Você está na página 1de 11

COLEÇÃO

HERMENÊUTICA, TEORIA DO
DIREITO E ARGUMENTAÇÃO

Coordenador: Lenio Luiz Streck

Francisco José Borges Motta

Ronald Dworkin e
a Decisão Jurídica

2ª edição

2018
Capítulo 1

DEMOCRACIA PARA OURIÇOS

1.1.  INTERPRETANDO CONCEITOS INTERPRETATIVOS:


A RECONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO DE RONALD
DWORKIN A PARTIR DE JUSTICE FOR HEDGEHOGS

1.1.1.  Considerações iniciais


A presente pesquisa tem por objetivo fornecer, tomando por
fio condutor o pensamento de Ronald Dworkin, critérios para a
construção de uma decisão jurídica que seja adequada ao contexto
constitucional brasileiro. A primeira providência, para que possamos
dar início a este aprendizado, é a familiarização com alguns dos con-
ceitos nucleares do pensamento do jusfilósofo norte-americano. Uma
visão de conjunto parece particularmente importante neste caso. No
pensamento de Dworkin, que é original e contraintuitivo em doses
parecidas, argumentos aparentemente distintos fornecem, na verdade,
apoio recíproco. Assim, uma visão preliminar do todo favorecerá o
entendimento dos pontos que nos interessam mais proximamente, e
sobre os quais nos debruçaremos ao longo da investigação.
Nossa tarefa foi, de algum modo, facilitada pelo próprio Dworkin:
na abertura de seu abrangente Justice for Hedgehogs1, há uma espécie

1. Justice for Hedgehogs é o penúltimo livro de Dworkin. O último, publicado postumamente,


leva o nome Religion Without God. Um pouco antes de falecer, o autor enviou para a redação
do periódico The New York Review of Books, do qual era um colaborador habitual, um trecho
do texto (então) inédito. Trata-se de um trabalho em que Dworkin visa a, de algum modo,
separar Deus da religião (concebida como um conceito interpretativo). Nas suas palavras, “se
nós conseguirmos separar Deus da religião – se chegarmos ao entendimento a respeito do
que o ponto de vista religioso realmente é e porque ele não requer ou pressupõe uma pessoa
sobrenatural –, então nós estaremos em condições de diminuir, ao menos, a temperatura destas
batalhas [a saber: da chamada guerra religiosa] por meio da separação das questões de ciência
das questões de valor. As novas guerras religiosas são agora, realmente, guerras culturais.
Elas não tratam de história científica – sobre qual é melhor descrição do desenvolvimento da
espécie humana, por exemplo – mas, mais fundamentalmente, a respeito do sentido da vida
humana e do que significa viver bem” (tradução nossa). DWORKIN, Ronald. Religion Without
26 RONALD DWORKIN E A DECISÃO JURÍDICA

de road map de seu pensamento, e é esta a trajetória que percor-


reremos. Apresentaremos, assim, algumas de suas principais teses,
conectando-as com seus trabalhos anteriores. Além disso, quando
parecer pertinente para os propósitos de nosso estudo, agregaremos
algumas observações complementares aos seus ensinamentos2.

1.1.2.  Entre ouriços e raposas: o pluralismo valorativo de Isaiah


Berlin
Para começar os trabalhos, é bom recordar que, desde Levando os
Direitos a Sério, Dworkin já defendia que uma teoria geral do direito
deveria ser ao mesmo tempo normativa e conceitual. Normativa no
sentido de que deveria conter uma teoria da legislação, da decisão
judicial e da observância/respeito da lei (ainda que assentadas em uma
teoria moral e política mais geral); conceitual, no sentido de que faria
uso da “filosofia da linguagem e, portanto, também da lógica e da
metafísica”3. A ideia central é a de que essas noções são interdepen-
dentes e que não podiam, portanto, ser trabalhadas separadamente4.

