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ACÓRDÃO Nº 81/84

Processo nº 22/84.
2.ª Secção.
Relator: Conselheiro Messias Bento.

Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:


I - Relatório
1 - O Exmo. Magistrado do Ministério Público interpôs o presente recurso do
acórdão da Relação de Coimbra, proferido nos autos de apelação cível, vindos da comarca de
Alcobaça, em que é recorrente A. e recorrida B..
O recurso limita-se à parte do acórdão em que se declarou que as normas dos nºs 1
dos artigos 154º e 155º do Código do Processo Civil são incompatíveis com a Constituição (v.
requerimento de interposição).

2 - No acórdão recorrido, decidiu-se, na verdade, que, após a primeira revisão da


Constituição, «devem considerar-se anticonstitucionais os preceitos dos nºs 1 dos artigos 154º
e 155º do Código de Processo Civil».
E acrescenta-se: «enquanto na Constituição de 1976 se dizia que as infracções à
liberdade de expressão ficam submetidas ‘ao regime de punição da lei geral’, a Constituição
actual dispõe que tais infracções ‘ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal’
(artigo 37º, nº 2)».
«Ora - diz-se depois -, as normas dos artigos 154º e 155º não são normas de direito
criminal, nem estabelecem qualquer sanção dessa natureza. Têm apenas natureza disciplinar.»
Por isso - assevera-se também -, não é possível à Relação «exercer qualquer
censura» relativamente a uma palavra, constante da alegação do recorrente - o termo imoral -,
que o Ministério Público considerou «deselegante e despropositada».

3 - O recorrente, com efeito, afirmou, a certa altura, que «a aparente


fundamentação das respostas aos quesitos é uma forma hábil de fugir ao controlo da
fundamentação que, no caso presente, não pode valer e até é imoral, para além de ilegal»
(sublinhou-se). Exprimia-se desse modo, em virtude de o Tribunal - não obstante o marido da
autora ter levado ao escritório do advogado dela, na véspera do julgamento, «cerca de metade
das testemunhas», que arrolou, e não obstante aí terem sido feitas a tais testemunhas as
perguntas a que tiveram de responder na audiência - haver baseado as respostas aos quesitos
«no conjunto dos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas».
Tratava-se, no caso, de uma acção de investigação de paternidade, que foi julgada
procedente, vindo a B. a ser reconhecida como filha de C..

4 - Neste Tribunal, apenas o Exmo. Magistrado do Ministério Público apresentou


alegações, pugnando pela revogação do acórdão recorrido, no tocante ao julgamento da
questão de inconstitucionalidade, uma vez que - disse - os artigos 154º e 155º do Código de
Processo Civil não violam o artigo 37º da Constituição. Remeteu-se, para tanto, para a juris‐
prudência da Comissão Constitucional sobre a matéria - que citou a propósito - e acrescentou
que, com a substituição, no nº 3 do artigo 37º, da expressão «regime de punição da lei geral»
por estoutra - «princípios gerais de direito criminal» - não se quis inovar. Buscou-se tão-só,
isso sim, uma forma de expressão mais clara e tecnicamente mais rigorosa.
É o que vai fazer-se, começando por assentar em que a questão que o recurso nos
traz é a de saber se a norma constante do nº 1 do artigo 154º do Código de Processo Civil,
conjugada com a do nº 1 do artigo 155°, do mesmo Código - na parte em que permite que os
tribunais mandem riscar quaisquer expressões ofensivas, utilizadas pelos mandatários
judiciais, nas suas peças forenses - está (ou não) ferida de inconstitucionalidade, por violar
qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente, o artigo 37º, maxime os seus nºs
2 e 3.
Aquela norma foi, com efeito, a que o acórdão recorrido se recusou a aplicar, por a
julgar inconstitucional.
Vejamos, então.

