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Direito Processual Penal II

Ano Letivo 2020/2021


Aula 10/03

Apresentação.

Programa:

1. Meios de prova e meios de obtenção de prova – distinção.


2. Princípios relativos à prova.
3. Regras de produção de prova e proibições de prova.
4. Os meios de prova e os meios de obtenção de prova previstos no Código de Processo
Penal.
5. O perfil de ADN como meio de prova em processo penal (Lei n.º 5/2008, de 12 de
Fevereiro).
6. Os meios de prova e os meios de obtenção de prova previstos na Lei do Cibercrime (Lei
n.º 109/2009, de 15 de setembro).
7. Métodos ocultos de investigação.

Bibliografia essencial: aulas

 Andrade, Manuel da Costa, “Bruscamente no Verão Passado”, a reforma do Código de


Processo Penal. Observações críticas sobre uma Lei que podia e devia ter sido diferente,
Coimbra Editora, 2009
 Andrade, Manuel da Costa, ‘’Proibições de prova’’
 “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo II, 2020
 Antunes, Maria João, Direito Processual Penal, Almedina, 2ª ed., 2018
 Fidalgo, Sónia, «Determinação do perfil genético como meio de prova em processo
penal», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1, 2006, pp. 115-148
 Fidalgo, Sónia, «A apreensão de correio eletrónico e a utilização noutro processo das
mensagens apreendidas», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1, 2019, pp. 59-74
 Fidalgo, Sónia, «A recolha de prova em suporte eletrónico – em particular, a
apreensão de correio eletrónico», Julgar, 38, 2019, pp. 151-160.

Aula 17/03

Direito Processual Penal

Ao Direito Processual Penal (doravante, «DPP») cabe a regulamentação jurídica da realização


do poder punitivo estadual. É este que regula o modo de averiguar se o agente cometeu um certo
facto, e qual a sanção que lhe deve corresponder. Tem uma característica que o distingue da
generalidade dos outros direitos processuais, nomeadamente, o Direito Penal substantivo não
pode ser utilizado na prática sem recorrer ao processo respetivo. Dentro das matérias do DPP,
iremos estudar sobretudo o direito da prova.

Relembrar:

 Que elementos têm de estar preenchidos para que se possa verificar um crime? Quais os
elementos de facto punível?
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Tipicidade, ilicitude, culpa e punibilidade (tem de ter praticado uma ação típica, ilícita, culposa
e punível).

 Quais as finalidades do processo penal?

I. Realização da justiça e descoberta da verdade material


II. Proteção perante o Estado dos direitos fundamentais dos cidadãos (máxime/sobretudo
do arguido, mas também de outras pessoas que façam parte do processo penal)
III. Restabelecimento da paz jurídica (comunitária e do arguido) posta em causa com a
prática do crime

Estas três finalidades conflituam entre si, não sendo integralmente harmonizáveis. O Doutor
FIGUEIREDO DIAS refere que ‘’nós somos obrigados a concluir pelo seu caracter
irremediavelmente antinómico e antitético’’.

a) Realização da justiça e da descoberta da verdade material vs. proteção perante o


Estado dos direitos fundamentais dos cidadãos

Por exemplo, nos métodos proibidos de prova verificamos que a finalidade da realização da
justiça e descoberta da verdade material conflitua com a finalidade da proteção perante o Estado
dos direitos fundamentais dos cidadãos. Meios de obtenção de prova como as buscas
domiciliárias e as escutas telefónicas, por exemplo, colocam em causa direitos fundamentais das
pessoas - podem ser postos em causa não só do arguido, mas também de terceiros.

b) Realização da justiça e da descoberta da verdade material vs. restabelecimento


da paz jurídica comunitária

Por outro lado, a finalidade de realização da justiça e da descoberta da verdade material pode
conflituar também com a finalidade do restabelecimento da paz jurídica comunitária. Esta
última é muito importante no processo penal, tanto no interesse do arguido (querendo-se julgado
no mais curto prazo possível), como no interesse da própria comunidade jurídica (através da
aplicação da sanção vemos reforçada a validade da norma). Todavia, não se afirma sem
limitações, pois a segurança eminente à paz jurídica é, por vezes, posta em causa em obediência
à justiça ou à verdade material (mesmo em casos em que já obtivemos uma decisão por meios
válidos), por exemplo, nos casos do recurso de revisão (recurso extraordinário; art. 449.º, do
CPP), que se interpõe após o trânsito em julgado da condenação por razões de injustiça (ver
artigo). Outro exemplo é a reabertura da fase de inquérito, depois do arquivamento (art.279.º, do
CPP) - quando há uma arquivamento, e depois de esgotado o prazo para requerimento de
abertura de fase de instrução ou para intervenção hierárquica, em que circunstâncias é que o
inquérito pode ser reaberto? Ver arts. 277.º 278.º e 279.º, do CPP.

c) Proteção perante o Estado dos direitos fundamentais dos cidadãos vs. realização
da justiça e da descoberta da verdade material

