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2ª Avaliação de Direito Processual Penal 2

Professor: Pedro de Oliveira Alves


Estagiária: Juliana Trindade Ribeiro Pessoa Semestre 2020.1| Ano 2021
Aluno (a): Caio Aragão da Rocha

1. Os irmãos Mévio e Tício, em decorrência de uma briga no âmbito doméstico,


empurraram e sacudiram Ticiana, irmã deles. Tendo em vista tal conjuntura, o
Ministério Público ofereceu denúncia pela prática de contravenções penais de vias de
fato, em situação de violência doméstica, cuja pena é de prisão simples de quinze dias a
três meses ou multa, em concurso de agentes. Depois de recebida a denúncia, foram
realizadas as tentativas para a citação pessoal do réu, contudo não se obteve sucesso,
ocasião em que o juiz citou-os por edital, seguindo os ditames processuais. Ante o
exposto, pergunta-se: tendo Mévio comparecido pessoalmente, ainda que o Promotor
tenha pedido a sua absolvição, o magistrado pode condená-lo e reconhecer a
circunstância agravante em virtude do parentesco de Mévio e Ticiana? Justifique a sua
resposta com amparo legal, doutrinário e jurisprudencial. (Valor: 3,0)
Observando o caso concreto, primeiramente é vital discorrer a respeito da
possibilidade de instauração de ação penal pública incondicionada pelo Ministério Público
diante de contravenção penal em vias de fato. Apesar da ação penal nas contravenções penais
ser, via de regra, sempre pública incondicionada (art. 17 do Decreto-lei nº 3.688/41), há certa
polêmica a respeito de tal preceito se aplicar no caso da contravenção penal em que há lesão
corporal leve após a promulgação da Lei 9.099/95.
Isso ocorreu em função da modificação exercida pelo art. 88 dessa lei, que
condicionou à representação as ações penais relativas aos crimes de lesões corporais leves e
lesões culposas. Com isso, parte da doutrina passou a defender que, em razão de uma
necessidade de coerência, tal regra deveria aplicar-se também às contravenções penais em
vias de fato, ou seja, naquelas em que há “violência empregada contra a pessoa, de que não
decorre ofensa à sua integridade física”1. Tratar-se-ia de uma conclusão lógica: “ora, se o

1Contravenções Penais, v. 1, p. 164 apud NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais
Comentadas, 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, vol. 1, p. 124.
mais (lesão corporal) demanda a autorização do ofendido, é óbvio que menos (vias de fato)
também deve exigir representação”2.
Diante disso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aclarou a questão ao decidir
contrariamente ao entendendimento de que a mudança deveria estender-se às contravenções
penais em vias de fato:
1. O artigo 88 da Lei n.º 9.099/95, que tornou condicionada à representação a ação
penal por lesões corporais leves e lesões culposas, não se estende à persecução das
contravenções penais. A contravenção penal de vias de fato, insculpida no artigo 21
da Lei de Contravenções Penais (Decreto Lei n.º 3.688/41), ainda que de menor
potencial ofensivo em relação ao crime de lesão corporal, não foi incluída nas
hipóteses do artigo 88 da Lei n.º 9.099-95. 2. A Lei de Contravenções Penais
(Decreto Lei n.º 3.688/41) continua em pleno vigor e nela há expressa previsão
legal de que a ação penal é pública incondicionada, conforme disciplina o seu artigo
17.3
No caso concreto, estamos diante não somente de uma denúncia por contravenção
penal em vias de fato, mas também no contexto de violência doméstica. Para tratar da
questão, é essencial esclarecer, de antemão, a divergência de opiniões em torno do art. 41 da
Lei 11.340/06, que proibiu a aplicação da Lei 9.099/95 aos crimes cometidos contra a mulher
no ambiente doméstico e familiar. A partir dessa determinação legal, passou-se a discutir a
respeito de sua recepção pela Constituição Federal.
O STJ, em sede de controle concentrado de constitucionalidade (ADI 4424), pacificou
a questão, ao reconhecer que o texto legal não viola a Carta Magna. Destarte, a ação penal
nos crimes de lesão corporal dolosa, ainda que de natureza leve, cometidos em ambiente
doméstico ou familiar contra a mulher é pública incondicionada. Com isso, foi editada a
súmula nº 542: “A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência
doméstica contra a mulher é pública incondicionada.”4
Ainda assim, restou debate na doutrina acerca da aplicação da regra do art. 41 às
contravenções penais, uma vez que a letra de lei utiliza o termo “crime”. No entanto,
considerando tratar-se de uma lei voltada à proteção da mulher através da repressão mais
acentuada dessas infrações, de forma a coibir sua propagação, o STJ tem decidido que a
utilização do termo “crime”, nesse caso, teria o sentido de “infração penal”, englobando as
contravenções penais:

