Você está na página 1de 10

O REGIME DA ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS NO PROCESSO

PENAL1

Paulo de Sousa Mendes


Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Introdução

A estrutura acusatória do processo penal exige a identidade entre o objecto da acusação e o


objecto da cognição e decisão do tribunal2. O objecto do processo penal é, pois, o objecto da
acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de conhecimento do tribunal
(actividade cognitiva) e a extensão do caso julgado (actividade decisória)3.

O princípio da identidade do objecto do processo penal respeita o interesse (reconhecido


como garantia) do arguido na manutenção da eadem res desde a acusação até à sentença, pois
só assim conseguirá preparar uma defesa pertinente e eficaz, segura de não deparar com
surpresas incriminatórias e de ter assim um julgamento leal4.

Esse interesse do arguido pode, porém, conflituar com o interesse público na aplicação do
direito penal e na eficaz perseguição e condenação dos delitos efectivamente cometidos, se
forem descobertos factos novos em fases avançadas do processo5.

Na sequência vamos ver se é possível promover a concordância prática da garantia do arguido


com o interesse público no esclarecimento da verdade material.

I. Os princípios da vinculação temática do tribunal

Para além do princípio da identidade6, os outros princípios subjacentes à vinculação temática


do tribunal são os seguintes:

- O princípio da unidade ou indivisibilidade – o objecto do processo deverá ser conhecido


na sua totalidade (i.e., unitária e indivisivelmente)7. Um problema unitário deve ficar
resolvido num só processo, não só pelo interesse do arguido de que se resolva de uma vez

1
Texto revisto da conferência realizada no COLÓQUIO LUSO-ALEMÃO «QUE FUTURO PARA O DIREITO
PROCESSUAL PENAL?», no âmbito do SIMPÓSIO DE DIREITO PROCESSUAL PENAL – Em homenagem
ao Professor Doutor Jorge de Figueiredo Dias – Por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal, na
Escola de Direito da Universidade do Minho, em 23 de Março de 2007.
Agradeço o amável convite ao Senhor Prof. Doutor Mário Ferreira Monte, Presidente da Comissão Executiva do
Simpósio, aproveitando a oportunidade para exprimir o meu gosto em associar-me à homenagem ao Professor
Doutor Jorge de Figueiredo Dias.
2
Por todos, cf. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito processual penal, reedição fac-similada da 1.ª ed.,
Coimbra: Coimbra Editora, 2004 (1.ª ed., 1974), p. 144.
3
Idem, p. 145.
4
Cf. A. CASTANHEIRA NEVES, Sumários de processo criminal, Coimbra: Edição processada em computador
por João Abrantes, 1968, p. 198.
5
Ibidem.
6
Idem, pp.199-202, com remissões para Beling e Peters.
7
Cf. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito processual penal, cit., p. 145, com citação de Castanheira Neves.
por todas a totalidade do facto por que é acusado, como também porque a multiplicação
de provas e decisões poderia gerar contradições, necessariamente iníquas8;

- O princípio da consunção – a decisão do objecto do processo deverá considerar-se como


tendo esgotado a sua apreciação jurídico-criminal (e.g., a descoberta posterior ao trânsito
em julgado da decisão condenatória de mais factos integradores de um crime continuado
não pode dar lugar a nova acusação9). A esgotante cognição corresponde ao interesse do
Estado na realização da pretensão punitiva, assim como corresponde também ao interesse
do arguido na decisão da sua sorte, resguardando-se definitivamente da possibilidade de
novos julgamentos10.

II. Definição de conceitos

Depois de fixado o objecto do processo, ainda assim podem aparecer factos novos.

Os factos novos trazidos ao processo podem ser factos totalmente independentes, o que em
termos substantivos daria lugar a um concurso real de infracções com o objecto do processo
em curso11. Nestes casos, o Ministério Público (doravante MP) deverá simplesmente abrir um
outro inquérito quanto aos factos totalmente novos, nos termos do art. 262.º, n.º 2, do Código
de Processo Penal (doravante CPP)12.