A proteção dos direitos fundamentais das pessoas também pode conflituar com a finalidade da
realização da justiça e da descoberta da verdade material nos casos em que a proteção dos
direitos se afirma perante a necessidade de realização da justiça (ou seja, é a situação inversa do
parágrafo anterior). Ex.: proibição de certos meios de prova e da valoração das provas obtidas
por esses meios (art. 126.º, do CPP - métodos proibidos de prova).
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d) Restabelecimento da paz jurídica vs. realização da justiça e de descoberta da
verdade material

Além disso, a finalidade do restabelecimento da paz jurídica também pode conflituar com a
finalidade da realização da justiça e de descoberta da verdade material. Quando temos uma
decisão do tribunal - condenatória ou absolutório - transitada em julgada, liga-se à ideia
irrecorribilidade da decisão (já não é recorrível). Aqui temos a finalidade do restabelecimento
da paz jurídica a sobrepor-se (exceto nos casos de recurso de revisão).

e) Restabelecimento da paz jurídica vs. finalidade da proteção direitos


fundamentais dos cidadãos

Por exemplo: uma das razões que fundamenta a aplicação da prisão preventiva (exigências
processuais de natureza cautelar) é haver perigo de que o agente perturbe gravemente a ordem e
a tranquilidade públicas (art. 204.º, do CPP).

A sensibilidade da matéria da prova no que se refere à harmonização das finalidades do


processo penal.

 Não sendo possível a realização integral das diversas finalidades, qual é o modo para
resolver os conflitos?

A concordância prática

Devemos operar uma concordância prática das finalidade em conflito, de modo a salvar, em
cada situação, o máximo conteúdo possível de cada uma das finalidades. Tal é notório, por
exemplo, em todo o regime das medidas de coação (arts. 191.º e ss, do CPP), e no regime de
todos os meios de obtenção de prova (arts. 171.º e ss, do CPP), regimes que revelam uma
concordância prática entre a proteção dos direitos dos cidadãos e da tutela da realização da
justiça.

Contudo, (só) não enveredamos por este caminho quando está em causa a dignidade da pessoa
(em regra, do arguido) - nenhuma transação será possível, na medida em que se trata de um
valor absoluto, que não cede perante qualquer outro direito ou interesse. Quando as finalidades
estão em conflitos, devemos operar a sua operância prática, sempre com o limite intocável das
finalidades da pessoa humana. Assim, devemos dar prevalência à finalidade do processo que
deve total cumprimento à garantia constitucional da dignidade da pessoa. Ex.: Estando em causa
métodos proibidos de prova (art. 126.º, do CPP), não é possível realizar uma mútua compressão
das finalidades em conflito, prevalecendo a finalidade que garantir a dignidade da pessoa
humana, nomeadamente, a finalidade da proteção dos direitos fundamentais.

Exemplo concreto de concordância prática - escutas telefónicas, art. 187.º, do CPP:

 Finalidades em conflito: proteção dos direitos fundamentais da pessoa vs. realização da


justiça e da descoberta da verdade material;
 Resolução:
o «se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta
da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de
obter» - são a última ratio dos meios de obtenção de prova;
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o «por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do
Ministério Público»;
o descreve um catálogo de crimes em relação aos quais é admissível («puníveis
com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos»).

Exemplo concreto de concordância prática - «Caso do diário» - Ac. TC n.º 607/2003

Um sujeito estava acusado de abusos sexuais de crianças; foram feitas buscas domiciliárias
consentidas e devidamente autorizadas pelo juiz de instrução, nas quais se encontraram diários.
Colocou-se a questão de saber se esses diários poderiam ser utilizados como meio de prova para
efeitos de fundamentar a aplicação medida de coação de prisão preventiva (isto é, os seus
pressupostos - art. 202.º e art. 204.º, al. c), do CPP). Estariam em conflito o direito à privacidade
do arguido e a realização da justiça e descoberta da verdade material. TC admitiu não ser
admissível esta intromissão na privacidade sem que faça uma ponderação à luz dos princípios
da necessidade e da proporcionalidade sobre o conteúdo, em concreto, dos diários em causa 1. A
intromissão do direito à privacidade é admissível em casos raros, depois de feita esta
ponderação.

A centralidade do Direito Probatório na dinâmica do processo

A prova é um dos problemas nucleares do processo penal. Diferentemente do que acontecia no


CPP anterior (Código de 1929) - onde regulamentação da prova estava contida em normas
dispersas, num título que era dedicada à instrução do processo (arts. 170.º e ss CPP 1929) -, o
atual CPP consagrou inteiramente todo um livro à matéria da prova - Livro III (arts. 124.º e
ss). Por outro lado, dedica também diversas normas na parte relativa à audiência de julgamento
(ex.: arts. 327.º, 340.º, 355.º, 374.º, n.º 2, do CPP).

Entre nós, a circunstância do legislador atual (1987) ter optado por criar um corpo normativo
tendencialmente unitário (ou seja, um livro autónomo), onde se reúnem todas as disposições
fundamentais em matéria de prova, não radica na simples razão de uma ‘’arrumação
sistemática’’, numa razão de organização. Esta opção do legislador expressa, efetivamente, a
centralidade do direito probatório na dinâmica do processo penal - a prova é o problema central
do processo penal.

