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JOSÉ DE SOUSA E BRITO

A RETROACTIVIDADE DA LEI PENAL


MAIS FAVORÁVEL NOS CASOS JULGADOS

1. O nº 4 do artigo 29º da Constituição: a letra e a história são


inconclusivas.

O texto do nº 4 do artigo 29º da Constituição resulta da versão originária da


Constituição, tendo sofrido algumas modificações na revisão de 1982. Na versão
originária tinha o seguinte teor: "Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança
privativa da liberdade mais grave do que as previstas no momento da conduta,
aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido".
O texto aprovado, por unanimidade e sem discussão, na sessão de 27 de Agosto de
1975 (com o singular "a prevista" 1
resultava da junção da proposta do PPD
(correspondente à primeira frase) com a do PS (correspondente à segunda frase). Ao
tempo estava em vigor o nº 2 do artigo 6º do Código Penal de 1886 (introduzido pela
Nova Reforma Penal de 1884) segundo o qual: "Quando a pena estabelecida na lei
vigente ao tempo em que é praticada a infracção for diversa das estabelecidas em leis
posteriores, será sempre aplicada a pena mais leve ao infractor, que ainda não estiver
condenado por sentença passada em julgado". Embora esta última restrição introduzida
no debate parlamentar, contra a proposta do Governo e contra a do anterior projecto do
Levy Maria Jordão, tivesse sido vivamente criticada na discussão parlamentar da Nova
Reforma Penal2 e igualmente na doutrina portuguesa que se lhe seguiu 3e em parte da
doutrina recente 4, a verdade é que Eduardo Correia tinha proposto na Comissão
revisora do Código Penal a reprodução da doutrina do nº 2 do artigo 6º, em termos
1
Diário da Assembleia Constituinte, p.1020
2
Cfr. Henriques da Silva, Elementos de Sociologia Criminal e Direito Penal, Coimbra, 1905, p.138 ss.
3
Henriques da Silva, op.cit., p.149 ss., Caeiro da Matta, Direito Criminal Português, II, Coimbra, 1911, p.50
4
Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal de 1940-1941, ed. Carmindo Ferreira, Henrique Lacerda, 2ª ed.,
Lisboa, 1945, p.113; a mesma opinião manteve-se no ensino: cfr., no mesmo sentido, Direito Penal Português, I,
Lisboa, 1981, p.119
2

substancialmente idênticos aos do nº 4 do artigo 2º do actual Código, e a proposta fora


aprovada por unanimidade 5
Neste contexto nada indica que os constituintes se
tivessem representado a polémica antiga, nem que tenham querido inconstitucionalizar
a disposição citada do direito em vigor, na parte em que exceptuou as condenações
transitadas em julgado, ou, em alternativa, a do nº 1 do mesmo artigo, que não acolhia,
explicitamente, tal excepção, antes ordenava a extinção da pena, tenha ou não
começado o seu cumprimento, se a lei nova eliminar a infracção correspondente. Na
verdade, se alguma indicação há, é no sentido contrário, uma vez que um dos
deputados que votaram o artigo foi Costa Andrade, que é um dos defensores da
solução legal então e hoje em vigor. Há que entender que a Constituição se limitou a
consagrar o princípio da retroactividade da lei mais favorável no caso central da sua
aplicação na sentença condenatória, deixando para a jurisprudência constitucional e
para a legislação ordinária o desenvolvimento pormenorizado do princípio, incluindo a
determinação exacta do seu alcance e a resolução dos conflitos com outros princípios
constitucionais, como seja o do valor do caso julgado. Não é, portanto, legítimo
argumentar a partir do teor literal para limitar a retroactividade da lex mitior à situação
do arguido, ou para impor uma solução uniforme aos casos de eliminação da
punibilidade e aos de diminuição da mesma.

