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A EXIGÊNCIA DE SUMARIEDADE DOCUMENTAL OU PERICIAL DA PROVA NO

PROCESSO PENAL PARA A DEMONSTRAÇÃO DOS DANOS SOFRIDOS PELO


OFENDIDO

JOÃO PAULO BERNSTEIN


Juiz de Direito – Titular da 2ª Vara Judicial
Comarca de Palmeira das Missões

SUMÁRIO:INTRODUÇÃO. 1 AÇÃO CIVIL EX DELICTO. 2 EFEITOS CIVIS DA SENTENÇA PENAL


CONDENATÓRIA. 3 NATUREZA JURÍDICA DA NORMA QUE PREVÊ A FIXAÇÃO DO
VALOR MÍNIMO DA INDENIZAÇÃO E A SUA APLICAÇÃO AOS FATOS ANTERIORES. 4 A
LIMITAÇÃO DA PROVA DOS DANOS NO PROCESSO PENAL. 5 LEGITIMIDADE DO
MINISTÉRIO PÚBLICO. CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA

INTRODUÇÃO

A reforma do processo penal, introduzida pelas Leis nº 11.689/08, 11.690/08 e


11.719/08, trouxe uma novação que tem gerado dúvidas e controvérsia entre os operadores do
direito, qual seja a introdução da liquidação parcial dos danos pela sentença penal. Nos termos
da nova redação do inciso IV, do art. 387, do Código de Processo Penal, a sentença penal
condenatória já deverá fixar um valor mínimo para indenização dos prejuízos sofridos pelo
ofendido.
As obras doutrinárias até então lançadas, que tratam da reforma, não deram maior
atenção a esse tema, sendo que algumas se limitaram ao texto legal, razão pela qual, desde
logo, sinalizo a dificuldade encontrada para desenvolver esse singelo artigo.
Sem a pretensão de esgotar o tema, e muito menos dar soluções definitivas para os
questionamentos sobre a inovação inserida no processo penal, faremos alguns apontamentos
em torno do instituto da reparação civil ex delicto, notadamente sobre a mitigação da
separação entre a esfera cível e criminal, que requer uma mudança no tratamento dispensado à
vítima direta do delito, pois uma seqüência de normas vêm priorizando a reparação desta, seja
como condição para que o agente receba algum benefício processual, seja para os benefícios
no cumprimento da pena.
A constitucionalidade bem como a legitimidade do Ministério Público para o pedido
de indenização mínima em favor da vítima são outros aspectos que serão examinados, ainda
que superficialmente, pois, na análise crítica da norma em comento, já existem

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posicionamentos que sustentam tanto um quanto o outro como óbice para a aplicação da nova
regra, o que não nos parece sustentável.
A questão que mais aprofundou o debate sobre a aplicação e efetividade da norma
refere-se, sem dúvida, sobre o alcance da expressão “valor mínimo”, constante na norma que
foi introduzida no sistema processual penal. É fundamental definir-se a natureza dessa
limitação legal, pois não resta dúvida que o legislador pretendeu restringir o alcance da
liquidação dos danos no processo penal, contudo não esclareceu em que consistirá essa
limitação.
Para a definição do alcance da restrição retro apontada será mister a análise do sistema
processual como um todo, bem como os princípios constitucionais e processuais que
inspiraram a reforma, pois em um primeiro exame estamos convencidos de que a limitação se
reporta ao sistema probatório. É que uma aplicação irrestrita da norma que determina a
fixação do valor da indenização dos prejuízos sofridos pelo ofendido, com o aprofundamento
da prova para tal fim, acarretará um desvio no processo penal no que se refere com a sua
função primordial, com prejuízos latentes ao principal fundamento da reforma, que é dar um
maior dinamismo e celeridade ao processo.
Abordaremos todos esses pontos visando extrair algumas conclusões sobre a aplicação
da regra do art. 387, IV, do Código de Processo Penal.

1 AÇÃO CIVIL EX DELICTO

Sempre que alguem sofre um prejuízo, seja ele patrimonial ou extrapatrimonial, tenha
origem na culpa ou no dolo, poderá buscar ressarcimento por meio de ação de reparação civil,
nos temos do art. 186 e 927 e seguintes do Código Civil. Quando esse prejuízo tiver como
origem um delito, o ofendido ou seus sucessores poderão promover a ação para a satisfação
do dano denominada de actio civilis ex delicto.
Como ensina FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO1, os ordenamentos
jurídicos adotam soluções diversas para a reparação civil ex delicto, citando como exemplos o
sistema Holandês, que se funda na completa separação entre a ação civil e a penal. Portugal
adota o o sistema de adesão, no qual o pedido de indenização pode ser deduzido no próprio
processo penal, só podendo ser separado nas hipóteses previstas na lei. Outros sistemas
1 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Código de Processo Penal Comentado, 4ª ed, Saraiva, 1999, São
Paulo, pág. 144.

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admitem as duas pretensões, criminal e indenizatória, no mesmo processo, porém através de
pedidos distintos, como o Italiano, Francês, Alemão, Espanhol etc.
O nosso sistema jurídico está fundado na separação entre a responsabilidade civil e a
criminal, conforme se extrai do art. 935 do Código Civil e art. 64 do Código de Processo
Penal. É claro que não se trata de uma separação absoluta, mas sim relativa, de sorte que a
sentença penal condenatória sempre produziu seus efeitos na esfera civil, de modo que o
ofendido ou seus sucessores podem promover-lhe a liquidação e execução no juízo cível, nos
termos dos artigos 91, I, do Código Penal e 63 do Código de Processo Penal, conforme
ensina GUILHERME DE SOUZA NUCCI2:
Reparação do dano: uma vez que há sentença condenatória definitiva na esfera
criminal, já não se discute culpa no juízo cível, restando, apenas, o debate em torno
do quantum debeatur, ou seja, da quantia adequada à satisfação do dano sofrido
pela vítima.

Não só a sentença penal condenatória produz coisa julgada na esfera cível, mas
também a sentença penal absolutória que reconheça a inexistência do fato, a ausência da
autoria ou alguma causa excludente da ilicitude em favor do acusado, consoante artigos 65 e
66 do Código de Processo Penal.
Enfim, nosso ordenamento jurídico filiou-se a teoria de Merlin, citada por
FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO3:
Em face disso, surgiram duas tendências, uma no sentido de que a sentença
proferida na sede penal fazia coisa julgada no cível quanto ao fato e autoria (teoria
de Merlin) e outra, no sentido de que as ações deviam ser independentes (doutrina
de Toullier). Esta última, se adotada, poderia comprometer, como vimos, a
seriedade da Justiça. A doutrina deu preferência à teoria de Merlin, e o nosso
Código Civil a consagrou com a regra do art. 1.525, segundo a qual, 'a
responsabilidade civil é independente da criminal; não se poderá, porém,
questionar mais sobre a existência do fato, ou quem seja o seu autor, quando estas
questões se acharem decididas no crime.

