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HERMENÊUTICA, TEORIA DO
DIREITO E ARGUMENTAÇÃO
Ronald Dworkin e
a Decisão Jurídica
2ª edição
2018
Capítulo 1
God. The New York Review of Books, v. LX, n. 6, abr. 4, 2013, p. 67. Essas reflexões sobre o
sentido da vida humana e sobre o que significa viver bem foram trabalhadas por Dworkin ao
longo de Justice for Hedgehogs e serão investigadas ao longo da presente pesquisa. Conferir:
DWORKIN, Ronald. Religion Without God. Cambridge, Massachusetts, London: Harvard Uni-
versity Press, 2013.
2. Essa exposição é, creio, o primeiro passo para que possamos nos apropriar das lições de
Dworkin no contexto do Constitucionalismo Contemporâneo em que se insere a experiência
brasileira. Aliás, vale desde já o registro de que, a propósito da construção de uma teoria do
direito adequada para o Brasil, com base na teoria dworkiniana, é necessário consultar a extensa
obra de Lenio Streck. Em especial em Verdade e Consenso, Streck apresenta as bases de uma
complexa teoria que se apropria da parte dita normativa da Teoria do Direito de Dworkin a
partir de um olhar filosófico ligado à Filosofia Hermêutica (Heidegger) e à Hermenêutica Filo-
sófica (Gadamer), adaptando-a para o contexto do Constitucionalismo Contemporâneo – no
qual se insere, veremos, a experiência democrática brasileira. Ver, necessariamente: STRECK,
Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 4. ed. São
Paulo: Saraiva, 2011.
3. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. IX-X.
4. Vale registrar aqui a respeitabilíssima observação de John Finnis a respeito da tentativa dworki-
niana de associar, no âmbito de sua teoria do direito, as dimensões normativa e conceitual.
Para Finnis, a teoria de Dworkin é, fundamentalmente, uma teoria normativa do direito, já
que está preocupada em fornecer orientações ao juiz quanto a seu dever judicial. Por essa
razão, Finnis julga que o debate entre Dworkin e os positivistas (como Hart e Raz) fracassa, já
que o interesse teórico destes seria, tão somente “descrever o que é tratado (isto é, aceito e
efetivo) como direito em uma dada época, bem como gerar conceitos que irão permitir que
tais descrições sejam claras e explanatórias, mas sem a pretensão de fornecer soluções (ou
‘respostas corretas’, ou padrões que iriam, se aplicados apropriadamente, fornecer respostas
corretas) para questões em disputa entre advogados competentes”. FINNIS, John. Lei Natural
e Direitos Naturais. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 34. Retomaremos o célebre debate Hart-
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Por assim pensar, ao longo da sua extensa obra, Dworkin foi gra-
dativamente posicionando os argumentos centrais de suas teses num
quadro cada vez mais abrangente do saber. Passou a discutir com cada
vez mais interesse, por exemplo, moralidade, política e filosofia – e
nunca de forma compartimentada. Sempre esteve marcada em seus
textos a propensão de construir uma teoria que encontrasse certo apoio
recíproco entre esses argumentos de natureza aparentemente distinta.
Por exemplo, Dworkin identificou objetivos políticos na instituição dos
direitos5; mapeou princípios morais na base da comunidade política6;
justificou a igualdade com base em princípios éticos7; propôs que se
fizesse uma leitura moral da Constituição norte-americana8; articulou
interpretações filosóficas de conceitos jurídicos. E assim por diante.
Com esse quadro mais geral em vista, Justice for Hedgehogs não
chega a ser uma alteração de rota nessa caminhada, digamos assim,
interdisciplinar que sempre caracterizou o pensamento dworkiniano.
A novidade, aqui, é outra: a tentativa, agora abertamente temati-
zada, de reivindicar um caráter de unidade teórica a proposições
oriundas de matrizes distintas. E essa proposta aparece na forma
de uma antiga tese filosófica: a tese da unidade do valor (the unity
of value thesis9).
O ponto de partida do livro é uma frase do filósofo grego Ar-
quíloco – “The fox knows many things,but the hedgehog knows one big
thing” (A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande coisa)
–, tornada conhecida pelo filósofo moral Isaiah Berlin, que tratou do
assunto em 1953, num ensaio sobre Tolstoi10. Sinteticamente, o objetivo
de Berlin, então, foi o de apresentar o ouriço como um monista, ou
seja, como um pensador movido por uma ideia central, que explica a
diversidade do mundo por referência a um único sistema. Já a raposa,
por sua vez, é mostrada como um pensador pluralista, que entende
que a diversidade do mundo, com seus fins vários e incompatíveis,
não autoriza um único sistema explicativo.