Para além das normas relativas à prova que se encontram no CPP, a matéria da prova está
também regulada em legislação extravagante, nomeadamente:

 Lei n.º 93/99, de 14 de julho - Lei de proteção de testemunhas;


 Lei n.º 102/2001, de 25 de agosto - Lei que regula as ações encobertas para fins de
prevenção e investigação criminal (agentes encobertos no processo penal);
 Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro - Lei onde se estabelece o regime especial de recolha
de prova e quebra de segredo profissional em matéria de criminalidade organizada e
económico-financeira;
 Lei n.º 5/2008, de 22 de fevereiro - Lei que cria a base de dados de perfis de ADN;
 Lei n.º 109.º/2009, de 15 de setembro - Lei do Cibercrime
1
Questão: e os direitos das crianças? Não estão em causa? Sendo que estas são expostas nestes diários,
pelo próprio abusador! Quem tem acesso? AJ? OPC?
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 Esta dispersão é vantajosa ou desvantajosa? O facto de termos a matéria da prova dispersa


por diversa legislação extravagante, além do CPP, suscita problemas de vária ordem. É difícil
compatibilizar a legislação extravagante com o CPP, principalmente no domínio dos meios de
obtenção de prova (e, mais especificamente, na Lei do Cibercrime). Consequentemente,
verifica-se uma falta de harmonia e equilíbrio entre os meios de obtenção de prova 2. Por outro
lado, o que justifica a criação desta legislação tem a ver com a especificidade dos domínios em
causa.

Objeto da prova

A prova começa a ser recolhida na fase de inquérito: adquirida a notícia do crime, e aberto o
inquérito, tem lugar o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime,
determinar os seus agentes e a sua responsabilidade, e descobrir e recolher as provas em ordem
à decisão sobre a acusação (art. 262.º, n.º1, do CPP). Tal acusação poderá depois ser (ou não)
comprovada na fase de instrução. Com a produção da acusação ou com a prolação do despacho
de pronúncia (ou com ambos), chegamos à fase de julgamento, onde valem todas as provas que
tiverem sido produzidas ou examinadas na audiência (princípio da imediação, previsto no art.
355.º, do CPP).

O que é objeto de prova?

Ora, a admissibilidade da atividade probatória pressupõe sempre a prévia delimitação do tema


(«tema probandum» ou tema da prova). Note-se que no processo penal não se pretendem provar
os factos empíricos materiais enquanto tais, isto é, não são os próprios factos empíricos que
estão a ser verdadeiramente provados em tribunal. Estes ocorreram ou não no passado, e apenas
podem ser reconstruídos no processo penal a partir dos meios de prova disponíveis. Por isso, em
rigor, o que estamos a discutir no processo penal são os enunciados dos factos ocorridos - os
enunciados factuais -, estando em causa averiguar a veracidade ou falsidade destes.

a) Previstos no Código de Processo Penal

O art. 124.º, do CPP, refere expressamente qual é o objeto da prova: «1 - Constituem objeto da
prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime , a
punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de
segurança aplicáveis.2 - Se tiver lugar pedido civil, constituem igualmente objeto da prova os
factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil.». Assim, têm de ser provados,
no processo penal, todos os factos referentes, por exemplo, ao tipo de ilícito (objetivo ou
subjetivo) e ao tipo de culpa. Ex.: se estiver em causa uma causa de justificação ou de exclusão
da culpa, os pressupostos de funcionamento dessa causa também têm de ser provados no
processo penal; também são objeto de prova todos os factos que digam respeito à punibilidade,
designadamente, por exemplo, tudo o que diz respeito às condições objetivas de punibilidade.

b) Factos processuais

2
Dr. COSTA ANDRADE, in «Bruscamente no Verão passado», defende que se reconhecem as
dificuldades práticas que estariam envolvidas numa tentativa de inserir no CPP todas as normas relativas
à obtenção de prova, mas seria importante que essa tentativa fosse feita, pois assegurava-se a esses meios
guarida no CPP, e enquadravam-se num sistema equilibrado do ponto de vista normativo, axiológico, e
político-criminal.
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Note-se que, na verdade, este elenco constante do art. 124.º, do CPP, é meramente
exemplificativo. Significa isto que não são objeto de prova apenas os factos referidos no artigo,
mas também todos os enunciados factuais de que depende a aplicação de normas
processuais - os designados «factos processuais».

O art. 19.º, do CPP, é o artigo que se refere às regras gerais em matéria de competência
territorial: «É competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver
verificado a consumação.» Logo, o local da prática do facto (consumação) tem de ser provado
para efeitos de competência territorial do próprio tribunal, por razões processuais.

Outro exemplo é o art. 134.º, do CPP, que refere «Podem recusar-se a depor como testemunhas:
(…)»: é importante fazer prova dos factos processuais, de forma a saber quem tem direito a
recusar-se a depor como testemunha (no caso, o vínculo familiar).

Por sua vez, o art. 204.º, do CPP, refere «Nenhuma medida de coação, à exceção da prevista no
artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da
medida: a) Fuga ou perigo de fuga;»: o perigo de fuga é objeto de prova para aferir se pode ser
aplicada uma medida de coação.

c) Enunciados factuais subsidiários (ou auxiliares)

Além disso, ainda são objeto de prova os chamados «enunciados factuais subsidiários (ou
auxiliares)», ou seja, aqueles que se destinam à verificação da fiabilidade de um meio de prova.
Por exemplo, factos relacionados com a credibilidade de uma determinada testemunha; factos
relacionados com a autenticidade de um documento apresentado no processo penal; etc.