Enfim, no sistema brasileiro a actio civilis ex delicto independe da ação penal, de sorte
que o ofendido ou seus sucessores não precisam aguardar o término da ação penal, nem
mesmo o seu início, para buscar a reparação civil. Contudo, o juízo civil poderá, e é
conveniente que o faça, suspender a ação civil até que seja julgada a ação penal, a fim de
evitar decisões colidentes sobre o mesmo fato (§ único do art. 64, do Código de Processo
Penal c/c o art. 265, IV, “a” do Código de Processo Civil).
O sistema da separação entre a responsabilidade criminal e civil começou a ser
2 NUCCI, Guilherme de Souza, Código de Processo Penal Comentado, 5ª, ed., RT, São Paulo, 2006, pág. 186.
3 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Código de Processo Penal Comentado, 4ª ed, Saraiva, 1999, São
Paulo, pág. 143.

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mitigado, passando para um sistema híbrido, a partir da Lei 9.099/95, que instituiu o Juizado
Especial Criminal, na qual expressamente ficou estabelecido que o processo penal nas
infrações de menor potencial ofensivo deve priorizar a reparação dos danos ao ofendido, nos
termos do art. 62 do citado diploma. A reparação do dano ao ofendido passou a ser tratada
com prioridade no processo penal no Juizado Especial Criminal, a ponto de a conciliação com
a reparação dos danos ser causa de extinção da punibilidade pela renúncia à representação
(art. 74, § único). E não só na composição dos danos civis promovida entre as partes a
reparação do dano merece especial relevância, mas também nas hipóteses da suspensão
condicional do processo, onde a mesma aparece como primeira condição, reunindo o acusado
possibilidade econômica, nos termos do art. 89, da Lei 9.099/95.
O Código de Trânsito Brasileiro, em seu art. 2974 prevê a multa reparatória, que
também se destina ao ressarcimento dos prejuízos sofridos pela vítima.
Em se tratando de sistema penal, é possível afirmar, aliás, que antes mesmo do Juizado
Especial Criminal, a reparação do dano à vítima já havia sido introduzida no Sistema Penal
Juvenil, aplicado aos adolescentes em conflito com a lei, nos termos o Título III, do Estatuto
da Criança e do Adolescente, pelo qual uma das medidas sócio-educativas é a obrigação de
reparar o dano (art. 112, II).
A adoção de um sistema híbrido para a reparação civil ex delicto, com uma maior
flexibilização na separação entre responsabilidade civil e criminal, ficou consolidada com a
reforma do Código de Processo Penal, que teve introduzido, pela Lei nº 11.719/08, o
parágrafo único ao art. 63 e o inciso IV, ao art. 387, a partir dos quais, a sentença penal
condenatória fixará um valor mínimo para a reparação dos prejuízos sofridos pelo ofendido.
Valor esse que obviamente deverá ser deduzido de uma eventual ação civil ex delicto, uma
vez que deverá ocorrer a harmonização entre a ação civil ex delicto com um dos requisitos da
sentença penal condenatória, como ensina IVAN LUÍS MARQUES DA SILVA5.
Essa mesma conclusão, ou seja, de que o sistema processual penal que prevê a fixação
da indenização mínima na sentença penal condenatória deve ser harmonizado com a ação civil
ex delicto, e também com a liquidação ampla do título executivo judicial constituído pela
sentença penal, também é apresentada por LUIZ FLÁVIO GOMES6
4 Art. 297. A penalidade de multa reparatória consiste no pagamento, mediante depósito judicial em favor da
vítima, ou seus sucessores, de quantia calculada com base no disposto no § 1º do art. 49 do Código Penal,
sempre que houver prejuízo material resultante do crime.
5 SILVA, Ivan Luís Marques da, Reforma Processual Penal de 2008, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008,
pág. 30.
6 GOMES, Luiz Flávio, CUNHA, Rogério Sanches, PINTO, Ronaldo Batista, Comentários às Reformas do

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O sistema agora adotado, que estabelece uma solidariedade entre o processo criminal e
o processo civil que vise a responsabilidade civil ex delicto, como ensinam ZAFFARONI e
PIERANGELI7, não é novidade em nosso ordenamento jurídico, pois já era previsto no
Código de Processo Criminal de primeira instância, de 1832:
Após o Código de Processo Criminal de primeira instância (1832), em que se optou
pelo sistema da confusão ou da solidariedade, pois um dos requisitos da queixa e da
denúncia era fixar 'o valor provável do dano sofrido' (art. 79, § 2º), a partir da
reforma de 1841, optou-se pelo sistema da separação ou da independência, quando
se atendeu aos reclamos da doutrina, principalmente de PEREIRA E SOUZA, que
afirmava ser um juízo do cível e, outro, o do crime.(...)

2 EFEITOS CIVIS DA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA

Como já se referiu acima, um dos efeitos da sentença penal condenatória é tornar certo
o dever de reparação dos danos decorrentes do crime, consoante a norma do art. 91, I, do
Código Penal. O art. 63 do Código de Processo Penal é ainda mais claro no tocante a esse
efeito da sentença condenatória, pois evidencia que esta sentença é título executivo no cível,
afastando nova discussão em torno do dever reparatório por parte do condenado. Em outras
palavras, o acusado condenado na seara criminal também o estará na seara cível, para fins de
indenização dos danos causados com a prática do delito.
Quanto aos efeitos civis da sentença condenatória criminal, precisos os comentários de
FERNANDO CAPEZ8:
A sentença penal condenatória transitada em julgado funciona como título
executivo judicial no juízo cível (CPP, art. 63; CPC, art. 584, II), possibilitando ao
ofendido obter a reparação do prejuízo sem a necessidade de propor ação civil de
conhecimento. Com o trânsito em julgado, basta promover a liquidação do dano,
para, em seguida, ingressar com a ação de execução civil. Se for proposta ação de
conhecimento, no lugar da execução, o juiz deverá julgar o feito extinto sem
julgamento de mérito, ante a falta de interesse de agir, pois, se já existe título
executivo, não há nenhuma necessidade de rediscutir o mérito. Embora configure
título certo, a sentença penal condenatória transitada em julgado é ilíquida quanto
ao valor do débito, pois o juízo penal não fixa o montante correspondente à
indenização.”