God. The New York Review of Books, v. LX, n. 6, abr. 4, 2013, p. 67. Essas reflexões sobre o
sentido da vida humana e sobre o que significa viver bem foram trabalhadas por Dworkin ao
longo de Justice for Hedgehogs e serão investigadas ao longo da presente pesquisa. Conferir:
DWORKIN, Ronald. Religion Without God. Cambridge, Massachusetts, London: Harvard Uni-
versity Press, 2013.
2. Essa exposição é, creio, o primeiro passo para que possamos nos apropriar das lições de
Dworkin no contexto do Constitucionalismo Contemporâneo em que se insere a experiência
brasileira. Aliás, vale desde já o registro de que, a propósito da construção de uma teoria do
direito adequada para o Brasil, com base na teoria dworkiniana, é necessário consultar a extensa
obra de Lenio Streck. Em especial em Verdade e Consenso, Streck apresenta as bases de uma
complexa teoria que se apropria da parte dita normativa da Teoria do Direito de Dworkin a
partir de um olhar filosófico ligado à Filosofia Hermêutica (Heidegger) e à Hermenêutica Filo-
sófica (Gadamer), adaptando-a para o contexto do Constitucionalismo Contemporâneo – no
qual se insere, veremos, a experiência democrática brasileira. Ver, necessariamente: STRECK,
Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 4. ed. São
Paulo: Saraiva, 2011.
3. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. IX-X.
4. Vale registrar aqui a respeitabilíssima observação de John Finnis a respeito da tentativa dworki-
niana de associar, no âmbito de sua teoria do direito, as dimensões normativa e conceitual.
Para Finnis, a teoria de Dworkin é, fundamentalmente, uma teoria normativa do direito, já
que está preocupada em fornecer orientações ao juiz quanto a seu dever judicial. Por essa
razão, Finnis julga que o debate entre Dworkin e os positivistas (como Hart e Raz) fracassa, já
que o interesse teórico destes seria, tão somente “descrever o que é tratado (isto é, aceito e
efetivo) como direito em uma dada época, bem como gerar conceitos que irão permitir que
tais descrições sejam claras e explanatórias, mas sem a pretensão de fornecer soluções (ou
‘respostas corretas’, ou padrões que iriam, se aplicados apropriadamente, fornecer respostas
corretas) para questões em disputa entre advogados competentes”. FINNIS, John. Lei Natural
e Direitos Naturais. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 34. Retomaremos o célebre debate Hart-
DEMOCRACIA PARA OURIÇOS 27

Por assim pensar, ao longo da sua extensa obra, Dworkin foi gra-
dativamente posicionando os argumentos centrais de suas teses num
quadro cada vez mais abrangente do saber. Passou a discutir com cada
vez mais interesse, por exemplo, moralidade, política e filosofia – e
nunca de forma compartimentada. Sempre esteve marcada em seus
textos a propensão de construir uma teoria que encontrasse certo apoio
recíproco entre esses argumentos de natureza aparentemente distinta.
Por exemplo, Dworkin identificou objetivos políticos na instituição dos
direitos5; mapeou princípios morais na base da comunidade política6;
justificou a igualdade com base em princípios éticos7; propôs que se
fizesse uma leitura moral da Constituição norte-americana8; articulou
interpretações filosóficas de conceitos jurídicos. E assim por diante.

-Dworkin, bem como seus desdobramentos teóricos contemporâneos, na sequência do nosso