O nosso problema é antes a variação na descrição dos mesmos factos, a chamada alteração de
factos. Se houver alteração de factos, podemos estar perante uma alteração substancial de
factos ou não. O conceito de alteração substancial de factos é definido no art. 1.º, n.º 1,
alínea f), do CPP.

A alteração substancial de factos pode dar lugar a uma alteração da qualificação jurídica,
mas não necessariamente.

III. A fixação do objecto do processo

Nos crimes públicos e semi-públicos, é a partir da acusação pelo MP, art. 283.º, n.º 1, do
CPP, ou do requerimento para a abertura da instrução pelo assistente, art. 284.º, n.º 1, vs. art.
287.º, n.º 1, alínea b), do CPP, e, nos crimes particulares, é a partir da acusação particular,
art. 285.º, n.º 1, do CPP, que passa a vigorar o princípio da vinculação temática. Ou seja, o
objecto do processo fica a partir daí fixado nos seus limites máximos.

8
Cf. A. CASTANHEIRA NEVES, Sumários de processo criminal, cit., pp. 202-204, com remissões para Beling
e Eduardo Correia.
9
Como já defendia EDUARDO CORREIA, A teoria do concurso em direito criminal: I – Unidade e pluralidade
de infracções / II – Caso julgado e poderes de cognição do juiz, 2.ª reimp. da 1.ª ed., Coimbra: Almedina, 1996
(1.ª ed., 1948), pp. 351-357.
10
Cf. A. CASTANHEIRA NEVES, Sumários de processo criminal, cit., pp. 204-207, com remissões para Ebh.
Schmidt e Eduardo Correia.
11
JOSÉ SOUTO DE MOURA, «Notas sobre o objecto do processo (A pronúncia e a alteração substancial dos
factos)», in AA.VV., Apontamentos de direito processual penal (org.: Teresa Pizarro Beleza), vol. II (Aulas
teóricas dadas ao 5.º Ano 1991/92 e 1992/93), Lisboa: AAFDL, 1993, (pp. 21-46) p. 41.
12
Cf. JORGE NORONHA SILVEIRA, «Esquema de resolução de casos práticos», in AA.VV., Direito
processual penal – Materiais de apoio às aulas práticas (org.: Jorge Noronha Silveira), 1.ª reimp. da 2.ª ed.,
Lisboa: AAFDL, 2006 (1.ª ed., 2003), (pp. 121-125) p. 122.
Entrados na segunda fase (facultativa) do processo, o juiz instrutor, em razão desse princípio,
vê traçado o círculo dentro do qual livremente se pode movimentar na sua tarefa de
investigação, cujo limite é a fundada suspeita da verificação de uma alteração substancial dos
factos (art. 303.º, n.º 3, do CPP)13. Se o juiz instrutor porventura pisar fora das estremas dos
seus poderes de investigação, então o art. 309.º, n.º 1, do CPP comina a nulidade da decisão
instrutória na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração
substancial dos descritos na acusação do MP ou do assistente ou no requerimento para
abertura da instrução. É uma nulidade dependente de arguição, nos termos do art. 309.º, n.º 2,
do CPP.

Nos termos do art. 359.º, n.º 1, do CPP, uma alteração substancial dos factos descritos na
acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o
efeito de condenação no processo em curso. A nulidade do incumprimento do disposto nesse
inciso legal também depende de arguição, a qual é tempestivamente feita se o for na
motivação do recurso, conforme o disposto no art. 410.º, n.º 3, do CPP14.

O REGIME DA ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS

IV. Os factos novos autonomizáveis

O regime da alteração substancial de factos é variável, consoante os factos novos forem


autonomizáveis ou, pelo contrário, não autonomizáveis15.

O conceito de factos autonomizáveis define-se pela possibilidade de os separarmos daqueles


que já constituem o objecto do processo, de tal sorte que, sem se prejudicar o processo em
curso, sejam criadas as condições para se iniciar um outro processo penal, sem violação do
princípio ne bis in idem (i.e., que ninguém seja julgado, no todo ou em parte, mais do que
uma vez pelos mesmos factos).