II - Fundamentação
1 - Liminarmente, dir-se-á que o tribunal da Relação partiu do pressuposto dc que
o afirmar-se que determinada fundamentação das respostas aos quesitos é imoral traduz o
emprego de expressões ofensivas.
De facto, no nº 1 do artigo 154º do Código de Processo Civil, preceitua-se que se
podem «mandar riscar quaisquer expressões ofensivas», que os mandatários judiciais tenham
utilizado. E, no nº 1 do artigo 155º, acrescenta-se que «nos processos pendentes nos tribunais
superiores só por acórdão se pode mandar riscar o que estiver escrito [...]».
Ora, foi esta norma que o acórdão recorrido deixou de aplicar, por a ter por
inconstitucional - como se viu.
É, pois, tão-só porque a Relação partiu de um tal pressuposto que, aqui, se pode
falar em recusa de aplicação de uma norma com fundamento em inconstitucionalidade.
Na verdade, a aplicação (ou a desaplicação) de uma norma jurídica pressupõe uma
actividade de prévia subsunção de determinados factos a essa norma.

2 - Acrescentar-se-á - ainda como consideração prévia - que a este Tribunal não


cabe decidir se a apontada qualificação - o ter-se considerado como emprego de expressões
ofensivas a afirmação de que a fundamentação das respostas aos quesitos era imoral - é ou não
juridicamente fundada. O seu poder de cognição - como resulta do que já se disse - é restrito à
questão de inconstitucionalidade da norma, cuja aplicação se recusou, por se julgar
constitucionalmente ilegítima - artigo 280º, nº 6, referido à alínea a) do nº 1.
Prosseguindo, pois.

3 - O artigo 37º da Constituição, depois de, no seu nº 1, estabelecer que «todos têm
o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou
por qualquer outro meio [...]», acrescenta, no seu nº 2, que o exercício de um tal direito «não
pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura». E, no seu nº 3,
preceitua que «as infracções cometidas no exercício deste(s) direito(s) ficam submetidas aos
princípios gerais de direito criminal, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais
judiciais».
Tanto o nº 1 (na parte transcrita), como o nº 2, reproduzem os correspondentes
textos iniciais. Relativamente ao nº 3, na revisão operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de
30 de Setembro, substituiu-se a expressão ficarão submetidas ao regime de punição da lei
geral, constante do texto originário, por estoura - ficam submetidas aos princípios gerais de
direito criminal.

4 - Ora, é justamente na substituição da expressão «regime de punição da lei geral»


pensamento -, na sua óptica, o texto constitucional, na sua nova versão, apenas permitirá ao
legislador que, para reprimir os abusos da liberdade de expressão, lance mão da utensilhagem
própria do direito criminal, que não da do direito disciplinar, e é a esta ordem que pertence a
norma constante dos nº 1 do artigo 154º, conjugado com o nº 1 do artigo 155º, do Código de
Processo Civil, na parte aqui considerada.
Sem razão, porém, como adiante melhor se verá.
Por ora, queremos apenas sublinhar que aquelas duas diferentes formas de
expressão não pertencem a duas diferentes constituições, das quais uma fosse de 1976 e outra
de 1982, como parece ter-se entendido no aresto sub iudicio, onde, na verdade, se fala na
«Constituição de 1976» e na «Constituição actual». Trata-se, antes e apenas, de um mesmo
preceito de uma mesma e só Constituição, embora com distintos teores verbais. E esta é a
Constituição de 1976.
Uma constituição revista continua a ser a mesma constituição.
O próprio da revisão, é, justamente, o não importar o exercício de um novo poder
constituinte originário. É um acto de autoconservação e de auto-regeneração da Lei
Fundamental, traduzido na eliminação de normas que, entretanto, se mostraram desajustadas,
e no aditamento de outras que novas necessidades impuseram como condição de revitalização
da mesma lei básica. A revisão constitucional não importa, pois, qualquer ruptura com o
quadro essencial de valores vigente até aí, nem a sua substituição por uma nova ordem ou
fundamento de validade.
Ora, só se isto se verificasse, é que poderia falar-se numa nova constituição. Tal
não sucedeu, porém.