Neste contexto, Dworkin, intitulando-se um ouriço, e dando
início à defesa dos seus, anuncia: value is one big thing (o valor é
uma grande coisa).
Cabe recapitular, porém. Esse debate com Berlin aparece, antes,
em A Justiça de Toga. Dada a sua importância para a compreensão
dos propósitos de Justice for Hedgehogs, devemos retomá-lo com um
pouco mais de vagar.
9. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap
Press of Harvard University Press, 2011, p. 1. Com relação ao emprego da palavra “valor”, no
contexto da obra de Dworkin, cremos que é pertinente repetir uma observação que Joseph Raz
fez com referência ao seu próprio texto sobre o valor (Valor, Respeito e Apego). Raz reconhece
que, ao longo de seu trabalho, faz um uso “inflacionário” da palavra “valor”, afirmando que toda
“propriedade que (necessariamente) torne boa (ou má) qualquer coisa que a possua é, pelo
menos até certo ponto, uma propriedade valorativa, que representa algum valor”. Contudo
– e esse é o ponto que se aplica, pensamos, ao texto de Dworkin –, pede ao leitor que não
se o julgue pela adequação linguística, e sim pelo seu objetivo teórico, que vai emergindo
conforme seu argumento vai se desenvolvendo. RAZ, Joseph. Valor, Respeito e Apego. Martins
Fontes: São Paulo, 2004, p. 41-3.
10. O ensaio em questão é referido em nota de revisão da versão brasileira de A Justiça de Toga,
publicada pela WMF Martins Fontes. Trata-se de BERLIN, Isaiah. The Hedgehog and the Fox: an
essay on Tolstoi’s view of history. Elephant Paperbacks, Chicago, 1993. DWORKIN, Ronald. A
Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 150.
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11. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 149-50. Vale
dizer que a passagem transcrita por Dworkin – e aqui reproduzida –, está no livro The Crooked
Timber of Humanity: chapters in history of ideas, obra que reúne oito ensaios de Isaiah Berlin.
12. Justamente, o ensaio acima referido, sobre Tolstoi (vide a nota 22). DWORKIN, Ronald. A Justiça
de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 150.
13. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
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14. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 150-1.
15. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 152-3.
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sendo as coisas como são, ela não deve definir se vai ser injusta com
algum grupo, mas qual grupo tratará injustamente16.
Dworkin explica que o argumento de Berlin é coerente com
suas premissas. Para Berlin, a liberdade é a ausência de interferência
alheia na realização de qualquer coisa que pretendamos fazer. Se for
assim, realmente, a liberdade do lobo é a morte do cordeiro. Por certo
que a liberdade, assim concebida, entrará muitas vezes em conflito
com outros compromissos – notadamente, com aqueles de caráter
igualitário17. Contudo, objeta Dworkin, uma concepção alternativa
das exigências da liberdade (por exemplo, compreendida como a
liberdade de fazer o que se quer na medida em que se respeitem os
direitos morais das outras pessoas) não a levaria, necessariamente, a
conflitar com a igualdade. Vale dizer, a definição do conceito correto
de liberdade não é uma questão meramente semântica ou empírica,
mas sim de filosofia moral e política substantiva. Em linguagem
dworkiniana, trata-se de decidir a melhor maneira de compreender o
valor da liberdade18.
E essa empresa – que Dworkin retoma, com fôlego, em Jus-
tice for Hedgehogs – ocorre, em primeiro lugar, a partir de uma
concordância inicial abstrata com os principais valores políticos
– igualdade, liberdade, democracia etc. –, para, depois, chegar à
discussão a respeito do que esses valores realmente são, ou seja:
precisamos descrevê-los mostrando o que há de bom neles, a fim
de que percebamos que qualquer transigência com tais valores não
é apenas inconveniente, mas sim nociva19. Com esse aprimoramento
conceitual – que nos leva a enxergar, caso a caso, a importância
especial do valor em questão –, devemos descobrir se as ações
que a concepção sugerida define como violações de liberdade são
realmente nocivas ou erradas. Caso contrário – se um Estado não
age mal com nenhum cidadão quando, de acordo com a definição
proposta, viola sua liberdade (por exemplo, quando impede a “li-
berdade” de uma pessoa matar a outra) –, a concepção sugerida
será inadequada20.
16. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 154-5.
17. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 159.
18. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 160-1.
19. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 162-3.
20. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 163.
