia para a interpretação.

Esta interpretação comportaria duas dimensões: a) comprentio legis que seria a


compreensão do sentido na relação entre a letra e a sua intencionalidade. Podia-se chegar a
diferentes resultados: desde logo, podia concluir-se que o sentido cabia diretamente nas palavras
– interpretação declarativa; poderia haver uma restrição – interpretação restritiva; e algo que
designavam por interpretação declarativa em sentido lato que a teoria tradicional acabou por
designar por interpretação extensiva. A segunda dimensão seria: b) a extentio legis que
corresponde à analogia enquanto mecanismo de integração de lacunas. Para os juristas medievais
não temos uma interpretação em sentido estrito, temos uma interpretação em sentido amplo,
porque a integração faria parte da interpretação.

O elemento histórico vai ver-se acentuado a partir da Escola Humanista do século XVI. E
o século XVIII – o Iluminismo – vai privilegiar o elemento sistemático, a racionalidade axiomático-
dedutiva do pensamento iluminista vai privilegiar a integração sistemática e a relevância da
integração sistemática como elemento da interpretação. Só, mais tarde, teremos considerado o
elemento teleológico e que vai ser a viragem para a superação da teoria tradicional.

19/05

Se a letra corresponde ao elemento gramatical, o espírito corresponderia primeiro que


tudo ao elemento histórico e ao elemento sistemático que, conjugados entre si e com a letra,
conduziriam aos resultados da interpretação. Numa compreensão mais aberta do espírito vem a
ser considerado o elemento teleológico que irá tomar parte ao assumir a dimensão prática da
norma – elemento extratextual.

Quando Savigny faz a distinção entre os elementos da interpretação e os identifica como


gramatical, histórico, sistemático (fala ainda da dimensão lógica que teria que ver com a própria

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construção lógica da norma, mas acabou por vir a integrar o elemento lógico no elemento
sistemático) e teleológico.

i) Elemento gramatical:

Na compreensão hermenêutico-cognitiva o elemento gramatical seria o elemento base,


porque o primeiro contacto com a norma interpretanda seria a letra e a interpretação iria
concentrar-se no texto, em dois sentidos:

» sentido ou valor negativo que corresponde ao sentido em que a letra autonomamente


e vinculantemente excluiria quaisquer sentidos que não tivessem ligação com a letra da
lei, de modo exigente e solicitando uma correspondência direta. De um modo mais
aberto quando se admitisse a existência de uma correspondência mínima (Teoria da
Alusão). Mas num ou noutro destes sentidos a letra delimitaria a interpretação nesta
primeira tarefa, pela negativa, ou seja, excluindo os sentidos que não fossem admissíveis
do ponto de vista etimológico e jurídico pela letra da lei.
» uma vez ultrapassada esta referência da determinação negativa passar-se-ia à
identificação do sentido ou valor positivo da letra da lei. Neste ponto encontraríamos
os sentidos possíveis, ou seja, os sentidos mais naturalmente correspondentes do ponto
de vista etimológico e jurídico às palavras que compõem a letra da lei, mas também
outros sentidos que sendo ainda possíveis se poderiam manifestar como mais restritos
ou mais amplos do que o sentido naturalmente mais correspondente à letra.

Exemplo: se a letra se referisse a “alienação” e o interprete concluísse que deveriam estar


conjugados a letra com os outros elementos da interpretação deveriam considerar-se todos os
sentidos de “alienação” quer a alienação gratuita quer a alienação onerosa – estaríamos a adotar
o sentido mais natural transmitido pela letra da lei. Poderia, também, concluir-se da conjugação
dos elementos que não se deveria admitir todos os sentidos de alienação, mas apenas por
exemplo o de alienação onerosa.

ii) Elemento histórico:

O elemento histórico traduz a consideração da génese do preceito interpretando. O que


está em causa é a consideração dos trabalhos preparatórios da elaboração do preceito
interpretando que incluem todas as discussões de projetos, ou seja, toda a construção conducente
ao preceito interpretando. Mas, para além dos trabalhos preparatórios, há ainda a considerar a
circunstância jurídico-social do aparecimento do preceito interpretando (ocasio legis). Estão aqui
em causa as circunstâncias económicas, culturais, socias, políticas que estão na origem do
surgimento da norma interpretanda. Há que considerar, ainda, a história do instituto jurídico em
que se insere aquela norma interpretanda, as fontes legislativas em que se inspira e a história do
direito.