5 - A faculdade, consagrada no nº 1 do artigo 154º, conjugado com o nº 1 do artigo


155º, ambos do Código de Processo Civil, de os tribunais mandarem riscar as expressões,
usadas pelos mandatários judiciais nas suas peças forenses, que tenham por ofensivas, tem
uma longa tradição no nosso direito.
Vejamos:
Informa Luís Osório (Notas ao Código Penal, vol. 3º, Coimbra, 1924, pp. 371 e
segs.) que o direito romano proibia as injúrias sem necessidade da lide, bem como as que
fossem excessivas na forma. E acrescenta que, entre nós, as ordenações consideravam injúrias
atrozes as que eram feitas à parte com quem o injuriante litigava, e bem assim as que fossem
feitas em juízo.
O Código de Processo Civil de 1876, no seu artigo 98º, concedia ao juiz a
faculdade de mandai riscar as expressões ofensivas.
O Código Penal de 1886 preceituava, no artigo 419º, que os juízes podiam
«mandar riscar, nos escritos» produzidos em juízo, as expressões injuriosas ou difamatórias
que eles contivessem.
O Código de Processo Civil de 1939, no seu artigo 155º, continuou a permitir que
o tribunal - sem prejuízo do disposto na legislação penal - mandasse «riscar quaisquer
expressões ofensivas».
Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2º, Coimbra,
1945, p. 121) escreveu a propósito:
O artigo 98º do Código anterior, fonte do artigo 155º, protegia unicamente o
respeito devido às leis e ao tribunal; o Código actual fez abranger na protecção as instituições
vigentes.
A doutrina deste artigo 155º passou, no Código de 1962, para os artigos 154 e
155º.
exclusivamente aos órgãos [...]» da Ordem, acrescentava, no § 1º: «subsiste a competência dos
juízes e tribunais [...] para mandarem riscar quaisquer expressões ofensivas empregadas pelos
advogados e candidatos à advocacia [...]». E idêntica doutrina passou para o artigo 643º, nº 2,
do Estatuto Judiciário de 1962.
O actual Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei nº 84/84,
de 16 de Março, continua a prescrever, no artigo 90º que «os advogados estão sujeitos à
jurisdição disciplinar exclusiva dos órgãos da Ordem [...]». Não reproduz, porém, a doutrina
constante do § 1º do artigo 603º e do nº 2 do artigo 643º dos Estatutos de 1944 e 1962,
respectivamente. Depois, o artigo 95°, nº 1 - semelhantemente ao que dispunha o artigo 604.0
do Estatuto de 1944 e o artigo 646º, nº 1, do Estatuto de 1962 - estabelece que «os tribunais
[...] devem dar conhecimento à Ordem dos Advogados da prática por advogados de factos sus‐
ceptíveis de constituírem infracção disciplinar».

6 - Tem-se entendido, em geral, que a faculdade de os tribunais mandarem riscar as


expressões ofensivas, usadas pelos advogados nas suas peças forenses, se traduz no exercício
de um poder disciplinar.
Este era o entendimento de Alberto dos Reis: de facto, publicou na Revista de
Legislação e Jurisprudência, ano 59º, pp. 2 e segs., um artigo doutrinário, justamente a
propósito do artigo 98º do Código de Processo Civil de 1876, sob o título «Poder disciplinar
sobre os advogados»; e, no domínio do Código de 1939, precisamente no Comentário ao
Código de Processo Civil, vol. 2º, cit., p. 121, escreveu: «O artigo 155º estabelece a disciplina
sobre a linguagem do foro». E, mais adiante, fala em «acção disciplinar» e em «poder
disciplinar».
A Comissão Constitucional, no seu Acórdão nº 166 (Apêndice ao Diário da
República de 3 de Julho de 1980; v. também, no Boletim do Ministério da Justiça, nº 291, p.
329) entendeu também que «o tribunal, ao mandar riscar as expressões ofensivas, se encontra
no exercício de um poder disciplinar, aplica uma sanção disciplinar». E esta doutrina
manteve-a nos Acórdãos nºs 173 e 176 (citado Apêndice ao Diário da República de 3 de Julho
de 1980, pp. 20-23 e 27).

7 - Com isto concorda o aresto sub iudicio.