Meios de obtenção de prova vs. Meios de prova

O CPP distingue entre meios de prova e meios de obtenção de prova. Como distinguir?

 Os meios de prova caracterizam-se pela sua aptidão para serem, por si mesmos, fontes
do convencimento do juiz. Ou seja, estes são elementos de que o juiz pode lançar mão
de modo imediato para fundamentar a sua decisão.
 Os meios de obtenção de prova instrumentos de que se servem as autoridades
judiciárias (e, em alguns casos, os órgãos de polícia criminal) para investigar e recolher
os meios de prova.

a) Meios de prova previstos no CPP:

1. Prova testemunhal (arts. 128.º e ss, do CPP);


2. Declarações do arguido, do assistente e das partes civis (arts. 140.º e ss, do CPP);
3. Prova por acareação (arts. 147.º e ss, do CPP);
4. Reconstituição do facto (arts. 150.º, do CPP);
5. Prova pericial (arts. 151.º e ss, do CPP);
6. Prova documental (arts. 164.º e ss, do CPP).

b) Meios de obtenção de prova previstos no CPP:

1. Exames das pessoas, dos lugares e das coisas (arts. 171.º e ss, do CPP);
2. Revistas e buscas (arts. 174.º e ss, do CPP)3;
3
Diferença: a revista é feita às pessoas, as buscas aos locais.
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3. Apreensões (arts. 178.º e ss, do CPP);
4. Buscas telefónicas (arts. 187.º e ss, do CPP).

Note-se que esta distinção nem sempre é assim tão simples. O próprio legislador veio baralhar
os conceitos quando em 2007 alterou a redação da norma relativa às escutas telefónicas. Atente-
se no art. 188.º, do CPP, que se refere às formalidades das operações: depois de se ouvirem as
escutas, faz-se a transcrição das conversações, e esta é considerada meio de prova, mas a
verdade é que esta transcrição devia continuar a valer como meio de obtenção de prova, pois as
escutas são um meio de prova. Assim, depois da reforma de 2007, as escutas telefónicas, que
sempre foram vistas como meio de obtenção de prova, passaram a transformar-se, de certo
modo, num meio de prova, porque as transcrições das escutas passaram a poder ser usadas como
meio de prova no processo penal. Ora, este entendimento é criticável. A Doutora considera que
o meio de prova são as informações que se conseguem ‘’retirar’’ das escutas - e não as escutas 4.

Por outro lado, na distinção entre exames e perícias também a dicotomia entre meios de prova e
meios de obtenção de prova se torna difícil. isto porque nem sempre é claro. Ver art. 171.º, n.º1,
do CPP e art. 172.º, n.º 1, do CPP  O que quer dizem «compelida»? Tem-se entendido que
não é o recurso à força, mas sim que, se esta não aceitar submeter-se ao exame, poderá incorrer
na prática de um crime de desobediência (art. 348.º, do CP) 5. Ver também art. 174.º, n.º1, do
CPP.

E para determinação do perfil genético? Temos de saber se estamos perante um exame ou


perícia. A perícia, art. 151.º, do CPP, «(…) tem lugar quando a perceção ou a apreciação dos
factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos». Até 2007, o CPP
não previa expressamente a possibilidade de recolha de vestígios para determinação do perfil
genético como meio de prova em processo penal, tendo-se discutido muito se esta recolha e
posterior análise de vestígios biológicos para determinação do perfil de ADN era um exame ou
uma perícia. Atualmente, a lei diz no art. 154.º, n.º3, do CPP que «3 - Quando se tratar de
perícia sobre características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado
consentimento, o despacho previsto no número anterior é da competência do juiz, que pondera
a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da
intimidade do visado.», ou seja, a própria lei prevê a possibilidade de realização de perícias ao
ADN, mesmo sem consentimento (tendo de haver o referido despacho, e a necessidade de
ponderação). Neste artigo vemos a harmonia entre os princípios do processo penal (matéria
inicial).

Aula 24/03/2021

Princípios gerais do processo penal:


4
Por exemplo, uma pessoa que está a ser escutada confessa efetivamente o crime. Pergunta-se: como é
que valerá essa confissão (no processo penal) quando for transcrita, sendo as transcrições meios de prova?
Como declarações anteriores do arguido? As declarações anteriores do arguido têm um regime muito
especial, e a admissibilidade da leitura dessas declarações também, sendo que esta pode levantar
problemas muito graves, especialmente do ponto de vista da proibição da autoincriminação. [matéria a
estudar mais adiante]
5
Quem pode ser compelido? A vítima do crime é obrigada a sujeitar-se ao exame? É uma questão muito
discutida [tema bom para tese de mestrado]. A lei refere «», subentendendo-se que qualquer pessoa pode
ser sujeita ao exame.
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1. Princípios relativos à promoção processual:
a. legalidade;
b. oficialidade;
c. acusação.
2. Princípios relativos à prossecução ou decurso processual:
a. investigação;
b. contraditório;
c. suficiência;
d. concentração.
3. Princípios relativos à prova
a. legalidade da prova;
b. in dúbio pro reu;
c. livre apreciação da prova.
4. Princípios relativos à forma:
a. publicidade;
b. oralidade;
c. imediação.