Na hipótese de os factos novos serem autonomizáveis, então, segundo o art. 303.º, n.º 3, do
CPP, devem ser destacados do processo em curso e dar lugar à abertura de inquérito noutro
processo penal (ressalvadas as excepções dos crimes semi-públicos e particulares), devendo o
primitivo processo prosseguir os seus trâmites16. Na fase de julgamento, os factos novos
autonomizáveis devem igualmente ser comunicados ao MP para que proceda por eles (art.
359.º, n.º 1, do CPP).

A possibilidade de autonomização verifica-se nas situações de concurso ideal de infracções:


por exemplo, o arguido é acusado de homicídio e descobre-se na instrução ou no julgamento
que cometeu esse crime para encobrir um crime de violação contra a mesma vítima. Neste
caso, julgar-se-ia no processo em curso o homicídio, mas com preterição da circunstância
extemporaneamente descoberta de o homicídio ter obedecido à motivação de encobrimento

13
FREDERICO ISASCA, Alteração substancial dos factos e sua relevância no processo penal português, 2.ª
reimp. da 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2003 (1.ª ed., 1992), (pp. 53-59) p. 57.
14
Cf. JORGE NORONHA SILVEIRA, Direito processual penal, cit., p. 125.
15
Por todos, cf. TERESA PIZARRO BELEZA, «O objecto do processo penal – O conceito e o regime de
alteração substancial dos factos no Código de Processo Penal de 1987», Apontamentos, vol. III, (pp. 89-106) p.
101.
16
Por todos, cf. FREDERICO ISASCA, Alteração substancial dos factos, cit., p. 182, n. 1. Ou então, cf.
TERESA PIZARRO BELEZA, Apontamentos, vol. III, cit., p. 101.
do outro crime. Essa circunstância não poderia ser tomada em consideração para o efeito da
agravação da pena legal com base no homicídio qualificado, nos termos do art. 132.º, n.os 1 e
2, alínea f), do Código Penal (doravante CP), nem sequer poderia ser considerada para o
efeito da exacerbação da pena concreta dentro dos limites da pena legal do homicídio, nos
termos do art. 131.º do CP. Num novo processo, caberia, por sua vez, tão-somente
investigação independente e a decisão dos factos eventualmente constitutivos do crime de
violação (art. 164.º, n.º 1, do CP). Isso não deverá fazer obstáculo à aplicação de uma pena
conjunta, por virtude do concurso de crimes, a cargo do tribunal da última condenação (art.
77.º, n.º 1, do CP).

V. Os casos duvidosos

Serão autonomizáveis os elementos dos crimes complexos? Cabem na categoria dos crimes
complexos aqueles tipos legais de crime que mantêm uma filiação de especialidade com
respeito a dois ou mais tipos fundamentais: por exemplo, o roubo17. Em função dessa
definição, percebe-se que haja alguma tendência para admitir a conversão num concurso de
infracções dos elementos integrantes do tipo legal do crime complexo. A transformação do
crime complexo em duas infracções separadas permitiria, pois, a abertura de inquérito
relativamente aos factos descobertos na instrução ou no julgamento, sem prejuízo da
continuação do processo em curso.

Bem vistas as coisas, não parece, porém, que esta solução seja conforme aos princípios do
processo penal de estrutura acusatória. É sabido que a razão de ser dessa singular estrutura
não radica na necessidade de fazer vingar um formalismo, tão bom como outro qualquer, nas
funções que as autoridades judiciárias devem executar nas diversas fases do processo, mas
obedece antes ao espírito de respeito pelo valor da pessoa do arguido e do seu direito de
defesa. É bem de ver, então, que não devem ser apoiadas as tentativas de suplantar, através de
meros expedientes formais, os entraves à verdade material impostos pela estrutura acusatória
do processo penal. Precisamente, era isso que sucederia se porventura se quisesse partir em
dois um facto punível que constituísse uma unidade natural de acção. Não se pode fazê-lo, já
que a tanto se opõem os princípios da indivisibilidade e consunção do objecto do processo.
Quer isto dizer que um crime de roubo não deve ser pulverizado nos seus elementos típicos,
nem estes desbaratados por processos penais independentes.

