Você está na página 1de 35

GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

Livre-Docente, Doutor e Mestre em Direito Processual Penal


pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Professor Associado do Departamento de Direito Processual


da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

CONSULTA

Honra-me o eminente advogado Doutor Alexandre Pacheco


Martins, formulando consulta , com pedido de parecer, sobre acordão
proferido no julgamento do Habeas Corpus registrado sob o nº 1410141-
30.2016.8.12.0000, que tramita perante o Egrégio Tribunal de Justiça do
Mato Grosso, no qual figura como paciente Luiz Eduardo Auricchio
Bottura, visando o trancamento de ação penal registrada sob o n.
0800168-68.2015.8.12.0022, da Vara Única da Comarca de Anaurilândia.

A consulta veio acomp anhada de mais de uma dezena de


documentos. 1

O questionamento diz respeito, basicamente, à possiblidade


de se reconhecer a nulidade parcial de uma denúncia, em que são
imputados vários crimes.

Assim, relatado o assunto, o consulente formula os quesitos


abaixo arrolados.

1
Foram enviadas cópias eletrônicas dos seguintes documentos: (1) Petição inicial do Habeas Corpus
nº Habeas Corpus nº 1410141-30.2016.8.12.0000, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do SUL; (2)
Acórdão do Habeas Corpus nº 1410141-30.2016.8.12.0000, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do
SUL; (3) Embargos de Declaração do Ministério Público do Mato Grosso do Sul, contra Acórdão do
Habeas Corpus nº 1410141-30.2016.8.12.0000, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul; (4)
Embargos de Declaração de Eduardo Bottura, contra Acórdão do Habeas Corpus nº 1410141-
30.2016.8.12.0000, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do SUL; (5) Acórdão do Habeas Corpus nº
1410471-27.2016.8.12.0000, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do SUL; (6) Embargos de
Declaração de Eduardo Bottura, contra Acórdão do Habeas Corpus nº 1410471-27.2016.8.12.0000, do
Tribunal de Justiça do Mato Grosso do SUL; (7) acórdão do Recurso em Habeas Corpus nº 75.180/MS,
do Superior Tribunal de Justiça; (8) acórdão do Recurso em Habeas Corpus nº 75.287/MS, do Superior
Tribunal de Justiça; (9) acórdão do Recurso em Habeas Corpus nº 76.033/MS, do Superior Tribunal de
Justiça; (10) acórdão do Recurso em Habeas Corpus nº 76.060/MS, do Superior Tribunal de Justiça; (11)
acordão dos embargos de declaração no Recurso em Habeas Corpus nº 76.060/MS, do Superior Tribunal
de Justiça; (12) acórdão da Reclamação nº 32.616/MS, do Superior Tribunal de Justiça; (13) denúncia no
processo nº 0800168-68.2015.8.12.0022, da comarca de Anaurilândia,

1
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

QUESITOS

1. O que é o objeto do processo penal?

2. O processo penal pode ter objeto composto?

3. No caso de cumulação de objetos do processo, tal objeto será


divisível?

4. No caso de cúmulo objetivo, cada capítulo da acusação poderá receber


um tratamento autônomo dos demais?

5. O crime do art. 288 do Código Penal apresenta relação de


subordinação ou de acessoriedade com algum outro delito?

6. No caso concreto, o provimento do Recurso em Habeas Corpus


nº 65.747/MS e Recurso em Habeas Corpus nº 70.596/MS, pelo Superior
Tribunal de justiça, implicou a nulidade total da denúncia ofertada no
processo nº 0800168 -68.2015.8.12.0022, que tramita na Vara Única de
Anaurilândia?

7. Do ponto de vista da teoria da nulidade processuais, é correto o


reconhecimento de uma nulidade parcial da denúncia?

2
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

PARECER

1. A pretensão processual como objeto do processo

A definição da possibilidade de anulação parcial da de uma


denúncia exige que se fixem duas premissas: (1) o que é o objeto do
processo penal; (2) o objeto do processo penal pode ser divisível. O
presente item responderá a primeira questão.

O objeto do processo penal é a pretensão processual. Por sua


vez, o conceito de pretensão processual, como objeto do processo penal,
leva ao conceito de imputação penal.

Imputar significa atribuir um fato penalmente relevante a


alguém. 2 No processo penal, a imputação é o ato processual por meio do
qual se formula a pretensão processual. É a formulação da pretensão
penal. 3

A imputação é a afirmação do fato que se atribui ao sujeito,


a afirmação de um tipo penal e a afirmação da conformidade do fato com
o tipo penal. 4 Como sintetiza Frederico Marques, “na imputação, há os
seguintes elementos: a) descrição de fatos; b) qualificação jurídico -penal
desses fatos; c) a atribuição dos fatos descritos a alguém”. 5 Seu
conteúdo, pois, só pode ser a atribuição do fato concreto que se enquadra
em um tipo penal. O objeto da imputação é o fato que foi atribuído a

2
  Nesse sentido: Luigi Sansò, La correlazione fra imputazione contestata e sentenza. Milano: Giuffrè,
1953, p. 93; Giovanni Leone, Trattato di diritto processuale penale. Napoli: Jovene, 1961, v. 2, p. 255.
3
  Francesco Carnelutti, Cenni sull‟imputazione penale. Rivista di Diritto Processuale, 1948, p. 207.
4
Nesse sentido: Francesco Carnelutti, Lecciones sobre el proceso penal. Trad. de Santiago Sentís
Melendo. Buenos Aires: Bosch, 1950 v. 4, p. 9; Sansò, La correlazione..., p. 263, nota 13.
5
José Frederico Marques,Elementos de direito processual penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1965. v
v. 2, p. 237.

3
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

alguém. 6

A infração penal é um fato jurídico, isto é, um fato conforme


um modelo ou tipo penal. Logo, o conteúdo da imputação é a afirmação
de que uma pessoa (o imputado) praticou um fato previsto em uma norma
como infração penal . 7

Em estudo sobre o tema, já nos posicionamos no sen tido de


que, sendo a pretensão processual objeto do processo, “e sendo a
imputação o meio pelo qual se formula tal pretensão, o objeto do
processo penal não pode ser a imputação, que é o veículo da pretensão. 8
Por isso, o objeto do processo penal não é a i mputação, mas sim
aquilo que foi imputado , isto é, o objeto dessa imputação .

2. Do objeto do processo simples e do objeto do processo composto

Sendo o objeto do processo penal a pretensão processual,


cujo conteúdo se identifica com o conteúdo da imput ação, isto é, o fato
concreto penalmente relevante, que se atribui ao acusado, coloca -se a
segunda questão: o objeto do processo penal é incindível ou poderá ser
dividido.

Evidente que há um núcleo míni mo para constituir objeto de


um processo penal. É preciso que se impute, ao menos, um crime, em
todos os seus aspectos concretos, atribuindo -o a um acusado. Ou seja, o
conteúdo mínimo de uma imputação penal é a atribuição de um único
crime, a apenas um acusado. Por exemplo, seria o caso de imputação de
um crime de roubo, ao acusado A.

Para julgar a imputação o juiz resolve questões de fato e de


direito. Tais questões não são aptas a caracterizar capítulos autônomos

6
  Assim, Sansò (La correlazione..., p. 93), para quem “a imputação é a atribuição de um fato a um
sujeito. „Conteúdo‟ da imputação é, por isso, a atribuição do fato; objeto da imputação é o fato atribuído”.
Franco Cordero (Considerazioni sul principio d‟identità del fatto. Rivista Italiana di Diritto e Procedura
Penale, 1938, p. 910): “o fato constitui o objeto do processo”.
7
.  Nesse sentido: Carnelutti, Lecciones..., v. 4, p. 9; Sansò, La correlazione..., p. 305; Giuseppe Sabatini,
Principii costituzionali del processo penal. Napoli: Jovene, 1976, p. 60.
8
  Gustavo Henrique Badaró, Correlação entre acusação e sentença. 3 ed. São Paulo: RT, 2013, p. 76.

4
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

da denúncia e, consequentemente, no futuro, da sentença. 9Embora a


solução das questões de mérito influenci e na formação lógica da sentença
e concorram para determinar seu conteúdo, consideradas isoladamente
não possuem relevo autônomo; pelo contrário, visam à preparação de um
ato final sobre o objeto do processo. 10

Por outro lado, é possível que o objeto do processo penal se


apresente composto. Isto é, formado por mais de uma imputação, que
por si só seria apta a caracterizar o conteúdo isolado de um processo
penal. Há variáveis possibilidade de objetos do processo cumulados: (i)
cúmulo objetivo, (ii) cúmulo subjetivo; (iii) cúmulo objetivo -subjetivo.