Esta classificação não é estanque, isto é, princípios como da investigação e do contraditório,


embora apontados como relativos ao decurso do processo penal, não deixam de ser relativos à
prova. O mesmo acontece com os princípios da oralidade e da imediação, pois sendo relativos à
forma como se desenvolve ao julgamento, são também relativos à prova.

PRINCÍPIOS GERAIS RELATIVOS À PROVA

A. Princípio da investigação (ou princípio da verdade material)

É um princípio que caracteriza a estrutura do nosso processo penal, sendo que a estrutura do
nosso processo penal é acusatória, integrado por um princípio de investigação. É orientador da
prossecução ou desenvolvimento do processo penal.

De acordo com este, o tribunal investiga o facto sujeito a julgamento, independentemente, dos
contributos da acusação e da defesa, construindo autonomamente as bases da sua decisão. Ele
pode, oficiosamente, requerer diligências de prova, investigar autonomamente.

O princípio que se opõe a este é o princípio do dispositivo (ou da verdade formal) de acordo
com o qual a acusação e a defesa são partes do processo, e estas dispõem do processo, cabendo-
lhes somente a elas carrear para ele os factos e as provas correspondentes - vale aqui o princípio
da autorresponsabilidade probatória das partes. É, assim, às partes, que compete a adução do
material de facto, que vai servir de base à decisão. Neste contexto, contrariamente ao nosso juiz,
que é interventivo/ativo (vigora o princípio da investigação), o juiz assume aqui um papel
passivo.

Esta ideia do p. do dispositivo está na base da construção do processo civil. Porém, mesmo no
âmbito do processo civil, este princípio tem vindo a sofrer grandes limitações.

 Este princípio é compatível com o p. da legalidade da prova e com o p. da acusação e, ainda,


com a estrutura acusatória do processo penal.
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 Está manifestado de modo claro no art. 340.º, do CPP, onde se refere «O tribunal ordena,
oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se
lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa». Este artigo aparece
no código na parte relativa ao julgamento (arts. 311.º e ss, do CPP), porém, sendo relativo à
prossecução processual, vale tanto para o juiz de julgamento, como para o juiz de instrução. Sito
decorre dos arts. 288.º, n.º 4 («O juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução»),
289.º, n.º 1 e 290.º, n.º 1 do CPP.

Encontra-se ainda referido a propósito de outros pontos concretos do regime processual penal e
designadamente nos arts. 154.º, n.º 1; 164.º, n.º 2; 174.º, n.º 3; 348.º, n.º 5 do CPP, etc.

[Fazer remissão do art. 340.º para todas as outras normas]

Destas normas decorre também a natureza subsidiária deste enquanto princípio que integra a
estrutura acusatória do processo penal português. A norma que mostra, de modo claro, a
estrutura acusatória do processo penal português com a natureza subsidiária do princípio é a do
art. 348.º, do CPP, referindo-se às regras de inquirição de testemunhas.

 estrutura acusatória: n.º 4, pois as perguntas são feitas diretamente pelos sujeitos
processuais, não se exigindo a mediação do juiz (ao contrário do que acontece num
processo penal de estrutura inquisitória).
 natureza subsidiária do princípio da investigação : n.º 5. Quem começa por fazer as
perguntas são os restantes sujeitos processuais, mas se dúvidas subsistirem, podem,
ainda, os juízes e jurados fazerem as perguntas que considerem necessárias.

B. Princípio da legalidade da prova

Está consagrado no art. 125.º, do CPP: «São admissíveis as provas que não forem proibidas por
lei.»6.

Da leitura desta norma depreendemos, desde logo, que o legislador quis definir um núcleo de
provas proibidas e impedido a sua utilização no processo penal. Neste sentido, este princípio vai
apresentar-se como um limite ao princípio da investigação.

Por outro lado, quando se afirma que «são admissíveis as provas que não forem proibidas por
lei.», a ideia que orientou o legislador foi favorecer a descoberta da verdade material, admitindo
todos os meios de prova e todos os meios de obtenção de prova, ainda que não estejam previstos
na lei (desde que não sejam meios proibidos). No fundo, limita a investigação, mas favorece a
descoberta da verdade material.

Note-se, ainda, que se denota uma abertura do sistema por via da liberdade de prova; tal
relaciona-se com a consciência que o legislador de que é incapaz de acompanhar os
desenvolvimentos técnico-científicos em relação aos meios que podem ser utilizados na
descoberta da verdade, não podendo prever tudo. Na prova digital, por exemplo, mesmo antes
de existir a lei que agora a regula, já era utilizada como meio de prova, precisamente ao abrigo
desta abertura.