2 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, 10. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2017, vol. 1, p. 125.
3SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, RHC 47.253/MS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS
MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 04/12/2014, DJe 17/12/2014.
4 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 3ª Seção. Aprovada em 26/8/2015, DJe 31/8/2015.
7. A Lei de Contravenções Penais, em seu artigo 17, estabelece que a ação penal é
pública em relação a todas as infrações tipificadas nesse diploma legal. 8. Para fins
da Lei Maria da Penha, a palavra “crime” deve ser interpretada como infração
penal, ou seja, corresponde aos crimes e às contravenções descritas no Decreto-lei
n. 3.688/1941. Ainda, a teor da jurisprudência desta Corte, ‘seja caso de lesão
corporal leve, seja de vias de fato, se praticado em contexto de violência doméstica
ou familiar, não há falar em necessidade de representação da vítima para a
persecução penal.5
Há outros julgados que corroboram com o entendimento segundo o qual, no caso de
contravenções em vias de fato em cenário de violência doméstica a ação penal é pública
incondicionada: “seja caso de lesão corporal leve, seja de vias de fato, se praticado em
contexto de violência doméstica ou familiar, não há falar em necessidade de representação da
vítima para a persecução penal.”6
Com isso, tem-se que coube, nesse caso, a interposição de ação penal pública pelo
Ministério Público, ainda que não tenha havido representação.
Passa-se à questão da citação realizada. A citação ficta ou por edital consiste em uma
medida excepcional, aplicada quando esgotados todos os meios de localização do autuado,
que se dá por meio da publicação ou afixação na entrada do fórum da ordem judicial da
citação. Como, de acordo com o enunciado, a citação deu-se segundo os trâmites processuais
e foi seguido do comparecimento espontâneo de Mévio, adota-se a regra do art. 363, § 4º, do
Código de Processo Penal (CPP): “Comparecendo o acusado citado por edital, em qualquer
tempo, o processo observará o disposto nos arts. 394 e seguintes deste Código.” Ou seja,
deverá dar-se normalmente o seguimento da instrução criminal.
Com esses preceitos estabelecidos, partimos para a análise do cerne da questão, que
questiona a respeito do poder do magistrado em condenar ainda que o Ministério Público
tenha pleiteado pela absolvição de Mévio. Essa questão também é palco de divergências
doutrinárias. Por um lado, tem-se a regra do art. 385 do CPP, segundo a qual: “nos crimes de
ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público
tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha
sido alegada”.
Os autores que seguem esse direcionamento afirmam que ele está de acordo com o
princípio da indisponibilidade da ação penal, previsto no art. 42 do CPP. Sendo assim, o juiz

5 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, RHC 88.515/RJ, Quinta Turma, j. 24/05/2018.


6AgRg no AREsp 703.829/MG, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 27/10/2015, DJe
16/11/2015.
não pode estar vinculado à manifestação do Ministério Público para decidir, bem como este,
uma vez tendo apresentado a denúncia, não pode desistir da ação penal. Nesse sentido:
Na verdade, se o Juiz devesse proferir decreto absolutório quando o Ministério
Público entendesse conveniente, o direito de punir passaria a pertencer-lhe. Bastaria
o Promotor pedir a absolvição e o Juiz, obrigado a atendê-lo. Sendo indisponível a
ação penal, não pode o Ministério Público dela dispor. Daí, mesmo que o Promotor
postule a absolvição do réu, nada impede que o Juiz profira decreto condenatório.7
(TOURINHO FILHO, 2010, p. 964/965).
Por outro lado, doutrinadores como Aury Lopes Júnior ressaltam que, em um sistema
acusatório, no caso da ação penal pública, o Estado realiza dois direitos distintos: o de acusar,
exercido pelo Ministério Público, e o de punir, exercido pelo órgão julgador. Essa separação
faz com que o Ministério Público seja o titular da pretensão acusatória, sendo assim, caso não
haja o exercício dessa função por esse órgão, como no caso de interposição de pedido de
absolvição, não cabe ao Estado exercer a função de punir, uma vez que se trata de um poder
condicionado.8
Dessa maneira, é flagrante violação ao sistema acusatório, consagrado no art. 129, I,
da Constituição Federal, bem como no art. 3º-A do CPP, incluído pela Lei 13.964/2019, a
condenação do juiz diante do pedido de absolvição do Ministério Público, uma vez que o
órgão julgador estaria exercendo a dupla função de acusar e punir, típica do sistema
inquisitório. Nesse sentido, a advogada criminalista Joyce Roysen aponta que, ao manter o
art. 385, o legislador da Lei 13.964 "perdeu uma oportunidade de realizar uma nova alteração
legislativa que caminhasse em direção a um processo efetivamente acusatório e, portanto, em
conformidade com a Constituição de 1988".9
Há, ainda, doutrinadores que defendem a revogação tácita do art. 385, uma vez que a
regra burla o princípio da congruência, bem como a decisão prolatada seria nula, por violar a
garantia do contraditório. Assim, como o juiz “não pode fundamentar sua decisão