No caso do cúmulo objetivo, há a imputação de mais de um


crime. A imputação conjunta, em um único pro cesso penal, normalmente
decorre da aplicação de regras de conexão ou de con tinência. Por
exemplo, imputa -se ao acusado A,o crime de roubo e o de resistência.

Já no cúmulo subjetivo há a atribuição de um mesmo crime,


há mais de um acusado. Isso poder ocorrer em crime de concurso
necessário de pessoas como, por exemplo, na associ ação criminosa, ou
em delito de concurso eventual de pessoas, com no caso em que A e B,
em concurso de agentes, praticam um roubo. 11No processo com
cumulação subjetiva haverá a formação de um litisconsórcio passivo.

Por fim, é possível que haja um cú mulo objetivo-subjetivo,


em que há mais de um crime, imputado a mais de um acusado. Nesse
caso, é possível que ambos crimes sejam atribuídos a mais de um sujeito,
em concurso de agentes. Por exemplo, imputa -se a A e a B aprática tanto
do roubo, quanto da re sistência. Mas também é possível que haja c úmulo
objetivo-subjetivo, atribuindo -se um delito a um acusado, e outro crime,

9
Nesse sentido é o pensamento de Carnelutti, para quem os capítulos de sentença identificam-se não
com algo que possa ser objeto autônomo de uma demanda, mas com as questões. Para o autor (Sulla
“reformatio in peius”, p. 184), “dei capi della sentenza, debbono esserci dei capi nella lite. (...) Il vero è
che il capo non è una parte o frazione dell‟interesse o del bene in lite; ma una delle questioni” (destaques
do autor). E, em outro estudo (Capo di sentenza. Rivista di Diritto Procesuale, 1933. p. 122), explica que
essa definição não era absolutamente exata, sendo que, na verdade, “il capo non è la questione, ma la
soluzione della questione”. Correta, no entanto, a crítica de Tullio Segrè(Cassazione parziale e limiti del
giudizio di rinvio. Rivista di Diritto Processuale, 1935, p. 13): “le questioni intorno ai presupposti di fatto
o di diritto della pretesa non sono parti ma causa della lite; e loro soluzioni non sono capi ma motivi della
decisione” (destaques do autor).
10
Nesse sentido, Enrico Tullio Liebman. “Parte” o “capo” di sentenza, p. 54.
11
Em qualquer dos dois casos, o fundamento da unidade processual será a continência por cumulação
subjetiva (CPP, art. 77, inc. I).

5
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

a um segundo acusado. Por exemplo: atribui -se a A prática de corrupção


ativa e a B a prática de corrupção passiva, em situação de bila teralidade
da corrupção.

Havendo imputação por mais de um delito, a denúncia terá


seu objeto composto por mais de um crime. Cada crime, em si, podendo
ser, em tese, objeto de uma denúncia autônoma, será um capítulo
específico da acusação. No caso de cumulação objetiva, apenas
formalmente a denúncia e a sentença serão unitárias em razão de regras
de conexão e continência. Substancialmente, porém, ser ão tantas
acusações quantos foram os crimes .E tantos capítulos da sentença,
quantas forem as acusações.

3. Capítulos da denúncia e capítulos da sentença

Havendo cúmulo objetivo, por ser o objeto do processo


composto, isso repercutirá no conteúdo da sentença.

Se há uma regra de correlação entre acusação e sentença, é


evidente que, no caso em que a acusação apresenta a imputação de mais
de um crime, também a sentença terá que julgar mais de um delito. O
mesmo se diga no caso de cúmulo subjetivo. A sentença julgará tantos
réus quantos forem os acusados na denúncia ou queixa.

Sendo a denúncia um projeto de sentença. 12 Se o projeto e


composto, o resultado final também o será.

Nesse caso, evidente que a sentença será decomponível em


tantos capítulos quantos foram os capítulos da acusação. A divisibilidade
do julgamento será um reflexo que o cúmulo de pretensões produz na
12
Pablo Meza Figueroa, De la ultra petita en el proceso penal chileno. Santiago: Juridica de Chile,
1969, p. 32. Em relação ao processo civil, Hans Sperl (Il processo civile nel sistema del diritto. Trad.
Giovanni Cristofolini. Studi di diritto processuale in onore di Giuseppe Chiovenda. Padova: Cedam,
1927. p. 819) afirma que “la petizione è il progettodi sentenza (Unteilsantrag) di una parte” (destaques
nossos).

6
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

sentença. 13 Cada decisão sobre uma das pretensões será um capítulo da


sentença, no caso de cumulação de pretensões.

O tema é tratado no processo civil, de forma mais complexa,


até mesmo em razão da possibilidade não só de cumulação simples de
pedidos, mas também de formulação de pedidos alternativos e
sucessivos. Como explica Chiovenda, haverá tantos capítulos de sentença
quantos forem os capítulos da demanda. 14

De qualquer forma, no processo penal, cada vez que se


imputa mais de um delito ao acusado, na verdade, se está diante de
várias imputações, ou melhor, de tantas imputações quantos são os
delitos atribuídos.

Na doutrina nacional , embora com conceito até mais amplo,


por abranger todas as questões, julgadas, suscitadas ou discutidas no
processo, Frederico Marques também entende que “cada um dos pedidos
cumulados em simultaneus processos, denominam -se „capítulos de
sentença‟”. 15

No processo penal, talposição é defendida por Carnelutti:

“toda imputación tiene por objeto un hecho; si

13
Segundo Guiseppe Chiovenda (Principii di diritto processuale civile. Nápoles: Jovene, 1965, § 91, p.
1.128), “si ha cumulo obbiettivo quando l‟attore propone contro il convenuto più domande ciascuna delle
quali possa immaginarsi come oggetto separato di un rapporto processuale”. Na doutrina nacional, para
Araken de Assis (Cumulação de ações, 2. ed. São Paulo: RT, 1995, p. 231), “o traço comum das ações
cumuladas consiste na aptidão de cada ação de se incluir como objeto de uma relação processual
independente. O autor as formula no mesmo processo por razões de economia”.
14
Para Chiovenda (Principii..., § 91, p. 1.136), “I capi di sentenza corrispondono ai capi di domana
dell‟art. 73: quindi non si dirà che una sentenza ha più capi solo perchè ha più parti in senso logico, o sai
perchè risolve più questioni” (destaques do autor). Essa posição também é aceita por Liebman (“Parte” o
“capo” di sentenza. Rivista di Diritto Processuale, 1964. p. 53), para quem “risulta confermata l‟opinione
che fa corrispondere i capi di sentenza ai capi di domanda” (destaques do autor). Semelhante é a posição
de Piero Calamandrei(Appunti sulla “reformatio in peius”, Rivista di Diritto Processuale, 1929. p. 300),
que define capo di sentenza como “l‟accertamento di una singola volontà di legge, cioè un atto
giurisdizionale completo e tale da poter costituire da solo, anche separato dagli altri capi, il contenuto di
una sentenza”.No mesmo sentido, na doutrina nacional, Marcelo José Magalhães Bonício (Capítulos da
sentença e efeitos dos recursos. São Paulo: RCS Ed., 2006, p. 39) afirma que: “quando há um cúmulo de
pedidos numa única demanda, fica fácil entenderemos que, cada uma das decisões acerca desse pedido,
que poderiam ter sido formulados em demandas distintas, constituem um capítulo autônomo de sentença”.
15
José Frederico Marques, Manual de Direito Processual Civil, 9 ed. São Paulo: Saraiva, 1987, v. 3, p.
45. No mesmo sentido: Cândido Rangel Dinamarco, Capítulos de sentença, 4ed. São Paulo: Malheiros,
2009, p. 77; Paulo Henrique dos Santos Lucon, Eficácia das decisões e execução provisória. São Paulo:
RT, 2000, p. 382.

7
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

varios hechos se imputan como delitos, las


imputaciones son varias, no una sola; tantas las
imputaciones como los hechos
imputados”. 16(destaquei).

Ainda no mesmo sentido é o posicionamento de Foschini:

“capi della decisione, invece, sono quelli


elementi logici della decisione che riguardano non
una qualsiasi questione, ma solo quelle tra di esse
che avrebbe potuto costituire, in linea astratta,
anche autonoma materia di processo ”. 17
(destaquei).

Consequência disso é que a sentença não poderá ter menor


número de capít ulos que o número de imputações, sob pena de ser uma
decisão citra petita .

Por outro lado, cada capítulo, em regra, poderá ter decisão


autônoma: assim, é possível que todos recebam decisão em seu mérito,
sendo absolutória em relação a um , e condenatória quanto ao outro.
Também poderá haver julgamento de mérito em relação a um, mas
extinção sem resolução do mérito, quanto ao outro.

4. Pedidos dependentes e seus efeitos sobre os capítulos da sente nça

Entre os diversos pedidos formulados no processo e,


consequentemente, entre os capítulos da sentença, pode existir, ou não,
um nexo de dependência ou subordinação.