6
Atenção: Não significa que são admitidas as provas previstas na lei! São admitidas todas as que não
forem proibidas por lei.
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Esta liberdade dos meios de prova pode afirmar-se numa dupla vertente, ou de uma dupla
perspetiva. Por um lado, o legislador não definiu um sistema fechado ou taxativo quanto aos
meios de prova admissíveis; por outro lado, o legislador não pré-determinou os meios de prova
a utilizar em razão do tipo de facto a provar, ou seja, todos os meios de prova são igualmente
aptos e admissíveis para comprovar qualquer facto. Deste modo, para obter prova de um
determinado facto, as autoridades judiciárias podem socorrer-se dos meios tipificados na lei (as
chamadas «provas típicas», com testemunhas, prova documental, pericial, etc.). Além disso, é
reconhecida às Autoridades Judiciárias7, em princípio, a liberdade de escolher,
indiferentemente, qualquer uma dessas fontes tipificadas que estão previstas na lei (seja qual for
a natureza do facto a provar). Em certos casos excecionais, é ainda possível recorrer a meios de
prova não constantes do catálogo legal, desde que eles sejam idóneos à prova do facto em causa,
e não sejam proibidos pelo legislador - estaremos perante meios de prova inominados ou
provas atípicas.

Tradicionalmente, o art. 125.º, do CPP («legalidade da prova», sempre foi interpretado no


sentido de liberdade de prova. Contudo, esta ideia de liberdade da prova / dos meios de prova
tem de ser sempre entendida no contexto da estrutura do nosso sistema processual penal, que é
um processo penal de estrutura acusatória integrado por um princípio da investigação. É certo,
assim, que a verdade que se busca é material, e não a verdade formal - que resulta apenas dos
factos e das provas levados ao processo pelas partes (isto acontece num sistema processual de
natureza acusatória pura). Contudo, esta verdade deve ser sempre encontrada e procurada
sempre com respeito pelos direitos fundamentais do arguido, desde logo, pelo seu direito de
defesa (art. 32.º, n.º 1 da CRP). Por essa razão, a compreensão do art. 125.º não é tão simples
quanto possa parecer: neste não se encontra uma mera regra de exclusão de meios de prova
(todos aqueles que forem proibidos), nem este se reduz a uma mera regra de inclusão
(admitindo todos os meios de prova atípicos). Tendo em conta todas as regras de direito
probatório no processo penal, desta regra / princípio / norma da legalidade da prova, devem
extrair-se algumas ideias importantes no que diz respeito à admissibilidade de meios de prova
atípicos.

Mas será que há liberdade total? A AJ ou o julgador pode lançar mão de qualquer meio
de prova, desde que não esteja expressamente proibido? Quais são os limites à
admissibilidade das provas atípicas?

É preciso ter em conta que para lograr obter a prova dos factos, o nosso legislador processual
penal desenhou e regulou um conjunto de procedimentos previstos nos arts. 128.º a 190.º, do
CPP, e também noutros regulados em lei extravagante (ex.: lei do cibercrime). Mas porquê
estes, e não outros? Obviamente que se ele selecionou estes, teve em conta o enraizamento
legal (histórico e prático) de tais meios de prova na nossa cultura jurídica nacional (ou outras
que nos são familiares). Por outro lado, terá partido da presunção de que estes meios de prova
(previstos no CPP), se forem seguidos com o rigor pressuposto, se mostram
epistemologicamente fiáveis (pois permitem-nos ter um conhecimento fiável dos factos) e, ao
mesmo tempo, são respeitadores do núcleo essencial das garantias de defesa. Por essa razão, o
catálogo legal dos meios de prova e de obtenção de prova, não deve ser visto como um mero
exemplo dos meios probatórios disponíveis - não é mera lista exemplificativa -, dando-se às AJ
uma total liberdade para escolher qualquer um destes, ou qualquer um meio atípico.

7
Art. 1.º, al. b), do CPP
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
Como é que, afinal, devemos entender o art. 125.º do CPP? Esta liberdade dos meios de
prova? São admissíveis meios atípicos em que circunstâncias?

- Os corolários de uma correta interpretação da “liberdade dos meios de prova”

Ora, da correta interpretação do art. 125.º, do CPP resultam os corolários seguintes (ideias que
nos ajudam a interpretá-lo corretamente):

1º corolário:

A admissibilidade de uma prova atípica pressupõe a ausência de uma expressa proibição


normativa, bem como a falta de um meio probatório tipificado (típico, previsto na lei) adequado
a produzir o mesmo resultado cognoscitivo. Ou seja, existindo uma concreta prova típica, apta a
fornecer às AJ as informações probatórias pretendidas, o formalismo delineado na lei para a
aquisição desses meios de prova deve ser sempre seguido, não devendo, nesses casos, as AJ
recorrer a qualquer prova atípica. Isto é, a possibilidade de recurso a provas atípicas não pode
ser usada para contornar as exigências do sistema do direito probatório.

Ex.: durante muitos anos, foi pacificamente aceite pela nossa jurisprudências os
‘’reconhecimentos atípicos’’ ou ‘’informais’’, ou seja, os reconhecimentos realizados na própria
audiência de julgamento. A prova por reconhecimento é um meio previsto no art. 147.º do CPP,
mas é sujeito a um formalismo especial. Quando se procede a uma prova por reconhecimento,
exige-se que se chamem pelo menos duas pessoas e essas devem apresentar certas semelhanças
com a pessoa a identificar; inclusivamente, deve procurar-se que tenham peças de vestuário
semelhantes. No seu n.º 7, estipula-se concretamente que «O reconhecimento que não obedecer
ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em
que ocorrer.».

NOTA: Aquilo que dissemos para os reconhecimentos informais também é válido a propósito
de outras formas de aquisição de prova.