2. A letra e a história do nº 3 do artigo 282º são igualmente inconclusivas.

Do mesmo modo, não é conclusivo o teor literal do nº 3 artigo 282º da


Constituição, que confere ao Tribunal Constitucional a faculdade de decidir que não
ficam ressalvados os casos julgados, aplicando-se retroactivamente também a eles a
declaração de inconstitucionalidade de uma norma e repristinando-se a norma anterior
pela mesma revogada, quando a norma declarada inconstitucional respeitar a matéria
penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos
5
Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, separata do Boletim do Ministério da Justiça,
Lisboa, 1965, I, p. 64.
3

favorável ao arguido. Não se pode deduzir do uso neste preceito da palavra "arguido",
num sentido que abrange os condenados por sentença transitada em julgado, que o
sentido da mesma palavra no nº 4 do artigo 29º abrange os mesmos condenados. Desde
logo, esse uso, mesmo que possa historicamente ter sido influenciado pela redacção do
artigo 29º, é manifestamente impróprio nos casos do nº 3 do artigo 282º, em que nunca
se trata de um arguido, mas sim de um infractor, pelo que se a palavra tivesse o mesmo
sentido no nº 4 do artigo 29º deixava de abranger os casos centrais visados por este
preceito, que são os dos arguidos propriamente ditos. Mas também nada se pode
deduzir em sentido contrário, não obstante as afirmações do deputado Costa Andrade
antes da votação unânime do artigo em plenário, as quais não foram contraditadas nem
apoiadas no debate. Disse Costa Andrade :

" ... não podemos deixar de saudar o conteúdo do nº 3, porque o achamos


prudente e achamos que ele tem um conteúdo útil na sistemática do Direito
constitucional futuro, no que concerne ao caso julgado e à matéria do
Direito penal.
A partir de agora fica expresso que a ressalva dos casos julgados em
matéria penal não funcionará quando ela possa ser aplicada em detrimento
do arguido ou melhor do delinquente, porque em caso julgado já se pode
falar em delinquente.
Este preceito, além da vantagem intrínseca própria desta norma, tem uma
utilidade importante do ponto de vista da sistemática da actual Constituição
da República que, na parte referente aos direitos e deveres fundamentais,
diz que as normas penais de conteúdo mais favorável se aplicam
retroactivamente e é duvidoso se esse preceito constitucional é compatível
com o caso julgado.
Até aqui entendia-se que as normas de conteúdo mais favorável ao arguido
- normas estas em matéria de punição e não em matéria de incriminação - se
aplicavam retroactivamente, salvo em relação a caso julgado.
4

Hoje a Constituição não diz nada sobre esse ponto mas di-lo em relação a
este e parece-nos que se pode entender a contrario que, em matéria de
normas que atenuam as penas, é possível continuar a ter como
constitucional nesta matéria a ideia de ressalva do caso julgado.
Se uma norma que é ferida de inconstitucionalidade, em concreto, por
força deste nº 3, pode vir a servir de suporte mais favorável ao arguido, por
maioria de razão tem que se entender que uma norma não ferida de
inconstitucionalidade pode servir de suporte ao caso julgado, não obstante
norma que venha a atenuar a punição.
Parece-nos que é de aplaudir este preceito que tem um conteúdo útil
sistemático.
Contudo, parece-nos que a referência ao direito de mera ordenação social -
salvo melhor opinião - talvez se possa considerar exagerada. Ressalvar o
caso julgado em matéria de uma norma inconstitucional parece-nos que não
se justifica aqui como se justifica em direito penal e em direito disciplinar.
O direito penal contende com a liberdade fundamental das pessoas, o direito
disciplinar contende com a honoridade profissional dos trabalhadores da
função pública e a ordenação social contende um pouco com o património,
através de multas, coimas, etc.
Enfim, não será da nossa parte que se levantarão grandes objecções a este
artigo, mas não podíamos deixar de formular esta reserva, para que conste."
6

Desta passagem resulta com suficiente clareza que Costa Andrade entendia que
a solução dualista (sempre retroactiva quanto à descriminalização e respeitadora do
julgado quanto à atenuação) do regime legal em vigor era conforme à Constituição.