Não há no ordenamento jurídico brasileiro, no Código de


Processo Penal, nem no novel Código de Processo Civil, uma disciplina
específica para os capítulos de sentença dependentes.

16
Lecciones sobre el processo penal. Trad. de Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Bosch, 1950, v.
I, n. 78, p. 193.
17
Gaetano Foschini, Sistema del diritto processuale penale. 2. ed. Milano: Giuffrè, 1965, v. I p. 214-
215.

8
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

No direito estrangeiro, o tema é tratado pelo art. 336 do


Codice di Procedura Civile italiano, sob a rubrica “Effetti della riforma
o della cassazione ”:

“La riforma o la cassazione parziale ha effetto


anche sulle parti della sentenza dipendenti dalla
parte riformata o cassata.

La riforma o la cassazione estende i suoi effetti


ai provvedimenti e agli atti dipendenti dalla sentenza
riformata o cassata”. 18 (destaquei).

Ao fenômeno disciplinado no primo comma, a doutrina


denomina “efeito expansivo interno”, enquanto que a regra do secondo
comma tem por objeto o “efeito expansivo externo ”. 19

Todavia, mesmo sem previsão equivalente, tem sido admitida


a mesma disciplina no processo penal brasileiro.

Como já tivemos a oportunidade de escrever, quanto ao


sistema devolutivo dos recursos penais, “os capítulos acessórios ficam
abrangidos pelo capítulo principal, mesmo que o recorrente não impugne
o acessório”. 20

Nem poderia ser diferente, pois se há uma relação lógica


entre duas partes da sentença, que não podem ser tratadas isoladamente,
o recurso que devolva o conhecimento de uma delas, necessariamente
devolve a outra parte logicamente dependente, ao conhecimento do
tribunal. 21

5. Reflexos práticos da regra da independência dos capítulos

18
No ab-rogado Codice di Procedura Civile, o art. 543 estabelecia que: “(…) se la sentenza sia cassata
in uno dei capi, restano fermi gli altri, salvo che siano dipendenti dal capo in cui la sentenza fu cassata”.
19
Nesse sentido: Crisanto Mandrioli, Diritto Processuale Civile. 13 ed. Torino: G. Giappichelli, 2000,v.
II, p. 402; Enrico Tulio Liebman, Manuale di Diritto Processual Civile, 3 ed. Milano: Giuffrè, 1976, v.
III, p. 40.
20
Gustavo Henrique Badaró, Manual de Recursos Penais. São Paulo; RT, 2016, p. 168.
21
Nesse sentido: Ary de Azevedo Franco, Código de Processo Penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1956, v. 2, p. 312. Na doutrina estrangeira: Vincenzo Manzini, Trattato di diritto processuale penale
italiano. 6. ed. Torino: UTET, 1972. v. 4, n. 470, p. 618; Ottorrino Vannini, Manuale di Diritto
Processuale Penale Italiano. 5 ed. Milano: Giuffrè, 1965, p. 426-427; Mario Pisani, Il divieto della
“reformatio in pejus” nel processo penale italiano. Milano: Giuffrè, 1967, p 33.

9
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

No sistema recursal é que se projeta m, com mais clareza, as


diferenças entre sentenças com capítulos independentes, de um lado, e
com capítulos subordinados ou dependentes, de outro.

Por exemplo, no caso de uma sentença com capítulos


dependentes, a apelação contra apenas o capítulo principal, investe o juiz
do poder de conhecer os capítul os subordinados ou dependentes. 22 De se
observar que, esse “efeito devolutivo externo”, como explica Bonsignori,
não é pleno, mas limitado, podendo examinar e alterar o capítulo
dependente e que não foi objeto de recurso, na exata medida do
necessário para tornar possível o julgamento do capítulo do qual
depende. 23

Assim, o denominado “efeito devolutivo externo”, como


projeção da vinculação entre os capítulos da sentença, deve ser tratado
como exceção, como explica Segrè , em clássico estudo sobre o tema :

“solo in quei casi eccezionali, in cui un capo di


sentenza trovi in un altro capo la propria base logica,
l‟ingiustizia di questo implica logicamente
l‟ingiustizia di quello, e appunto por questa ragione
il giudice d‟appello conosce in questi casi anche del
capo di cui non è stata esplicitamente affermata
l‟ingiustizia” 24

O posicionamento é igualmente aplicável ao processo penal,


como se verifica da seguinte passagem de Frederico Marques :

“Quando os capítulos da sentença dependerem

22
Nesse sentido, no processo civil: Chiovenda, Princípii …, p. 989. Na doutrina nacional: Frederico
Marques, Instituições de Direito Processual Civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1963, v. IV p. 163.
Bonício, Capítulos da sentença …, p. 46.
23
Angelo Bonsignori (L‟effetto devolutivo nell‟ambito di capi connessi, Rivista trimestrale di Diritto e
Procedura Civile, 1976, p. 960): “L‟estensione del potere del giudice di esaminarlo non è assoluta e in
funzione del contenuto del capo pregiudiziale, ma strettamente limitata a rendere possibile il giudizio sul
capo pregiudicato”
24
Segrè, Cassazione parziale …, p. 22.

10
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

uns dos outros, a apelação, posto que ad strita ao


principal, investe o Tribunal do recurso do poder de
conhecer do subordinado ou acessório”. 25

Na doutrina penal italiana, Leone explica, com base no que


se denomina “effetto estensivo della sentenza”, referindo -se a sentença
do tribunal no julgamento no recurso :

“L‟effetto estensivo della sentenza, consiste


nella decisione con la quale il giudice, pronunciando
sull‟impugnazione di una parte, dispone la riforma o
l‟annullamento della sentenza anche in confronto di
un‟altra parte (il cui interesse si trovi in uno dei
rapporti sopra indicati con quello dell‟impugnante),
che non solo non ha proposta l‟impugnazione ma non
ha neanche chiesto, avvalendosi dell‟effetto
estensivo dell‟impugnazione, la riforma o
26
l‟annullamento nel suo interesse”.

Em suma, somente no caso em que haja uma relação de


dependência ló gica ou estrita subordinação, entre um capítulo e outro, é
que o recurso e, consequentemente, a reforma do primeiro, implicará,
necessária e logicamente, a alteração do segundo, para manter a
coerência do julgado.

Com vistas a análise do caso concreto, é importante assentar


duas premissas, a primeira exposta no item 4, supra, e a outra que consta
do presente item: (i) no caso de cúmulo objetivo, em que a denúncia
contiver a imputação de mais de um crime, em regra, cada capítulo será
considerado autonomamente, como se fosse uma denúncia separada ; (ii)
excepcionalmente, mesmo no caso de cú mulo objetivo, se os capítulos
forem dependentes entre si, por relação de prejudiciali dade ou
subordinação, o resultado do capítulo principal, implicará logicamente
mudança do capítulo subordinado ou subordinado.

25
José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Forense, 1965, v.
IV, p. 234.
26
Giovanni Leone, Lienamenti di Diritto Processuale Penale. 2 ed. Napoli: Jovene, 1951, p. 340

11
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

Assim, tendo em consideração o caso concreto a ser


analisado infra, nos itens 7 a 9, somente se se concluir que os capítulos
da denúncia que foram modificados pelos provimentos dos Recursos em
Habeas Corpus , quais sejam, o relativo ao crime de corrupção, em que a
denúncia considerada inepta, e o referente a falsidade ideológica, em que
houve reconhecimento da atipicidade da condu ta, são principais ou
subordinantes, em relação aos demais capítulos, e que estes
necessariamente serão atingidos pelo efeito extensivo dos acórdãos do
Superior Tribunal de Justiça.

6. Do crime de quadrilha ou bando e sua relação com os crimes


fins de tal associação

Na ação penal que se pretende o trancamento integral


imputava-se a Eduardo Bottura a prática de cinco cri mes, entre os quais
o de quadrilha ou bando.

Considerando que o crime do art. 288 do Código Pen al


tem entre os seus elementos a finalidade de cometer crimes, é
necessário verificar se há relação de prejudicialidade ou
acessoriedade entre os crimes de corrupção ativa e de falsid ade
ideológica, de um lado, e odelito do art. 288, de outro.
Poder-se-ia imaginar a existência de uma relação de
acessoriedade, embora limitada, entre a quadrilha, de um lado, e os
crimes que os integrantes de tal associação criminal pretendem cometer,
de outro. Isso porque, o tipo penal do crime de quadrilha ou bando
poderia ser considerad o acessório em relação aos crimes que são o
propósito de tal sociedade delinquen cial.

Todavia, bem analisada a questão, verifica -se que sequer há


essa relação de acessorieda de. Isso porque, não é elemento do crime do
art. 288 do Código Penal a existência ou a prática de outro crime .