Só que, para ele - e como já se disse -, as infracções cometidas no exercício da
liberdade de expressão apenas podem ser reprimidas pelo recurso a sanções penais, não sendo
lícita a utilização de sanções disciplinares.
Vejamos, então:
Após a entrada em vigor da Constituição de 1976, alguns tribunais - v. g. o
Supremo Tribunal de Justiça [v. acórdãos de 20 de Outubro de 1977 e de 19 de Junho de 1979
(Boletim do Ministério da Justiça, nºs 270, p. 181 e 288, p. 314)] - entenderam que a
faculdade de mandar riscar expressões ofensivas, contida no artigo 154º, nº 1, do Código de
Processo Civil, se havia tornado inconstitucional, uma vez que - disse-se -, aí, se admitia uma
forma de censura que o texto constitucional veio proibir.
A Comissão Constitucional, porém, no Acórdão nº 166 já citado, veio dizer que o
nº 2 do artigo 37º da Lei Fundamental, ao prescrever que o exercício do direito de liberdade
de expressão «não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura»,
pretendeu tão-só «impedir a aplicação de sanções por via administrativa e [...] restringir as
hipóteses de aplicação de sanções por via judicial aos casos em que se haja violado os limites
constitucionalmente definidos ao direito de expressão e divulgação do pensamento». E
acrescentou depois: «Não parece [...] que o legislador constituinte tenha pretendido considerar
tal direito. E concluiu: «Não parece, portanto, que se possa considerar que o nº 1 do artigo
154º do Código de Processo Civil, ao conferir ao tribunal a faculdade de – ‘mandar riscar
quaisquer expressões ofensivas’ - preveja uma qualquer forma de censura. Em primeiro lugar,
porque se trata de uma sanção aplicável em reacção a uma violação dos limites estabelecidos
ao direito de expressão e divulgação de pensamento; e em segundo lugar, porque tal sanção é
aplicada por um tribunal judicial que verifica a violação desses limites» (v. também os Acór‐
dãos nºs 173 e 176, onde esta doutrina se manteve).
Neste sentido decidiu também a Relação do Porto [v. acórdão de 10 de Julho de
1979 (Colectânia de Jurisprudência, ano IV, t. 4, p. 1235)], que, arrimando-se a Alberto dos
Reis, ponderou não se tratar de uma forma de censura, «mas de sancionar um abuso cometido,
e através de um procedimento disciplinar munido de suficientes garantias».

8 - Era esta uma querela que já não era nova, entre nós.
De facto, tinha havido já quem tivesse entendido que o artigo 98º do Código de
Processo Civil de 1876 já citado se devia considerar revogado pelo artigo 3º, nº 13, da
Constituição de 1911, que prescrevia que «a expressão de pensamento, seja qual for a sua
forma, é completamente livre, sem dependência de caução, censura ou autorização prévia
[…]».
O certo, porém, é que o Supremo Tribunal de Justiça, pelo seu acórdão de 11 de
Maio de 1917 (v. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 50º, p. 398), rejeitou uma tal
doutrina. E isso, com o aplauso de Alberto dos Reis (Revista cit., ano 59º, p. 3).

9 - A liberdade de expressão - como de resto, os demais direitos fundamentais -


não é um direito absoluto, nem ilimitado. Desde logo, a protecção constitucional de um tal
direito não abrange todas as situações, formas ou modos pensáveis do seu exercício. Tem,
antes, limites, imanentes. O seu domínio de protecção pára, ali onde ele possa pôr em causa o
conteúdo essencial de outro direito ou atingir intoleravelmente a moral social ou os valores e
princípios fundamentais da ordem constitucional (v. neste sentido: J. C. Vieira de Andrade, Os
Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pp. 213 e segs.).
Depois, movendo-se num contexto social e tendo, por isso, que conviver com os direitos de
outros titulares, há-de ele sofrer as limitações impostas pela necessidade de realização destes.
E, então, em caso de colisão ou conflito com outros direitos - designadamente com aqueles
que se acham também directamente vinculados à dignidade da pessoa humana [v. g. o direito à
integridade moral (artigo 25º, nº 1) e o direito ao bom nome e reputação e à reserva da
intimidade da vida privada e familiar (artigo 26º, nº 1)] -, haverá que limitar-se em termos de
deixar que esses outros direitos encontrem também formas de realização.
Dizer isto é reconhecer que, sendo proibida toda a forma de censura (artigo 37º, nº
2), é, no entanto, lícito reprimir os abusos da liberdade de expressão, designadamente quando
cometidos por advogados que, em peças forenses, excedam as necessidades da defesa - a
libertas convicii (v. artigo 154º, nº 5).