trabalho. Mas vale adiantar que, de fato, a objeção de Finnis é sustentada pelo próprio Hart
no pós-escrito que aparece na edição mais recente de O Conceito de Direito – escrito este que
somente veio à luz após a morte do autor, frise-se. Hart insiste, neste texto, que seu projeto
era meramente descritivo e, portanto, moralmente neutro. HART, Herbert. L. A. O Conceito
de Direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 307-56. Dworkin responde à objeção no
capítulo 6 de A Justiça de Toga. Em resumo, o argumento do jusfilósofo norte-americano é o
de que uma teoria geral sobre como o direito válido deve ser identificado não constitui uma
descrição neutra da prática jurídica, mas uma interpretação dela que pretende não apenas
descrevê-la, mas também justificá-la. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2010, p. 199-264.
5. Para Dworkin, um direito político é um objetivo político individuado. DWORKIN, Ronald.
Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 142.
6. Dworkin defende o ponto de que a comunidade pode ser personificada como um “agente
moral”, querendo dizer com isto que “a comunidade como um todo tem obrigações de im-
parcialidade para com seus membros, e que as autoridades se comportam como agentes da
comunidade ao exercerem esta responsabilidade”. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. 2.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 211-2.
7. A teoria política de Dworkin está assentada no fato de que qualquer governo aceitável deve
tratar os cidadãos sob seu poder como dignos de igual respeito e consideração. A igual
consideração é pré-requisito da legitimidade política, é a virtude soberana da comunidade
política. Para defender esse ponto, o autor recorre à Ética e desenvolve a concepção de uma
forma de igualdade material chamada “igualdade de recursos”, baseada em dois princípios
fundamentais do individualismo ético: o princípio da igual importância (“é importante, de
um ponto de vista objetivo, que a vida humana seja bem-sucedida, em vez de desperdiçada,
e isso é igualmente importante, daquele ponto de vista objetivo, para cada vida humana”) e
o princípio da responsabilidade especial (“embora devamos reconhecer a igual importância
objetiva do êxito da vida humana, uma pessoa tem responsabilidade especial e final por
esse sucesso – a pessoa dona de tal vida”). DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: a teoria e
a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. I-XV.
8. Trata-se, num resumo bem apertado, de interpretar determinados dispositivos da Constituição
norte-americana (sobretudo a Declaração de Direitos) como referências não a concepções
específicas, mas a princípios morais abstratos, que devem ser incorporados como limites aos
poderes do Estado. DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a leitura moral da Constituição
Norte-Americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 2.
28 RONALD DWORKIN E A DECISÃO JURÍDICA

Com esse quadro mais geral em vista, Justice for Hedgehogs não
chega a ser uma alteração de rota nessa caminhada, digamos assim,
interdisciplinar que sempre caracterizou o pensamento dworkiniano.
A novidade, aqui, é outra: a tentativa, agora abertamente temati-
zada, de reivindicar um caráter de unidade teórica a proposições
oriundas de matrizes distintas. E essa proposta aparece na forma
de uma antiga tese filosófica: a tese da unidade do valor (the unity
of value thesis9).
O ponto de partida do livro é uma frase do filósofo grego Ar-
quíloco – “The fox knows many things,but the hedgehog knows one big
thing” (A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande coisa)
–, tornada conhecida pelo filósofo moral Isaiah Berlin, que tratou do
assunto em 1953, num ensaio sobre Tolstoi10. Sinteticamente, o objetivo
de Berlin, então, foi o de apresentar o ouriço como um monista, ou
seja, como um pensador movido por uma ideia central, que explica a
diversidade do mundo por referência a um único sistema. Já a raposa,
por sua vez, é mostrada como um pensador pluralista, que entende
que a diversidade do mundo, com seus fins vários e incompatíveis,
não autoriza um único sistema explicativo.
Neste contexto, Dworkin, intitulando-se um ouriço, e dando
início à defesa dos seus, anuncia: value is one big thing (o valor é
uma grande coisa).
Cabe recapitular, porém. Esse debate com Berlin aparece, antes,
em A Justiça de Toga. Dada a sua importância para a compreensão
dos propósitos de Justice for Hedgehogs, devemos retomá-lo com um
pouco mais de vagar.

9. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap
Press of Harvard University Press, 2011, p. 1. Com relação ao emprego da palavra “valor”, no
contexto da obra de Dworkin, cremos que é pertinente repetir uma observação que Joseph Raz
fez com referência ao seu próprio texto sobre o valor (Valor, Respeito e Apego). Raz reconhece
que, ao longo de seu trabalho, faz um uso “inflacionário” da palavra “valor”, afirmando que toda
“propriedade que (necessariamente) torne boa (ou má) qualquer coisa que a possua é, pelo
menos até certo ponto, uma propriedade valorativa, que representa algum valor”. Contudo
– e esse é o ponto que se aplica, pensamos, ao texto de Dworkin –, pede ao leitor que não
se o julgue pela adequação linguística, e sim pelo seu objetivo teórico, que vai emergindo
conforme seu argumento vai se desenvolvendo. RAZ, Joseph. Valor, Respeito e Apego. Martins
Fontes: São Paulo, 2004, p. 41-3.
10. O ensaio em questão é referido em nota de revisão da versão brasileira de A Justiça de Toga,
publicada pela WMF Martins Fontes. Trata-se de BERLIN, Isaiah. The Hedgehog and the Fox: an
essay on Tolstoi’s view of history. Elephant Paperbacks, Chicago, 1993. DWORKIN, Ronald. A
Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 150.
DEMOCRACIA PARA OURIÇOS 29

