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III.

Teoria das fontes em Direito Processual Penal

A teoria da Lei Processual tem particularidades e soluções diferentes da Teoria


da Lei Penal. O sistema de fontes do Direito Processual Penal é o sistema tradicional de
fontes organizado para o Direito estadual num modelo hierárquico (a pirâmide
normativa) de fontes, com a Constituição no topo, e depois as restantes fontes
secundárias.

1. Lei, doutrina e jurisprudência

Do ponto de vista do conceito de fontes de Direito, em matéria penal, só a lei é


na verdade uma fonte de Direito. Contudo, a doutrina e a jurisprudência têm também
uma importância significativa no Processo Penal, sendo por isso reconhecidas, em
sentido lato, como tal.
A doutrina não é fonte de Direito, mas tem uma especial particularidade,
porque o entendimento que produz, são conhecimentos autónomos prévios e não
influenciados pelo caso concreto. Assim, pode ter um peso persuasivo, mas não
vinculativo. Dela não resulta força geral e abstracta para a resolução dos casos.
A jurisprudência não é igualmente fonte de Direito, porque não produz regras
gerais e abstractas com autoridade para todos os agentes jurídicos. A jurisprudência é
apenas obrigatória para os sujeitos processuais que participam no processo em que a
decisão é tomada. A excepção é a jurisprudência do Conselho Constitucional, em sede
de fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade.
Não existe, pois, entre nós, um sistema de precedente, muito menos dentro do
próprio tribunal. Uma decisão do tribunal superior é valida para o tribunal a quo
(recorrido), apenas dentro daquele concreto processo, mas nunca fora dele.
Problema: o art.º 143 da CRM, na sua alínea d), ainda fala em “assentos do
Tribunal Supremo, os acórdãos do Conselho Constitucional, bem como as demais
decisões dos outros tribunais a que a lei confira força obrigatória geral”. Em bom rigor,
hoje, só os acórdãos do Conselho Constitucional, em sede de fiscalização preventiva e
em sede de fiscalização sucessiva abstracta têm “força obrigatória geral”.

1
O constituinte “esqueceu-se” de adequar este art.º 143 da CRM com o novo
art.º 224:
Artigo 224
(Definição)
1. O Tribunal Supremo é o órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais.
2. O Tribunal Supremo garante a aplicação uniforme da lei na esfera da sua
jurisdição e ao serviço dos interesses do povo moçambicano.
(…)
E nos casos de uniformização de jurisprudência? Vejamos o seu regime.

Recurso para a Fixação de Jurisprudência


Artigo 494
(Fundamento do recurso)
1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal Supremo proferir dois
acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções
opostas, cabe recurso para o plenário do Tribunal Supremo, do acórdão proferido em
último lugar.
2. Cabe igualmente recurso, nos termos do número 1, quando um tribunal
superior de recurso proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo ou
de diferente tribunal superior de recurso ou do Tribunal Supremo, e dele não for
admissível recurso ordinário, excepto nos casos em que a orientação perfilhada
naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo
Tribunal Supremo.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação
quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver sido introduzida qualquer
modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da
questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior com
trânsito em julgado, mas presume-se o trânsito, salvo se o recorrido alegar que o
acórdão não transitou.
5. Podem recorrer, nos termos deste artigo, o arguido, o assistente ou as partes
civis, sendo, porém, obrigatório para o Ministério Público.

Artigo 495
(Interposição e efeito)
1. No requerimento de interposição do recurso, o recorrente identifica o
acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver
publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de
jurisprudência.
2. O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.

2
Artigo 502
(Eficácia da decisão)
1. Sem prejuízo do disposto no número 3 do artigo 500, a decisão que resolver
o conflito tem eficácia no processo em que o recurso foi interposto e nos processos
cuja tramitação tiver sido suspensa nos termos do número 2 do artigo 4981.
2. O Tribunal Supremo, conforme os casos, revê a decisão recorrida ou reenvia
o processo.
3. A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória
para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à
jurisprudência fixada naquela decisão.