6
Diário da Assembleia da República, I Série, 28.7.1982, p.5379-5380.
5

Mas não se entende o argumento sistemático que pretende construir para demonstrar
isso mesmo. Com efeito, da norma que manda respeitar o caso julgado em que foi
aplicada norma inconstitucional mais favorável ao delinquente do que a norma
posteriormente repristinada, que se deduz a contrario do nº 3 do artigo 282º, não se
deduz por maioria de razão uma norma que mande respeitar o caso julgado em que foi
aplicada norma não ferida de inconstitucionalidade menos favorável ao delinquente do
que norma atenuante posterior, apenas se deduz por maioria de razão que deve
respeitar-se o julgado em que foi aplicada norma não ferida de inconstitucionalidade
mais favorável do que a norma posterior. Ora esta última conclusão sempre resulta da
proibição geral de retroactividade da lei penal (que não seja mais favorável).

O que se poderá concluir do nº 3 do artigo 282º é que a Constituição admite que


possa haver alguns casos em que "a regra" da ressalva dos casos julgados ainda
prevalece sobre o princípio da aplicação da lei mais favorável, deixando, porém, ao
Tribunal Constitucional a definição desses casos. A Constituição não proíbe
expressamente o Tribunal Constitucional de seguir o critério dualista do artigo 2º do
Código Penal, repristinando quando o efeito da repristinação for a extinção da pena, e
respeitando o julgado quando esse efeito for apenas a atenuação da pena, como não o
proíbe de seguir o critério defendido por Costa Andrade, de repristinar contra o
julgado as mesmas normas penais mas nunca as de mera ordenação social. Mas se, na
falta da proibição expressa destes critérios, a Constituição impõe estes ou quaisquer
critérios, é algo que não pode decidir-se em função da letra.

Há que concluir que a Constituição, não fornecendo nem no nº 4 do artigo 29º


nem no nº 3 do artigo 282º critério explícito de solução do conflito entre os princípios
da aplicação da lei mais favorável e do respeito pelo caso julgado, deixa à
jurisprudência constitucional a tarefa de determinar o que é critério imposto pela
Constituição e o que é deixado ao arbítrio do legislador sempre limitado pelo princípio
da igualdade.
6

3. A questão da interpretação extensiva do nº 4 do artigo 29º.

O nº 4 do artigo 29º contem um comando de aplicação retroactiva ao arguido da


lei penal mais favorável. Trata-se de saber se a razão da norma também vale para a
pessoa que deixou de ser arguida por ter sido condenada por sentença transitada em
julgado. Se a resposta for afirmativa há que fazer interpretação extensiva desse ponto
do nº 4.

Como a opinião maioritária reconhece, a razão do comando da retroactividade


da lei penal mais favorável é o princípio da necessidade ou da máxima restrição
possível das sanções penais, que se deduz do artigo 18º da Constituição, uma vez que
as sanções penais são as mais graves restrições dos direitos fundamentais que a
Constituição admite que o Estado possa impor coercivamente. No Estado de direito
material tais restrições só são admissíveis quando necessárias ou indispensáveis para
defender a eficácia das normas que protegem os direitos fundamentais e outros
interesses básicos da vida social, segundo a escala de valores da Constituição, das mais
graves agressões. Ora quando a lei nova considera que certa sanção penal ou certa
medida de sanção penal não é para o futuro necessária como prevenção de factos
futuros, há que entender que tal sanção deixou de considerar-se necessária para factos
da mesma descrição, independentemente do momento da sua prática. Só não será
assim se houver circunstâncias temporalmente delimitadas que sejam razão do
tratamento desigual. Tal será o caso de leis penais temporárias, na medida em que
forem constitucionalmente admissíveis. A questão que se põe é a de saber se o trânsito
em julgado da sentença condenatória é uma dessas circunstâncias.
7

4. Não há diferente fundamento para a retroactividade na


discriminalização e na atenuação de pena.