Com efeito, ao anunciar que as ideias de Berlin estão ganhando


influência, em especial a sua concepção de pluralismo de valores, e
com o objetivo de depois respondê-lo, Dworkin transcreve o seguinte
recorte do pensamento de seu debatedor:

O que fica claro é que os valores podem entrar em conflito. Eles


podem facilmente entrar em conflito no íntimo de um único in-
divíduo. E disso não se conclui que alguns devam ser verdadeiros,
e outros falsos. Tanto a liberdade quanto a igualdade estão entre
os principais objetivos perseguidos pelos seres humanos ao longo
de muitos séculos. Mas a liberdade total para os lobos significa
a morte para os cordeiros. Esses choques de valor constituem a
essência do que eles são e do que nós somos.
Se nos disserem que essas contradições serão resolvidas em
algum mundo perfeito onde todas as coisas boas estarão, em
princípio, harmonizadas entre si, devemos responder aos que
nos fazem tal afirmação que os significados por eles atribuídos
às palavras que, para nós, denotam valores conflitantes, não são
iguais aos nossos. Se sofreram alguma transformação, desco-
nhecemos por completo os novos sentidos que assumiram. A
noção do todo perfeito, a solução definitiva na qual todas as
coisas boas coexistem, parece-me não apenas inatingível – o
que constitui um truísmo –, como também conceitualmente
incoerente. Entre os grandes bens, existem alguns que não
podem viver juntos. Trata-se de uma verdade conceitual. Es-
tamos condenados a escolher, e cada escolha pode significar
uma perda irreparável11.

Ainda, Dworkin aponta que Berlin retomou esse tema, em ensaio


posterior, “de modo mais ameaçador”12. Berlin teria reconhecido que
a atração por um todo perfeito seria, apesar de falsa, duradoura e im-
portante. Por outro lado, avalia-a perigosa, recomendando que não se
ceda a esse impulso, por ele considerado sintoma de uma “imaturidade
moral e política igualmente profunda e perigosa”13.

11. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 149-50. Vale
dizer que a passagem transcrita por Dworkin – e aqui reproduzida –, está no livro The Crooked
Timber of Humanity: chapters in history of ideas, obra que reúne oito ensaios de Isaiah Berlin.
12. Justamente, o ensaio acima referido, sobre Tolstoi (vide a nota 22). DWORKIN, Ronald. A Justiça
de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 150.
13. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
30 RONALD DWORKIN E A DECISÃO JURÍDICA