VI. Os factos novos não autonomizáveis

17
A especialidade é uma relação entre duas ou mais normas em que uma, a lex specialis, contém já todos os
elementos da outra, a lex generalis, se bem que constem da norma especial novos elementos, os quais lhe
reduzem, por consequência, o âmbito de aplicação por referência à norma geral. Dessa relação advém, segundo
um princípio sem excepção, que a lex specialis derogat legi generali.
Geralmente, a relação de especialidade entre normas incriminadoras serve de modelo organizador para famílias
de crimes, compostas de um tipo fundamental e de subtipos, todos concorrendo para a protecção de unum et
idem bem jurídico (neste sentido, cf. EDUARDO CORREIA, A teoria do concurso em direito criminal, cit., p.
128).
Mais raramente, o legislador chega a operar a reunião de dois ou mais tipos fundamentais, fazendo surgir assim
os chamados crimes complexos. Não fica por isso perturbada a relação de especialidade do crime complexo com
cada um dos tipos fundamentais que estão na sua origem, nem mesmo se o crime complexo corresponder já a
uma imagem social própria, com o seu peculiar sentido de desvalor (o chamado crime autónomo ou sui generis),
e passar a servir, ele mesmo, de tipo fundamental com respeito a novos subtipos.
Crime complexo, aliás sui generis, é, no sentido exposto, o roubo (art. 210.º, n.º 1, do CP), o qual é,
preferencialmente, especial por referência ao furto, posto que ainda é crime contra a propriedade, e é também,
secundariamente, especial por referência, agora em alternativa, às ofensas à integridade física (art. 143.º, n.º 1,
do CP) ou à coacção (art. 154.º, n.º 1, do CP).
Já na hipótese de os factos novos serem inseparáveis do objecto do processo em curso, cabe
reconhecer que a solução não é pacífica. Desde logo, a lei portuguesa actual não dá solução18.
Na falta de norma legal expressa, a solução há-de resultar então da possibilidade de se
estabelecer uma concordância prática entre os interesses em causa ou até da necessidade de se
fazer prevalecer um desses interesses sobre o outro, a saber: o interesse do arguido vs. o
interesse público.

VII. A alteração substancial de factos não autonomizáveis na instrução

As respostas possíveis para este problema só podem passar por uma de três: primeiro, a
repetição do inquérito no mesmo processo penal, em ordem à eventual integração da alteração
substancial de factos no objecto do processo; segundo, a organização de um novo processo
penal com todos os factos ou, terceiro, a continuação do processo em curso, com preterição
absoluta de conhecimento da alteração substancial de factos.

1. A tese da repetição do inquérito

A solução de repetição do inquérito passa pelo apelo às normas do processo civil, com base
no art. 4.º do CPP, aplicando-se então o regime da suspensão da instância, especialmente
com respeito aos arts. 276.º, n.º 1, alínea c), e 279.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo
Civil (doravante CPC). Ordenada a suspensão da instância pelo juiz de instrução, haveria
lugar à repetição do inquérito, findo o qual, das duas uma: ou o MP conclui pela suficiência
de indícios quanto a todos os factos e deduz acusação também pelos factos que levantaram a
suspeita da alteração substancial de factos, ou não conclui naquele sentido e mantém a
primeira acusação. No primeiro caso, todos os factos são introduzidos na instrução, ficando
consequentemente sujeitos a um despacho de pronúncia ou de não pronúncia – portanto a uma
decisão judicial de comprovação19.