No que respeita à admissibilidade de ensinamentos atípicos, o ensinamento que se retira é o de


que as AJ só podem recorrer-se de provas atípicas, quando faltar um meio probatório típico
idóneo a produzir o mesmo resultado. Em regra, em que circunstâncias isto acontece? Nos casos
em que o progresso científico se adiantou à previsão do legislador (relacionado com a abertura
acima referida).

2º corolário

Radica na seguinte ideia: liberdade de meios de prova não deve confundir-se com uma completa
fungibilidade dos meios de prova. Isto é, embora por regra a lei não imponha, para a prova de
determinados factos, a utilização de meios de prova específicos, tal não significa que as AJ
sejam totalmente livres na escolha dos meios de prova a utilizar. Há casos excecionais em que a
prova de certos factos / enunciados factuais tem de ser feita por meio de prova específicos. Ex.:
prova pericial - estando em causa um facto que requeira para cabal esclarecimento o domínio de
especiais saberes de natureza técnica, científica ou artística, então deve recorrer-se à prova
pericial (art. 151.º do CPP). Por exemplo, na determinação da imputabilidade ou
inimputabilidade do arguido, recorre-se à perícia psiquiátrica. O legislador não está somente a
delimitar os casos em que a prova pericial tem lugar (em que é admissível): mais do que isso,
esta norma impõe, simultaneamente, que sempre que estiverem em causa aqueles
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
conhecimentos especiais, é a prova pericial que tem de ser produzida (é obrigatório lançar-se
mão da mesma). Quando o legislador escreveu o art. 151º, ele não está somente a delimitar os
casos em que é admissível a prova pericial, mas também a impor que seja essa prova a ser
utilizada quando estejam em causa estes tipos de conhecimentos especiais.

3º corolário

Há meios de prova que são proibidos, precisamente porque não estão previstos nem
disciplinados na lei. É o que acontece, em geral, com os meios de prova cujo uso implique uma
restrição direta e sensível dos Direitos Fundamentais - tem de haver uma lei que, de forma
expressa e clara, refira qual é o direito que está a ser restringido, e que de forma minuciosa
regule o grau de agressão tolerado e quais os métodos admissíveis para a admissão de restrição
desse direito. A restrição de Direitos Fundamentais tem sempre de ser respeitando exigências
constitucionais de caráter geral, nomeadamente, tem feita por via de lei (art. 18.º, n.º 2, da CRP)
e exigências constitucionais de caráter específico (34.º, n.º 2 e 4, da CRP).

É precisamente neste contexto que se insere o “malware” como meio de obtenção de prova.
tratando-se de um meio de obtenção de prova que contende com os direitos fundamentais, a sua
utilização está dependente da insuprível atuação do legislador. Falaremos nisto com mais
cuidado no final do semestre – prova digital. Há outros casos em que se discute muito se é ou
não admissível. A circunstância de a lei não proibir expressamente um meio probatório que
restringe direitos fundamentais, não equivale a tê-lo como não legítimo por recurso à analogia,
porque a legitimidade constitucional tem de ser sempre complementada com a legitimidade que
só o legislador ordinário pode outorgar (confirmar isto).

NOTA: Art. 34.º é muito importante.

Proibições de prova8910 [a ver mais à frente]

É uma matéria que contende, por um lado, com a dignidade da pessoa e, por outro, com as
instituições basilares do Estado de Direito democrático - questiona-se se as Autoridades
Judiciárias podem recorrer a meios de prova proibidos e, se sim, em que contexto.

Vamos atentar no art. 32.º, n.º 8 da CRP: «são nulas todas as provas obtidas mediante tortura,
coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada,
no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações». Para além deste, devemos também
atentar no art. 126.º, do CPP: «1 - São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas
mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas; 3 -
Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as
provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas
8
matéria mais complexa, insegura e muito sujeita a controvérsia. Note-se que não há, em Portugal, uma
doutrina geral das proibições de prova, nem um grande consenso doutrinário (‘’as respostas nesta
matéria são tantas quantas as vozes que as sopram!’’ - Dr. Costa Andrade).
9
A propósito dos meios proibitivos de prova, há um acórdão TC nº 607/2003, relativamente à
conflitualidade das diversas finalidades do processo penal – fala no recurso a diários. Faz parte da nossa
bibliografia obrigatória. É o acórdão que mais se dedicou às proibições de prova
10
Nestas matérias há uma questão muito interessante que é: saber se as proibições de prova têm ou não
um caráter absoluto - há um texto sobre isto de F. DIAS que a prof vai colocar nos sumários e invoca a
possibilidade de ponderação. Quando há uma proibição de produção de prova, isto tem de corresponder a
uma proibição de valoração da prova ou se subsistirá facto para uma ponderação de valores conflituantes.
O texto de F. DIAS é de leitura obrigatória para o exame.
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular.». Por exemplo, se não tivessem
expressamente previstas na lei, as escutas telefónicas seriam proibidas, por serem intromissivas
da vida privada.

 Ora, quando se produz uma prova proibida, traduz-se imediatamente numa valoração
proibida, ou sobrará espaço para uma ponderação de valoração conflituante? As proibições de
prova têm ou não caráter absoluto?