10 - O artigo 37º aponta - segundo cremos - no sentido de que se não devem


permitir limitações à liberdade de expressão para além das que forem necessárias à
convivência com outros direitos, nem impor sanções que não sejam requeridas pela
necessidade de proteger os bens jurídicos que, em geral, se acham a coberto da tutela penal.
Mas, não impede que o legislador organize a tutela desses bens jurídicos lançando mão de
sanções de outra natureza (civis, disciplinares...).
Não terá, assim, que haver apenas sanções criminais.
deve intervir quando os meios não criminais da política social se mostrem insuficientes para
tutela daqueles bens jurídicos. Dizendo de outro modo: só deverá recorrer-se a sanções penais
para tutelar os bens jurídicos mais importantes e fazer frente aos ataques mais graves. As
sanções penais surgem, assim, como ultima ratio. É o princípio da subsidiariedade ou - como
se expressa certa doutrina - o princípio da liberdade máxima - intervenção mínima (v. Munõz
Conde, Introducción al Derecho Penal, Barcelona, 1975, pp. 59 e segs.).
A política criminal deve orientar-se por critérios de racionalidade. Só deve, por
isso, ir-se pela via das sanções criminais, quando elas possam ser minimamente eficazes.
Devem, com efeito, adoptar-se soluções que conduzam a maximizar o conformismo e os
ganhos sociais e a minimizar os custos.
É, assim, razoável que se sancione com uma medida disciplinar, de eficácia
assegurada, a conduta do mandatário judicial que, em peças forenses, se excedeu na
linguagem, usando expressões que - para além de desnecessárias à defesa - são ofensivas.
Trata-se de uma medida que é, em regra, adequada à falta cometida, pois a gravidade desta
resulta muito diminuída, quando se considere que o ambiente de uma lide judicial é, por
vezes, propício a ganhar-se calor e a cometerem-se excessos de linguagem. Depois, há razões
(v. g. a necessidade de que o processo se desenvolva num clima de tranquilidade) que
aconselham aquele tipo de intervenção. Finalmente, a celeridade dessa intervenção não
acarreta, aqui, qualquer risco de injustiça, uma vez que - para além de se não poderem mandar
riscar expressões necessárias à defesa (artigo 154º, nº 5, do Código de Processo Civil) - para
além disso, há sempre recurso, com efeito suspensivo, da respectiva decisão (artigo 155º, nº
2).
Por consequência, nenhuma razão existe para que se não entenda agora também,
com a Comissão Constitucional, que o artigo 154º, nº 1, do Código de Processo Civil não
prevê qualquer forma de censura, sim uma medida disciplinar, cuja aplicação o texto
constitucional não proíbe.

11 - Este entendimento das coisas em nada é contrariado pela circunstância já


assinalada de, com a revisão constitucional, no artigo 37º, nº 3, se ter substituído a expressão
«regime de punição da lei geral» por estoutra «princípios gerais de direito criminal».
Desde logo, se fosse legítimo - e não o é, como se verá - suscitar-se a dúvida de
saber se, com a alteração, se teria pretendido significar que os abusos à liberdade de expressão
apenas pudessem ser punidos com sanções criminais - e não também com sanções
disciplinares -, a resposta haveria de ser negativa.
De facto, se houvesse obscuridade na formulação da regra constitucional, como ela
já vinha do texto de 1976, sempre haveria que interpretá-la com o sentido que, aí, a doutrina e
a jurisprudência lhe davam. Como adverte Manuel de Andrade (Sentido e Valor da
Jurisprudência, Coimbra, 1973, p. 27), «na dúvida, parte-se do princípio de que a lei se quis
ater ao direito previgente; pois um legislador razoável, quando pretende introduzir inovações,
costuma deixá-las bem vincadas na própria letra dos textos - nem se decide a inovar senão em
dados pontos, sob a pressão de exigências bastante apreciáveis». Exigências que,
seguramente, no caso, se não faziam sentir.

