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favorável ao arguido. Não se pode deduzir do uso neste preceito da palavra "arguido",
num sentido que abrange os condenados por sentença transitada em julgado, que o
sentido da mesma palavra no nº 4 do artigo 29º abrange os mesmos condenados. Desde
logo, esse uso, mesmo que possa historicamente ter sido influenciado pela redacção do
artigo 29º, é manifestamente impróprio nos casos do nº 3 do artigo 282º, em que nunca
se trata de um arguido, mas sim de um infractor, pelo que se a palavra tivesse o mesmo
sentido no nº 4 do artigo 29º deixava de abranger os casos centrais visados por este
preceito, que são os dos arguidos propriamente ditos. Mas também nada se pode
deduzir em sentido contrário, não obstante as afirmações do deputado Costa Andrade
antes da votação unânime do artigo em plenário, as quais não foram contraditadas nem
apoiadas no debate. Disse Costa Andrade :
Hoje a Constituição não diz nada sobre esse ponto mas di-lo em relação a
este e parece-nos que se pode entender a contrario que, em matéria de
normas que atenuam as penas, é possível continuar a ter como
constitucional nesta matéria a ideia de ressalva do caso julgado.
Se uma norma que é ferida de inconstitucionalidade, em concreto, por
força deste nº 3, pode vir a servir de suporte mais favorável ao arguido, por
maioria de razão tem que se entender que uma norma não ferida de
inconstitucionalidade pode servir de suporte ao caso julgado, não obstante
norma que venha a atenuar a punição.
Parece-nos que é de aplaudir este preceito que tem um conteúdo útil
sistemático.
Contudo, parece-nos que a referência ao direito de mera ordenação social -
salvo melhor opinião - talvez se possa considerar exagerada. Ressalvar o
caso julgado em matéria de uma norma inconstitucional parece-nos que não
se justifica aqui como se justifica em direito penal e em direito disciplinar.
O direito penal contende com a liberdade fundamental das pessoas, o direito
disciplinar contende com a honoridade profissional dos trabalhadores da
função pública e a ordenação social contende um pouco com o património,
através de multas, coimas, etc.
Enfim, não será da nossa parte que se levantarão grandes objecções a este
artigo, mas não podíamos deixar de formular esta reserva, para que conste."
6
Desta passagem resulta com suficiente clareza que Costa Andrade entendia que
a solução dualista (sempre retroactiva quanto à descriminalização e respeitadora do
julgado quanto à atenuação) do regime legal em vigor era conforme à Constituição.
6
Diário da Assembleia da República, I Série, 28.7.1982, p.5379-5380.
5
Mas não se entende o argumento sistemático que pretende construir para demonstrar
isso mesmo. Com efeito, da norma que manda respeitar o caso julgado em que foi
aplicada norma inconstitucional mais favorável ao delinquente do que a norma
posteriormente repristinada, que se deduz a contrario do nº 3 do artigo 282º, não se
deduz por maioria de razão uma norma que mande respeitar o caso julgado em que foi
aplicada norma não ferida de inconstitucionalidade menos favorável ao delinquente do
que norma atenuante posterior, apenas se deduz por maioria de razão que deve
respeitar-se o julgado em que foi aplicada norma não ferida de inconstitucionalidade
mais favorável do que a norma posterior. Ora esta última conclusão sempre resulta da
proibição geral de retroactividade da lei penal (que não seja mais favorável).
A esta redução não poderá opor-se qualquer argumento, sugerido pela parte
final do Acórdão, e tirado da maior consciência social da injustiça da não
retroactividade no caso da descriminalização, consciência social que seria menos
gravemente ferida pela não-retroactividade de mera atenuação da pena. A consciência
social que aqui pode relevar é a consciência social bem formada pelas valorações
constitucionais. Não é admissível invocar contra as valorações da Constituição as
valorações de uma hipotética maioria social. Mas então não há um argumento
autónomo tirado da consciência social. Se bem o entendo, o argumento do Acórdão é o
seguinte: tanto no caso da atenuação de pena como no da descriminalização há um
conflito entre a justiça - intuída pela consciência social -, que manda aplicar
retroactivamente a lex mitior, e a segurança, que manda respeitar o julgado, mas no
caso de atenuação o sacrifício da justiça não é grave, porque continua a haver razão
para punir, ao passo que no da descriminalização é o contrário que se passa.
Antes de mais, uma decisão judicial não pode obrigar para além do que está
logicamente incluído no seu conteúdo. A decisão transitada em julgado, como
qualquer outra, tem uma premissa de direito e outra de facto. Se qualquer delas é
alterada, a conclusão deixa de ter fundamento, pelo que toda a decisão deixa de ser
aplicável ao caso. Não se diga que a constatação de que não há que respeitar o julgado,
porque o julgado deixou de ser aplicável no caso, terá que caber a um tribunal, sob
pena de ofender a separação dos poderes e a supremacia das decisões judiciais. Tal não
impede a logicamente necessária cessação de obrigatoriedade do julgado que
fundamenta a sua revisibilidade. Neste sentido, há que desfazer o "fetichismo do caso
julgado"7. Ponto é que a lei mais favorável se queira efectivamente aplicar também
retroactivamente aos casos dessa espécie, mas isso há que resolver por interpretação,
sem invocar o argumento "fetichista" do julgado. Colocada a questão nestes termos, é
claro que o princípio de necessidade da pena, que é essencial à fundamentação da pena
no Estado de direito, sempre implicará que a lei nova mais favorável se aplique
retroactivamente, seja em casos de descriminalização, seja em casos de atenuação da
7
Como fazem, nomeadamente, Jimenez de Asua, Tratado de Derecho Penal, II, 4ª ed., Buenos Aires, 1964, p.