O elemento histórico foi fundamental para a perspetiva subjetivista, mas também o foi
para a perspetiva objetivista, porque quer no subjetivismo quer no objetivismo vamos encontrar
vertentes mais históricas mas também vertentes mais atualistas. Para a perspetiva da
jurisprudência dos interesses a consideração da relevância dos interesses causais vai levar a que,
do ponto de vista, do objetivo da interpretação a evolução histórica do direito seja crucial, embora
Heck rejeita-se quer o objetivismo quer o subjetivismo dogmáticos.

iii) Elemento sistemático:

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

O elemento sistemático diz respeito à inserção sistemática do preceito interpretando,


ou seja, à consagração da unidade e coerência jurídico-sistemáticas. Teria que ser tida em conta
a compreensão da norma em função do seu contexto e da sua inserção sistemática. Também teria
de ser tida em conta a fundamental relevância dos lugares paralelos, isto é, figuras jurídicas
próximas ou análogas relativamente às quais houvesse já posições esclarecidas que o legislador
e/ou a própria interpretação jurisdicional tivessem já fixado e que pudessem auxiliar no sentido
sistematicamente integrado daquela norma interpretanda – unidade e coerência do sistema
jurídico.

iv) Elemento teleológico:

O elemento teleológico (ou racional) é a dimensão prática que corresponde ao objetivo


que a norma visa prosseguir com as suas prescrições. É o sentido da norma que se determina pela
sua ratio legis (razão de ser). Inicialmente, começou por ser um elemento afastado ou encarado
com alguma desconfiança quer na Escola da Exegese quer na proposta de Savigny. No entanto,
veio a ser fundamental para a própria superação da teoria tradicional e na Jurisprudência dos
Interesses para a consideração no sentido da superação da vinculação à imagem do comando.

“Artigo 9.º do Código Civil INTERPRETAÇÃO DA LEI:

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos
o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema-jurídico,
as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições especificas do tempo que
é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não
tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que
imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o interprete presumirá que o legislador
consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos
adequados.”

Logo no início do artigo o legislador faz referência ao elemento gramatical “a


interpretação não deve cingir-se à letra da lei”, ou seja, para além da letra, o espírito. Mas o
espírito aqui visto como a referência ao pensamento legislativo. A alusão direta ao elemento
sistemático é feita com a expressão “tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico”. A
expressão “circunstâncias em que a lei foi elaborada” remete para a ocasio legis, ou seja, o
elemento histórico. Quando se diz “as condições especificas do tempo em que é aplicada” não é
feita referência ao elemento histórico, o que temos é já uma nota de abertura que mostra que na
relação entre subjetivismo e objetivismo o nosso legislador abre a possibilidade à ideia de
objetivismo atualista.

No número 2 do artigo 9.º temos a referência à Teoria da Alusão. A letra delimita a


interpretação válida, mas existe uma enorme abertura – um mínimo de correspondência verbal
ainda que imperfeitamente expresso.

No número 3 do mesmo artigo temos uma questão que tem que ver com a dita presunção
do legislador razoável (nota típica do objetivismo). Isto significa que o nosso legislador
estabeleceu que ao determinar o sentido interpretativo se presume que o legislador foi, quer do
ponto de vista substancial quer do ponto de vista formal expressivo, razoável e consagrou as
soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Esta
presunção do legislador razoável é uma nota de objetivismo já que se considere que se o

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legislador foi razoável então não haverá que investigar para lá daquela que seja a manifestação
razoável que se verifica no texto.

5) Os resultados da interpretação: interpretação declarativa, extensiva, restritiva,


enunciativa (a maiori ad minus, a minori ad maius, a contrario sensu), ab-rogante
ou revogatória

A conjugação dos elementos conduz a diferentes resultados. Essa conjugação implicaria


sempre que se considerasse, prima facie, a letra da lei (no seu sentido negativo), mas depois ao
considerar o sentido positivo da letra esta já não seria autónoma e vinculativa antes haveria de
ser conjugada com os restantes elementos. O que está em causa perceber é saber qual o tipo de
conjugação que existe entre os vários elementos para se chegar a diferentes resultados:
interpretação declarativa, interpretação extensiva, interpretação restritiva, interpretação
enunciativa e interpretação ab-rogante ou revogatória.

Quanto à interpretação declarativa se a letra e conjugação dos elementos (espírito) se


correspondessem naturalmente, ou seja, se o significado gramaticalmente enunciado pelo texto
da lei exprime adequadamente o sentido que a este é imputável pelos outros elementos da
interpretação teremos uma interpretação declarativa – a letra admite sem dúvidas o sentido
determinável pelos outros elementos. Se o interprete entende que na conjugação destes
elementos, usando o legislador o vocábulo “alienação” deve assumir “alienação” nos seus sentidos
mais naturais, então deve admitir ambos estes sentidos e, assim, teremos uma interpretação
declarativa. São os sentidos que mais naturalmente correspondem à referência literal.