Ora a opinião maioritária admitiu que o trânsito em julgado nenhuma diferença


faz quanto à necessidade da sanção nos casos de descriminalização das condutas. É
certo que a mesma opinião entende entrarem em jogo nesses casos "outras normas ou
princípios constitucionais, como verbi gratia, princípio da ultima ratio da lei penal e
da dignidade de pessoa humana". Só que o princípio da dignidade da pessoa humana é
uma das premissas de que se deduz o princípio da necessidade das penas, pois
ofenderia essa dignidade sacrificar a pessoa do delinquente aos interesses da
prevenção geral, salvo se isso for não só justo como necessário. E o princípio da
ultima ratio da lei penal não é mais do que uma das aplicações do princípio da
necessidade das penas: precisamente porque as sanções repressivas mais graves, as que
maiores sacrifícios de direitos implicam, só podem ser usadas como "último
argumento" para referenciar a conduta, quando nenhuma outra sanção se considera
suficiente para evitar a prática de crimes. É certo que seria incompatível com a
dignidade da pessoa humana e com a natureza de ultima ratio da política preventiva do
Estado o manter uma pena ou parte dela que deixou de se considerar necessária por o
facto que é pressuposto dela deixar de ser crime. Só que o princípio da necessidade da
pena não vale só para afastar a pena que se torna absolutamente desnecessária - cuja
existência se torna desnecessária -, vale igualmente para afastar a pena que se torna
relativamente desnecessária - cuja medida ou espécie se torna desnecessária. Não
entram em jogo outras normas ou princípio constitucionais, mas exactamente os
mesmos. O princípio da necessidade das penas é uma das aplicações do princípio da
necessidade das restrições legais dos direitos fundamentais (artº 18º, nº 2 da
Constituição) e implica a não aplicação para o futuro de penas tornadas desnecessárias,
seja de todo, seja em parte ou em certa medida ou espécie mais grave. Por outras
palavras: o fundamento constitucional da retroactividade da lei penal mais favorável é
o princípio da necessidade das penas, e esse fundamento vale igualmente para as
8

hipóteses de descriminalização e para as de atenuação da pena. Se ele deve prevalecer


sobre o caso julgado nas primeiras hipóteses também deverá prevalecer nas segundas,
se não houver razões em contrário específicas destas últimas que mereçam relevância
constitucional. A argumentação do Acórdão, afastada a diferença de fundamento,
reduz-se assim ao argumento da "enormíssima perturbação na ordem dos tribunais
judiciais".

5. A não-atenuação não é menos grave que a não-descriminalização.

A esta redução não poderá opor-se qualquer argumento, sugerido pela parte
final do Acórdão, e tirado da maior consciência social da injustiça da não
retroactividade no caso da descriminalização, consciência social que seria menos
gravemente ferida pela não-retroactividade de mera atenuação da pena. A consciência
social que aqui pode relevar é a consciência social bem formada pelas valorações
constitucionais. Não é admissível invocar contra as valorações da Constituição as
valorações de uma hipotética maioria social. Mas então não há um argumento
autónomo tirado da consciência social. Se bem o entendo, o argumento do Acórdão é o
seguinte: tanto no caso da atenuação de pena como no da descriminalização há um
conflito entre a justiça - intuída pela consciência social -, que manda aplicar
retroactivamente a lex mitior, e a segurança, que manda respeitar o julgado, mas no
caso de atenuação o sacrifício da justiça não é grave, porque continua a haver razão
para punir, ao passo que no da descriminalização é o contrário que se passa.

Assim entendido, o argumento mantem-se, mesmo prescindindo do argumento


anterior: a diferença entre o regime da descriminalização e o da atenuação legal
explicar-se-ia, não já por uma diferença qualitativa de fundamentos, mas por uma
diferença quantitativa, que tornaria um dos princípios constitucionais em conflito, o da
9

retroactividade da lex mitior, menos ponderoso na hipótese de atenuação, pelo que


cederia só nessa hipótese perante o princípio do respeito pelo caso julgado.

Penso, porém, que a intuição da consciência social vai em sentido contrário.


Tanto se faria injustiça a um condenado a 3 anos de prisão, dos quais já cumpriu, se
não fosse extinta a pena, em caso de descriminalização da conduta, como se faria
injustiça a um condenado a 5 anos de cadeia, dos quais já cumpriu 3, se não fosse
atenuada em 2 anos a sua pena, por força de uma atenuação legal. Em ambos os casos
haveria 2 anos de prisão desnecessária a cumprir.