O efeito da sentença condenatória que tornar certo o dever de reparar o dano significa
muito mais que uma simples projeção da responsabilidade civil do ofensor, pois trata-se de
um efeito automático da sentença penal condenatória, que reveste-se também com as
Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008, págs. 332/333.
7 ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique – Manual de Direito Penal Brasileiro, vol. 1,
Parte Geral, 7ª ed., Revista dos Tribunais, 2007, São Paulo, pág. 734.
8 CAPEZ, Fernando, Curso de Processo Penal, 14ª ed., Saraiva, 2007, São Paulo, pags. 164/165.

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conseqüências da coisa julgada, constituindo-se em um título executivo judicial, como aliás,
está expressamente previsto no artigo 475, N, II, do Código de Processo Civil.
O título executivo, como ensina SÉGIO LUIS WETZEL DE MATTOS9, não estará,
de regra, completo somente com a sentença penal condenatória, dependendo no mais das
vezes do trânsito em julgado da decisão de liquidação daquela sentença, nos termos do art.
475 – A, do Código de Processo Civil. Essa liquidação será por arbitramento e por artigos
(art. 475, C e E), conforme o dano a ser quantificado.
Em se tratando de dano moral, o arbitramento, pelo juiz, é o caminho para apurar o
valor compensatório do dano extrapatrimonial, que geralmente será demonstrado ipso facto,
notadamente nos crimes contra a pessoa e contra os costumes. Já em relação aos prejuízos
patrimoniais, a liquidação por artigo será a regra, fazendo-se necessário demonstrar e provar
os danos decorrentes do fato delituoso.
Essa assertiva também é colhida nos comentários de ROGÉRIO GRECO10:
Assim, como a sentença penal condenatória transitada em julgado não tem a
liquidez necessária para a sua execução, faz-se mister proceder à sua liquidação,
nos termos do art. 475-A, acrescentado ao Código de Processo Civil pela Lei nº
11.232, de 22 de dezembro de 2005, pois que, conforme prelecionam Nelson Nery
Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, ' faltando à sentença penal o requisito da
liquidez, terá de, primeiramente, ser liquidada por meio de ação de liquidação de
sentença, processada e julgada no juízo cível. Com a sentença de liquidação
integrando a sentença penal condenatória, abre-se oportunidade para que ela
aparelhe processo de execução, servindo-lhe de fundamento'.”

Pelo que se disse acima, já é possível fixar-se uma primeira conclusão para a inovação
introduzida pela Lei 11.719/08 ao Código de Processo Penal, no tocante à fixação do valor
mínimo para indenização dos danos sofridos pelo ofendido, qual seja, a norma do inciso IV,
do art. 387 do CPP, diz única e exclusivamente respeito a uma parcial liquidação antecipada
dos prejuízos sofridos pela vítima, haja vista que as questões relacionadas com o
conhecimento do fato e da autoria, que conduzem ao dever de reparação, estarão
automaticamente decididas com a condenação criminal, como já ocorria anteriormente à
reforma. Essa assertiva fica ainda mais clara com a leitura atenta do parágrafo único do art. 63
do CPP, também com redação dada pela Lei 11.719/08, no qual expressamente está disposto
que o valor da indenização fixado na sentença penal condenatória será desde logo executado,
sem prejuízo à liquidação dos demais danos efetivamente sofridos pelo ofendido em razão do

9 MATTOS, Sérgio Luís Wetzel de, A Nova Execução, Coordenador Carlos Alberto Alvaro de
Oliveira, Forense, Rio de Janeiro, 2006, págs. 173/175.
10 GRECO, Rogério – Curso de Direito Penal, Parte Geral, vol. I, 9ª ed., Impetus, 2007, Rio de Janeiro, pag.s.
660/661.

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crime.
Enfim, na sentença penal condenatória, a partir da reforma, o juiz liquidará o dano que
restar de pronto demonstrado no processo penal, possibilitando ao ofendido, seus responsáveis
ou sucessores, executar dito valor no cível, pelo procedimento do cumprimento de sentença
(art. 475 – J, do Código de Processo Civil). Essa execução imediata do valor desde logo
fixado (liquidado) na sentença penal condenatória não prejudica a liquidação dos demais
danos efetivos decorrentes do delito, cujo título executivo judicial já estará constituído em
face do réu.
A reforma não prejudicou a separação da responsabilidade civil da criminal, pois o
ofendido e seus sucessores continuam dispondo da actio civilis ex delicto, que poderá ser
ajuizada a qualquer tempo, mesmo antes da ação criminal. O que ocorreu foi uma maior
mitigação desta separação, construindo-se um sistema híbrido, pelo qual a reparação civil
decorrente do delito deverá conviver, harmonicamente, nos dois processos, criminal e civil.
Assim deve ser porque o processo penal não será desviado de sua trajetória para colher
elementos puramente de interesse para a liquidação dos danos sofridos pelo ofendido, como
adiante será exposto.

3 NATUREZA JURÍDICA DA NORMA QUE PREVÊ A FIXAÇÃO DO VALOR MÍNIMO


DA INDENIZAÇÃO E A SUA APLICAÇÃO AOS FATOS ANTERIORES

Como já foi apontado anteriormente, um dos efeitos automáticos da sentença penal


condenatória é a obrigação de reparar o dano decorrente do delito. Trata-se, na verdade, de
um dos efeitos da própria coisa julgada da sentença penal condenatória, que torna certa essa
obrigação, pois aquele que tem reconhecido contra si a prática de um ilícito penal com maior
razão já estará também responsabilizado pelo ilícito civil, que é um minus em relação àquele.
Essa conclusão foi bem exposta por SERGIO CAVALIERI FILHO11:
Não é difícil de entender a razão que levou o nosso legislador a tomar essa posição.
O ilícito penal, conforme acentuado logo no primeiro capítulo deste Programa, não
apresenta diferença substancial do ilícito civil. Ambos importam conduta voluntária
(culposa ou dolosa) contrária à lei. A diferença entre ambos é apenas de grau. O
ilícito penal é mais grave que o ilícito civil. Este é um 'minus' em relação àquele.
(...)
Daí a força preclusiva, verdadeira coisa julgada, da sentença penal condenatória

11 CAVALIERI, Sergio Filho, Programa de Responsabilidade Civil, 5ª ed., Malheiros, São Paulo,
2004, págs. 520/521.

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sobre as jurisdições civil e administrativa. Condenado pela falta mais grave, estará
também o réu condenado pela falta residual ou menos grave. A instância criminal,
mais exigente do que qualquer outra até quanto á culpa, excede, naturalmente,
todas as preocupações das demais jurisdições.