Da análise deste regime se conclui que o acórdão uniformizador de


jurisprudência não é fonte de Direito para o sistema jurídico em geral, porque dele não
resulta uma obrigação de acatamento, mas tão só um dever acrescido de
fundamentação das “divergências relativas à jurisprudência fixada” anteriormente
(art.º 502/3).
Ainda assim, temos que considerar que apesar de a jurisprudência dos tribunais
superiores não ter efeito vinculativo, acaba, inevitavelmente por ter um efeito
persuasivo. Deste modo, sabe-se que a probabilidade de uma decisão ser confirmada
ou negada será naquele sentido, daí que muitas vezes seja importante conhecer as
decisões do Supremo.
Em suma, a jurisprudência não é fonte de Direito2, mas é muito relevante
porque ao marcar tendências, acaba por delimitar o campo de aplicação. Tem uma
eficácia argumentativa e persuasiva, e por isso acaba por ter uma relevância grande
para a interpretação do Direito vigente.

2. A interpretação da lei processual penal

Sendo a lei a principal fonte de Direito Processual Penal é imperativo que esta
seja interpretada. A interpretação da lei processual penal – a determinação do sentido
da norma – não é de natureza diferente da que se opera noutras áreas, ou seja, da

1
Tendo sido, porém, anteriormente reconhecida a oposição de julgados sobre a mesma matéria de
direito, os termos do recurso são suspensos até ao julgamento daquele em que primeiro se tiver
concluído pela oposição (art.º 498/2).
2
Com a excepção assinalada aos Acórdãos do CC.

3
interpretação das restantes normas do ordenamento jurídico. Por isso, são de aceitar,
neste âmbito, os cânones gerais da interpretação jurídica constantes do Código Civil
(cfr. Germano Marques da Silva).
No entanto, é preciso contextualizar esta interpretação. A interpretação da lei
processual penal é feita no ambiente de um processo conflitual, e por isso, temos que
ter cuidado com as interpretações restritivas para não destruir o equilíbrio entre os
deveres. Assim sendo, conclui-se que para fazer a interpretação da lei processual penal
temos que ter em conta certos referentes e limites, para além daquilo que resulta das
técnicas hermenêuticas de interpretação.

Referentes a ter em conta:


A densificação dos valores constitucionais: Com uma Constituição Penal
relativamente forte como a nossa, a interpretação deve densificar os valores
constitucionais (interpretação conforme)3.
Processo Penal conflitual: a interpretação deve respeitar a concordância entre
o estatuto do arguido e do ofendido. A CRM não garante só os interesses do arguido,
mas também a participação do ofendido. Assim, devemos ter sempre em mente que
ao proteger o arguido, não estamos a desproteger o ofendido. Existem estatuto de
sujeitos com pretensões opostas, mas ambos têm protecção constitucional.
Concordância prática entre os interesses em conflito: o modelo adoptado no
código não é um modelo de tudo ou nada. Aquilo que o código faz é um exercício de
concordância prática entre interesses conflituantes em que uns cedem em certa
medida, mas não inutilizam os outros.
Princípio da confiança: O Direito Processual Penal está previsto para que os
sujeitos processuais saibam o que vai acontecer, de modo que o processo não pode
viver de normas de condutas sociais desconhecidas até ao momento, pondo em causa
o principio da confiança. Significa que se devem evitar as interpretações que
apresentem resultados de surpresa, que não se podiam antever a partir da lei e das

3
Veja-se o que se diz no preâmbulo deste novo CPP: “Sendo certo que o processo penal é direito
constitucional aplicado, impõe-se que a fruição dos direitos de cidadania na sociedade democrática e
plural que estamos a consolidar, tanto no que concerne a direitos individuais como a deveres para com
a comunidade, deve constituir a bússola orientadora do novo quadro jurídico-penal da coeva sociedade
moçambicana”.

4
decisões jurisprudenciais. Muitas vezes a doutrina e a jurisprudência confundem aquilo
que existe, com aquilo que devia existir.