7TOURINHO FILHO, 2010, p. 964/965 apud NOGUEIRA, Lucas G. C.; NOGUEIRA, Rafael F. A (Des)
Vinculação do Magistrado ao Pedido de Absolvição do Réu Pugnado Pelo Ministério Público
em Ação Penal Pública. Revista Acadêmica Escola Superior do Ministério Público do Ceará, 2018, p.
153-174. Disponível em: http://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2018/10/9-ARTIGO-ED-3.pdf.
8 JUNIOR, Aury Lopes. Direito processual penal, 17 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 1.436.
9 ANGELO, Tiago. Com lei "anticrime", juiz ainda pode condenar mesmo que MP peça absolvição. Conjur,
2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-16/juiz-ainda-condenar-mesmo-mp-peca-absolvicao-
reu#:~:text=Segundo%20esse%20dispositivo%2C%20o%20%22Minist%C3%A9rio,pode%20desistir%20da%2
0a%C3%A7%C3%A3o%20penal%22.&text=Na%20ementa%20da%20A%C3%A7%C3%A3o%20Penal,o%20
MP%20pedir%20a%20absolvi%C3%A7%C3%A3o.
condenatória em provas ou argumentos que não tenham sido objeto de contraditório, é nula a
sentença condenatória proferida quando a acusação opina pela absolvição.”10
Consequentemente, a segunda parte da redação do artigo, que estabelece a
possibilidade de condenação com base em agravantes não apontados pelo Ministério Público,
constitui flagrante violação ao princípio do contraditório, bem como do princípio da
imparcialidade, uma vez que, nesse caso, o juiz estaria acusando de ofício, para, em seguida,
exercer o poder punitivo.
Destarte, a previsão do art. 385 esvazia por completo a função do processo, e,
principalmente, da instrução, visto que o momento de verificação da veracidade dos
elementos apresentados como indiciários durante a denúncia é justamente no desenrolar
processual. Sendo assim, só é possível, tanto ao juiz quanto ao membro do Ministério
Público, formularem seu convencimento após esgotadas as argumentações. Com isso, tem-se
que é possível dar-se a transmutação do caráter da pretensão acusatória do Ministério Público
para absolutória, não sendo juridicamente válida a decisão condenatória que não ocorra
diante de expresso pedido de condenação após a instrução criminal. Haveria, assim, uma
relação de prejudicialidade entre o convencimento do promotor e do magistrado.11
No que concerne à jurisprudência, porém, a regra do art. 385 ainda vem sendo
aplicada pelos tribunais. O julgamento do Resp 1.612.551, pelo Superior Tribunal de Justiça,
em que foi declarada a recepção da referida norma pela Constituição Federal, mesmo diante
de manifestação contrária do próprio Ministério Público Federal, é um exemplo emblemático:
1. Nos termos do art. 385 do Código de Processo Penal, nos crimes de ação pública,
o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha
opinado pela absolvição. 2. O artigo 385 do Código de Processo Penal foi
recepcionado pela Constituição Federal. Precedentes desta Corte. 3. Agravo
regimental não provido.12
Sendo assim, apesar da vasta opinião doutrinária contrária, ainda há aplicação do art.
385 pelos tribunais, sendo possível, no caso concreto apontado na questão, a decisão
condenatória do juiz, ainda que diante de pedido de absolvição do Ministério Público.

10PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório, clt. p. 116-117 apud JUNIOR, Aury Lopes. Direito processual penal,
17 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 1.437.
11ROSA, Karine A. E.; TUPINAMBÁ, Renata M. Se Ministério Público pede absolvição de réu, juiz não pode
condená-lo. Conjur, 2017. https://www.conjur.com.br/2017-jul-25/opiniao-ministerio-publico-absolvicao-juiz-
nao-condenar.
12SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Quinta Turma, AgRg no REsp 1.612.551/RJ, Relator Ministro
Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 02/02/2017.
Cabe, finalmente, analisar a agravante apontada pelo juiz, que, apesar de não haver
sido pleiteada pelo Ministério Público, foi estabelecida na decisão, em contrariedade ao
princípio do contraditório. No entanto, como já exposta a possibilidade de aplicação do art.
385 em função da jurisprudência do STJ, passa-se ao questionamento a respeito do ajuste da
agravante apontada pelo juiz, prevista no art. 61, inciso II, alínea e do CP, diante do caso
concreto.
Tem-se que a relação de parentesco, diante de uma infração realizada no âmbito
doméstico ou familiar, constitui parte elementar do tipo penal. Dessa forma, configuraria bis
in idem a aplicação da agravante nesses casos:
Necessário ter em conta aqui as implicações relativas à legislação a respeito de
violência doméstica, crimes contra a relação familiar, como o abandono material,
por exemplo, cujos tipos penais, por vezes, excluirão a agravante, sob pena de
incorrência em bis in idem, já que as relações familiares são elementares dos
tipos.13
Nesse sentido, tem-se o julgado:
APELAÇÃO CRIMINAL - VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA
ASCENDENTE - AGRAVADO PELA CIRCUNSTÂNCIA PREVISTA NO ART.
61, II, 'E' DO CP - DECOTE DA AGRAVANTE - BIS IN IDEM. - Por se tratar de
circunstância que caracteriza o próprio tipo penal, não se aplica a agravante de
crime perpetrado contra ascendente e no âmbito das relações domésticas no caso da
infração do art. 129, § 9º, do CP, sob pena de incorrer em bis in idem.14
Porém, destaca-se que tal julgado se refere ao tipo penal previsto no art. 129, §9º do
CP, no qual está descrito “se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão,
cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-
se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”. No caso concreto,
no entanto, tem-se uma condenação por contravenção penal em vias de fato, em situação de
violência doméstica. Assim, situação de violência doméstica, segundo a Lei 11.340/06,
engloba:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio
permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente
agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por
indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por
afinidade ou por vontade expressa;

13 BUSATO, Paulo César. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2013. p. 895
14TJMG - Apelação Criminal 1.0701.09.275077-0/001, Relator (a): Des.(a) Júlio Cezar Guttierrez , 4ª
CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 25/03/2015, publicação da sumula em 31/03/2015.
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha
convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Dessa forma, a hipótese prevista no caso concreto está abrangida no inciso II do art.
5º da referida lei, demonstrando, assim, que o próprio contexto de violência doméstica
engloba, nesse caso, a relação de parentesco apontada. Sendo assim, não caberia o
reconhecimento da agravante pelo juiz.