Pode acontecer que o sentido literal seja mais amplo do que o espírito, ou seja, se o
interprete chega à conclusão que ao conjugar os sentidos literais com os outros elementos da
interpretação nesta conjugação estes últimos implicam que a letra não possa ser mobilizada em
todos os seus significados. Significa que irão excluir-se alguns dos significados literalmente
possíveis para selecionar como sentidos possíveis apenas aqueles que são admitidos pelos
elementos histórico, sistemático e, eventualmente, teleológico. Há aqui uma interpretação
restritiva. Este tipo de interpretação implica que o interprete conclua que o sentido literal da
norma interpretando é mais amplo do que aqueles que são admitidos pelos outros elementos,
logo, haverá que selecionar dentre os sentidos possíveis aqueles que correspondem à letra e aos
elementos.

Pode também acontecer que o sentido da letra seja menos amplo do que aquele que é
determinado pela conjugação dos diferentes elementos e aí teremos que considerar sentidos que
já correspondem diretamente aos mais naturais, mas que ainda são admitidos pelas significações
literais e são aqueles que os outros elementos vão admitir. Estamos perante uma interpretação
extensiva.

Temos ainda que considerar a interpretação enunciativa em que já não é diretamente


inferivel da relação entre letra e espírito o sentido ou os sentidos por que a norma pode valer
como resultado da interpretação, mas só se chega a esses resultados através da mobilização de
argumentos lógico-jurídico.

» a maiori ad minus que vale para as leis permissivas no sentido de que a lei que
permite o mais também permite o menos. Por exemplo, a lei que permite ao
proprietário vender, por maioria de razão também lhe permite onerar com um
direito real mais restrito.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

» a minori ad maius: que vale para as leis restritivas ou proibitivas no sentido de


que a lei que proíbe o menos também proíbe o mais. Por exemplo, a lei que não
permite ao arrendatário determinadas disposições, também não lhe permite
dispor da coisa objeto do arrendamento.
» contrario sensu: é normalmente mobilizado para as normas excecionais. Se uma
determinada norma é excecional, ou seja, se se admite que aquela norma é
contrária a um eventual regime geral, se pressupõe que o regime geral é o seu
contrário.

Estes são possíveis argumentos lógicos que conduzem à conclusão por sentidos
interpretativos que não resultam claro da conjugação entre o elemento gramatical e os outros
elementos da interpretação.

A interpretação ab-rogante ou revogatória mostra uma situação patológica crucial que


corresponde a situações em que a conjugação entre os elementos é de todo impossível, quer por
que a expressão é de todo incorreta quer por que o sentido que a letra apresenta é absolutamente
incompatível com aquilo que resulta dos outros elementos interpretativos.

Na interpretação à luz da Jurisprudência dos Interesses vamos encontrar duas notas


cruciais: a obediência à lei e a consideração de que a intenção normativa da norma é o fator
determinante da interpretação. Consequentemente o sentido literal é um entre outros, ou seja,
os elementos da interpretação surgem em conjugação entre si sem que haja predeterminação da
relevância de um deles face aos outros. A imagem do comando da dimensão formal que a norma
manifesta pode não ser aquela que corresponde ao sentido que resulta da interpretação. Heck
vai assumir que há situação em que se justifica, reunidos determinados pressupostos, que o
sentido interpretativo por que a norma há de ser considerada não seja aquele que a letra lhe
define. Será uma situação em que o sentido interpretativo atribuído à norma quando perante um
determinado caso concreto seja exatamente correspondente a um dos sentidos que à luz da
relevância negativa do elemento gramatical seria excluído.

20/05

Reconstituição de alguns dos postulados metódicos assumidos pela Jurisprudência dos


Interesses:

Os contributos da Jurisprudência dos Interesses que estão em baixo referidos são aqueles
a que já tínhamos feito referência quando falamos dos postulados metódicos assumidos pela
Jurisprudência dos Interesses. O que é que de novo traz a Jurisprudência dos Interesses face
aquilo que tinha sido posto pelas correntes formalistas de orientação teorética?

(a) O princípio de obediência à lei e a perspetivação do direito pelos interesses


(b) A conceção da lei como solução valoradora de um conflito de interesses
(c) A intenção prática do pensamento jurídico: problemas normativos e problemas de
formulação sistema interno e sistema externo
(d) A teoria da interpretação: a relevância do elemento teleológico e o resultado
interpretação corretiva

Heck vai falar da obediência à lei recusando uma obediência cega à lei, vai propor uma
obediência pensante. A obediência pensante significa que se propõe cumprir a intencionalidade
prática de que as normas estabelecem mesmo que isso signifique afastar a consideração literal
que elas consagram, ou seja, admitir no limite se tal for necessário para cumprir a intenção
normativa da norma que a interpretação seja formalmente contra legem. É uma situação limite

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

que só em certos condicionalismos pode ocorrer e só formalmente contra legem, já que o que
está em causa nessa possibilidade é admitir o cumprimento da intenção de que a norma assume
A sua ratio legis pode permanecer sobre a determinação formal (imagem de comando). A imagem
dos interesses a suplantar a imagem do comando.

Teremos aqui uma interpretação contra legem?