Relativamente a esta matéria discute-se ainda a admissibilidade da


interpretação extensiva no âmbito do agravamento da posição processual do arguido.
O princípio da legalidade em matéria penal proíbe em determinado âmbito o uso da
interpretação extensiva (art.º 7 do CP); coerentemente, terá que entender-se a mesma
proibição em situações tendentes ao agravamento da situação processual do arguido.

Contudo, é ao nível da integração de lacunas que a questão se coloca com


maior acuidade.

3. A integração de lacunas: alcance e limites

Uma lacuna corresponde a uma ausência de solução. É possível encontrar


lacunas em Direito Processual Penal? É a própria lei que o regula.

Artigo 12
(Integração de lacunas)
Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se
por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o
processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.

Sobre esta questão há desde logo, que distinguir as normas que agravem a
posição juridico-processual do arguido das restantes. Quanto a estas, rege o art.º 12,
segundo o qual a integração de lacunas deverá ser feita prioritariamente por recurso a
normas do CPP (analogia legis), e apenas quando tal não seja possível se admite o
recurso ao Código de Processo Civil, ou, em última instância, aos princípios gerais do
processo penal, como fontes integradoras de lacunas e, consequentemente, como
fontes de Direito.
Quanto às normas que agravem a posição juridico-processual do arguido, dois
argumentos restringem a possibilidade de recurso à analogia: (1) o recurso ao princípio
da legalidade, na medida em que a CRM e a lei penal proíbem o recurso à analogia

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para incriminar ou atribuir responsabilidade penal. Neste sentido, seria também
vedado o recurso à analogia em situações em que tal se traduza no agravamento da
situação processual do arguido; (2) por outro lado, o facto de se poder considerar que
a norma que restringe o direito de defesa do arguido é uma norma excepcional, por
força da aplicação dos princípios constitucionais relativos a direitos, liberdades e
garantias. Assim sendo, e de acordo com o art.º 11 do CC, as normas excepcionais não
comportam aplicação analógica.

Independentemente disso, pode acontecer que o Código não regule uma


situação, mas isso não corresponda a uma lacuna, mas a uma decisão legislativa. Por
exemplo, o legislador não acolhe em Processo Penal a litigância de má-fé, porque esta
é incompatível com o princípio da defesa e a presunção de inocência. Aqui não temos
uma lacuna, mas uma decisão legislativa.

As “soluções” fechadas imunes a lacunas

Nos art.ºs 134 a 139 temos o seguinte regime: “A violação ou a inobservância


das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta
for expressamente cominada na lei” (art.º 134/1).

Podem existir provas proibidas;


As nulidades existem apenas nos casos em que estão previstas na lei;
As provas proibidas têm um regime; e as nulidades outro.

Artigo 156
(Legalidade da prova e métodos proibidos de produção)
1. São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
2. São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura,
coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
3. São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas,
mesmo que com consentimento delas, mediante: a) perturbação da liberdade de
vontade ou de decisão através de maus-tratos, ofensas corporais, administração de
meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos; b)
perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação; c)

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utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei; d) ameaça com
medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da
obtenção de benefício legalmente previsto; e) Promessa de vantagem legalmente
inadmissível.
4. Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas
mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas
telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
5. Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo
constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra
os agentes do mesmo (cfr. v.g., art.º 194 do CP).
Artigo 135 (Nulidades insanáveis); Artigo 136 (Nulidades dependentes de
arguição). Quando existem uma violação que não é nenhuma das duas, o que temos?
Uma irregularidade nos termos do art.º 139/2.
Artigo 139
(Irregularidades)
1. Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que
se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos
interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos 3 dias seguintes a
contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou
intervindo em algum acto nele praticado.
2. Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no
momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor
do acto praticado.

Isto quer dizer que o sistema é fechado: ou há uma nulidade, ou se o legislador


não declara, temos uma mera irregularidade.
Assim, se uma lacuna é uma omissão de uma solução jurídica, e o sistema é um
sistema fechado em que as nulidades estão previstas expressamente, o que não
estiver previsto expressamente é uma irregularidade, o que quer dizer que não há
lacuna. Deste modo, o art.º 12 tem de ser correctamente entendido. Só há uma lacuna
quando não há solução, pelo que o art.º 12 só será aplicável perante uma ausência de
regulação que configure efectivamente uma lacuna.