32 RONALD DWORKIN E A DECISÃO JURÍDICA
21. Não há como deixar de registrar o caráter obviamente controverso da proposta dworkiniana.
Costas Douzinas, por exemplo, para citar apenas este, afirma que a “esperança de Dworkin”
de que o direito possa funcionar como uma “rede sem emendas” representa “a maior ilusão
liberal”. Segundo Douzinas (e reproduzimos aqui suas observações porque, cremos, sejam
uma boa síntese do que se critica no pensamento dworkiniano), a lei “pode ser fechada e
o ordenamento simbólico completo somente se um significante-mestre adicional existir
fora do conjunto, além do Nome-do-Pai. Um significante que, por estar fora do simbólico,
pode atuar como a garantia última da completude da lei e permitir que o campo se feche”.
DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 333-4. Como
se vê, Douzinas afirma que o projeto dworkiniano somente teria sucesso caso se validasse
o argumento jurídico mediante o recurso a algum elemento externo – do contrário, parece
sugerir o pensador grego, haveria apenas circularidade. O ponto de Dworkin, contudo, é outro,
como se verá ao longo da nossa pesquisa: para ele, a verdade do valor é independente da
verdade nos demais domínios do conhecimento. O tema é abordado em Justice for Hedgehogs
sob o nome de a independência metafísica do valor, algo que Dworkin defende a partir do
que chama de o princípio de Hume. Esses pontos serão abordados, em seu tempo devido, ao
longo do presente escrito.
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22. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap
Press of Harvard University Press, 2011, p. 1. Dworkin elabora uma metáfora para ilustrar essa
distinção traçada entre moral e ética. O autor imagina pessoas nadando em pistas separadas
de uma piscina, que podem trocar de pista para auxiliar os outros nadadores, porém não para
machucá-los. A moral, neste sentido, definiria as pistas que separam os nadadores; e estipularia
quando alguém deve trocar de pista para ajudar os outros nadadores e em que condições
seria proibida a troca de pistas. A ética estaria ocupada em definir o que é nadar bem em sua
própria pista. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London:
The Belknap Press of Harvard University Press, 2011, p. 371.
23. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap
Press of Harvard University Press, 2011, p. 1-2.
34 RONALD DWORKIN E A DECISÃO JURÍDICA
1.1.4. Justiça
Igualdade24.
Dworkin acredita que nenhum governo é legítimo sem que
endosse dois princípios. Primeiro, deve demonstrar igual interesse
pelas pessoas que estão sob o seu domínio25; segundo, deve respeitar
a responsabilidade e o direito dessas pessoas de eleger o que é valioso
para si mesmas. Esses princípios devem guiar uma teoria aceitável de
justiça distributiva26, já que não há distribuição politicamente neutra.
Assim, qualquer distribuição deve ser justificada pela demonstração
de atendimento aos princípios de igual consideração e de respeito pela
responsabilidade individual.
Para a ilustração desse argumento, Dworkin retoma a metáfora
de um leilão inicial de todos os recursos disponíveis, do qual todos
participassem com o mesmo número de fichas27. O leilão deve ter-
minar numa situação na qual ninguém inveje o pacote de recursos
24. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap
Press of Harvard University Press, 2011, p. 2-4.
25. Dworkin presume que “todos aceitamos os seguintes postulados da moral política. O governo
deve tratar aqueles a quem governa com consideração, isto é, como seres humanos capazes
de sofrimento e de frustração e com respeito, isto é, como seres humanos capazes de formar
concepções inteligentes sobre o modo como suas vidas são vividas, e de agir de acordo com
elas”. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 419.
26. Não há como não lembrar, aqui, do célebre princípio da diferença de John Rawls – um autor
frequentemente presente (e por vezes expressamente tematizado, como ocorre no capítulo
9 de Justiça de Toga) no contexto das reflexões de Dworkin. Segundo Michael Sandel, a teoria
da justiça de Rawls é a “proposta mais convincente de uma sociedade equânime já produzida
pela filosofia política americana”. SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa? 5. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 204. Quanto ao princípio da diferença, cuida-se,
em resumo, de um princípio regulatório das desigualdades sociais e econômicas, a partir do
qual somente se poderiam permitir desigualdades sociais e econômicas que visassem ao
benefício dos membros menos favorecidos da sociedade. SANDEL, Michael J. Justiça: o que
é fazer a coisa certa? 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 189.
27. Em A Virtude Soberana a metáfora do leilão aparece na construção do conceito da “igualdade
de recursos”, uma teoria geral da igualdade distributiva que afirma que se tratam as pessoas
como iguais quando se “distribui ou transfere de modo que nenhuma transferência adicional
possa deixar mais iguais suas parcelas do total de recursos”, DWORKIN, Ronald. A Virtude
Soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5.