6. A haver violação da norma do nº 4 do artigo 29º a violação do princípio


da igualdade não tem autonomia.

Mais clara ainda é a consciência da desigualdade de tratamento no confronto


entre um arguido e um condenado pelas mesmas ofensas - ou por ofensas idênticas -
cometidas na mesma data. Se sobrevier uma atenuação legal, o arguido beneficia de
uma diferença de tempo de duração do processo que é inteiramente estranha a todas as
razões da punição que possam relevar no caso. Mesmo quando não há identidade de
data e de ofensa, sempre terá que considerar-se injusto que a duração do processo
influa na medida da pena, em benefício dos criminosos que conseguiram protelar a
formação de caso julgado.

O argumento da identidade de razão tem como complemento necessário o da


violação do principío da igualdade, quer no diferente tratamento dado às hipóteses de
lex mitior por descriminalização e às de lex mitior por atenuação, quer no diferente
tratamento dado aos agentes do mesmo crime consoante sejam arguidos ou
condenados. Se não estivesse em causa a violação de uma mesma norma
10

constitucional, o nº 4 do artigo 29º, haveria que invocar a violação do artigo 13º da


Constituição.

É também claro que o argumento da violação do princípio da igualdade, tal


como o da identidade de razão, seria afastado pela demonstração de que o caso julgado
é uma razão suficiente de tratamento desigual dos duplamente discriminados, isto é,
dos condenados (já não arguidos) em pena entretanto abstractamente eliminada e
substituída por outra mais leve (mas não extinta).

7. Não está em questão o respeito pelo caso julgado. Sua relevância na


problemática da «revisão» da sentença.

Antes de mais, uma decisão judicial não pode obrigar para além do que está
logicamente incluído no seu conteúdo. A decisão transitada em julgado, como
qualquer outra, tem uma premissa de direito e outra de facto. Se qualquer delas é
alterada, a conclusão deixa de ter fundamento, pelo que toda a decisão deixa de ser
aplicável ao caso. Não se diga que a constatação de que não há que respeitar o julgado,
porque o julgado deixou de ser aplicável no caso, terá que caber a um tribunal, sob
pena de ofender a separação dos poderes e a supremacia das decisões judiciais. Tal não
impede a logicamente necessária cessação de obrigatoriedade do julgado que
fundamenta a sua revisibilidade. Neste sentido, há que desfazer o "fetichismo do caso
julgado"7. Ponto é que a lei mais favorável se queira efectivamente aplicar também
retroactivamente aos casos dessa espécie, mas isso há que resolver por interpretação,
sem invocar o argumento "fetichista" do julgado. Colocada a questão nestes termos, é
claro que o princípio de necessidade da pena, que é essencial à fundamentação da pena
no Estado de direito, sempre implicará que a lei nova mais favorável se aplique
retroactivamente, seja em casos de descriminalização, seja em casos de atenuação da
7
Como fazem, nomeadamente, Jimenez de Asua, Tratado de Derecho Penal, II, 4ª ed., Buenos Aires, 1964, p.
674 e Cavaleiro de Ferreira, "Os Pressupostos Processuais", Obra Dispersa, I, Lisboa, 1996, p.346).
11

pena. O argumento ou argumentos relativos à "perturbação na ordem de tribunais


judiciais" são de ordem processual e têm a ver com a problemática de uma
reapreciação do caso depois de findo o processo e transitada a sentença. Não se trata
de uma verdadeira revisão de sentença porque esta não tem que ser corrigida. Há
apenas, eventualmente, que aplicar a lei nova no caso. Mas para a realização dessa
tarefa o trânsito em julgado faz diferença: não se trata de aplicar a lei nova a um
arguido que se presume inocente; trata-se de a aplicar a um condenado cuja culpa não
é questionada, apenas se questionando, no todo ou em parte, a punibilidade.