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4. Aplicação da lei processual penal no tempo

A vigência temporal da lei processual penal é tratada no art.º 9.


A regra é a de que a lei processual se aplica imediatamente aos processos a
instaurar e aos actos a praticar nos processos pendentes; não se aplica nunca aos actos
já praticados anteriormente, cuja validade deve ser julgada de harmonia com a lei
revogada (cfr. art.º 12 do CC).
Há, no entanto, duas excepções previstas no art.º 9/2. Quando da sua
aplicabilidade imediata possa resultar:
(1) o agravamento da situação processual do arguido. Se o momento da prática
do crime é o que releva para efeitos de aplicação do princípio da legalidade em Direito
Penal, a lei que se aplica é a lei vigente no momento da prática do crime, ou outra
posterior que seja mais favorável ao arguido (Fernanda Palma);
(2) a quebra de harmonia e unidade dos vários actos do processo, casos em que
é de aplicar a lei vigente no momento em que se inicia o processo.

O agravamento da situação processual do arguido. Leis processuais penais materiais.


Independentemente da questão de saber se a excepção se ancora:

– no princípio jurídico-constitucional da legalidade em matéria penal [art.º 29.º/1


CRP] (FIGUEIREDO DIAS); ou se diferentemente,
– decorre das restrições à diminuição do direito de defesa do arguido [art.º 32.º/1
CRP], frustrando as expectativas de defesa relativamente à admissibilidade de
certos actos de defesa que ficariam prejudicados pela aplicação imediata da nova
lei (G. MARQUES DA SILVA),
– o que está em causa são os efeitos materiais da lei processual. Se a lei tem efeitos
sobre a penalidade concreta aplicável ao arguido, ela deve ser considerada de
natureza material [ainda que também seja de natureza processual]. Assim sendo, o
princípio é o da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável e a proibição de
aplicação retroactiva da lei mais gravosa para o arguido. Donde se pode ainda
concluir que a lei nova é de aplicação imediata desde que mais favorável ao
arguido (NORONHA E SILVEIRA).

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Casos específicos:
a) as normas sobre prescrição do procedimento criminal, já que constituem “causa
de afastamento da infracção”, são de aplicação retroactiva quando mais favoráveis
ao arguido;
b) relativamente às normas sobre condições de procedibilidade, verificam-se
algumas divergências. Em termos gerais é de aplicar a lei que concretamente se
mostre mais favorável ao arguido e recusar a aplicação retroactiva da lei mais
gravosa (G. Marques da Silva).

Topicamente:

A lei processual penal, quando surge, é de aplicação imediata, mas salvaguarda


os actos praticados na vigência da lei antiga. Vigora aqui o princípio tempus regit
actum (os actos regem-se pela lei em vigor à data da sua prática). Assim, a lei que
permite questionar a validade dos actos, é a lei está, ou estava, em vigor aquando da
prática do acto.
Por ser de aplicação imediata, a lei processual aplica-se mesmo aos processos
em curso, tendo uma dose de retroactividade: aplica-se a processos que se iniciaram
antes de essa lei entrar em vigor. Se uma certa lei admitia o recurso do despacho de
pronuncia e entra em vigor, imediatamente, outra que retira esse direito; e se os
sujeitos iniciaram o processo com esse horizonte, a regra de aplicação imediata sofre
uma contenção, passando a aplicar-se apenas aos casos futuros, por restringir direitos
dos sujeitos processuais.
Este critério geral tem duas excepções, o que quer dizer que a lei não se aplica
aos processos iniciados anteriormente em duas situações: (1) quando o recurso à nova
lei resulte num agravamento sensível e evitável da situação processual do arguido; ou
(2) quando o recurso à nova lei conduz a situações que impliquem desarticulação
processual e quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo (art.º 9/2).