2. Em 2006, Suzane Von Richthofen e os irmãos Cravinho foram condenados em decisão


do 1º Tribunal do Júri de São Paulo. No entanto, a defesa de Suzane alegou diversas
questões na fase recursal perante o Tribunal de Justiça e o Superior Tribunal de Justiça.
Dentre essas questões, a defesa sustentou que não foi observado o trânsito em julgado
da decisão de pronúncia, razão suficiente que anularia a 2ª fase do procedimento.
Discordando da tese, em decisão unânime em 2008, a 6ª Turma do STJ apontou para
uma jurisprudência no sentido de que a decisão de pronúncia não gera coisa julgada e
não gera condenação. Portanto, na época, o STJ sedimentou o argumento de que a
realização do julgamento não estaria condicionada à preclusão. É possível afirmar que
este entendimento permanece na atualidade? Como a dogmática processual penal
enfrenta o tema das nulidades relativas à decisão de pronúncia na atualidade? Caso
surja uma mudança na jurisprudência para reconhecer nulidades no procedimento do
Júri, os efeitos poderão retroagir para anular julgamentos como o caso Suzane
Richthofen? Justifique a sua resposta com amparo legal, doutrinário e jurisprudencial.
(Valor: 3,0)
A pronúncia constitui decisão interlocutória mista, não terminativa, que, de acordo
com o art. 413 do CPP, se dará quando o juiz estiver “convencido da materialidade do fato e
da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação”. Tal decisão compõe o
acolhimento provisório da pretensão acusatória pelo juiz, que, a partir dela, determina que o
réu seja submetido ao julgamento do Tribunal do Júri.
Destaca-se que tal decisão deve estar de acordo com os requisitos previstos no art.
381 do CPP para as sentenças, tratando-se de decisão interlocutória mista não terminativa, ou
seja, que resolve uma questão processual, sem encerrar qualquer fase do processo e sem
julgar o mérito. Sendo assim, tal decisão não produz coisa julgada material, ou seja, “a
autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito” (art. 502 do CPC), uma vez
que, apesar da pronúncia, pode haver desclassificação para outro crime, quando se der o
julgamento em plenário. A decisão de pronúncia constitui mero juízo de admissibilidade
quanto à existência de autoria e provas, não podendo sua fundamentação conter afirmações
acerca da autoria ou a materialidade do delito, sob pena de induzir os jurados a
prejulgamentos. Com isso, visa-se assegurar a máxima originalidade do julgamento,
minimizando a influência dos argumentos e juízos de (des)valor realizados pelo juiz
presidente.15 Visando a efetivação dessa garantia, a Lei 11.689/2008 alterou o rito do Tribunal
do Júri e, através da redação do art. 478 do CPP, determinou a proibição, sob pena de
nulidade, de que as partes façam referência “à decisão de pronúncia, às decisões posteriores
que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento
de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado”. Assim, a pronúncia não gera
condenação, trata-se de um juízo de probabilidade, não definitivo, que não vincula o
julgamento.
Por outro lado, a pronúncia gera coisa julgada formal, ou seja, a estabilidade da
decisão não mais recorrível16. Trata-se de fenômeno endoprocessual que ocorre com a
preclusão da possibilidade de interposição de recurso, ou seja, uma vez preclusa a via
recursal, não poderá ser alterada, a menos que circunstância fática superveniente que altere a
classificação do crime se apresente (art. 421, §1º, do CPP). A partir disso, é importante tratar
da norma prevista no art. 421 do CPP: “preclusa a decisão de pronúncia, os autos serão
encaminhados ao juiz presidente do Tribunal do Júri.” A leitura do texto legal provoca o
questionamento de se pode ser realizada a 2ª fase do procedimento na pendência de recurso
em sentido estrito da pronúncia, meio apto para sua impugnação (art. 581, IV, do CPP). Aury
Lopes Júnior esclarece a temática:
O argumento da falta de efeito suspensivo no recurso especial e extraordinário,
além de constituir um errôneo civilismo da teoria geral do processo, tinha algum
sentido antes da reforma processual de 2008. Mas não agora, com a nova redação.
Não há preclusão da pronúncia na pendência de recurso, sendo irrelevante a questão
“efeito recursal”. Em suma, pensamos que não pode ser aprazado o julgamento pelo
tribunal do júri enquanto não houver preclusão, ou seja, enquanto não forem
julgados os recursos interpostos.17
Segundo esse entendimento, a mudança provocada com o advento da Lei 11.689/2008
faz com que, atualmente, a decisão tomada pela 6ª Turma do STJ no caso Richthofen, apesar