Assim, como sinalizamos antes, havendo condenação no processo penal constituído


estará o título executivo que será liquidado e executado no juízo cível, em conformidade com
os artigos 63 do Código de Processo Penal e artigo 475, N, II, do Código de Processo Civil.
A norma agora introduzida pela Lei 11.719/08, que deu a redação ao inciso IV, do art.
387, do Código Penal Processual, nada mais fez que trazer parte daquela liquidação, que se
fazia exclusivamente no cível, para dentro do processo penal, quando existir prova suficiente
para tanto.
Essa norma não trouxe nenhuma inovação em termos de direito material, quer seja de
natureza criminal, quer seja de natureza cível, na medida que a coisa julgada da sentença
penal condenatória já impunha ao réu o dever de reparar o dano, não mais se discutindo essa
responsabilidade no civil no que se relaciona com o an debeatur.
Portanto, a regra que agora determina que havendo prova do prejuízo sofrido pelo
ofendido o juiz deverá fixar o valor mínimo da indenização na própria sentença penal, nada
mais é do que uma norma de natureza processual, pois introduziu um procedimento
liquidatório na própria sentença criminal, que antes somente poderia ser feito após o trânsito
em julgado desta, no juízo civil.
Parece não haver qualquer dúvida de que a regra do inciso IV, do art. 387, do CPP,
não constitui qualquer pena imposta ao réu, sendo uma regra eminentemente de natureza civil,
que decorre da responsabilidade civil extracontratual (arts. 186 e 927 e seguintes do Código
Civil). Tanto é assim que se não cumprida voluntariamente a condenação que fixou o valor,
caberá ao ofendido ou seus sucessores executar a sentença (§ único do art. 63, do CPP), sem
que disso decorra qualquer conseqüência criminal para o réu.
Como a fixação do valor da indenização já ocorria anteriormente, após o trânsito em
julgado da sentença penal condenatória, tenho que o deslocamento de parte dessa liquidação
do juízo cível para o crime, nada mais é do que uma modificação procedimental e, portanto,
dita norma é de natureza processual, que não acarreta qualquer prejuízo ao réu, pois antes da
reforma ou depois dela o dever de reparar o dano é o mesmo, e decorre da condenação pelo
ilícito penal. O que mudou é somente o momento da fixação do valor da reparação relativa
aos prejuízos que desde o início estavam demonstrados por prova pré-constituída.
Sendo uma norma processual, que não produz nenhum agravamento ao réu em termos

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de penalização, ela incide desde logo, consoante a regra do art. 2º, do Código de Processo
Civil, alcançando os fatos praticados anteriormente à sua vigência.
Contudo, para que não haja lesão aos princípios processuais e constitucionais,
especialmente o que assegura a ampla defesa e o contraditório (art. 5º, LV, da Constituição
Federal), a aplicação da regra do inciso IV, do art. 387, do CPP, somente poderá ocorrer
naqueles processos em que o réu ainda não havia sido citado quando entrou em vigor a nova
lei. Isso porque, se o réu já tiver sido citado pelo sistema anterior, terá ele prejuízo para a sua
defesa, que agora passou a ser no prazo de 10 dias, a contar da citação, nos termos dos artigos
396 e 406, ambos do CPP, momento em que também poderá requerer as provas, inclusive
aquelas para contrapor eventual valor do dano que conste no caderno investigatório.
Enfim, o acusado não poderá ser surpreendido no curso do processo pela nova regra
processual que introduziu uma nova conseqüência ao mesmo na própria relação processual,
ainda que esta seja de natureza civil, como no caso da reparação de danos, sem que lhe seja
oportunizado momento processual para exercer sua ampla defesa. No sistema anterior, o réu
do processo criminal não tinha sua preocupação voltada com a quantificação dos prejuízos
sofridos pela vítima, uma vez que essa discussão aconteceria somente após o trânsito em
julgado da sentença condenatória, por meio da liquidação no juízo civil. Agora, em relação
aos prejuízos de pronto demonstrados, essa defesa deverá ocorrer no próprio processo
criminal, pois a fixação do valor mínimo da reparação já ocorrerá na sentença penal. Por essa
razão que a nova norma, que determina a fixação do valor mínimo da reparação, somente será
aplicada aos feitos cuja citação do réu ainda não tinha ocorrido quando da entrada em vigor da
nova lei.

4 A LIMITAÇÃO DA PROVA DOS DANOS NO PROCESSO PENAL

Questão que tem gerado preocupação entre os operadores do direito diz com a prova
dos danos sofridos pela vítima, com vista à fixação da indenização na sentença penal
condenatória. O inciso IV, do art. 387, do Código de Processo Penal, fala em fixação do valor
mínimo, ou seja, a liquidação do valor mínimo da reparação civil ex delicto, sem qualquer
prejuízo para que o ofendido busque através da ampla liquidação no juízo civil a
complementação desta indenização, o que fica claro com o texto do § único do art. 63 do

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CPP.
O termo valor mínimo não pode ser entendido como uma simples tarifação
quantitativa ou uma limitação à competência do juízo criminal, mas sim como uma limitação
probatória que impõe a sumariedade da prova, exigindo que esta esteja preconcebida antes da
denúncia ou queixa. Essa é a interpretação possível de ser extraída da norma, a partir dos fins
e do próprio procedimento do processo penal.
A finalidade do processo penal pode ser dividida em mediata e imediata, que segundo
MIRABETE12 voltam-se, respectivamente, ao interesse público da pacificação social e
realização da pretensão punitiva do Estado:
A finalidade mediata do processo penal se confunde com a do Direito Penal, ou
seja, é a proteção da sociedade, a paz social, a defesa dos interesses jurídicos, a
convivência harmônica das pessoas no território da nação. O fim direto, imediato, é
conseguir, mediante a intervenção do juiz, a realização da pretensão punitiva do
Estado derivada da prática de uma infração penal, em suma, a realização do direito
penal objetivo.