Discordo dessa solução por várias ordens de razões: por um lado, essa solução simula um
suporte dogmático-legal verdadeiramente inexistente, porque, à parte o surpreendente apelo a
uma cláusula geral extensiva dos casos de suspensão da instância absolutamente
indeterminada (art. 279.º, n.º 1, do CPC: «O tribunal pode ordenar a suspensão [...] quando
ocorrer outro motivo justificado»), o próprio sentido da suspensão da instância no processo
civil traduz-se numa paragem da causa, que é incompatível com a noção dinâmica de
recomeço do processo penal desde o seu início (i.e., a repetição do inquérito), que seria o
efeito procurado através da importação do referido instituto para o processo penal neste
contexto20. Por outro lado, essa solução baseia-se, em última análise, no pressuposto

18
No Anteprojecto, Figueiredo Dias tinha concebido a solução de conferir ao juiz de instrução poderes para
pronunciar por factos que constituíssem uma alteração substancial dos descritos na acusação ou no requerimento
de abertura de instrução. Era uma solução só aplicável à fase de instrução, mas não à fase de julgamento,
baseando-se no argumento de que ainda se estaria no âmbito de uma fase de investigação, como se o inquérito e
a instrução fossem duas subfases de uma única instância de investigação. A proposta do Anteprojecto não vingou
em sede de Comissão Revisora, argumentando-se então que a mesma feria o princípio do acusatório por não
impor qualquer vinculação temática ao juiz de instrução (cf. IVO MIGUEL BARROSO, Estudos sobre o objecto
do processo penal, Lisboa: Vislis, 2003, pp. 153-154 e 160-161).
19
É a posição de FREDERICO ISASCA, Alteração substancial dos factos, cit., pp. 184-187.
20
Crítica semelhante por ver-se em JOSÉ SOUTO DE MOURA, Apontamentos, vol. II, cit., p. 42.
inadmissível de que caberia nas funções do juiz de instrução dirigir o MP, ao indicar-lhe a
necessidade de reformar uma investigação supostamente deficiente21.

2. A tese da organização de um novo processo com todos os factos

A solução de organização de um novo processo passa novamente pelo recurso às normas do


processo civil, com base no art. 4.º do CPP, aplicando-se agora o regime da absolvição da
instância (art. 288.º do CPC) e arquivando-se o processo. A solução seria, pois, «a da não
prossecução dos autos de instrução emitindo-se uma decisão de forma. Rigorosamente, nem
se poderá falar aqui de ‘não pronúncia’, porque a debruçar-se sobre o fundo da questão, o juiz
só o fará na estrita medida do necessário à apreciação da questão prévia da falta de poderes de
cognição do juiz. Assim, o J.I.C. proferirá uma decisão instrutória que não é de mérito,
porque antes deparou com o obstáculo da falta dum verdadeiro pressuposto processual,
relativo ao objecto do processo (cfr. Art. 308.º n.º 3 do CPP)»22. Esta solução parece, pois,
basear-se na ideia de que a falta de acusação do MP relativamente aos factos que viriam a
consubstanciar a alteração substancial ocorrida na instrução tornaria o juiz de instrução
absolutamente incompetente (i.e., uma incompetência material), o que valeria como falta de
um pressuposto processual, dando lugar à absolvição da instância.

Tão-pouco posso aceitar esta solução, à parte a consideração pelo seu eventual rigor técnico,
pois ela contraria, aliás frontalmente, o princípio da legalidade, aderindo, ao invés, à
inadmissível (no quadro do sistema processual vigente) matriz da oportunidade.
Materialmente, a solução ora rejeitada implicaria que o juiz de instrução, dispondo de matéria
suficiente para proferir um despacho de pronúncia pelos factos constantes do objecto do
processo, considerava que era inoportuno fazê-lo, em atenção à proibição de juntar-lhes os
factos que constituem a alteração substancial.

3. A tese da continuação do processo

Tudo visto e somado, a única resposta compatível com a concreta estrutura acusatória do
nosso processo penal, no qual a função do juiz de instrução é materialmente judicial (e não
materialmente policial ou de averiguações), será a última das três: nada a fazer quando ocorra,
na fase de instrução (por maioria de razão, o mesmo vale na fase de julgamento), a descoberta
de factos substancialmente diversos mas inextricáveis do objecto do processo em curso,
devendo então o processo prosseguir os seus trâmites com inexorável sacrifício parcial do
conhecimento da verdade material23.