15 JUNIOR, Aury Lopes. Direito processual penal, 17 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p.1.253.
16 CÂMARA, Alexandre. O novo processo civil brasileiro. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 310.
17 JUNIOR, Aury Lopes. Direito processual penal, 17 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 1.268.
de apontar que a pronúncia realmente não gera condenação, por tratar-se de uma decisão não
definitiva, estaria ultrapassada no que se refere à afirmação de que o julgamento não estaria
condicionado à preclusão, uma vez que a decisão de pronúncia gera coisa julgada formal e
não pode ser realizado o julgamento pelo tribunal do júri enquanto não houver preclusão.
Corroborando com esse posicionamento, o autor aponta para o julgamento do HC
0030972-02.2010.8.19.0000.
Entretanto, existe opinião jurisprudencial diversa, apontando que, em atenção ao
princípio da duração razoável do processo:
(...) a pendência de recursos especial e extraordinário, que tenham sido interpostos
contra a decisão de pronúncia, não deve ser óbice à realização do julgamento pelo
Tribunal do Júri. Ademais, o artigo 421 do Código de Processo Penal, no que
condiciona a realização do Júri à ‘preclusão da decisão de pronúncia’ deve ser
interpretado como significando o esgotamento dos recursos ordinários.18
Tal é o voto do ministro Gilmar Mendes no julgamento do HC 134.900/RS, que
aponta que a preclusão da decisão de pronúncia deve se referir apenas às instâncias ordinárias
de recurso. Nesse sentido, outro julgamento do Tribunal Superior:
HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. TRIBUNAL DO JÚRI.
PRONÚNCIA. PRECLUSÃO. RECURSO ESPECIAL PENDENTE DE
JULGAMENTO. SOBRESTAMENTO DO CURSO DO PROCESSO.
DESNECESSIDADE. 1. A preclusão a que se refere o art. 421 do CPP diz respeito
apenas às decisões com recursos previstos para as instâncias ordinárias, razão pela
qual a pendência de recursos de natureza extraordinária não impede a realização do
júri. Precedentes. 2. Habeas corpus denegado.19
É vital atentar-se, porém, para o fato de que o princípio da duração razoável do
processo não justifica o descuido com os direitos e garantias do acusado, como o
contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal. Por esse motivo, a preclusão da
decisão de pronúncia prevista no art. 121 do CPP deve ser entendida como a sua submissão
ao duplo grau de jurisdição, com a inexistência de recursos com efeito suspensivo.
Dessa maneira, com base na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, José Mário
Barbuto chega à conclusão de que:
(...) o início da segunda fase do procedimento do Júri deve ser iniciado, nos termos
do artigo 421 do CPP, a partir do esgotamento dos recursos ordinários, sendo que o
julgamento pelo Conselho de Sentença não pode ser impedido em razão, tão

18SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC 134.900/DF, 2ª Turma, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJ Nr.
223 do dia 20/10/2016.
19SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, HC 130.314/DF, 2ª Turma, Rel. Min. TEORI ZAVASCKI, DJe-258
DIVULG 02-12-2016 PUBLIC 05-12-2016.
somente, da existência de recursos extraordinários pendentes, salvo se houver
ordem expressa dos Tribunais Superiores determinando a suspensão do processo.20
A partir dessas explanações, passa-se à questão de se, a partir dessas mudanças, os
efeitos da nova lei poderão retroagir para anular julgamentos como o caso Suzane
Richthofen. Primeiramente, tem-se que, de um lado, as leis penais não retroagem, salvo em
benefício do réu (art. 2º., parágrafo único do Código Penal e art. 5º., XL da Constituição
Federal), e, de outro, que as leis processuais penais têm aplicabilidade imediata (art. 2º. Do
Código de Processo Penal), não retroagindo seus efeitos a fatos anteriores à sua vigência.
Para dirimir a questão de se seria a norma do art. 421 de natureza puramente
processual ou, tão-somente, penal, ou, ainda, híbrida, é essencial destacar que a decisão de
pronúncia não faz coisa julgada material, ou seja, não se trata de um instituto cujo caráter
recursal poderia vir a violar o princípio do duplo grau de jurisdição, diante de uma sentença
condenatória em primeira instância. A pronúncia é uma decisão não terminativa de caráter
processual, cujo juízo não vincula o julgamento. Sendo assim, não cabe, nesse caso, a
aplicação da regra da retroatividade da lei penal em benefício do réu.

3. Em julgamento recente da 5ª Turma do STJ, o Min. Marcelo Navarro foi relator do


HC 641.877. Nesta decisão, o órgão decisório entendeu que “é possível a utilização do
Whatsapp para a citação de acusado, desde que sejam adotadas medidas suficientes
para atestar a autenticidade do número telefônico, bem como a identidade do indivíduo
destinatário do ato processual”, atendido o “princípio pas nullité sans grief”. No
entanto, no caso concreto, a 5ª Turma anulou a citação via Whatsapp porque
inexistentes os comprovantes da autenticidade da identidade do citando. À luz desse
caso específico, considerando a função do Processo Penal e o sistema de direito positivo
brasileiro, você acredita que esta modalidade realmente deve ser admitida no âmbito da
interpretação dos Tribunais? Realize uma pesquisa sobre os fundamentos dessa
(in)viabilidade, fornecendo critérios e diretrizes a serem observadas para a citação
processual. (Valor: 3,0)