Não é de agora que o direito penal vem intensificando sua preocupação com aquele
que é o mais prejudicado pelo crime, ou melhor pontuando, aquele que é o diretamente
prejudicado pelo delito, o ofendido. Aos exemplos citados anteriormente, em que o direito
penal priorizou a reparação do dano à vítima (no Juizado Especial Criminal, no Sistema Penal
Juvenil, nos crimes de trânsito), podemos, ainda, acrescentar outras previsões no sistema
penal que valorizam, inclusive em benefício do réu, a reparação do dano ao ofendido, como se
extrai do art. 65, III, b, do CP, que prevê como atenuante genérica a reparação do dano.
Também na suspensão condicional da pena a reparação do dano serve para fins de atenuação
das condições exigidas (art. 78, § 2º, do CP). No livramento condicional, a reparação do dano
também aparece como condição, excetuada a impossibilidade (art. 83, IV, do CP). Com uma
valoração ainda mais ampla, no peculato culposo a reparação do dano é causa de extinção da
punibilidade, tal qual no Juizado Especial Civil, conforme art. 312, § 3º, do CP.
Essa atenção à vítima do delito foi bem observada por NUCCI 13, que já sugeria que o
ideal seria que o juízo penal, havendo provas, pudesse condenar o réu pelos prejuízos
sofridos pela vítima:
Para quem já sofreu a lentidão da Justiça no processo criminal, trata-se da
segunda 'via-crúcis' enfrentada pelo ofendido ou por seus familiares, agora para
receber reparação civil. Por isso, o ideal seria autorizar o juiz penal a proceder,
sempre que possível e havendo prova nos autos, à condenação também pelo
prejuízo sofrido na esfera civil.

12 MIRABETE, Julio Fabrini, Processo Penal, 7ª ed., Editora Atlas, 1997, São Paulo, págs. 40/41.
13 NUCCI, Guilherme de Souza, Código de Processo Penal Comentado, 5ª, ed., RT, São Paulo, 2006, pág. 186.

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Embora a preocupação com a vítima do crime, notadamente com a minimalização dos
prejuízos sofridos pela mesma com o fato, a finalidade precípua do processo penal não pode
ser desvirtuada, sob pena de resultar em prejuízo ao alcance dos seus fins, pela introdução de
outros elementos que exijam maior dilação probatória e acarrete demasiada demora na
conclusão do processo. Esse é o primeiro fundamento que fez com que a reforma viesse a
prever que o juízo criminal fixará tão-somente um valor mínimo para a reparação dos danos,
para não desviar o processo penal da sua efetiva e primordial finalidade, inclusive para não
prejudicar o princípio da celeridade, informador da reforma.
Por certo, a reforma teve como principal objetivo atender a norma do inciso LXXVIII,
do art. 5º, da Constituição Federal, que instituiu como uma das exigências para a efetivação
do princípio do acesso à justiça, que o processo tenha um tempo razoável, com meios que
garantam sua celeridade. Essa norma constitucional tem orientado as diversas reformas
processuais, que buscam atualizar os códigos tornando os procedimentos mais objetivos, mais
simples e, portanto, mais rápidos.
Não foi diferente a reforma introduzida no Processo Penal pelas Leis nº 11.689/08,
11.690/08 e 11.719/08, que miram a simplificação do processo penal, com audiência única,
prosseguimento do processo sem a presença do réu citado pessoalmente ou por hora certa etc.
Seguindo essa mesma orientação a reforma optou por introduzir uma liquidação mínima dos
prejuízos sofridos pela vítima, minorando o seu sofrimento, mas ao mesmo tempo
preservando os fins do processo criminal, até porque a vítima pode buscar desde o fato uma
reparação no juízo cível, dado a preservação da separação da responsabilidade civil da
criminal.
Essa preocupação no que se refere ao sistema probatório diferenciado no âmbito
criminal e reparatório foi pontualmente manifestada por NEREU JOSÉ GIACOMOLLI 14, ao
comentar as reformas introduzidas no processo penal:
Ocorre que a perspectiva probatória, desde a proposição de meios de prova até sua
avaliação, é diferenciada no âmbito criminal e reparatório. Na esfera criminal, o
interesse da acusação é o de punir o acusado, condená-lo a uma sanção criminal e
o da defesa é a manutenção do 'status libertatis', o retorno a este (casos de prisão
cautelar) ou diminuir a potencialidade do 'ius puniendi'. Cabe à acusação o
encargo de quebrar a presunção de inocência do acusado e demonstrar o
afastamento do mínimo censurável. O objetivo da prova e a carga desta, na esfera
civil têm outra dimensão e poderão desvirtuar as regras probatórias criminais,
diante dos danos do ofendido (condenar para propiciar a fixação de uma

14 GIACOMOLLI, Nereu José – Reformas (?) do Processo Penal: Considerações Críticas, Editora Lumen Juris,
2008, Rio de Janeiro, págs. 109/111.

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indenização).

Pode-se afirmar que a sumariedade da prova também advém da necessidade de


adequação da liquidação do dano com o procedimento adotado pelo processo penal, para que
não lese princípios constitucionais, principalmente o da ampla defesa e do contraditório,
admitindo-se que este seja diferido procedimentalmente no tocante aos danos, uma vez que a
fixação do valor da indenização é matéria eminentemente civilista. O certo é que o acusado
jamais poderá ser impedido de se contrapor ao valor dos prejuízos que se pretende liquidar
desde logo no processo criminal, inclusive produzindo prova em contrário. Esses princípios se
inserem dentre as garantias fundamentais asseguradas a todas as partes do processo, conforme
o inciso LV, do art. 5º, da Constituição Federal. Não pode ser diferente ao condenado pela
prática de um crime, que também deve ter assegurada a oportunidade de exercer sua defesa
não somente em relação ao fato constitutivo do dever de indenizar, no caso o ilícito penal,
mas também quanto à extensão e quantificação do dano que se pretende reparar em favor da
vítima.
Antes da reforma introduzida pela Lei nº 11.719/08, que prevê a liquidação parcial dos
danos já na sentença penal condenatória, esse contraditório era, em sua totalidade,
oportunizado ao condenado no procedimento de liquidação da sentença (art. 475, N, § único
do Código de Processo Civil), que continua incidindo para a liquidação completa do dano
efetivamente sofrido pelo ofendido, no qual o devedor é citado da liquidação, momento em
que pode apresentar resposta, contestando os artigos e valores pretendidos, inclusive
impugnar perícias etc.
Essa mesma defesa prevista para a liquidação da sentença penal condenatória deverá
ser assegurada no processo penal relativamente ao valor mínimo pretendido desde logo, sob
pena de ferir os princípios do contraditório e ampla defesa. É a partir desses pressupostos e do
procedimento do processo penal que sustentamos que a fixação do valor mínimo da
indenização somente poderá ocorrer quando este valor já estiver previamente demonstrado no
caderno investigatório, ou seja, aqui reside a sumariedade probatória, pela qual os prejuízos
sofridos pelo ofendido, a serem fixados na sentença penal, deverão estar previamente
demonstrados, documentalmente ou por meio de perícia, antes de ser o réu citado para
apresentar sua defesa escrita, a teor dos arts. 396, 396 A, do Código de Processo Penal, em se
tratando do procedimento comum (ordinário e sumário), e art. 406 quando o procedimento for
o do júri.