Se se cumpre a intenção normativa da norma não temos interpretação substancialmente


contra legem. No entanto, formalmente podemos ter, ou seja, não cumprir o sentido negativo do
elemento gramatical que as teses dominantes hermenêutico-cognitivas estabeleciam como
fronteira da interpretação.

A Jurisprudência dos Interesses propõe que as normas legais sejam interpretadas da


seguinte maneira: sabendo que a lei é vista como uma solução valoradora de um conflito de
interesses e que é criada a partir da ponderação desses interesses em conflito que, depois, vai
optar por um interesse para ser protegido pela lei e, assim, estabelecer que a imagem dos
interesses consista na opção por um dos interesses em conflito. A sua dimensão formal e
estrutural que inclui a letra assume-se como estrutura formal de uma norma – norma legal. A
imagem do comando fica limitada aos vocábulos que a constituem. A questão que se coloca no
âmbito da interpretação proposta pela Jurisprudência dos Interesses é a de saber como é que se
interpreta uma norma e em que circunstâncias é que, eventualmente, o interprete pode não
cumprir o sentido negativo do elemento gramatical e selecionar mesmo um sentido que seria
excluído do elemento gramatical para ser aquele com que a norma há de valer para a resolução
daquele problema em concreto.

A superação da teoria tradicional da interpretação jurídica propõe que a interpretação


deixasse de ser feita em abstrato e de dirigir-se à determinação do sentido único e verdadeiro
com que a norma haveria de ser mobilizada como premissa para a decisão. Ao superar essa
compreensão vai afirmar-se que a interpretação é um dos momentos que o juiz há de considerar,
e uma das tarefas que tem que cumprir, quando constrói a decisão judicativa. Nesse sentido, é só
à luz do problema que vai ser mobilizado como critério que faz sentido interpretar a norma.

Posto isto, o caso é agora o ponto de partida e a norma é vista na sua estrutura formal
(vai ser analisada no seu elemento gramatical, sistemático, histórico e teleológico) e pode
acontecer que, em nome do cumprimento do elemento teleológico, haja que desconsiderar o
sentido negativo do elemento gramatical e, por isso, optar por um sentido que estaria excluído
da referência literal no modo hermenêutico-cognitivo.

Como se interpreta uma norma?

Para Heck o interprete, ao considerar a norma, deveria em primeiro lugar fazer uma
análise histórica da norma, ou seja, vai procurar compreender quais foram os interesses causais
que estiverem na origem do surgimento daquela norma e vai procurar compreender as razões da
ponderação no momento em que a norma foi criada. De seguida, vai comparar esses interesses
causais e a ponderação que sobre eles foi feita. Se concluir que o problema em causa (conflito de
interesses) e a ponderação sobre eles são análogos ao problema posto pelo caso decidendo e,
consequentemente, à ponderação de interesses que haverá de ser feita, então irá partindo desse
juízo analógico repetir em concreto a ponderação que o legislador fez em abstrato. Isto faz com
que já não tenhamos uma aplicação lógico-dedutiva. Esta compreensão prático-normativa da
interpretação jurídica vai levar a que se afaste progressivamente o jurista decidente da aplicação
lógico.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Em que circunstâncias seria possível verificar-se o incumprimento do sentido


negativo do elemento gramatical (dimensão considerada vinculativa do elemento
gramatical)?

Das situações em que, analisada à luz do caso concreto, se conclua que há uma analogia
entre o problema posto em concreto e o conflito de interesses resolvido em abstrato pela norma,
ou seja, o problema que se poe em concreto é do tipo daqueles que a norma resolve em abstrato.
Só que por alguma razão que resulta normalmente da realidade o conflito de interesses presente
não corresponde ao modo por que, do ponto de vista da imagem do comando, a norma o prevê,
ao ponto de se gerar uma contradição interna na norma entre a sua imagem de comando e a sua
intencionalidade normativa. Quando esta contradição interna surge ao ponto de o julgador se
deparar perante este dilema: a) ou cumpre o comando (a dimensão formal da norma) e frusta a
intencionalidade prática com que a norma foi criada ou b) cumpre a dimensão no sentido dos
interesses, mas implica desobedecer ao sentido literal. Só nestas circunstâncias é que é possível
recorrer àquilo que é um resultado interpretativo novo, proposto por Heck, que é a interpretação
corretiva.

Exemplo do urso: «(…) as carruagens dos comboios de passageiros exibiam um logótipo


nas portas, composto pela imagem de um cão, a preto, inscrita num círculo, de cor branca,
delimitado por uma coroa circular vermelha, sobre a qual se intercetavam, em x,
desenhando uma Cruz de Santo André, duas barras também vermelhas. Na gare surgiu
alguém com um enorme urso pela trela. Os funcionários de serviço deveriam permitir que
o animal seguisse viagem em uma daquelas carruagens, ou não?...».