O caso julgado, portanto, em face da lei mais favorável, apenas pode pretender
ser respeitado quanto à decisão sobre a culpa. O Código de Processo Penal prevê que
modificações posteriores de punibilidade devem ser aplicadas pelo juiz da execução
das penas (artigo 474º). Isso em nada afecta o princípio do respeito pelo caso julgado.
O princípio da separação dos poderes (artigos 2º e 111º, nº 1 da Constituição) e da
supremacia das decisões judiciais (artigo 205º, nº 2 da Constituição) e da reserva de
função juridicional em tribunais (artigo 202º, nº 1 da Constituição) impõem certamente
que a constatação da inoponibilidade parcial do julgado e a aplicação da nova lei
incumbam ao tribunal competente, mas não mais.

Nesta perspectiva, as dificuldades práticas invocadas pelo acórdão existem


realmente e não respeitam, em primeira linha, ao acréscimo de trabalho dos tribunais
judiciais, mas à difícil justiça de aplicar a lei penal nova a um caso concreto sem novo
julgamento sobre a culpa.

8. O direito comparado revela que a retroactividade da lex mitior não


levanta dificuldades insuperáveis nem impede a reforma do direito penal.
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Assim também há que explicar as grandes divergências que o direito comparado


revela na matéria 8No direito francês e no direito alemão - e direitos penais por eles
inspirados - recusa-se a retroactividade da lei mais favorável depois do trânsito em
julgado, mesmo nos casos de descriminalização. Mas reclama-se - especialmente na
França 9
e na Suiça 10
- a correcção das desigualdades através de leis transitórias
retroactivas, mesmo quanto aos casos julgados, e através do uso de indultos. No direito
italiano adopta-se uma solução dualista idêntica à do artigo 2º do Código português,
mas as reformas legislativas foram acompanhadas de disposições transitórias e Carrara
considerava a correcção por indultos das desigualdades subsistentes com um "dever de
justiça" 11. No direito espanhol desde 1870 (cfr.o artigo 2º, nº 2 do Código de 1995) e
na generalidade dos países da América Latina, incluindo o Brasil (cfr. o artigo 2º, §
único, do Código Penal em vigor), aplica-se retroactivamente a lex mitior, sem
distinção de efeitos, aos casos julgados, sem prejuízo de leis transitórias (assim o
Código Penal espanhol de 1995 contem a final várias "disposições transitórias",
segundo a quinta das quais, tratando-se de sentenças transitadas e em que o condenado
está cumprindo efectivamente a pena, se aplica "a disposição mais favorável
considerada taxativamente e não pelo exercício do arbítrio judicial" e "nas formas
privativas de liberdade não se considerará mais favorável este Código quando a
duração da pena anterior aplicada ao facto com as suas circunstâncias seja também
aplicável segundo o novo Código").

Uma apreciação do direito comparado não pode deixar de reconhecer que o


apelo a indultos como exigência da justiça não pode deixar de considerar-se o
reconhecimento da insuficiência da solução legal ou interpretativa adoptada. Deste
ponto de vista, a solução espanhola é a mais coerente.

8
Cfr. o panorama desactualizado mas esclarecedor de Jimenez de Asua, ob.cit, II, p.674-680.
9
Cfr. também Marc Puech, Les grands arrêts de la juriprudence criminelle, Paris, I, 1976, p.28.
10
Cfr. Paul Logoz, Commentaire du Code Pénal Suisse. Partie Générale, 2ª ed. , Neuchâtel, 1976, p.35.
11
apud Jimenez de Asua, ibidem.
13

A extensão temporal e especial da experiência espanhola e latino-americana


revelam, porém, que as preocupações de opinião maioritária com as dificuldades
práticas de aplicação da lex mitior são infundadas, derivam apenas da falta de
experiência. Os juízes espanhóis e latino-americanos têm aplicado a lex mitior nem
sempre ajudados por leis transitórias. A solução deixou de ser questionada onde foi
experimentada e não tem impedido as iniciativas de reforma legislativa.

Temos que a falta de experiência das dificuldades efectivamente ligadas a uma


solução justa não deve servir de pretexto para a manutenção da injustiça.