Tal relação existe, por exemplo, no crime de receptação, no


favorecimento real, no favorecimento pessoal, ou na lavagem de

12
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

dinheiro, por exemplo. A receptação tem como um de seus elementos


“coisa que é produto de crime” (CP, a rt. 180, caput). No favorecimento
pessoal, presta -se auxílio a “autor de crime” (CP, art. 348, caput) e no
favorecimento real, presta -se auxílio “destinado a tornar seguro o
proveito do crime” (CP, art. 349, caput). Na lavagem de dinheiro, oculta -
se ou dissimula-se características de “bens, direitos ou valores
provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal” (Lei nº
9.613/1998). Em todos esses casos, para que ocorra um dos crimes
acessórios acima exemplificados, é necessário a existência de um outr o
crime, que já deverá ter sido praticado.

Não é esta, contudo, a situação do antigo crime de quadrilha


ou bando, atualmente denominado associação criminosa. O tipo penal do
art. 288 do Código Penal não pressupõe a existência de um outro crime ,
mas apenas a intenção de vir a praticar crimes !

Aliás, há um consenso de que sequer é necessária a prática


de qualquer crime para que exista a quadrilha, sendo perfeitamente
possível a existência e a condenação por quadrilha, ainda que nenhum
crime tenha sido pra ticado pelos seus membros . Basta que,
efetivamente, exista a associação com essa finalidade, mesmo que sem a
efetiva realização de tal escopo ilícito. Explica Hungria:

“como se vê do art. 288, para que exista o crime


de quadrilha ou bando é suficiente o me ro fato de se
associarem mais de três pessoas (no mínimo quatro)
para o fim de cometer crimes, sem necessidade,
sequer, do começo de execução de qualquer deles ,
isto é, independentemente da atuação do mais ou
menos extenso plano criminoso que os associados se
hajam proposto”. 27

E o posicionamento continua atual, com se verifica em Luiz


Regis Prado: “Não é necessário que a associação tenha cometido algum
crime para que o delito se concretize. A simples união já é o

27
Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. IX, p. 177.

13
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

suficiente”. 28

A jurisprudência também é tranquila nesse sentido, conforme


se vê no seguinte aresto do Supremo Tribunal Federal:

“O delito de formação de quadrilha ou bando é


formal e se consuma no momento em que se
concretiza a convergência de vontades,
independentemente da realização ulterior do fim
visado. Ordem denegada”. 29

Enquanto que nos crimes que há relação de acessoriedade há


necessidade de efetiva existênc ia e prática do crime principal; na
quadrilha estes são meramente um intento ou seu fadário. Lá, exige -se
um crime em ato; aqui, crimes em potê ncia!

Evidente que, uma denúncia pelo delito de quadrilha ou


bando, porque este tem como elemento intenção específica de praticar
crimes, deverá narrar, concreta e especificamente, da existência de
societas scelleris – isto é a reunião estável e permanente de mais de três
pessoas, bem como o propósito de cometer crimes, indicando quais
seriam estes delitos que constituem a meta optata da organização de
malfeitores.

Isso não significa, contudo, que será exigido uma im putação


completa dos crimes almejados pela quadrilha.Desde que, na denúncia
em que se imputa o delito do art. 288 do Código Penal, esteja descrito de
forma individualizada, de molde a permitir a atividade probatória para
verificação de sua ocorrência ou nã o, do especial fim de agir, com os
delitos almejados pela associação criminal, a denúncia será apta quanto
ao crime de quadrilha ou bando.

28
Tratado de Direito Penal.São Paulo: RT, 2014, v. 6, p. 247. No mesmo sentido Cezar Roberto
Bitencourt, Tratado de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, v. 4, 2011, p. 380.
29
STF, HC 84.223/RS, 1.ª Turma, rel. Min. Eros Grau, j. 03.08.2004, v.u. No mesmo sentido posiciona-
se, também, o Superior Tribunal de Justiça: “O delito de quadrilha, formal e de perigo, envolve a
associação de mais de três pessoas para o fim de cometer crimes. De acordo com a doutrina e a
jurisprudência, não é necessário que tais infrações penais idealizadas venham a se concretizar para que se
aperfeiçoe a tipificação” (HC 135.715/MS, 6.ª Turma, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j.
03.02.2011, v.u.). Cite-se, ainda. STJ, REsp 654.951/DF, 5.ª Turma, rel. Min. Laurita Vaz, j. 04.11.2004,
v.u.; STJ, REsp 103.578/RJ, 6.ª Turma, rel. Min. Vicente Leal, j. 18.10.1999, v.u.

14
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

Evidente que, se no mesmo processo, também se atribuir, em


cúmulo objetivo, a prática dos crimes já efetivamente pra ticados pela
quadrilha, para que a peça acusatória seja apta, com relação a esses
delitos – p. ex.: roubo de carga –, é necessário que haja uma narrativa
completa e pormenorizada, com o fato crimin oso e todas suas
circunstâncias. Ou seja, no exemplo citado , seria necessário descrever,
com se deu a subtração, qual a coisa alheia móvel, em que circunstância
de tempo, lugar e modo de execução, quem a praticou, etc...

Destaque-se que, em relação ao crime de falsidade


ideológica, poderia haver, concretamente, u ma relação contingente de
acessoriedade. Isso se a denúncia por quadrilha narrasse que tal grupo de
malfeitores almejava a prática de crimes de falsidade ideológicas – e
somente tais crimes –, consistentes exatamente no que se reconheceu ser
uma conduta atípica. Nesse caso, não seria possível subsistir a quadrilha.
Mas essa não é a situação do caso em análise, como se verá na sequência.

7. Do caso concreto: análise dos objetos do processo nº 0800168-


68.2015.8.12.0022

Estabelecidas as premissas acima, cabe verificar,


concretamente, qual ou quais são os objetos do processo registrado sob o
nº 0800168-68.2015.8.12.0022, que tramita perante o J uízo de Direito da
Vara Única da Comarca de Anaurilândia, da Justiça do Estado d o Mato
Grosso do Sul. Aos acusados, imputou -se os seguintes crimes: falsidade
ideológica, corrupção ativa, corrupção passiva, associação criminosa,
violação de sigilo funcional, quebra ilegal de sigilo telefônico.

Segundo a denúncia, no ano de 2007, Marg arida Elizabeth


Weiler se associou a Eduardo Garcia d a Silveira Neto, Juvenal
Laurentino Martins e Luiz Eduardo Auricchio Bottura, criando um
esquema de favorecimento de decisões judiciais que visavam ao
enriquecimento dos mesmos, e à obtenção informa ções sigilosas dos
desafetos de Luiz Eduardo Auricchio Bottura .

15
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

Além dos delitos acima mencionados, Luiz Eduardo


Auricchio Bottura e Eduardo Garcia d a Silveira Neto também foram
denunciados por corrupção ativa , e Margarida Elizabeth Weiler ,
juntamente com Juvenal Laurentino Martins, por corrupção passiva. Mais
especificamente, segundo a denúncia, Luiz Eduardo Auricchio Bottura e
Eduardo Garcia da Silveira Neto ofereceram vantagem indevida para
Margarida Elizabeth Weiler e Juvenal Laurentino Mart ins, para que
estes, em razão detal vantagem, praticassem ato de ofício, infringindo
dever funcional.

Aos quatro acusados supramencionados também foram


imputados o delito do art. 10 da Lei nº 9.296/1996 (crimes de
interceptação de comunicações de informática e tele mática), bem como
de formação de quadrilha (CP, art. 288, caput).

Por fim, imputou -se a Margarida Elizabeth Weiler, Eduardo


Garcia da Silveira Neto , Luiz Eduardo Auricchio Bottura e Eduardo
Garcia da Silveira Neto o crime do art. 10 da Lei Complementar
nº 105/2001.

Insurgindo-se contra tal denúncia, foram interpostos vários


Habeas Corpus em favor de Luiz Eduardo Auricchio Bottura , perante o
Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, que denegou as ordens.
Contra referidas denegações, foram interpostos Recursos Ordinários em
Habeas Corpus, perante o Superior Tribunal de Justiça, sendo que , dois
deles, foram providos, como será exposto, na sequê ncia, nos itens 6 e 7
infra.

Em suma, por meio de Recursos O rdinários em Habeas


Corpus, providos pelo Superior Trib unal de Justiça, em favor do
PacienteEduardo Bottura, foi determinado por aquele Tribunal o
trancamento, da ação penal que tramita na Vara Única da Comarca de
Anaurilândia, tanto em relação ao delito de corrupção – por inépcia –,
quanto do crime de falsidade ideológica que, na espécie, foi considerado
atípico.