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O problema da alteração da natureza do crime

O caso mais complexo é o das repercussões processuais em virtude da


mudança da natureza do crime, situações para as quais não há solução unânime na
doutrina. Temos dois conjuntos de situações: (1) um crime público passa a crime
semipúblico; (2) um crime semipúblico ou particular passa a crime público.

1) Um crime público passa a crime semipúblico

Se o processo não se iniciou, passa a haver um regime em que é necessária


queixa e se torna admissível a desistência. Tudo o que seja acto processual se
verificará ao abrigo da lei nova. Assim, aplicar-se-á o regime do crime semipúblico;
Se à data da alteração da lei que converte um crime público em semipúblico ou
particular, o processo já estiver instaurado, o processo mantém-se válido, já que a
“nova lei processual [não] pode afectar a validade dos actos processuais
validamente praticados segundo a lei da época em que o foram” [Ac. STJ, de
20/06/84].
Segundo G. Marques da Silva há que distinguir:
– se o processo se encontra ainda na fase da instrução, e o crime passou a ser
particular, não pode o MP deduzir acusação sem prévia queixa;
– se o processo já se encontra na fase de audiência preliminar ou de julgamento e o
crime de público passou a semipúblico ou particular, essa alteração já não tem
efeitos no que respeita à validade da acusação. Contudo, a nova natureza do crime
tem implicações, nomeadamente no que respeita ao direito de extinção do
procedimento pela via da desistência de queixa [“é de considerar relevante o
perdão, entretanto concedido pelo ofendido, e de arquivar o processo sem
necessidade de julgamento” Ac. TRP, de 02/05/84].
Ou seja, se o processo já começou, o processo continua ao abrigo da lei antiga,
mas deve passar a ser admitida a desistência, caso tenha existido queixa, já que se
assim não fosse, gerar-se-iam desigualdades no tratamento dos processos. Se não
houver queixa, não deverá ser possível a desistência. Para além disto, como a
desistência é facultativa, quer dizer que poderá nem vir a ser utilizada. Em suma,

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permite-se que o processo iniciado na lei antiga adopte um pressuposto da lei nova – a
desistência.

2) Um crime semipúblico ou particular passa a crime público

Se o processo não se iniciou, este pode iniciar-se com a lei nova e com o regime
do crime público com apenas uma excepção: o crime era semipúblico, conhecendo os
factos e os autores, o ofendido tinha 2 anos, ou um ano, consoante os casos (cfr. art.º
155/2 do CP), para apresentar a queixa.
Se não o fez, deixa de ser possível, enquanto vigorar a lei antiga, apresentar
queixa. Se o direito de queixa caducou, antes da entrada em vigor da lei nova, a
situação jurídica caducou e não pode ser repristinada. Se assim não fosse gerar-se-ia
uma enorme desigualdade.
Se o processo já começou, ou se retira ao ofendido o direito de desistir e o
processo continua como público, ou se reconhece a possibilidade para desistir, mas
daquilo que já é um crime público. Nenhuma solução é boa. Frederico da Costa Pinto
considera que apesar da conversão do crime em crime público, aquele processo que
começou bem, com queixa ao abrigo do regime tipo de crime, deve permitir a
desistência. Ou seja, a conversão do crime não deve retirar ao ofendido a possibilidade
de retirar queixa. Em todo o caso, nestes casos, o melhor seria que legislador tivesse
criado um regime transitório. Não o fez.

5. Princípio do juiz natural ou legal [competência do tribunal].

De acordo com o art.º 65/4 da CRM, “Nenhuma causa pode ser retirada ao
tribunal cuja competência se encontra estabelecida em lei anterior, salvo nos casos
especialmente previstos na lei”. Significa que, a lei que regula a competência é a lei do
momento da prática do crime (Noronha Silveira). Tem por finalidade evitar a
designação arbitrária de um juiz ou tribunal para resolver um caso determinado.
Esta garantia deverá ser relacionada com a estabelecida também pelo art.º
222/6 CRM [proibição dos tribunais de excepção], que proíbe “a existência de
tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de

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crimes”, à excepção dos tribunais militares durante a vigência do estado de guerra (cfr.
art.º 223 da CRM).

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