Fixemo-nos nos argumentos mobilizados por Dworkin para


contestar Berlin. Isso, cremos, aplainará o terreno para que cheguemos
bem a Justice for Hedgehogs.
O primeiro passo é apontar que não só esse ideal holístico con-
denado por Berlin pode ser perigoso: também o pluralismo pode ser
mal empregado. Se é verdade que tiranos podem, de fato, justificar
crimes “recorrendo à ideia de que todos os valores morais e políticos
se unem em uma visão harmoniosa, de importância tão transcendental
que o assassinato se justifica quando está a seu serviço”, não é menos
verdadeiro dizer que “outros crimes morais têm sido justificados pela
atração pela ideia oposta, a de que os valores políticos importantes
entram necessariamente em conflito”, de modo que “não se pode de-
fender nenhuma escolha entre eles como a única escolha correta e que
os sacrifícios em algumas das coisas que nos são caras são, portanto,
inevitáveis”14. Ou seja, há perigos em ambos os lados.
Depois, Dworkin chega ao ponto. O destaque dado a Berlin
decorre do fato de que este não é apenas mais um autor pós-moderno,
que crê serem os valores meras criações sociais ou reações subje-
tivas. Pelo contrário: Berlin – como Dworkin – acreditava que os
valores são, de fato, objetivos. O que o distingue é a circunstância
de, apesar disto, defender que existem conflitos insolúveis entre os
valores verdadeiros. Não é que as pessoas divirjam sobre o que é
verdadeiro; é que haveria um conflito intrínseco quanto à veracidade
destas questões15.
Trazendo essa temática para o âmbito da teoria política, Berlin
identificaria, com efeito, um conflito efetivo entre os valores igualda-
de e liberdade, por exemplo, na decisão a respeito de uma eventual
tributação dos ricos para dar mais dinheiro aos pobres. A promoção
da igualdade (social), nesse caso, viria com a violação da liberdade de
alguns (de fazerem o que bem entendessem com o seu dinheiro). O
contrário (promoção da liberdade mediante a não tributação) também
seria verdadeiro: liberdade promovida ao custo da igualdade. De acordo
com o raciocínio de Berlin, ambos os valores são autênticos e, em si,
inconciliáveis, de modo que a comunidade política cometerá um erro
moral qualquer que seja a decisão que resolva tomar. Nesse sentido,

14. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 150-1.
15. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 152-3.
DEMOCRACIA PARA OURIÇOS 31

sendo as coisas como são, ela não deve definir se vai ser injusta com
algum grupo, mas qual grupo tratará injustamente16.
Dworkin explica que o argumento de Berlin é coerente com
suas premissas. Para Berlin, a liberdade é a ausência de interferência
alheia na realização de qualquer coisa que pretendamos fazer. Se for
assim, realmente, a liberdade do lobo é a morte do cordeiro. Por certo
que a liberdade, assim concebida, entrará muitas vezes em conflito
com outros compromissos – notadamente, com aqueles de caráter
igualitário17. Contudo, objeta Dworkin, uma concepção alternativa
das exigências da liberdade (por exemplo, compreendida como a
liberdade de fazer o que se quer na medida em que se respeitem os
direitos morais das outras pessoas) não a levaria, necessariamente, a
conflitar com a igualdade. Vale dizer, a definição do conceito correto
de liberdade não é uma questão meramente semântica ou empírica,
mas sim de filosofia moral e política substantiva. Em linguagem
dworkiniana, trata-se de decidir a melhor maneira de compreender o
valor da liberdade18.
E essa empresa – que Dworkin retoma, com fôlego, em Jus-
tice for Hedgehogs – ocorre, em primeiro lugar, a partir de uma
concordância inicial abstrata com os principais valores políticos
– igualdade, liberdade, democracia etc. –, para, depois, chegar à
discussão a respeito do que esses valores realmente são, ou seja:
precisamos descrevê-los mostrando o que há de bom neles, a fim
de que percebamos que qualquer transigência com tais valores não
é apenas inconveniente, mas sim nociva19. Com esse aprimoramento
conceitual – que nos leva a enxergar, caso a caso, a importância
especial do valor em questão –, devemos descobrir se as ações
que a concepção sugerida define como violações de liberdade são
realmente nocivas ou erradas. Caso contrário – se um Estado não
age mal com nenhum cidadão quando, de acordo com a definição
proposta, viola sua liberdade (por exemplo, quando impede a “li-
berdade” de uma pessoa matar a outra) –, a concepção sugerida
será inadequada20.

16. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 154-5.
17. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 159.
18. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 160-1.
19. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 162-3.
20. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 163.
32 RONALD DWORKIN E A DECISÃO JURÍDICA

O ponto aqui anunciado por Dworkin – e que, esperamos,


ficará mais claro na sequência deste trabalho –, em resumo, é a sua
crença de que, de algum modo, os valores liberais dominantes possam
estar ligados da maneira certa21. De que maneira, porém? É o que
veremos a seguir.