16
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

8. Da decisão proferida no julgamento do RHC n 65.747/MS, pelo STJ

O Recurso em Habeas Corpus nº 65. 747/MS foi interposto


contra acórdão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, que no
Habeas Corpus registrado sob o nº 1407948 -76.2015.8.12.0000,
interposto em favor de Luiz Eduardo Auricchio Bottura, denegou a
ordem.

Postulava-se denúncia seria inepta quanto ao delito de


corrupção ativa, ao argumento de que o órgão ministerial não teria
descrito quando, como e qual teria sido a vantagem indevida
supostamente por ele oferecida

No Superior Tribunal de Justiç a, a 5.ª Turma, acompanhando


o voto do Relator Jorge Mussi, deu provimento ao recurso, para
reconhecer a inépcia da denúncia, quanto ao crime de corrupção ativa.

Consta do v. Acórdão que:

“verifica-se que o Ministério Público deixou de


indicar em que consistiria a vantagem indevida
oferecida ou prometida pelo recorrente ao delegado
de polícia e à juíza de direito, consignando apenas
que os aludidos funcionários públicos a teriam
aceitado e praticado atos de ofício infringindo dever
funcional, em desrespeito à legislação vigente, de
forma arbitrária, desproporcional, e causando
prejuízo a terceiros (...) Em momento algum, o titular
da ação penal elucidou qual teria sido o benefício
ilícito oferecido pelo recorrente aos funcionários
públicos, tampouco o momento em que tal proposta
teria sido feita, omissões que impedem o exercício da
ampla defesa e do contraditório”.

Além disso, é do v. aresto que, com o reconhecimento da

17
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

inépcia da denúncia , restara prejudicada a alegação de falta de justa


causa.

O recurso foi provido, nos seguintes termos :

“Ante o exposto, dá-se provimento ao recurso


para declarar a inépcia da denúncia ofertada contra o
recorrente no que se refere ao delito de corrupção
ativa, estendendo -se os efeitos da decisão ao corréu
Eduardo Garcia da Silveira Neto”

Esclareça-se que, com o reconhecimento da inépcia da


denúncia, restou prejudicada a alegação de falta de justa causa.

Em suma, com o provimento do Recurso em Habeas Corpus


nº 65.747/MS, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a inépcia
parcial da denúncia que deu início ao processo nº 0800168-
68.2015.8.12.0022, que tramita perante o Juízo de dir eito da Comarca de
Anaurilândia, apenas em relação ao crime de corrupção ativa.

9. Da decisão proferida no julgamento do RHC nº 70.596/MS, pelo


STJ

O Recurso em Habeas Corpus nº 70.596/MS foi interposto


contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso do
Sul, registrado sob o nº 14 10879-52.2015.8.12.0000/50000, que denegou
ordem de Habeas Corpus em favor de Luiz Eduardo Auricchio Bottura .

Postulava-se o trancamento da ação penal, quanto ao crime


de falsidade ideológica ou, alternativamente, a anulação da ação penal.

O Superior Tribunal de Justiç a, por sua 5.ª Turma, deu


provimento ao recurso, nos termos do voto do relator, Ministro Jorge
Mussi, para reconhecer a atipicidade do fato imputado na denúncia, a

18
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

título de falsidade ideológica .

Consta do v. Acórdão que:

“Na hipótese, a atipicidade da conduta


imputada ao recorrente é manifesta , pois já se
sedimentou na doutrina e na jurisprudência o
entendimento de que a petição apresentada em Juízo
não caracteriza documento para fins penais, uma vez
que não é capaz de produzir prova por si mesma,
dependendo de outras verificações para que sua
fidelidade seja atestada”. (destaquei)

Estabelecida tal premissa, o recurso foi provido, nos


seguintes termos:

“Ante o exposto, dá-se provimento ao recurso


para determinar o trancamento da ação penal
instaurada contra o recorrente no que se refere ao
delito de falsidade ideológica , estendendo -se os
efeitos da decisão ao corréu Eduardo Garcia da
Silveira Neto ”.

Em suma, com o provimento do Recurso em Habeas Corpus


nº 70.596/MS, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a atipicidade
do fato imputado na denúncia, a título de falsidade ideológica , no
processo nº 0800168-68.2015.8.12.0022, que tramita perante o J uízo de
direito da Comarca de Anaurilândia.

10. Ainda o caso concreto: o julgamento do Habeas Corpus perante o


Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul

Diante do teor dos acórdão s mencionados nos itens 8 e


9supra, requereu -se, perante o Juiz de primeiro grau da comarca de
Anaurilândia, no processo nº 0800168 -68.2015.8.12.0022, que fosse
reconhecida a nulidade da denúncia, para que assim fosse dado integral

19
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

cumprimento aos referidos acórdãos.

Com isso interpôs-se em seu favor novo Habeas Corpus,


perante o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, registrado sob o nº
HC nº 1410141-30.2016.8.12.0000, e que foi distrib uído para a 2ª
Câmara Criminal, sob a relatoria do Desembargador Carlos Contar.

Pleiteou-seo deferimento da ordem para trancar a ação penal


(integralmente) ou, subsidiariamente, anular a ação, desde o seu
recebimento, “por inépcia material e formal da coativa, que perdeu sua
lógica depois que o S uperior Tribunal de Justiça concedeu a ordem e
reconheceu a inépcia no tocante ao crime de corrupção ativa ”.

No julgamento do Habeas Corpus, o Tribunal de Justiça, por


maioria de votos, concedeu a ordem, para anular integralmente a
denúncia, determinando que o M inistério Público oferecesse nova
denúncia:

“A declaração de inépcia da denúncia quanto


aos crimes de corrupção ativa e falsidade
ideológica e a menção aos mesmos em outros pontos
daquela torna imperioso a necessidade de
oferecimento de nova denúncia , excluindo -se tais
imputações, sob pena de se macular o convencimento
do julgador. Habeas Corpus que se concede
parcialmente, para declarar a nulidade da denúncia
ofertada na ação penal, determinando o
oferecimento de nova peça acusatória , com
exclusão dos crimes de corrupção ativa e falsidade
ideológica”.
Contra tal aresto foi i nterposto embargos de declaração,
tanto pelo Ministério Púb lico quanto pelo próprio Paciente.

Os declaratórios ainda não foram julgados.

Não é possível concordar com os fundamentos do acórdão


acima transcrito. N ão há que se cogitar de nulidade integral da denúncia.
Como já visto, trata-se de denúncia em que há cúmulo objetivo -
subjetivo, sendo imputados 5 crimes, a 5 diferentes réus.

20
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

Além disso, entre os delitos imputados, não há relação de


prejudicialidade ou subordinação entre os crimes pelos quais se
determinou o trancamento da ação penal, quais sejam, corrupção ativa
(por inépcia da denúncia) e falsidade ideológica (por atipicidade dos
fatos), e os demais crimes do art. 288 do Código Penal, do art. 10, da Lei
Complementar nº 105/2001 e do art. 10 da Lei nº 9.296/1996.

Há, ainda, mais a ser considerado.

Afirmar que a decisão do juiz a quo descumpriu julgados do


Superior Tribunal de Justiça, ao dar provimento ao Recurso em Habeas
Corpus nº 65.747/MS e ao Recurso em Habeas Corpus nº 70.596/MS é
querer ser mais realista do que o réu!Referidos acórdãos deixaram claro
que se tratava de trancamento parcial da ação penal, do ponto de vista
objetivo, atingindo, respectiva e somente, os crimes de corrupção ativa e
de falsidade ideológica.

Não é tudo, com relação ao crime do art. 10 da Lei


Complementar nº 105/2001, questionou -se a inépcia da denúncia ,
pretendendo anulá-la por tal motivo, em Habeas Corpus perante o
Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, que denegou a ordem. Contra
tal negativa, foi interposto Recurso em Habeas Corpus para o Superior
Tribunal de Justiça, registrado sob o nº 76.033/MS, ao qual se negou
provimento, por votação unânime, em 10 de novembro de 2016.

O mesmo ocorreu com relação ao crime do crime do art. 10


da Lei nº 9.296/1996:questionou-se a inépcia da denúncia , viaHabeas
Corpus, que foi denegado pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso do
Sul. Interposto Recurso em Habeas Cor pus, que recebeu o nº 75.287/MS,
o Superior Tribunal de Justiça, novamente por votação unânime,
negou-lhe provimento, aos 22 de setembro de 2016.

Mais do que isso. No v. aresto, constou, expressamente:

“Finalmente, o fato de esta colenda Quinta


Turma haver reconhecido a inépcia da peça
vestibular no tocante ao crime de corrupção ativa
não impede que a persecução criminal prossiga

21
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

quanto aos demais delitos assestados ao recorrente.