A norma pode ser aplicada proibindo a entrada de um urso? Se obedecermos à imagem


do comando para tirar de “cão” urso não será fácil. Seria muito difícil chegar lá por interpretação
extensiva. Da mesma forma que seira forçado querer chegar lá através da interpretação
enunciativa – a lei que proíbe o menos também proíbe o mais, ou seja, se a lei proíbe o cão
também proíbe o urso. Mas será que a intenção é só essa em termos prático-normativos? Porque
podíamos mudar a situação e colocar lá um gato. E agora já não se coloca a questão de “a lei que
proíbe o menos proíbe o mais”. Para as perspetivas positivista teríamos que recorrer à analogia
para chegarmos ao gato, já que não chegamos através da referência etimológica. Tudo isto é
caricatural para compreendermos o que está em causa.

Verdadeiramente temos aqui um exemplo em que a intencionalidade normativa da


norma é impedir que viagem no comboio certos animais. Cumprir o sentido literal da norma
implicaria não atender à sua intencionalidade prática porque obrigaria a aceitar que o urso
entrasse no comboio. Cumprir a intencionalidade normativa (prática) implica verificar que se a
intencionalidade é “não entram no comboio animais de certo porte e perigosidade” claro que o
elemento teleológico à de se suplantar ao elemento gramatical e o urso não entra no comboio.

Para Heck qual o objetivo da interpretação? Subjetivismo teleológico

Efetivamente não temos aqui uma interpretação dogmática, mas sim uma interpretação
teleológica aberta ao caso e que acentua a intenção normativa da norma e não a sua
determinação formal. Neste sentido há que consideração qual é para Heck o objetivo da
interpretação. Se já não estamos no âmbito de uma interpretação propriamente dogmática não
está aqui em causa discutir a vontade do legislador expressa no texto – que seria subjetivismo –
ou uma vontade autónoma da própria lei expressa no texto – que seria objetivismo -, já que não
existe uma redução ao texto da sua literalidade. A verdade é que Heck é, de certo modo, um
subjetivista, no entanto, não é um subjetivista dogmático. Heck rejeitava o objetivismo puro por

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entender que era fundamental o interprete fazer uma análise dos interesses causais e da
ponderação que o legislador fez, ou seja, Heck vai fazer uma análise da vontade do legislador,
mas não uma vontade do legislador que depois fica formalmente registada no texto da lei.
Falamos, portanto, de um subjetivismo teleológico, já que vai analisar-se a intenção que o
legislador colocou na norma que é adaptada á relação com o caso concreto presente. A posição
de Heck em relação ao objetivo da interpretação representa toda uma perspetiva diferente.

6) As linhas de superação da teoria tradicional da interpretação jurídica – o contributo


decisivo da jurisprudência dos interesses:

A superação que vimos centrada na construção do caso como o prius metodológico ao


ponto de partida, a nota determinante do exercício metodonomológico leva à superação da tal
dita teoria tradicional que assumiam a vinculatividade ao texto.

Se o objeto da interpretação se altera, ou seja, a norma enquanto texto vai ser substituída
pela norma-problema – pela problematização do sentido com que a norma se dirige aos casos
concretos. A norma é a resolução de um problema concreto. Só se vai compreender o sentido
com que essa norma há de valer para resolver o caso concreto à luz do problema concreto,
sabendo que o ponto de partida é o problema concreto já que é esse que vai interpelar o direito.
Deixamos a referência unívoca que o sistema define o que é juridicamente relevante e aquilo que
não estiver formalmente referido no sistema será juridicamente irrelevante. Ao admitir um sistema
aberto, de imediato temos a realidade como uma dinâmica constitutiva do direito.

O objetivo da interpretação deixa de ser o sentido com que a norma pode valer no
sistema, mas o sentido com a norma pode valer partindo da proposição dos sentidos do sistema
mas para o caso concreto. A interpretação deixa de ser fechada para se abrir à realidade. A
resolução do problema concreto implica a convocação em bloco de todos os estratos do sistema.

α) Os elementos normativos extratextuais e transpositivos da interpretação jurídica

Se nos colocarmos na situação de interpretes de uma norma haveremos de ter em conta


que além dos elementos tradicionalmente considerados e assumindo que eles têm todos a
mesma relevância, ou seja, em termos relativos, tanto vale a relevância do elemento gramatical
quanto do histórico, do sistemático e do teleológico há umas vertentes de superação da teoria
tradicional que vão introduzir outros elementos. Há quem fale de elementos normativos
extratextuais que podem ter que ver com fatores sociais, a natureza das coisas, entre outras
referências.