20 BARBUTO, José M. B. M. Preclusão da decisão de pronúncia e designação no Tribunal do Júri. Conjur,


2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-ago-25/jose-barbuto-preclusao-decisao-pronuncia-
t r i b u n a l -
juri#:~:text=O%20mesmo%20Supremo%20Tribunal%20Federal,HOMIC%C3%8DDIO%20QUALIFICADO..
De acordo com Aury Lopes Júnior, a comunicação dos atos processuais tem como
objetivo promover a eficácia dos direitos fundamentais do contraditório e da ampla defesa.21
A citação trata-se da comunicação da existência de uma acusação ao réu, sendo o primeiro
momento do contraditório, a partir do qual ele terá a possibilidade de exercer seu direito de
defesa pessoal ou técnica. Por esse motivo, de acordo com o art. 363 do CPP, “o processo terá
completada sua formação quando realizada a citação do acusado”.
Trata-se de uma garantia para o réu, estando ele solto ou preso. Dessa forma, qualquer
violação à forma prescrita acarreta a invalidade processual, de acordo com o art. 564, III, “e”,
do CPP. Assim, de acordo com o art. 396 do CPP: “Nos procedimentos ordinário e sumário,
oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará
a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.”
A citação, quando o réu estiver no território sujeito à jurisdição do juiz que a houver
ordenado, deve ser realizada pessoalmente através de mandado, pelo oficial de justiça,
contendo os requisitos previstos no art. 352 do CPP. O art. 357 do CPP regula o trâmite em
que deve ser realizada: primeiramente, deve haver a leitura do mandado ao citando pelo
oficial e entrega da contrafé, na qual mencionar-se-ão dia e hora da citação; em seguida, a
declaração do oficial, na certidão, da entrega da contrafé, e sua aceitação ou recusa.
Caso o réu se encontre fora do território da jurisdição do juiz processante, a citação
ocorrerá mediante carta precatória ou rogatória (se expedida para cumprimento no exterior).
Ao tratar da temática, Aury L. Jr. faz uma ressalva:
Nada impede, ainda, o uso de fax ou mesmo e-mail (que deverá ser devidamente
impresso para integrar os autos) para o ágil cumprimento da carta precatória. O art.
356 do CPP (como outros tantos) deve ser relido à luz do nível atual de evolução
tecnológica, de modo que não se pode mais falar em “via telegráfica” e
“reconhecimento da firma” do juiz(...)22
A lei 11.719/2008 ainda acrescentou a citação por hora certa, que se dá quando for
verificado pelo oficial de justiça que o réu se oculta para não ser citado, segundo as regras
dos arts. 227 a 229 do CPC. Caso sejam esgotadas todas as possibilidades de encontrar o réu,
se dará a citação ficta, por edital, com prazo de 15 dias para que o réu ou defensor constituído
se apresente no cartório para que seja citado e comunicado do inteiro teor da acusação para
que, dentro do prazo de 10 dias, apresente sua resposta escrita. Se não se der o