9. O quadro geral legal de aplicação retroactiva aos casos julgados da lei


penal mais favorável

Para resolver as injustiças ligadas à não aplicação da lei penal mais favorável
não basta uma interpretação extensiva do comando de retroactividade, apesar do caso
julgado, da descriminalização, constante do nº 2 do artigo 2º do Código Penal, como
fez, com o meu apoio, o (inédito) acórdão nº 194/97 (que equipara à lei nova
descriminalizadora a que produz efeitos substancialmente análogos), nem ressalvar,
como faz o presente Acórdão, as situações em que a lei mais favorável implica uma
mudança qualitativa da pena, ou uma alteração dos pressupostos, quer do
procedimento, quer da punição. Em todas estas hipóteses é mais fácil a equiparação
com as do nº 2 do artigo 2º.

Não sendo tão fácil a equiparação, não é menos fundada a analogia, como se
viu, nos casos de uma atenuação de pena da mesma espécie, que são os casos
praticamente mais importantes, porque a prisão e a multa são as penas mais
importantes do sistema penal, variando a prisão entre um mês e 20 anos e as multas do
Código Penal entre 10 dias a 200$00 e 100 dias a 100.000$00 (artigo 234º, nº 1
14

conjugado com o artigo 204º, nº 1, por exemplo). Pode haver muitos anos de prisão e
muitos milhares de contos de multa a executar desnecessariamente.

Acresce que a opinião maioritária não dá o devido relevo ao quadro legal de


aplicação da lex mitior aos casos julgados, enunciando dificuldades que só existiriam
se a aplicação da lei nova implicasse a total revogação do caso julgado e equivalesse
na prática à anulação do processado a partir do encerramento da discussão. O julgado
mantem-se quanto à culpa e apenas tem que ser revisto quanto à punibilidade (supra nº
7).
Quando os problemas de determinação da lei mais favorável e outros
relacionados com a reapreciação do caso em vista da nova lei não estiverem resolvidos
por disposição transitória, terá o tribunal competente para decidir as questões relativas
à extinção (total ou parcial) da responsabilidade (cfr. os artigos 474º e 470º do Código
de Processo Penal) que aplicar a lei nova aos factos dados como provados na sentença
transitada em julgado, na medida e só na medida em que estes permitirem a subsunção
na lei nova.

Assim muitas vezes bastará uma simples operação aritmética. Sem desconhecer
que a função de determinar a medida judicial da pena nunca compete ao Tribunal
Constitucional, e apenas para dar um exemplo, direi que em minha opinião num caso
como o presente basta a aritmética. Estando o juiz da execução obrigado a respeitar os
critérios de facto da medida judicial da pena fixada no caso julgado, é relevante que a
pena tenha sido fixada em quatro anos e seis meses de prisão, que correspondem a
3,5/19 de uma medida legal de variação possível da pena de 19 anos, entre 1 ano e 20
anos, correspondente à medida legal possível da pena do concurso (artigo 78º, nº 2 do
Código Penal de 1982) de um crime continuado de furto qualificado (artigo 297º, nº 1,
alínea a) e 30º, nº 2) e de um crime continuado de burla (artigos 313º e 314º, nº 1,
alínea c) e 30º nº 2). O respeito pela apreciação passada em julgado dos factores de
medida judicial da pena conduziria na hipótese a uma pena de 4 anos e 7 dias de
15

prisão, que correspondem a 3,5/19 de uma medida legal de variação possível de pena
de 14 anos, entre 2 e 16 anos, correspondente à medida legal possível da pena do
concurso de um crime continuado de furto qualificado (os pressupostos de facto do nº
2, alínea a) do artigo 204º da revisão de 1995 correspondem à alínea a) do nº 1 do
artigo 297º) de burla qualificada (artigo 218º, nº 2, alínea a), cujos pressupostos de
facto correspondem aos dos artigos 313º e 314º, nº 1) do Código revisto de 1995).
Não é possível, nem necessário, resolver aqui todos os problemas que se podem
levantar. Mas note-se que muitas das dificuldades evocadas no Acórdão também
podem surgir, em princípio, na situação de descriminalização de um crime, quando
está em causa um concurso de crimes e o outro ou outros crimes não foram
descriminalizados. Também aí há que determinar a pena mais favorável em concreto.
E nesta hipótese tem a opinião maioritária que admitir que o tribunal competente pode
resolver as dificuldades.

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