Consequentemente, vão surgir outros resultados. Temos como exemplo a redução e


extensão teleológicas, e ainda em virtude dos limites normativos da legislação, nomeadamente
daqueles que resultam da relação entre a norma e os princípios, poderá haver circunstâncias em
que o interprete conclua que a norma não é porque nunca foi, ou já não é em virtude da passagem
do tempo a concretização dos princípios normativos que deveria ser, porque o sentido dos
princípios se alterou. Em qualquer circunstância em que o interprete se proponha interpretar uma
norma jurídica para a resolução de um problema concreto essa interpretação nunca é feita a partir
de um critério exclusivamente – o sistema é convocado em bloco. Portanto se estamos a
interpretar uma norma legal não podemos deixar de a interpretar tendo em conta a sua
intencionalidade, a sua ratio legis, mas também as interpretações que dela já foram feitas pela
jurisprudência judicial, pela dogmática e a sua ratio iuris. Isto significa que a norma não pode
valer nunca com sentido contrário ao dos princípios em que se fundamenta, porque isso significa
que ela é inválida.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

Concluindo que a norma é inválida desde o momento que foi criada não podemos dizer
que ela vai ser superada, mas podemos dizer que vai ser preterida – preterição conforme aos
princípios que resulta do limite normativo de validade da legislação.

β) O “continuum” da realização judicativo-decisória do direito e a interpretação


jurídica como momento dessa realização:

Por outro lado, se para a teoria tradicional da interpretação jurídica é crucial a fronteira
entre interpretação e integração há continuum na realização judicativo-decisória do direito que
implica que a interpretação seja um momento dessa realização e que não haja cisão entre
interpretação e integração, ou seja, a ideia de que a própria interpretação jurídica já comporta
elementos integrativos e que uma vez que o ponto de partida da interpretação deixa de ser a
letra e que a fronteira da interpretação deixa de ser a letra também, então não faz sentido dizer
que até aqui ainda é interpretação, porque cabe na letra e daí para lá já é uma eventual lacuna
porque não cabe na letra. Temos uma realização judicativa que muito mais amplamente vai
admitir os sentidos com que os critérios podem valer.

Nesta construção que é racionalidade analógica e que vai fazer a comparação entre o
problema posto em concreto e o problema resolvido em abstrato à luz de todo o sistema a
resposta ao problema da ausência de norma vai ser diferente. Não significa que não haja situações
em que se chegue à conclusão de que não há mesmo norma, mas estamos a ver que: pode haver
norma e ser afastada e pode não haver norma e vamos ver como é que o problema se resolve.

6. A integração
1) Referência ao tradicionalmente designado problema das lacunas:

Na perspetiva positivista do século XIX a definição do juridicamente relevante é feita pelo


sistema e não pelo problema, ou seja, a realidade é vista como o campo de aplicação das normas.
Os factos são relevantes se estiverem previstos numa norma e estar prevista numa norma significa
corresponderem como espécie ao género que a referência literal contém. Ou é ou não é e não
sendo poe-se o problema de haver uma lacuna. Mas… será que sempre que não haja uma norma
para respon

der a um determinado problema que teremos sempre uma lacuna?

No presente… nós deparamo-nos com a existência de problemas que nos deixam na


dúvida de saber se se encontram previstos ou não em alguma norma. Não é assim tão claro. Mas
também não significa que sempre que não haja previsão no sistema que haja uma falha. Se o
sistema jurídico não oferece resposta para um problema: a primeira questão fundamental é
pensar se o problema é juridicamente relevante ainda assim, ou seja, se é do tipo daqueles que o
sistema jurídico considera e para os quais oferece resposta. Se for, é juridicamente relevante e,
portanto, tem de ser integrado independentemente de haver norma legal que o preveja. MAS,
pode acontecer que o problema não seja juridicamente relevante, ou seja, pode haver situações
em que estejamos perante espaços livre de direito. Há quem entenda que o espaço livre de direito
é um espaço regulado pelo direito, embora não sendo valorado pelo direito.

Nem sempre a ausência de previsão, seja legal ou outra, significa que haja uma falha até
porque há lacunas voluntárias, ou seja, as situações em que o legislador entendeu que ainda não
há condições para legislar. Mas, também, existem lacunas involuntárias e essa podem consistir
em falhas, porque a realidade é muito mais rica do que aquilo que o legislador pode prever.

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Olhemos para o modo como a perspetiva positivista punha o problema da integração.


Como vimos admitindo a plenitude lógica do sistema todas as resoluções dos problemas que
efetivamente fossem juridicamente relevantes tinham de estar dentro do sistema. As lacunas
seriam afinal só modos diversos de se apresentarem questões que o sistema ainda poderia
abarcar através de argumentos lógicos.

2) Os critérios da integração:
α) A analogia:

É neste sentido que a analogia é mobilizada como mecanismo de integração de lacunas


com uma construção típica que culmina na Idade Moderna e que vai ser mobilizada pelo
positivismo do século XIX e que é diferente da noção de analogia originária.