Acaba aqui de falhar, portanto, a concordância prática do interesse do arguido na sua defesa
pertinente e eficaz com o interesse público no esclarecimento da verdade sem subterfúgios.
Prevalece, ao invés, um único interesse: o referido interesse do arguido. Esta conclusão não
deve, no entanto, causar estranheza porque, repare-se, não se trata aqui de arruinar o interesse
público na punição do criminoso, quando for caso disso, mas trata-se apenas de escamotear
alguns concretos factores de avaliação da quantidade de pena – e isso é seguramente menos
dramático do que a ruína daquele interesse público! Enfim, são casos em que as

21
Crítica semelhante pode ver-se em TERESA BELEZA, Apontamentos, vol. III, cit., p. 101.
22
JOSÉ SOUTO DE MOURA, Apontamentos, vol. II, cit., pp. 42-43.
23
É a solução parece ser defendida, entre outros, por TERESA BELEZA, op. cit., pp. 101-102.
circunstâncias modificativas agravantes especiais nominadas24 ou até os «exemplos-padrão»
referidos a uma cláusula agravante determinada (a técnica incriminatória usada no art. 132.º
do CP)25 nunca teriam, por definição, a relevância suficiente para sustentar sozinhos um
objecto de processo à parte.

O problema não se põe quanto ao conhecimento das circunstâncias modificativas agravantes


comuns nominadas (a única: a reincidência, nos termos dos arts. 75.º e 76.º do CP) porque,
embora não se tenha optado entre nós pelo sistema da «césure», o CPP confere «autonomia às
operações de determinação da sanção no contexto da deliberação e votação da decisão, sem
contudo constituir com elas uma particular ‘fase’ do julgamento»26, sendo só nessa altura que
se deverá dar relevo ao conhecimento dos antecedentes criminais do arguido (e, portanto, à
efectiva consideração da reincidência), nos termos do art. 369.º do CPP.

4. Regimes especiais

Peculiares são os casos em que a matéria da alteração substancial de factos implica a


subsunção dos factos num tipo legal de crime alternativo com respeito àquele que estava
pressuposto no objecto do processo em curso: por exemplo, o arguido é acusado de furto e
descobre-se, na instrução, que não podia ter subtraído a coisa porque a mesma já antes tinha
sido entregue à sua guarda, embora depois se tivesse apropriado dela. Também aqui os factos
descobertos na instrução, aliás incompatíveis com o objecto do processo em curso, devem dar
lugar à abertura de inquérito (mas o procedimento criminal depende de queixa, nos termos do
art. 205.º, n.º 3, do CP). Só que o destino do processo em curso há-de ser, ao termo da fase
de instrução, a proferição pelo juiz de um despacho de não pronúncia27.

VIII. A alteração substancial de factos não autonomizáveis no julgamento

Na fase de julgamento, as respostas possíveis só podem agora passar por uma de duas:
primeiro, a organização de um novo processo penal com todos os factos ou, segundo, a
continuação do processo em curso28. Ambas as respostas repetem os argumentos já invocados
a propósito da verificação do mesmo problema na fase de instrução.

A PROPOSTA DE LEI N.º 109/X

24
O legislador penal português não estabeleceu quaisquer agravantes modificativas inominadas, ao estilo dos
«casos especialmente graves» («besonders schwere Fälle») que aparecem frequentemente no direito penal
alemão.
Para esclarecimentos, cf. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito penal português – Parte geral, vol. II (As
consequências jurídicas do crime), Lisboa: Aequitas/Editorial Notícias, 1993, pp. 202-203. Ou então, cf.
ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A determinação da medida da pena privativa de liberdade – Os
critérios da culpa e da prevenção, Coimbra: Coimbra Editora, 1995, pp. 594-600, n. 59. Ou ainda, cf. TERESA
SERRA, Homicídio qualificado, Tipo de culpa e medida da pena – Contributo para o estudo da técnica dos
exemplos-padrão no artigo 132.º do Código Penal, Coimbra: Almedina, 1990, pp. 59-60.
25
Cf. TERESA SERRA, Homicídio qualificado, cit., passim.
26
ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, cit., p. 42.
27
Dando conta das diversas posições acerca do tratamento a dar aos casos de crimes que estão numa relação de
alternatividade, cf. IVO MIGUEL BARROSO, Estudos sobre o objecto do processo penal, cit., pp. 56-59.
28
Nesta fase, Isasca já não defende a suspensão da instância, mas antes a consideração dos factos não
autonomizáveis dentro de medida da pena legal que couber aos factos do objecto processual inicialmente
proposto (cf. FREDERICO ISASCA, Alteração substancial dos factos, cit., pp. 205-210).
IX. O novo regime legal em perspectiva