É que no referido julgamento se afirmou apenas


que o órgão ministerial nã o teria indicado em que
consistiria a vantagem indevida oferecida ou
prometida pelo réu aos agentes públicos, bem como o
benefício ilícito que lhes teria sido ofertado antes ou
depois dos atos de ofício que pretendia que
praticassem em violação aos seus de veres funcionais,
ou mesmo se o cometimento de tais atos decorreu
efetivamente da proposta realizada, defeitos que, à
toda evidência, não interferem nas demais
acusações contra ele assacadas , inclusive porque é
possível o oferecimento de nova e xordial sem as
aludidas máculas”.

Ora, o tema que se pretende discutir no Habeas Corpus


nº 14101141-30.2016.8.12.0000 – sob o fundamento de que o magistrado
de piso estaria a descumprir decisão do Superior Tribunal de Justiça – já
foi analisado pelo próprio Superior Tribunal de Justiça , que reconheceu,
expressamente, que o trancamento da ação penal, quanto à corrupção
ativa, não prejudica o andamento da ação penal pelos demais crimes!

Se contra tal decisão pretende se insurgir o Impetrante do


Habeas Corpus, deveria fazê-lo por meio de Recurso Extraordinário para
o Supremo Tribunal Federal. Mas não, por meio de Habeas Corpus
perante o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, que não pode ser
órgão revisor e modificador de decisão do Superior Tribunal de Ju stiça!

Registre-se, por último, que ainda sob o fundamento de


que estariam sendo descumpridos os acórdãos do Recurs o em Habeas
Corpus nº 65.747 e do Recurso em Habeas Corpus nº 70.596/MS, foi
interposta Reclamação Constitucional registrada sob o nº 32.61 6/MS,
que foi julgada improcedente , no dia 26 de outubro de 2016, pelo
Superior Tribunal de Justiça, por entender que não houve qualquer

22
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

descumprimento de seus julgados! Eis a ementa do aresto :

“1. Em sessão de julgamento realizada em 7.4.2016, a


Quinta Turma deste Sodalício, à unanimidade de
votos, deu provimento ao recurso ordinário
constitucional para declarar a inépcia da denúncia
ofertada contra o recorrente no que se refere ao
delito de corrupção ativa, tendo estendido os efeitos
da decisão ao corréu em idêntica situação.
2. No julgamento do RHC 70.596/MS, a colenda
Quinta Turma, na sessão do dia 1.9.2016, determinou
o trancamento da ação penal instaurada contra o
requerente pelo crime de f alsidade ideológica,
estendendo-se os efeitos da decisão ao corréu
Eduardo Garcia Silveira Neto
3. O Juiz de Direito da Vara Única da comarca de
Anaurilândia atendeu os comandos contidos nos
julgados proferidos por este Sodalício,
notadamente o referente ao RHC 65.747/MS,
anotando a inépcia da denúncia quanto ao delito
de corrupção ativa, e trancando a ação penal no
que diz respeito à falsidade ideológica, não
havendo que se falar, assim, na inaptidão de toda a
incoativa, como sustentado na reclamação.
4. Ao julgar o RHC 75.287/MS, também interposto
pelo requerente, a Quinta Turma manteve o processo
contra ele deflagrado pelo crime do artigo 10 da Lei
9.296/1996, ocasião em que reg istrou que o
reconhecimento da „inépcia da peça vestibular no
tocante ao crim e de corrupção ativa não impede que a
persecução criminal prossiga quanto aos demais
delitos assestados ao recorrente‟, uma vez que „ no
referido julgamento se afirmou apenas que o órgão
ministerial não teria indicado em que consistiria a
vantagem indevida oferecida ou prometida pelo réu

23
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

aos agentes públicos, bem como o benefício ilícito


que lhes teria sido ofertado antes ou depois dos atos
de ofício que pretendia que praticassem em violação
aos seus deveres funcionais, ou mesmo se o
cometimento de tais atos decorreu efetivamente da
proposta realizada, defeitos que, à toda evidência,
não interferem nas demais acusações contra ele
assacadas, inclusive porque é possível o
oferecimento de nova exordial sem as aludidas
máculas‟, o que reforça a improcedência das
alegações contidas na presente ação.
4. Reclamação julgada improcedente ”. 30(destaquei).

A decisão do Superior Tribunal de Justiça é absolutamente


correta, sob todos os aspectos. Havendo cumulação objetiva, reconhe cer
que há nulidade da denúncia em relação a dois dos crimes, não impede o
prosseguimento da ação penal em relação aos demais, que são capítulos
autônomos da peça acusatória.

Além disso, assim agindo, do ponto de vista da t eoria das


nulidades, cumpre -se regra lógic a de conservação dos atos
independentes, que não são afetados pela regra da causalidade, como se
verá no item 11, infra.

Em suma, mesmo havendo a inépcia da denúncia pelo crime


de corrupção ativa, e o trancamento da ação, pelo delito de falsidade
ideológica, os demais capítulos acusatórios são autônomos e não
guardam relação de dependência, pelo que deve a mesma denúncia ser
considerada válida em relação a eles, mantendo-se a tramitação do
processo quanto aos crimes de corrupção passiva, quadrilha ou bando ,
bem como o crime do art. 10 da Lei nº 9.296/1996 e do art. 10 da Lei
Complementar nº 105/2001.

30
STJ, Rcl nº 32.616/MS, 3.ª Seção, rel. Min. Jorge Mussi, j. 26.10.2016, v.u.

24
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

11. Da regra da conservação dos atos processuais, no sistema das


nulidades

A tipicidade dos atos processuais e de suas formas é uma


garantia para as partes e para a correta prestação jurisdicional. As partes
ficariam profundamente inseguras se, ao praticarem um ato processual,
não soubessem se este seria eficaz ou ineficaz, ficando a produção ou
não dos efeitos ao mero capricho do juiz. Por outro lado, haven do um
modelo a ser seguido, as partes saberão que, se o seguirem,
inevitavelmente, o ato será eficaz, produzindo seus efeitos normais. O
que se deve impedir é o “fetichismo formalista” que prejudique a própria
substância dos atos. 31

Ao se praticar um ato processual, este pode estar conforme


as exigências legais, ou não ter cumprido a forma estabelecida em lei.
Em outras palavras, o ato poderá ser típico ou atípico.

A tipicidade é um conceito absoluto. O ato típico é aquele


que em sua prática obedece a todos os requisitos do modelo previsto em
lei. Já a atipicidade pode variar em sua intensidade. Há graus de
atipicidade que poderão ser menores (pequena desconformidade como o
modelo legal) ou maiores (grande diferença para o tipo legal) . De acordo
com o grau maior ou menor de desconformidade entre o ato praticado e o
modelo previsto na lei, poderão variar as consequências da inobservância
da forma legal.

A atipicidade do ato processual pode ser irrelevante,


caracterizando-se como mera irregularidade que não impede que o ato
produza seus efeitos processuais (por exemplo, denúncia oferecida fora
do prazo legal). O ato irregular é ato atípico, porém eficaz, isto é, ato
defeituoso, mas que não sofreu a sanção de ineficácia. Por outro lado, a
atipicidade pode ser tão intensa que o ato seja considerado juridicamente
inexistente (por exemplo, sentença proferida por juiz aposentado). Entre
a inexistência e a mera irregularidade, existem as nulidades que,

31
A expressão é de Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro:
Forense, 1962, v. 3, p. 398.

25
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

conforme a natureza do dispositivo violad o, podem ser absolutas ou


relativas.

O que distingue a nulidade absoluta da nulidade relativa é


a finalidade para a qual foi instituída a forma violada. A violação de uma
forma que atenda a um interesse público gera uma nulidade absoluta,
enquanto o desre speito a uma forma instituída no interesse das partes
causa uma nulidade relativa.

Uma das regras gerais que rege o sistema das nulidade s é a


regra da causalidade, segundo a qual, decretada a nulidade de um ato
processual, ela acarretará a nulidade “(...) dos atos que dele diretamente
dependam ou sejam consequência”(CPP, art. 573, § 1.º). 32

Ou seja, se o juiz reconhece a nulidade de um ato causador


ou subordinante de outro ato, o ato consequente ou subordinado posterior
também será nulo. Tal efeito extensivo da nulidade nada mais é do que
uma consequência de o procedimento ser uma sequê ncia encadeada de
atos, um sucedendo o outro, que normalmente lhe da causa, até o ato
final de julgamento.

Por isso, o juiz, ao pronunciar a nulidade de um ato no


processo, deverá declarar também os atos a os quais ela se estendem
(CPP, art. 573, § 2.º).