12
Essa sumariedade da prova decorre do fato de que no processo penal esse é o
momento processual para o acusado tomar ciência da plenitude da acusação e deduzir suas
alegações defensivas, e o mais importante, alegar preliminares e postular as provas. Enfim, é
nesta fase processual que o réu exerce sua defesa e pleiteia as provas para contrapor o que lhe
está sendo imputado. Não pode o réu ser surpreendido no processo, após ter exaurido essa
fase defensiva, principalmente, o momento processual para postular as provas, com pedido de
fixação de indenização de prejuízo cujo valor não constava no caderno investigatório e,
portanto, não foi objeto de conhecimento do réu, que não se preocupou em produzir defesa,
exercer o contraditório e postular provas para este fim.
A partir do que foi dito acima, é que se pode concluir que a expressão 'valor mínimo'
utilizada pelo legislador da reforma processual penal, no inciso IV, do art. 387 do Código de
Processo Penal, refere-se ao valor de pronto demonstrado no inquérito investigatório por meio
de documentos ou perícia, não dependendo de prova constitutiva do direito reparatório do
ofendido na instrução do processo, que não pode ser desviado para a realização de perícias,
ou mesmo oitiva de testemunhas, exclusivamente com vistas à demonstração dos prejuízos.
Isso, evidentemente, não impede que o réu apresente provas, ou requeira a produção delas
para contraditar os prejuízos apontados.
Essa limitação probatória para a fixação do valor mínimo da indenização além de
atentar para os princípios da ampla defesa e do contraditório, a serem assegurados ao acusado,
também tem por pressuposto não subverter o processo penal, impedindo que interesses
puramente privados desvirtuem o processo penal, em prejuízo do acusado e de sua defesa,
pondo por terra a sua principal finalidade, que é a pacificação social por meio da realização da
pretensão punitiva do Estado.
Neste ponto também é digna de nota a lição de NEREU JOSÉ GIACOMOLLI15, que
chama atenção para a metodologia a ser aplicada, em termos probatório, para a fixação do
valor da indenização, sem prejudicar a finalidade do processo criminal:
É mais um entrave a resposta da jurisdição criminal dentro do tempo razoável. Por
isso, são inadmissíveis os meios de prova e a metodologia de busca desta, quando
objetivarem a reparação cível. O juiz, entendendo que deve fixar um valor mínimo,
o fará com base na prova produzida na perspectiva criminal, em um valor
determinado, sem, contudo, aceitar a produção probatória nessa perspectiva
(existência do dano e sua dimensão).

Com efeito, se admitido que o processo penal se transforme no palco para que o

15 GIACOMOLLI, Nereu José – Reformas (?) do Processo Penal: Considerações Críticas, Editora
Lumen Juris, 2008, Rio de Janeiro, págs. 109/111.

13
ofendido ou seus sucessores busquem a maior liquidação possível dos prejuízos decorrentes
do crime, inclusive com a dilação probatória unicamente para este fim, corre-se o risco de
perder aquilo que a reforma mais valorizou, que é a celeridade do processo, com a
simplificação do rito. Pior que isso, essa desnaturação do processo penal, com a introdução de
elementos puramente civilísticos, se aplicada visando a máxima ampliação possível na
fixação do valor dos prejuízos, acarretará, em última análise, maior prejuízo à própria vítima,
primordialmente em delitos com menor reprimenda onde a demora na conclusão do processo
penal poderá acarretar a extinção prematura, sem o exame do mérito, em razão da prescrição,
hipótese que a vítima ficará inclusive sem o título judicial para liquidar no juízo civil.
A sumarização da prova não é novidade em nosso ordenamento jurídico, máxime na
esfera cível, onde vários ritos especiais estão calcados em prova pré-constituída, como se dá
com o mandado de segurança, a primeira fase da ação monitória, as tutelas antecipadas etc.
Sobre a técnica da sumarização e limitação das provas OVÍDIO ª BAPTISTA DA SILVA16
comenta:
Além das duas técnicas de sumarização antes indicadas, é ainda possível reduzir-se
a área de cognição judicial, numa determinada demanda, impedindo que as partes
se valham de certas provas, ou impossibilitando-lhes a prova de certos fatos, cuja
demonstração exija o emprego de algum instrumento probatório demasiadamente
complexo e de produção demorada. Temos um exemplo bem conhecido desta
espécie de sumarização em nossa ação de mandado de segurança, onde apenas as
provas documentais são permitidas.

Com essa abordagem, insiste-se que a expressão utilizada pela norma, qual seja,
'fixará valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração', está ligada à idéia de
sumarização da prova, como ocorre no mandado de segurança e nas antecipações de tutela,
pela qual, a prova robusta, de regra documental, nada impedindo seja também pericial, pré-
concebida, dá sustentação a uma fixação imediata já na sentença penal, sem prejuízo do
contraditório e da contra-prova por parte do réu.
O que não se admite no processo penal é que ele tome um curso estranho, objetivando
interesses privados do ofendido, com a produção de provas complexas, visando liquidar danos
que poderão, sem qualquer prejuízo, a teor do parágrafo único, do art. 63, do Código de
Processo Penal, serem apurados na liquidação civil. Assim como, é visível o óbice que
impede que a fixação do valor ocorra com lesão à garantia de ampla defesa e contraditório do
réu.

16 SILVA, Ovídio A. Baptista da, Curso de Processo Civil, vol. 1, 5ª ed., Revista dos Tribunais, São
Paulo, 2000, págs. 128/130.