A Unidade de Missão para a Reforma Penal (UMRP), coordenada por Rui Pereira, assumiu a
necessidade de a lei dar resposta expressa ao problema da alteração substancial de factos não
autonomizáveis, quer na fase de instrução, quer na fase de julgamento.

No Conselho da UMRP vingou a doutrina da continuação do processo em curso, com


preterição absoluta de conhecimento da alteração substancial de factos.

A actual Proposta de Lei n.º 109/X29, baseada no Anteprojecto de Revisão do CPP


apresentado pela UMRP, contém o seguinte articulado:

Art. 303.º
[…]

1. Se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos
factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para
abertura de instrução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao
defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento,
um prazo para preparação da defesa não superior a 8 dias, com o consequente adiamento do
debate, se necessário.

2. […].

3. Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para


abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia
no processo em curso, nem implica a extinção da instância [30].

4. A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como


denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação
ao objecto do processo [31].

5. O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o juiz alterar a qualificação


jurídica dos factos descritos na acusação ou no requerimento para a abertura da instrução.

Art. 359.º
[…]

1. Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser
tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem
implica a extinção da instância [32].

29
Disponível em www.parlamento.pt .
30
Itálicos nossos.
31
Itálicos nossos.
2. A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como
denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação
ao objecto do processo [33].

3. [Anterior n.º 2].

4. [Anterior n.º 3].

X. Sugestão de articulados para os arts. 303.º e 359.º do CPP

Concordando com o sentimento geral dos membros do Conselho da UMRP quanto à solução
da continuação do processo em curso, com preterição absoluta de conhecimento da alteração
substancial de factos, oportunamente manifestei, no entanto, o meu receio de que o articulado
que vingou não fosse suficiente para impedir futuras dúvidas acerca do tratamento a dar aos
casos em que a matéria da alteração substancial de factos implica a subsunção dos factos num
tipo legal de crime alternativo, por comparação com a qualificação jurídica pressuposta no
objecto do processo em curso.

Em função disso, apresentei e defendi no Conselho da UMRP o seguinte articulado:

Art. 303.º
[…]

1. […].

2. […].

3. […].

4. Se a alteração substancial de factos referida no número anterior não puder só por si dar
lugar à abertura de inquérito pelo Ministério Público, a instrução prossegue com sacrifício
definitivo da possibilidade de conhecimento desses factos.

5. Se a alteração substancial de factos referida no n.º 3 implicar a subsunção num tipo legal de
crime alternativo com respeito àquele que é pressuposto no objecto do processo em curso, o
juiz profere despacho de não pronúncia e comunica a alteração ao Ministério Público para que
proceda pelos novos factos.

Art. 359.º
[…]

1. […].

32
Itálicos nossos.
33
Itálicos nossos.
2. Se a alteração substancial de factos referida no número anterior não puder só por si dar
lugar à abertura de inquérito pelo Ministério Público, o julgamento prossegue com sacrifício
definitivo da possibilidade de conhecimento desses factos.

3. Se a alteração substancial de factos referida no n.º 1 implicar a subsunção num tipo legal de
crime alternativo com respeito àquele que é pressuposto no objecto do processo em curso, a
mesma não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo
em curso, mas deve ser comunicada ao Ministério Público para que proceda pelos novos
factos.

4. [Actual n.º 2].

5. [Actual n.º 3].

Conclusão

O regime legal que agora se perspectiva contém, apesar de tudo, a melhor solução possível
para o problema da alteração substancial de factos não autonomizáveis, pois a solução
genericamente escolhida é, de facto, a única que respeita a estrutura acusatória do nosso
processo penal, que é preciso manter e até aprofundar.

Você também pode gostar