A regra da causalidade ou da co nsequencialidade é


complementada pela regra da conservação dos atos processuais ,
segundo a qual a nulidade de um ato não prejudica outros atos que sejam
independentes . É o que estabelece o art. 281, primeira parte, do Código
de Processo Civil, numa intepretação contrario sensu:

“Ar t. 2 8 1. A n u la d o o at o, c ons i d eram - s e d e ne nh um


ef e it o t o do s os s u bs e q ue n tes q ue dele d e pe n d am ,

32
Trata-se, aliás, de regra tradicionalíssima do direito processual brasileiro. Disposição similar já era
encontrada no artigo 674 do Decreto nº 737, de 25.11.1850, que reza: “As referidas nulidades podem ser
alegadas em qualquer tempo e instância; anulam o processo desde o termo em que se elas deram, quanto
aos atos relativos dependentes e consequentes; não podem ser supridas pelo Juiz, mas somente ratificadas
pelas partes”. Entre os Códigos estaduais, por exemplo, o art. 477 do Código de Processo Civil e
Comercial do Rio Grande do Sul, estabelecia: “„(...) anulam o processo desde o termo em que se deram,
quanto aos atos relativos, dependentes e consequentes (...)”. Cite-se, ainda, o art. 278, caput, do ab -
rogado Código de Processo Civil de 1939, que dispunha : “A nulidade de qualquer ato não prejudicará
senão os posteriores, que dele dependam ou sejam consequência”.

26
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

to d a vi a , a nu li da de de um a p a rt e do at o n ão
pr eju di c ar á as out ra s qu e de l a se j am
33
ind ep end ent es .” (d es t aq u e i)

Comentando dispositivo substancialmente igual do código


ab-rogado, Tornaghi explica que:

“como se vê são duas regras iguais; apenas uma


está formulada pelo lado anverso e a outra pelo
reverso: a primeira fala na invalidez dos atos
dependentes; na segunda, da validez das partes
independentes de cada ato . A segunda metade do
dispositivo longe de ser contrária à primeira, como
faz crer a conjunção adversativa usada (todavia) é
uma confirmação dela, em outro campo” . 34
(destaquei)

Regra semelhante s são encontradas em diversos


ordenamentos jurídicos. Por exemplo, o Codice di Procedura Civile
italiano prevê que:

“Ar t. 1 59 . Es t e ns io n e d el l a n ul l i t à . La n u l l i tà d i u n
at to n on im p ort a qu e l l a d e g l i a tt i pr ec e d en t i , n è d i q u e ll i
s uc c es s i v i c he ne s o no i nd i p en d en t i. L a n ull ità d i un a
pa rt e d e ll ’att o non c olpi s c e le alt r e p art i ch e ne sono
indi pe nd enti ” . (d es t a qu e i)

Comentando tal dispositivo, e nsinou-nos Liebman que o juiz


deve esforçar-se por isolar os elementos do procedimento afetados pelo
vício e conter a expansão deste, com se faz com os focos de uma
epidemia (princípio da con servação dos atos processuais)”. 35
Regra equivalente existe n o Código de Processo Civil
português, de 2015, que prevê, em seu art. 195.2, nas “regras gerais
sobre as nulidades dos atos processuais”, que:

33
O art. 248 do ab-rogado Código de Processo Civil de 1973 dispunha que: “art. 248 do CPC: “Anulado
o ato , reputam-se de nenhum efeito todos os subsequentes , que dele dependam ; todavia, a nulidade de
uma parte do ato não prejudicará as outras, que dela sejam independentes”.
34
Hélio Tornaghi, Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1975, v. II, p.
239.
35
Enrico Tulio Liebman, Manuale di diritto processuale civile. 2 ed. Milano: Giuffrè, v. II, 1957, n.
118, p. 217.

27
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

“ 1 9 5. 2 - Qu ando um ato tenha de ser anulado,


anulam-se também os termos subsequent es que dele
dependam absolutam ente; a nulidade de uma parte
do ato não prejudica as outras partes que dela
sejam independentes . ” 36(des ta q ue i)

Também na Argenti na, no art. 174 do Código Proces al Civil


y Comercial de la Nación , sobre os efeitos das nulidades , prevê:

“ La nulidad de un acto non importará la de los


an t er i or es ni la de l os s uc es i v os qu e s e an
i nd e pe n di e nt es d e d ic ho ac t o.

La nulidad de una parte del acto no afectará a


las demás partes que sean independientes
aquélla ” .(d es t aq u e i).

A regra da conservação dos atos processuais , prevista na


segunda parte do art. 281 do Código de Processo Civil brasileiro tem
plena aplicação, por analogia, no processo penal, como permite o art. 3º
do Código de Processo Penal. Aliás, referido dispositivo nada mais faz
do que consagrar a máxima utile per inutiler non viciatur . 37Trata-se,
como denominou Redenti, um “princípio de lógica elementar”. 38

Entre nós, sobre o tema, assim se manifesta Dinamarco:

“Ainda que a lei nada dissesse a respeito, só a


consciência da teoria dos capítulos da sentença seria
suficiente para tornar indispensável distinguir
capítulos e capítulos e examinar o estado de
higidez ou de invalidade de cada um, deixando
íntegros os que forem em si mesmo perfeitos e não

36
Regra semelhante, na disciplina das “Regras gerais sobre a nulidade dos actos”, era prevista no art.
201.2 do Código de Processo Civil português, de 1961: Art. 201.2 Quando um acto tenha de ser anulado,
anular-se-ão também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente. A nulidade de uma parte
do ato naõ prejudica as outras partes que dela sejam independentes”.
37
Essa regra recebeu idêntica formulação de Ulpiano (1, 5 D. 45, 1): neque vitiatur utilis per hanc
inutilem.
38
Enrico Redenti, Diritto Processuale civile, 4 ed. Milano: Giuffrè, 1997, v. 2, p. 396. Na doutrina
nacional Bonício (Capítulos da sentença …, p. 57) assim se manifesta sobre o tema: “surge uma questão
interessante: será que, caso não existisse uma norma legal, condicionando o „efeito expansivo‟ das
nulidades à existência de um nexo de dependência, ainda assim tal efeito existiria? A resposta só pode ser
afirmativa, porque se trata de um efeito natural do sistema”.

28
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

39
estejam contaminados pelo vício do outro”.

A mesma lógica se aplica em relação a todos os atos


processuais que possam ser divididos em par tes autônomas. No caso de
ato complexo, isto é, aquele formado por mais de uma unidade
elementar, a nulidade de uma das unidades autônomas não prejudica as
demais, exatamente porque são independentes. 40

Os atos complexos, como explica Moniz de Aragão, “são


formados por diversos atos simples, unitários, residindo a sua nota
caracterizadora no fato de que todos, em particular, conservam a própria
singularidade. Tratar -se-ia de um feixe de atos simples, tendo cada qual
sus próprios efeitos, cuja soma origina o ato complexo”. 41 Partindo de tal
premissa, ao analisar os efeitos das nulidades, afirma:

“Nos atos complexos, porém, a anulação pode -se


dar no todo ou em parte. (...) Ou com relação a todo
o processo ou com relação a algum de seus atos
42
salva-se o que for útil, se e enquanto possível”.

Ora, havendo independência, entre uma parte e outra do a to


complexo não há porque admitir o contágio de vício circunscrito a uma
das partes do ato, mantendo -se a “eficácia da parte independente do
ato”. 43

Como já tivemos oportunidade de analisar, com fundamento


no art. 281 do Código de Processo Civil, a regra da conservação dos atos
processuais implica que, “ nos atos complexos a nulidade de uma das
partes do ato não prejudica a de outras partes que dela sejam
independentes”. 44Ou seja, preserva -se a eficácia da parte independente

39
Dinamarco, Capítulos de sentença..., p. 84.
40
O que é decorrência da própria natureza do ato, pois como explica Carnelutti (Instituciones del
Proceso Civil. Trad. Santiago Sentis Melendo,Buenos Aires: EJEA, 1959, v. I, n. 295, p. 434): “los actos
jurídicos son simples o complejos según que no se puedan descomponer o bien que se puedan
descomponer en varios actos jurídicos, es decir envarios actos, cada un de los cuales tenga un efecto
jurídico”. (destaquei)
41
Egas D. Moniz de Aragão, Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974,
v. II, p. 307-308.
42
Moniz de Aragão, Comentários ..., v. II, p. 308-309.
43
Tornaghi, Comentárijos …, v. II, p. 239.
44
Gustavo Henrique Badaró, Processo Penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2016, p. 797.

29
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

do ato complexo, que na verdade é apenas formalmente um único ato,


mas que substancialmente se desdobra em duas ou mais partes,
independentes uma das outras.

A preservação da parte independente do ato nulo é uma


decorrência do próprio princípio geral de economia processual, segundo
o qual o processo deve atingir o seu objetivo, com o menor emprego de
atividade das partes e do juiz, que, como adverte Pellingra, é um
princípio de política legislativa “e serve di guida all‟interprete”. 45

Da mesma forma que numa sentença que contenha capítulo s,


é possível reconhecer a nulidade apenas do capítulo viciado, preservando
os que estão saudáveis, no caso de uma denúncia que apresente objetos
cumulados, com imputação de mais de um crime, a nulidade de uma
imputação não implicará a nulidade outros capítulos que sejam aptos e ,
em relação aos quais , estejam presentes as condições da ação e a justa
causa.