14
5 LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Outra polêmica que sempre existiu em torno da formação da coisa julgada da sentença
criminal para fins de reparação civil, servindo esta como título executivo judicial no cível, é a
ausência de pedido indenizatório pelo ofendido, não formação da relação jurídico-processual
para esse fim, faltando a tríplice identidade de partes, assim como a inexistência de um
provimento condenatório na sentença, o que, para alguns doutrinadores, como menciona
SERGIO CAVALIERI FILHO17, a sentença penal não teria mais que um efeito declaratório,
ou no máximo um feito preclusivo quanto ao dever de indenizar.
Contudo, arremata o citado autor “Ocorre, todavia, que a lei pode passar por cima de
todas estas questões, e, no caso, 'legem habemus' que não deixa nenhuma margem para
qualquer discussão, não obstante a autoridade de toda essa argumentação.
Agora, com a reforma do Código de Processo Penal, ampliando ainda mais os efeitos
da sentença criminal condenatória no que se refere à reparação dos prejuízos sofridos pela
vítima, com a introdução da parcial liquidação dos danos na própria sentença penal, volta à
tona essa controvérsia, sustentando alguns operadores do direito que haveria
inconstitucionalidade na norma do inciso IV, do art. 387, do Código de Processo Penal,
notadamente porque o Ministério Público não estaria legitimado a pedir a fixação do valor
mínimo da indenização.
Não nos parece, contudo, ser esta a melhor conclusão acerca do tema, pois como bem
sustenta FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO18, o Estado deu um substrato de
Direito Público à reparação dos danos sofrido pela vítima de delito, exercendo uma tutela
administrativa dos interesses privados nesta seara:
Entendeu o Estado que devia dar um substrato de Direito Público à pretensão de
ressarcimento, velar pela vítima do crime e, ao mesmo tempo, fazer sentir ao
violador da norma penal a sua obrigação de satisfazer, integralmente, os prejuízos
ocasionados à ordem jurídica. Receber a pena, por si só, não basta. É necessário
que se restabeleça o statu quo ante, ou ao menso que desapareçam os efeitos do
crime, na medida do possível. E a reparação da ofensa causada pelo delito só será
completa se à pena somar-se a reparação do dano.
Assim, procurou o Estado exercer verdadeira tutela administrativa dos interesses
privados atingidos pelo crime, como se constata pelos arts. 91, I, 65, III, b, 78, § 2º,
e 83, IV, do CP, arts. 63 e 68 e 125 a 144 do CPP e, finalmente, pelo art. 62 da Lei
dos Juizados Especiais Criminais. Isto explica a regra do art. 68 do CPP.

17 CAVALIERI, Sergio Filho, Programa de Responsabilidade Civil, 5ª ed., Malheiros Editores, São
Paulo, 2004, págs. 519/520.
18 TOURINHO FILHO, Fernando da costa, Código de Processo Penal Comentado, vol. 1, 4ª ed.,
Saraiva, 1999, São Paulo, págs. 142/143.

15
Tenho que o autor supramencionado logrou explicar satisfatoriamente essa
intervenção estatal em favor do ofendido pelo crime, hipótese que a relação processual traz
um substrato de Direito Público, legitimando o Ministério Público, em representação ao
Estado-sociedade, e como substituto processual do ofendido, a defender os interesses
individuais deste, como é a reparação dos danos sofridos com o delito.
A situação pós reforma do Código de Processo Penal, com a nova redação do inciso
IV, do art. 387, não difere em termos de relação jurídico-processual, daquela que existia
anteriormente, no que tange aos efeitos civis da sentença penal condenatória. A inovação
reporta-se tão-somente à liquidação parcial na própria sentença, com a fixação do valor
mínimo.
Na execução do valor fixado na sentença penal condenatória, embora o art. 68 do CPP
continue conferindo a legitimação ao Ministério Público para propô-la quando o titular do
direito à reparação for pobre, o Supremo Tribunal Federal, conforme citado por
GUILHERME DE SOUZA NUCCI19, já apreciou a matéria ao julgar o RE 147.776-SP, 1ª
Turma, Rel. Sepúlveda Pertence, 19.05.1998, V.U., RT 755/169, admitindo a substituição
processual pelo Ministério Público somente quando não houver Defensoria Pública
implementada, do contrário essa legitimação constitucional, a teor do art. 134 da CF, passou a
ser desta.

CONCLUSÃO

Primeiramente é preciso reconhecer a dificuldade encontrada para escrever o presente


artigo, pois das três obras consultadas sobre as reformas, observamos que pouca atenção foi
dada ao tema aqui abordado, de modo que muitos dos fundamentos foram construídos a partir
da doutrina já existente anteriormente, analisando-se os princípios, garantias e a
sistematização do direito processual penal, bem como os princípios informadores da reforma
aprovada.
As conclusões obtidas com esse singelo artigo, focado na norma do inciso IV, do art.
387, do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei nº 11.719/08, podem ser
subdivididas em três itens.

19 NUCCI, Guilherme de Souza, Código de Processo Penal Comentado, 5ª, ed., Revista dos Tribunais, 2006,
São Paulo, pág. 191.

16
Num primeiro plano, é possível afirmar que a introdução da fixação mínima do valor
da indenização dos danos sofridos pelo ofendido não exclui o sistema da separação entre a
responsabilidade criminal e a civil, que continua vigorando em nosso ordenamento jurídico, a
teor dos artigos 64 do Código de Processo Penal e art. 935 do Código Civil, de modo que o
ofendido ou seus sucessores poderão desde logo propor no juízo cível a ação cível ex delicto.
A reforma acabou por instituir um sistema híbrido, pelo qual, visando uma maior
proteção para a vítima do crime, a reparação dos prejuízos sofridos será fixada desde logo na
sentença criminal condenatória, no limite do valor (valor mínimo) que estiver de pronto
demonstrado no caderno investigatório, possibilitando que a vítima execute esse valor no
juízo cível, imediatamente após o trânsito em julgado. Nada obsta, inclusive, que a vítima
proponha a execução provisória, nos termos do art. 475-O, do Código de Processo Civil.
A vítima, por sua vez, independentemente do valor mínimo fixado na sentença penal,
poderá buscar a plena reparação liquidando os danos efetivamente sofridos, a partir da
sentença penal condenatória (§ único do art. 63 do CPP), como já ocorria antes, ou ainda,
buscar a reparação civil plena, independentemente do processo criminal (mesmo antes de
iniciado este), com base no princípio da separação, diretamente no juízo cível.
Aqui vale ressaltar que em determinadas hipóteses a vítima estará obrigada a propor a
actio civilis ex delicto perante o juízo cível para assegurar a responsabilidade de terceiros, que
não são atingidos pela sentença penal condenatória, dados os limites subjetivos da coisa
julgada. Nesse caso a sentença penal teria eficácia preclusiva no que tange à prova do fato,
não mais que isso, como ensina CEZAR ROBERTO BITENCOURT20.
Outro aspecto importante que merece destaque é que diferentemente do que já foi
sustentado por alguns operadores do direito, inclusive no último Curso de Atualização para os
Magistrados do Rio Grande do Sul sobre a temática aqui desenvolvida, não vislumbro
inconstitucionalidade na norma que instituiu a fixação do valor mínimo da indenização na
sentença penal condenatória. Pois essa fixação nada mais é do que uma liquidação parcial dos
efeitos da condenação criminal, que já se constituía em um título executivo judicial a ser
liquidado e executado no juízo cível (art. 91, I, do CP, art. 63, caput, e § único do CPP e, art.
475-N, II, do CPC).
Como abordamos acima, a atuação do Estado, por meio do Ministério Público, titular
da ação penal na maioria das vezes, no que tange à fixação do valor da indenização em prol