A analogia legis em geral seria o primeiro mecanismo de integração de lacunas que a


perspetiva positivista iria mobilizar perante a verificação de que o facto não estava previsto na
hipótese de uma norma em sentido literal. Era a possibilidade de ainda ir ver se era possível
subsumir esse facto há hipótese de uma norma que não prevendo diretamente previsse caso
análogo. A analogia legis é um modo de resolução, de construção lógica formal, que parte da
comparação entre dois casos – o caso omisso e um outro caso que está previsto. A convocação
deste sentido da analogia assenta no argumento “onde haverá uma razão de ser de lei aí haverá
uma disposição legal”. Significa que temos uma indução e dedução localizada, ou seja, depois de
fazer a comparação entre os dois casos e se não encontrássemos nenhuma norma ao qual o facto
pudesse ser subsumido então foi procurar-se um facto análogo que estivesse previsto num
enunciado legal de uma norma. Tendo-o encontrado vamos verificar a indução do facto omisso
à norma que prevê o facto análogo e a dedução para o facto análogo para a solução dada ao
facto previsto.

β) A autonomia constitutiva do julgador: consideração do artigo 10.º, n.º 3, do CC


– problematização do significado do cânone do legislador:

O artigo 10.º do CC, que já não está na construção positivista, no seu número 1 diz-nos
que “os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos”.
Temos aqui uma consideração da analogia legis que reporta aquilo que acabamos de referir para
uma perspetiva mais formalista. O artigo 10.º diz-nos também que há analogia sempre que “no
caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei”. As
razões justificativas têm muito a ver com a teleologia da norma. Temos aqui uma referência a uma
analogia teleológica que reporta ao sentido que Heck põe para a integração de lacunas.

Quando não fosse possível integrar uma lacuna através da analogia legis em sentido
formal no positivismo abrir-se-ia uma última possibilidade – a de recorrer diretamente ao
princípio geral de direito em que, embora não houvesse norma, se houvesse a norma se inseriria.
Esta operação chamar-se-ia analogia iuris. Chegados a este limite se o facto não fosse suscetível
de ser integrado nem através de interpretação, nem de analogia legis, nem por analogia iuris,
seria considerado juridicamente irrelevante. Daqui conclui-se que as lacunas são um falso
problema, porque ou são integradas através dos próprios mecanismos de que o sistema já dispõe
ou serão juridicamente irrelevantes.

Na perspetiva de Heck a fronteira de interpretação não está na letra e chegar à


conclusão de que existem lacunas não era algo que resultasse da consideração de que não está
na letra. Mas antes a conclusão de que não se encontrava nenhuma norma positivada em cuja
intencionalidade normativa pudesse fazer-se correspondência no problema posto do conflito de

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interesses sub judice. Neste sentido, Heck propunha em primeira instância uma analogia legis,
mas que é teleológica, ou seja, seria necessário ir à procura de uma norma que não resolvendo
aquele concreto tipo de conflito de interesses resolvesse outro tipo de interesses análogo que
pudesse ser mobilizado para um juízo analógico com aquele problema concreto. Se isso não fosse
possível abrir-se-ia a possibilidade de se recorrer às valorações dominantes na comunidade
quanto ao sentido de direito relativamente aquele tipo de problema e, por último, às próprias
valorações que o juiz fizesse sobre os sentidos que a comunidade admitisse relativamente aquele
tipo de problema.

O artigo 10.º do CC apresenta-nos referência a analogia legis já com alguma abertura que
nos remete para alguma construção analógica e no número 3 propõe-nos uma solução diferente
que é a consagração do cânone do julgador como se fora legislador, já que se diz que: “Na
falta de caso análogo a situação é resolvida segundo a norma que o próprio interprete criaria se
houvesse de legislar dentro do espírito do sistema”. Este artigo tem, ainda hoje, inúmeras
interpretações. Este cânone do julgador como se fora legislador remonta a Aristóteles.

− Se não houver solução no sistema cabe ao julgador estabelecer opção;


− Num sentido jurídico mais tradicional e formalista: há quem entenda que temos aqui
analogia iuris – não sendo possível resolver o problema através da analogia legis há que
recorrer aos princípios gerais de direito.
− Numa perspetiva mais formalista: há quem entenda que o recurso à norma que o
interprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema não é uma
analogia iuris. A construção da norma ad hoc para a resolução do problema, de um ponto
de vista mais formalista, implica que no momento em que o interprete tenha de criar essa
norma se abstraia das circunstâncias concretas do problema, tenha em conta os princípios
gerais de direito e crie um critério cuja vigência se esgota na aplicação aquele problema
concreto omisso.
3) O sentido geral do problema do “desenvolvimento transistemático do direito “

A consideração do espírito do sistema não tem de ser obrigatoriamente uma


manifestação de clausura do sistema. Claro que as conceções mais formalista enveredam por esse
tipo de resposta. Mas, olhando para o número 3 do artigo 10.º de uma perspetiva
jurisprudencialista e pressupondo uma ideia de sistema aberto vamos ter de chegar à conclusão
de que: nesta analogia legis continuamos a ter a analogia entre um problema e o sistema só que
não há norma que diretamente preveja o problema.