21 JUNIOR, Aury Lopes. Direito processual penal, 17 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 843.
22 JUNIOR, Aury Lopes. Direito processual penal, 17 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 847.
comparecimento, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o
juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso,
decretar prisão preventiva (art. 366 do CPP). O Código de Processo Penal ainda estabelece
meios de citação específicos para o militar (art. 358) e o servidor público (art. 359).
Feitas essas considerações gerais, passa-se à questão da possibilidade de citação
através do aplicativo WhatsApp. Tal possibilidade foi apontada pela 5ª turma do STJ no
julgamento do HC 641.877. Apesar da Defensoria do Distrito Federal ter apontado, diante da
citação por WhatsApp realizada no caso concreto, que essa possibilidade violava o art. 6º da
Lei 11.419/06 (“Observadas as formas e as cautelas do art. 5º desta Lei, as citações, inclusive
da Fazenda Pública, excetuadas as dos Direitos Processuais Criminal e Infracional, poderão
ser feitas por meio eletrônico, desde que a íntegra dos autos seja acessível ao citando”), o
relator, ministro Ribeiro Dantas, destacou em seu voto que: "sem ofensa ao sentido
teleológico da norma não haverá prejuízo e, por isso, o reconhecimento da nulidade nessa
hipótese constituiria consagração de um formalismo exagerado e inútil".
De acordo com o relator, apesar dos diversos entraves para a medida, que, no caso
concreto, foi anulada em razão da falta de comprovante quanto à autenticidade da identidade
do citando (foram elencados no relatório três pilares para isso: número do telefone,
confirmação escrita e foto), não se pode “fechar os olhos para a realidade” atual, ou seja,
diante da evolução tecnológica, caberia ao Direito, também, adaptar-se a esse cenário. Essa
percepção pode ser corroborada com a determinação do art. 3º do CPP: “A lei processual
penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos
princípios gerais de direito.”
Apontam-se como fatores que reforçam tal decisão a aprovação do Conselho Nacional
de Justiça, em 2017, a utilização do WhatsApp para a realização de intimações, desde que
realizado prévio cadastro e adesão voluntária pelo usuário23. Destaca-se que tal determinação
não se aplica às citações. Por sua vez, em decisão de 20/05/2020, a 3ª Vara Criminal de
Maceió, determinou a realização de citação através de mandado que foi cumprido pelo

23BANDEIRA, Regina. WhatsApp pode ser usado para intimações judiciais. Disponível em: https://
www.cnj.jus.br/whatsapp-pode-ser-usado-para-intimacoes-judiciais/.
Núcleo de Inteligência dos Oficiais de Justiça, da Central de Mandados da Capital, utilizando
o aplicativo Whatsapp24.
Trata-se de movimento que pode ser associado também ao advento da pandemia do
covid-19, em que diversas problemáticas têm ocorrido no âmbito dos Tribunais brasileiros. O
ato de citação tornou-se, diante da necessidade de isolamento social, um desafio, uma vez que
a citação por mandado exige o contato físico do Oficial de Justiça com o destinatário da
ordem judicial.
Entretanto, a necessidade de adaptação do Direito ao contexto fático e a flexibilização
dos atos processuais em busca da efetividade do processo não podem perpassar a necessidade
de segurança jurídica e, no caso da citação por WhatsApp, é preciso ressaltar que não há
previsão legal a esse respeito. Assim, com a aplicação do entendimento do Tribunal dar-se-ia
a criação de direito, em um contexto no qual só a União tem competência para legislar sobre
matéria processual. Nesse sentido, o Poder Judiciário estaria entrando na esfera de
competência do Poder Legislativo, antecipando-se no estabelecimento da possibilidade dessa
medida, com base em situação empírica que não entrou em abstrato no mundo jurídico, sem
que tenha havido a produção legislativa nos moldes democráticos previstos
constitucionalmente.
Assim, considerando que a citação é pressuposto processual de existência de uma
relação processual, e sua falta acarreta a nulidade pleno iure do processo, em infração à
imposição categórica do artigo 564, III, do Código de Processo Penal25, é preciso que as
medidas relativas a esse instituto sejam tomadas com prudência. Além disso, esse mesmo
cenário tecnológico também está permeado pela atuação fraudulenta de indivíduos que se
aproveitam das redes para capturar dados pessoais para uso espúrio. O aplicativo WhatsApp
não possui mecanismos de comprovação concreta da identidade do próprio Oficial de Justiça,
sendo perigoso admitir que o réu apresente seus documentos pessoais em uma conversa de
WhatsApp. Dessa maneira, tal medida pode representar, também, uma abertura para a
realização de novas fraudes.

24 Justiça de Alagoas realiza primeira citação criminal por Whatsapp. Correio dos Municípios. Disponível em:
https://www.correiodosmunicipios-al.com.br/2020/05/justica-de-alagoas-realiza-primeira-citacao-criminal-por-
whatsapp/.
25 ROMANO, Rogério Tadeu. A citação por WhatsApp no processo penal: Um exemplo prático. Conjur.
Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89168/a-citacao-por-whatsapp-no-processo-penal-um-exemplo-
pratico.
Com isso, tem-se que, apesar da mudança do cenário empírico que acarretou diversas
modificações na dinâmica processual, pode ser prejudicial que o Judiciário tome
determinadas medidas diante da falta de previsão legal a respeito do tema, vigendo,
atualmente, as regras de citação previstas no CPP, que não acolhem a possibilidade de citação
através do aplicativo WhatsApp.

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