12 - A dúvida não é, porém, sequer, razoável.


Com efeito, entendia-se que, ao falar-se, no artigo 37º, nº 3, da Constituição, em
«regime de punição da lei geral», se remetia «para os princípios gerais de direito penal tanto
em matérias de incriminações como de reacções criminais». Princípios gerais de direito penal
que são, não apenas os princípios jurídico-constitucionais penais, mas também «aqueles que
um como que estatuto cujo ponto de referência é a communitas civium». «São princípios de
humanidade e de cultura» - para nos expressarmos com o Acórdão nº 175 da Comissão
Constitucional (Apêndice ao Diário da República de 3 de Julho de 1980, pp. 23 e segs.).
O que, por conseguinte - como se acentuou naquele acórdão -, o texto
constitucional pretendeu foi que a lei que vier prever infracções cometidas no exercício da
liberdade de expressão seja uma lei formal e marcada pela característica da generalidade, e
nunca uma lei pessoal ou lei-medida. De outro lado, quis que, na tipificação de tais infracções,
se não discriminem determinadas opiniões, proibindo-as com a ameaça de sanções penais. De
outro ainda, veio exigir que a lei, ao introduzir limites à liberdade de expressão, o faça tão-só
para proteger bens ou valores que, na situação, se revelem preponderantes. E, finalmente - sob
pena de se não poder falar em lei geral -, preciso é ainda que ela não contenha um regime de
excepção, do ponto de vista jurídico-penal, quer no que toca à definição das infracções e
sanções, quer no que concerne ao seu processamento.
A esta proibição de regimes de excepção «não vai ligada a proibição de
especialidades de regimes, sempre que materialmente justificados e adequados à
especificidade das matérias; vai ligada, sim, a proibição de regimes que contrariem os
princípios fundamentais ou os princípios gerais que presidem à disciplina jurídica respectiva»
(cit. acórdão), que assim, a lei há-de respeitar.
São, portanto, leis gerais, respeitadoras dos princípios gerais de direito criminal,
todas aquelas que «não proíbem a manifestação de uma opinião como tal, mas antes visam a
defesa de um bem jurídico digno de protecção, independentemente de qualquer opinião
determinada, que visam, portanto, a protecção de um valor comunitário prevalente sobre o
exercício da liberdade de opinião» - escreveu-se no citado Acórdão nº 175 e repete-se agora.

13 - Como se vê, pois, «lei geral» e «princípios gerais de direito criminal» são
diferentes modos de dizer uma e a mesma coisa.
Ao substituir-se, no texto constitucional, aquela expressão por esta, não se quis
inovar. Quis-se, isso sim, ser mais preciso e tecnicamente mais perfeito.
«O nº 3 é apenas uma correcção técnica de linguagem. Falar-se-ia nos princípios
gerais de direito criminal, em vez de se falar - como hoje - no regime de punição da lei geral.
Aliás isto já não é assim, existe um regime especial de punição para este tipo de infracções» -
disse-se na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional [v. Diário da Assembleia da
República, II Legislatura, 2a sessão legislativa (1981-1982), 2a série, 2º suplemento ao nº 80,
de 21 de Abril de 1982, p. 1508-(36)].

III - Decisão:
Nestes termos, acorda-se em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 154º, nº 1, referido ao nº 1 do
artigo 155º, ambos do Código de Processo Civil na parte sub iudicio;
b) Julgar procedente o recurso e revogar o acórdão da Relação na parte recorrida;
c) Mandar que a decisão sob recurso seja reformada em conformidade (artigo 80º,
nº 2, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro).
Sem custas, por não serem devidas.

Lisboa, 18 de Julho de 1984. - Messias Bento - José Manuel Cardoso da Costa -


Mário Afonso - Luís Nunes de Almeida - Mário de Brito - José Magalhães Godinho.
 

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