Evidente que, no caso de uma denúncia objetivamente


complexa, com mais de um capítulo acusatório e cumulação de delitos
imputados, a nulidade de uma das imputações – ou mesmo a
absolvição sumária em relação a uma dela – não implica a
invalidação de toda a denúncia .

Sendo seu conteúdo complexo e, portanto, divisível , as


partes maculadas podem ser extirpadas sem comprometer o todo. Não se
trata de um c aso em que o vício mata o doente, mas de situação em que
basta a amputação da parte comprometida, sendo possível salva a vida do
paciente.

Com a propriedade técnica de sempre, observa Dinamarco:

“Os tribunais brasileiros relutam enormemente a


pronunciar a nulidade apenas parcial de uma sentença
(ou seja, de algum ou alguns de seus capítulos),
deixando íntegro o mais, ainda quando a causa da
invalidade atinja somente um ou alguns de seus

45
Benedeto Pellingra, Le nullità nel processo penale. Teoria generale. Milano: Giuffrè, 1957, p. 166.

30
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

capítulos e não todos. Esses posicionamentos radicais


bem poderiam s er evitados quando se tivesse maior
consciência da teoria dos capítulos da sentença, a
qual concorre para a perfeita distinção entre o
viciado e o não-viciado, em aplicação da máxima
46
utile per inutile non vitiatur .

No processo penal, contudo, tem sido aceita, tranquilamente,


a possiblidade de reconhecimento de inépcia somente em re lação a um
dos crimes imputados, como se verifica do seguinte julgado:

“Processual penal. Recurso Ordinário em Habeas


Corpus. Associaçãocriminosa, desobediência, furto,
esbulho possessório, modificação,danificação ou
destruição de ninho, abrigo ou criadouro
natural,comercialização de motosserra ou utilização
em florestas e nasdemais formas de vegetação, sem
licença ou registro da autoridadecompetente e posse
irregular de arma de fogo de uso
permitido.Trancamento da ação penal em virtude de
ausência de justa causa.Impossibilidade. Inépcia da
denúncia quanto ao crime de furto. Recurso
parcialmente provido. (...) Por outro lado, assiste
razão à defesa tão somente quanto aodelito de furto,
uma vez que, segundo se verifica da peçaacusatória,
este teria sido o único crime em que não foi descrita
aconduta típica, não restando claro que bem teria
sido furtado pelosora recorrentes e em quais
circunstâncias.Recurso ordinário parcialmente
provido para anular, por inépcia, a denúncia
oferecida em desfavor dos recorrentes, tão somente
emrelação ao delito inserto no art. 155, caput, do
CP”. 47 (destaquei)

46
Capítulos de sentença..., p. 84,
47
STJ, RHC 68.277/PA, 5ª Turma, rel. Min. FEliz Fischer, j. 20.10.2016, v.u.

31
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

E, em caso de cúmulo objetivo -subjetivo, já se reconheceu a


nulidade parcial da denúncia, so mente por um crime, em relação a um
dos acusados:

Recurso Ordinário em Habeas Corpus. Crimes


contra a ordem tributária(art. 3º, II, da Lei n.
8.137/1990). Pedido de trancamento da açãopenal .
Inépciadadenúncia.Vários fatos delituosos.
Ausência dedescrição da vantagem indevida
supostamente recebida em relação a umdos
delitos.Demonstração dosindíciosmínimosdeautoriae
materialidade relativamente aos demais.
(...)Recursoordinárioparcialmenteprovidoparareconhe
cer,relativamenteaorecorrenteA. C. M. de P., a
nulidade parcial da peça acusatória, no tocante ao
‘fato delituoso n. 2’”. 48 (destaquei)

Em suma, do ponto de vista da teoria da nulidade


processuais, é correto o reconhecimento de nulidade parcial da denúncia,
no caso em que ela seja um ato complexo, em que há cumulação de mais
de um objeto processual, isto é, a imputação de mais de um crime,
devendo cada capítulo acusató rio ser tratado como uma parte autônoma.

Assim, a nulidade de uma parte não implicará a nulidade dos


demais capítulos autônomos e independentes, que deverão ser
preservados, nos termos da parte final do art. 281 do Código de Processo
Civil, aplicável por analogia ao processo penal (C ódigo de Processo
Penal, art. 3º).

48
STJ, RHC 70061/RJ, 6ª Turma, rel. Min. Antonio Saldanha Palheiros, j. 20.09.2016, v.u.

32
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

RESPOSTA AOS QUESITOS

1. O que é o objeto do processo penal ?

R.: Oobjeto do processo penal é o objeto da imputação , isto é, o fato da


natureza em todos os seus aspectos concretos, penalmente relevante, que
se imputa ao acusado.

2. O processo penal pode ter objeto composto ?

R.: A resposta é positiva. É possível que o objeto do processo penal seja


composto nos casos de processo cumulados: (i) cúmulo objetivo, com a
imputação de mais de um crime; (ii) cúmulo subjetivo, com a imputação
de um crime a mais de um acusado; (iii) cúmulo objetivo -subjetivo, com
a imputação de mais de um crime a mais de um acusado.

3. No caso de cumulação de objetos do processo, tal objeto será


divisível?

R.: A resposta é positiva. Em regra, cada vez que se imputa mais de um


delito ao acusado, na verdade, se está diante de várias imputações, ou
melhor, de tantas imputações quantos são os delitos atribuído.

4. No caso de cúmulo objetivo, cada capítulo da acusa ção poderá


receber um tratamento autônomo dos demais ?

R. A resposta é positiva, embora haja exceções. Em regra, cada capítulo


da denúncia, isto é, cada crime imputado, poderá ser objeto de uma
decisão autônoma em relação aos demais. Excepcionalmente, contu do,
mesmo no caso de cumulo objetivo, se os capítulos forem dependentes
entre si, por relação de prejudicialidade , subordinação ou acessoriedade ,

33
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

o resultado do capítulo principal, implicará logicamente o resultado


capítulo prejudicial, subordinado ou acessório.

5. O crime do art. 288 do Código Penal apresenta relação de


subordinação ou de acessoriedade com algum outro delito ?

R. A resposta é negativa. Não há relação de prejudicialidade,


subordinação ou acessoriedade entre o crime o art. 288 do Código Pena l
e os crimes que são objeto ou fina especifico da quadrilha. O tipo penal
do art. 288 do Código Penal não pressupõe a existência de um outro
crime, - o que implicaria a relação de acessoriedade – mas apenas a
intenção de vir a praticar crimes! Não exige um crime já praticado, mas a
intenção de futuramente cometer delitos, que nem precisam ocorrer, para
que exista a quadrilha.

6. No caso concreto, o provimento do Recurso em Habeas Corpus


nº 65.747/MS e Recurso em Habeas Corpus nº 70.596/MS, pelo Superior
Tribunal de justiça, implicou a nulidade total da denúncia ofertada no
processo nº 0800168 -68.2015.8.12.0022, que tramita na Vara Única de
Anaurilândia?

R.: A resposta é negativa. Do ponto de vista objetivo, o referido


processo tem objeto composto. Há impu tação dos crimes de corrupção
ativa (CP, art. 317), corrupção passiva (CP, art. 333), quadrilha ou bando
(CP, art. 288), falsidade ideológica (CP, art. 299), crime do art. 10 da
Lei nº 9.296/1996 e crime do art. 10 da Lei Complementar nº 105/2001.
O fato de o Superior Tribunal de Justiça ter considerado que a denúncia
é inepta em relação ao crime de corrupção ativa (RHC nº 65.747/MS) e
que os fatos narrados são atípico s, em face do crime de falsidade
ideológica (RHC nº 70.596), repercutem exclusivamente sob re tais
capítulos da acusação, não influenciando os demais, que deles são
autônomos e sem relação de subordinação, dependência ou
acessoriedade.

34
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ

7. Do ponto de vista da teoria da nulidade processuais, é correto o


reconhecimento de uma nulidade parcial da denúncia?

R. Sim. No caso de a denúncia constituir um ato complexo, em que há


cumulação de mais de um objeto processual, isto é, a imputação de mais
de um crime, cada capítulo deve ser tratado como uma parte autônoma.
Assim, a nulidade de uma parte não implicará a n ulidade dos demais
capítulos autônomos e independentes, que deverão ser preservados, nos
termos da parte final do art. 281 do Código de Processo Civil, aplicável
por analogia ao processo penal (CPP, art. 3º).

É o meu parecer.

São Paulo, 6 de dezembro de 2016.

Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró


Professor Associado de Direito Processual Penal da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

35

Você também pode gostar