1.1.3.  A tese da unidade do valor


Como dito acima, Dworkin avalia que é muito fácil formular
definições de valores políticos como liberdade, igualdade, democracia
e justiça que acabem conflitando entre si. O difícil é demonstrar por
quais razões nós deveríamos aceitar essas definições. Dworkin sugere
que não as aceitemos – pelo menos não assim, tão facilmente. E que
nos engajemos na tarefa de formular concepções que unifiquem,
de alguma forma, esses valores políticos importantes, preservando-
-os naquilo que há de bom em cada um deles. A intenção é que a
liberdade, bem compreendida, não conflite com a igualdade. Que a
melhor interpretação do que seja a democracia, por exemplo, seja
harmônica e coerente com a melhor definição do que seja a justiça.
É dessa ambiciosa empreitada que trata a tese da unidade do
valor, na visão apresentada por Dworkin. E o ponto de partida não
poderia ser mais generalizante: o autor não se limita a tratar de valores
e conceitos políticos e jurídicos. Avançando para um campo bem mais
familiar à filosofia moral do que ao direito, o autor norte-americano
começa seu Justice for Hedgehogs afirmando que as verdades a respeito

21. Não há como deixar de registrar o caráter obviamente controverso da proposta dworkiniana.
Costas Douzinas, por exemplo, para citar apenas este, afirma que a “esperança de Dworkin”
de que o direito possa funcionar como uma “rede sem emendas” representa “a maior ilusão
liberal”. Segundo Douzinas (e reproduzimos aqui suas observações porque, cremos, sejam
uma boa síntese do que se critica no pensamento dworkiniano), a lei “pode ser fechada e
o ordenamento simbólico completo somente se um significante-mestre adicional existir
fora do conjunto, além do Nome-do-Pai. Um significante que, por estar fora do simbólico,
pode atuar como a garantia última da completude da lei e permitir que o campo se feche”.
DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 333-4. Como
se vê, Douzinas afirma que o projeto dworkiniano somente teria sucesso caso se validasse
o argumento jurídico mediante o recurso a algum elemento externo – do contrário, parece
sugerir o pensador grego, haveria apenas circularidade. O ponto de Dworkin, contudo, é outro,
como se verá ao longo da nossa pesquisa: para ele, a verdade do valor é independente da
verdade nos demais domínios do conhecimento. O tema é abordado em Justice for Hedgehogs
sob o nome de a independência metafísica do valor, algo que Dworkin defende a partir do
que chama de o princípio de Hume. Esses pontos serão abordados, em seu tempo devido, ao
longo do presente escrito.
DEMOCRACIA PARA OURIÇOS 33

das noções de bem viver, de ser bom, ou do que é maravilhoso, são


não só coerentes, mas também se apoiam reciprocamente. Isto é, o
que pensamos a respeito de qualquer uma dessas coisas pode apa-
recer como um argumento decisivo em qualquer discussão sobre as
demais. Há harmonia e não conflito. Seguindo essa linha, Dworkin
visa a ilustrar a unidade entre os valores morais e éticos: descreve uma
teoria sobre o que é viver bem (Ética) e sobre aquilo que, se quisermos
viver bem, nós devemos fazer e deixar de fazer pelos outros (Moral)22.
A ideia central, como se vê, é a de que os valores morais e éticos
dependem uns dos outros. E para defender esse argumento, Dworkin
parte do ponto de que a responsabilidade intelectual a respeito do
valor é, em si, um valor importante, o que o leva a discutir temas tão
(aparentemente) diversos como a metafísica do valor, o caráter da
verdade, a natureza da interpretação, as condições genuínas de acordo
e discordância, o fenômeno da responsabilidade moral, o problema
do livre-arbítrio e mais outros tantos assuntos que dizem respeito às
teorias ética, moral e jurídica23.
Pois bem. Como dito alhures, o principal propósito desse tópico
inicial é fazer uma espécie de apresentação de algumas das principais
teses dworkinianas expostas ao longo de sua trajetória – e sintetizadas
em Justice for Hedgehogs. E a melhor maneira de fazê-lo, parece-nos,
é seguir a ordem proposta pelo próprio Dworkin, no riquíssimo su-
mário que abre seu livro. É claro que não se trata de uma tradução do
texto original (em que pese o recurso à tradução seja útil, frequente
e, em certo sentido, inevitável); trata-se, isso sim, de fornecer as ba-
lizas minimamente necessárias para a compreensão da contribuição
dworkiniana ao pensamento jurídico contemporâneo.
Veremos, pois, a partir de agora, a que correspondem a justiça
e os demais conceitos que lhe são correlatos (igualdade, liberdade,

22. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap
Press of Harvard University Press, 2011, p. 1. Dworkin elabora uma metáfora para ilustrar essa
distinção traçada entre moral e ética. O autor imagina pessoas nadando em pistas separadas
de uma piscina, que podem trocar de pista para auxiliar os outros nadadores, porém não para
machucá-los. A moral, neste sentido, definiria as pistas que separam os nadadores; e estipularia
quando alguém deve trocar de pista para ajudar os outros nadadores e em que condições
seria proibida a troca de pistas. A ética estaria ocupada em definir o que é nadar bem em sua
própria pista. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London:
The Belknap Press of Harvard University Press, 2011, p. 371.
23. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap
Press of Harvard University Press, 2011, p. 1-2.
34 RONALD DWORKIN E A DECISÃO JURÍDICA

democracia e direito), passando pelos problemas da interpretação,


da verdade e do valor, até que cheguemos ao aspecto, para Dworkin,
fundamental: como devemos viver para realizar a unidade do valor.

1.1.4. Justiça

Igualdade24.
Dworkin acredita que nenhum governo é legítimo sem que
endosse dois princípios. Primeiro, deve demonstrar igual interesse
pelas pessoas que estão sob o seu domínio25; segundo, deve respeitar
a responsabilidade e o direito dessas pessoas de eleger o que é valioso
para si mesmas. Esses princípios devem guiar uma teoria aceitável de
justiça distributiva26, já que não há distribuição politicamente neutra.
Assim, qualquer distribuição deve ser justificada pela demonstração
de atendimento aos princípios de igual consideração e de respeito pela
responsabilidade individual.
Para a ilustração desse argumento, Dworkin retoma a metáfora
de um leilão inicial de todos os recursos disponíveis, do qual todos
participassem com o mesmo número de fichas27. O leilão deve ter-
minar numa situação na qual ninguém inveje o pacote de recursos

24. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap
Press of Harvard University Press, 2011, p. 2-4.
25. Dworkin presume que “todos aceitamos os seguintes postulados da moral política. O governo
deve tratar aqueles a quem governa com consideração, isto é, como seres humanos capazes
de sofrimento e de frustração e com respeito, isto é, como seres humanos capazes de formar
concepções inteligentes sobre o modo como suas vidas são vividas, e de agir de acordo com
elas”. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 419.
26. Não há como não lembrar, aqui, do célebre princípio da diferença de John Rawls – um autor
frequentemente presente (e por vezes expressamente tematizado, como ocorre no capítulo
9 de Justiça de Toga) no contexto das reflexões de Dworkin. Segundo Michael Sandel, a teoria
da justiça de Rawls é a “proposta mais convincente de uma sociedade equânime já produzida
pela filosofia política americana”. SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa? 5. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 204. Quanto ao princípio da diferença, cuida-se,
em resumo, de um princípio regulatório das desigualdades sociais e econômicas, a partir do
qual somente se poderiam permitir desigualdades sociais e econômicas que visassem ao
benefício dos membros menos favorecidos da sociedade. SANDEL, Michael J. Justiça: o que
é fazer a coisa certa? 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 189.
27. Em A Virtude Soberana a metáfora do leilão aparece na construção do conceito da “igualdade
de recursos”, uma teoria geral da igualdade distributiva que afirma que se tratam as pessoas
como iguais quando se “distribui ou transfere de modo que nenhuma transferência adicional
possa deixar mais iguais suas parcelas do total de recursos”, DWORKIN, Ronald. A Virtude
Soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5.

Você também pode gostar