Esta realização do direito sem a mediação da norma pode levar ao desenvolvimento


autónomo do sistema jurídico que é transistemático, ou seja, obrigador o legislador a criar uma
solução e um critério para aquele problema e que passa a integrar o sistema jurídico, porque uma
vez que aquele problema é resolvido através de uma decisão judicial entra para o estrato da
jurisprudência judicial e, como tal, é um critério a considerar para o futuro. Estamos num sistema
de legislação e se o legislador vem tomar posição quanto á questão que não tinha solução
expressa na lei naquele momento, o estrato da norma legal vai ter de ser considerado nos casos
futuros análogos.

O CC de 1867 no artigo 16.º consagra que “Se as questões sobre direito e obrigações não
poderem ser resolvidas nem pelo texto da lei nem pelo seu espírito, nem pelos casos análogos,
prevenidos em outras leis, serão decididas pelos princípios de direito natural conforme as
circunstâncias do caso”. Este artigo mostra-nos que não há uma referenciação absolutamente
formalista.

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

O problema da concorrência das normas no tempo

O direito ou é vigente ou não é direito. O direito existe para ser vigente e se projetar na
realidade para que, em termos práticos, o jurista comprometido com a sua tarefa prática possa
compreender o sentido com que desempenha essa tarefa e simultaneamente compreender e
projetar para a realidade direito e não uma mera aplicação normativa de critérios. Isso significa
que para os problemas da realidade cumpre saber qual é o direito em vigor para lhes responder.

O que está aqui em causa são questões fundamentais da vida comum em que se nos
apresentam problemas cruciais como por exemplo: A e B celebraram um contrato de
arrendamento antes do momento em que entrou em vigor uma lei que exige forma escrita para
a sua validade formal. Será que, uma vez entrando em vigor a lei que exige essa forma escrita, o
contrato passa a ser inválido? A situação da realidade concreta em que se cristalizou também se
desenvolveu ao longo do tempo e está em desenvolvimento no momento em que entra em vigor
uma lei nova. As situações jurídicas vão sendo constituídas e a lei vai sofrendo alterações ao longo
do ponto e será que isso significa que a cada momento que a lei muda abruptamente os estatuto
jurídico da situação também muda?

Valores em causa/exigências que se afirmam predominantemente no problema da concorrência


das normas no tempo:

» Garantir a estabilidade das soluções envolvidas;


» Solução normativo-judicativamente mais adequada de cada situação concreta;
» Salvaguarda da confiança dos intervenientes;
» Realização do interesse público

Outro exemplo será o de A e B celebraram um casamento no momento em que o regime


supletivo era o da comunhão geral. A partir do momento da entrada do Código de 1966 o regime
supletivo passou a ser o da comunhão de bens adquiridos. A questão que se põe é a de saber se
o casamento foi anterior ao dia 1 de junho de 1967 (entrada em vigor do CC de 66) será que isto
significa o regime de bens daquele casamento mudou? Mas se o que estiver em causa for a
mudança do regime jurídico das causas de divórcio?

Existe um princípio geral da proibição da retroatividade das leis, ou seja, a lei só dispõe
para o futuro. O legislador estabelece um regime transitório para cada situação. No entanto, se
há situações em que a retroatividade é proibida também há situações em que a retroatividade é
obrigatória.

» Exemplo de situação de proibição de retroatividade: lei penal incriminadora;


relativamente à criação de impostos
» Exemplo de situação de obrigação de retroatividade: artigo 2.º do CP – se uma
determinada lei vem reduzir a moldura penal e alguém estiver a cumprir pena por esse
mesmo crime atingindo o novo máximo de pena saí em liberdade.

A retroatividade absoluta, por regra, é proibida. Mas há situações quer de retroatividade


inautêntica quer de retrospetividade

A teorização deste problema da concorrência da lei no tempo acentua-se na Idade


Moderna e a partir da ideia de que a lei não pode atacar as situações já estabelecidas. A doutrina
com maior força do ponto de vista liberal era a teoria dos direitos adquiridos no sentido de que
os direitos já adquiridos não podiam ser trocados pelas leis novas. Mas, isto provocava o problema
de saber o que são direitos adquiridos e as expetativas jurídicas, se todos os direitos adquiridos

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Ano letivo 2020/2021 Madalena Caetano

estariam nessa situação e se outras expetativas não teriam de estar protegidas mesmo que não
fossem direitos adquiridos. Existiu uma formulação que se confrontou com esta – a doutrina do
facto passado – e que vai determinar que tenhamos a aplicar outro facto por princípio a lei em
vigor no momento em que ele ocorre (artigo 12.º do CC).

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