20 BITENCOURT, Cezar Roberto, Código Penal Comentado, 4ª ed., Saraiva, 2007, São Paulo, pág. 310.

17
do ofendido, ou seus sucessores, decorre de um substrato do Direito Público instituído em
favor da parte mais lesada com o ilícito penal.
Essa legitimação do Ministério Público para tutelar esse interesse privado da vítima é
exatamente o mesmo que se fazia presente anteriormente à reforma, pois a sentença penal
condenatória já era título executivo judicial, que apenas seria liquidada e executada no juízo
cível. A única modificação é que a partir das alterações a sentença penal fixará um valor
mínimo, ou seja, haverá uma pronta liquidação do valor do prejuízo que restar sobejamente
demonstrado no processo criminal, o que não era possível anteriormente.
A execução desse valor fixado na sentença penal condenatória, nos termos do
parágrafo único, do art. 63 e 68 do CPP e, art. 475, J, do CPC, é que somente poderá ser
efetuada pelo Ministério Público, em benefício do favorecido com a indenização que for
pobre, se não houver Defensoria Pública implementada no foro local. Pois havendo esta, a
competência será sua, a teor do art. 134 da Constituição Federal.
Por fim, o ponto que mais gera debate nessa parte da reforma diz com a apuração do
valor da indenização, ou seja, o sistema probatório que estará à disposição no processo
criminal para tal finalidade.
Sustentamos, a partir do princípio da finalidade do processo criminal, bem como em
atenção à sistemática procedimental, que a expressão 'valor mínimo' constante na norma sob
análise tem um conteúdo valorativo limitador dos meios de provas a serem adotados para esse
fim. Conforme os fundamentos retro expostos, essa limitação consistiria em uma sumarização
documental ou pericial da prova do dano, que deverá estar pré-concebida quando do
oferecimento da denúncia, a fim de respeitar o princípio da conformação, propiciando ao réu a
ampla defesa e o contraditório por meio da resposta de que tratam os artigos 396 e 406 do
Código de Processo Civil.
Sob essa perspectiva, não pode ser admitido no processo criminal, sob pena de
subversão do mesmo, com prejuízos à sua finalidade e também ao princípio da celeridade,
uma dilação probatória por parte da acusação, seja pelo Ministério Público, seja por
Assistente de Acusação, com o propósito de canalizar a produção de provas quanto aos danos
sofridos pelo ofendido. A prova do prejuízo sofrido pela vítima, inclusive sua quantificação,
até para possibilitar ao réu o efetivo exercício da ampla defesa e do contraditório, por meio de
requerimento de provas em contraposição ao valor pleiteado, deverá estar pré-constituída
quando da propositura da denúncia, seja por documentos, nas hipóteses, por exemplo, de

18
despesas médicas, hospitalares ou com funeral, ou pela perícia, na hipótese de subtração,
danificação ou destruição de coisa etc.
A conclusão aqui defendida é de que o valor mínimo a ser fixado na sentença penal
condenatória é unicamente aquele que exsurge direta e imediatamente do fato descrito na
denúncia ou queixa, estando de pronto demonstrado documentalmente ou pela perícia da fase
investigatória. Ficam, desse modo, relegados à liquidação civil todos os demais danos, a fim
de não pulverizar o processo penal com discussões que lhe são estranhas.
Como exemplo, nos delitos contra o patrimônio, o dano que poderá ser fixado na
sentença penal condenatória é aquele decorrente da subtração ou danificação da coisa, com
base na avaliação, ou ainda, havendo comprovação, os danos causados para subtração da
coisa, com rompimento de obstáculos etc.
Nos acidentes de trânsito, a princípio, somente os danos com o tratamento médico e
hospitalar que forem desde logo demonstrados. Os danos materiais no veículo e lucros
cessantes somente poderão ser fixados desde que não haja maiores controvérsias e não
dependam de dilação probatória, do contrário sua liquidação deve ser remetida para o juízo
cível.
Nos crimes contra a pessoa, da mesma forma, as despesas médicas ou com funeral que
estiverem de plano demonstradas no caderno investigatório poderão ser fixadas na sentença,
contudo, os demais prejuízos, inclusive pensionamentos, lucro cessantes, dano moral etc, de
regra dependem de dilação probatória, com perícia, prova testemunhal específica, motivo pelo
qual devem ficar para a liquidação posterior.
No que tange ao dano moral, geralmente o seu arbitramento requer análise mais
complexa das conseqüências do crime para o ofendido e seus familiares, condições
econômicas do ofendido e do ofensor, o que depende de produção de prova para tal fim,
evidentemente não compatível com o processo penal.
Também por essa razão que o processo penal não servirá para discussões em torno de
culpa concorrente, grau de culpa ou responsabilidade civil de terceiros. Essas questões podem
interessar para uma ampla liquidação do dano sofrido pela vítima, com as possíveis
compensações de culpa no juízo cível, porém, na esfera criminal elas não tem relevância para
fins penais e, portanto, são matérias estranhas ao processo penal, e também não podem ser
invocadas no que tange à fixação do valor mínimo da reparação dos prejuízos sofridos pelo
ofendido, pelas razões acima expendidas.

19
Enfim, para a fixação do valor mínimo de indenização à vítima não pode o processo
penal ser desviado de sua finalidade, sob pena de comprometer a celeridade perquirida com a
reforma e a própria efetividade da jurisdição criminal, pois é inegável que a subversão do
processo penal para fins exclusivamente reparatórios à vítima, com dilação probatória nesse
sentido, poderá ter como conseqüência a extinção da punibilidade em razão da prescrição, o
que, em última análise, traria prejuízos ainda maiores à vítima, pois neste caso nenhum valor
seria fixado desde logo.
Assim, entendemos que a norma que estabeleceu a fixação do valor mínimo de
indenização ao ofendido, na sentença penal condenatória, ficará melhor acomodada no
processo penal vigente com a exigência da sumariedade probatória documental ou pericial
existente no caderno investigatório, que desde logo quantifique o prejuízo direto e imediato
sofrido pela vítima em razão do delito, não servindo o processo para uma produção ampliada
da prova para esse fim.

BIBLIOGRAFIA

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