674 e Cavaleiro de Ferreira, "Os Pressupostos Processuais", Obra Dispersa, I, Lisboa, 1996, p.346).
11
O caso julgado, portanto, em face da lei mais favorável, apenas pode pretender
ser respeitado quanto à decisão sobre a culpa. O Código de Processo Penal prevê que
modificações posteriores de punibilidade devem ser aplicadas pelo juiz da execução
das penas (artigo 474º). Isso em nada afecta o princípio do respeito pelo caso julgado.
O princípio da separação dos poderes (artigos 2º e 111º, nº 1 da Constituição) e da
supremacia das decisões judiciais (artigo 205º, nº 2 da Constituição) e da reserva de
função juridicional em tribunais (artigo 202º, nº 1 da Constituição) impõem certamente
que a constatação da inoponibilidade parcial do julgado e a aplicação da nova lei
incumbam ao tribunal competente, mas não mais.
8
Cfr. o panorama desactualizado mas esclarecedor de Jimenez de Asua, ob.cit, II, p.674-680.
9
Cfr. também Marc Puech, Les grands arrêts de la juriprudence criminelle, Paris, I, 1976, p.28.
10
Cfr. Paul Logoz, Commentaire du Code Pénal Suisse. Partie Générale, 2ª ed. , Neuchâtel, 1976, p.35.
11
apud Jimenez de Asua, ibidem.
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Para resolver as injustiças ligadas à não aplicação da lei penal mais favorável
não basta uma interpretação extensiva do comando de retroactividade, apesar do caso
julgado, da descriminalização, constante do nº 2 do artigo 2º do Código Penal, como
fez, com o meu apoio, o (inédito) acórdão nº 194/97 (que equipara à lei nova
descriminalizadora a que produz efeitos substancialmente análogos), nem ressalvar,
como faz o presente Acórdão, as situações em que a lei mais favorável implica uma
mudança qualitativa da pena, ou uma alteração dos pressupostos, quer do
procedimento, quer da punição. Em todas estas hipóteses é mais fácil a equiparação
com as do nº 2 do artigo 2º.
Não sendo tão fácil a equiparação, não é menos fundada a analogia, como se
viu, nos casos de uma atenuação de pena da mesma espécie, que são os casos
praticamente mais importantes, porque a prisão e a multa são as penas mais
importantes do sistema penal, variando a prisão entre um mês e 20 anos e as multas do
Código Penal entre 10 dias a 200$00 e 100 dias a 100.000$00 (artigo 234º, nº 1
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conjugado com o artigo 204º, nº 1, por exemplo). Pode haver muitos anos de prisão e
muitos milhares de contos de multa a executar desnecessariamente.
Assim muitas vezes bastará uma simples operação aritmética. Sem desconhecer
que a função de determinar a medida judicial da pena nunca compete ao Tribunal
Constitucional, e apenas para dar um exemplo, direi que em minha opinião num caso
como o presente basta a aritmética. Estando o juiz da execução obrigado a respeitar os
critérios de facto da medida judicial da pena fixada no caso julgado, é relevante que a
pena tenha sido fixada em quatro anos e seis meses de prisão, que correspondem a
3,5/19 de uma medida legal de variação possível da pena de 19 anos, entre 1 ano e 20
anos, correspondente à medida legal possível da pena do concurso (artigo 78º, nº 2 do
Código Penal de 1982) de um crime continuado de furto qualificado (artigo 297º, nº 1,
alínea a) e 30º, nº 2) e de um crime continuado de burla (artigos 313º e 314º, nº 1,
alínea c) e 30º nº 2). O respeito pela apreciação passada em julgado dos factores de
medida judicial da pena conduziria na hipótese a uma pena de 4 anos e 7 dias de
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prisão, que correspondem a 3,5/19 de uma medida legal de variação possível de pena
de 14 anos, entre 2 e 16 anos, correspondente à medida legal possível da pena do
concurso de um crime continuado de furto qualificado (os pressupostos de facto do nº
2, alínea a) do artigo 204º da revisão de 1995 correspondem à alínea a) do nº 1 do
artigo 297º) de burla qualificada (artigo 218º, nº 2, alínea a), cujos pressupostos de
facto correspondem aos dos artigos 313º e 314º, nº 1) do Código revisto de 1995).
Não é possível, nem necessário, resolver aqui todos os problemas que se podem
levantar. Mas note-se que muitas das dificuldades evocadas no Acórdão também
podem surgir, em princípio, na situação de descriminalização de um crime, quando
está em causa um concurso de crimes e o outro ou outros crimes não foram
descriminalizados. Também aí há que determinar a pena mais favorável em concreto.
E nesta hipótese tem a opinião maioritária que admitir que o tribunal competente pode
resolver as dificuldades.