Vejamos:

Problema do efeito à distância da proibição da valoração da prova

A questão é a de determinar se, fora do processo probatório válido, deve ficar unicamente a
prova ilicitamente obtida, ou se também deve ficar fora desse processo válido a prova
consequencial (isto é, aquela que só tenha sido alcançada através da prova proibida). Ex.: A,
acusado de homicídio, é coagido à confissão do crime através de tortura. A confessa o crime, e
a confissão do arguido permite localizar o cadáver e a arma do crime. Sendo a confissão
proibida, pode utilizar-se como meio de prova localização do cadáver e a própria arma do
crime? [a tratar na próxima semana] Ler Acórdão do TC n.º 198/200411.

Problema da analogia

A este propósito, é importante referir que a circunstância de a lei, em geral, não proibir um certo
meio probatório restritivo de direitos fundamentais, não equivale a ter esse meio por legítimo,
porventura, com recurso à analogia, porque neste âmbito a legitimidade constitucional tem de
ser sempre complementada com a legitimidade que só o legislador ordinário pode outorgar
(palavras do Dr. COSTA ANDRADE).

Questão a analisar na próxima aula: Há admissibilidade de prova através de GPS, que permite
saber a localização de uma pessoa, ou de uma viatura, por exemplo? É possível colocar um
dispositivo de localização para seguir a pessoa? A doutrina e a jurisprudência divergem - ler
Acórdãos da Relação de Évora, de 7/10/2008, da Relação do Porto, de 21/03/2013 e Acórdão da
Relação de Lisboa de 13/04/2016.

Aula 7/04

Relembrar aula passada

De acordo com o art. 125.º, do CPP, são admitidas todas as provas que não forem proibidas por
lei. Neste sentido, em rigor, não está aqui uma inteira e verdadeira liberdade de produção de
provas - meios de prova. Assim, referimos um conjunto de corolários que são os corolários de
uma correta interpretação do art. 125.º, do CPP. Dissemos, desde logo, que só é possível
recorrer-se a um meio atípico quando não houver tipificado que permita alcançar o mesmo
resultado probatório. Dissemos, por outro lado, que liberdade dos meios de prova não é o
mesmo que fungibilidade dos meios de prova - é certo que, em alguns casos, é possível fazer-se

11
No exame, pode a professora meter uma parte de um acórdão e nós devemos comentá-lo com base no
que lemos no acórdão. Portanto temos de os ler todos – é melhor imprimi-los para não perder.
Para o exame é importante ir relembrar os princípios relativos à prova que não dermos aqui!
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Ano Letivo 2020/2021
prova dos factos através de qualquer um dos meios de prova, mas outros casos existem em que a
prova tem de ser feita através dos métodos previstos na lei.

Terminamos dizendo que, de qualquer modo, há certos meios de obtenção de prova que só
podem ser utilizados se estiverem expressamente previstos na lei. Sempre que esses meios
contenderem de modo direto, imediato, com os direitos fundamentais das pessoas, não é pelo
facto de não estarem proibidos no Código, nem na Constituição, que são por si só admissíveis.
Não podemos lançar mão dos argumentos da analogia para utilizar um meio de obtenção
de prova não previsto na lei, mas que contenda com os direitos fundamentais das pessoas,
máxime do arguido. E, por isso, certos meios atípicos são inadmissíveis por não estarem
previstos na lei; tratando-se de restrições de direitos fundamentais, tem sempre de existir uma
lei que preveja esse meio de prova atípico, que identifique o direito que vai ser restringido e os
modos pelos quais se pode dar essa restrição.

É neste contexto que se discute a possibilidade de utilização de malware como meio de


obtenção de prova, e a admissibilidade de utilização de GPS como meio de obtenção de prova.

 Análise dos acórdãos sobre a admissibilidade do GPS

Acórdão da Relação de Évora, de 7/10/200812

Trata-se de um crime de tráfico de estupefacientes (art. 187.º, al. b), do CP).

Sumário: não carece de prévia autorização judicial o uso pelos órgãos de polícia criminal de
localizadores de GPS colocados em veículos utilizados por pessoas investigadas em inquérito
(e pelo tempo tido por necessário pelo órgão de polícia criminal encarregue do mesmo).

 No tocante à 2.ª das questões postas, a de se também deve ser autorizada a colocação de
localizadores, nomeadamente com sistema GPS, nos veículos utilizados pelo suspeito por forma
a controlar os seus movimentos, pelo prazo de 60 dias:

O senhor Juiz "a quo" indeferiu esta pretensão por ter entendido não se vislumbrar qualquer
base legal que legitime a vigilância por recurso a instrumentos de localização GPS - tão pouco
vindo indicada -

O M.º P.º rebateu, afirmando que existem normas legais a prever essa utilização, que as
indicou, e que são os art. 187.º, n.º 1 al.ª b), 189.º, n.º 2 e 252.º-A, aplicáveis por analogia com
a localização celular dos telemóveis, permitida pelo art. 4.º, todos do Código de Processo
Penal (diploma ao qual pertencerão todos os preceitos legais a seguir referidos sem menção de
origem).

 Artigo 187.º «Admissibilidade» - 1 — A interceção e a gravação de conversações ou


comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões
para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova
seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do
juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes:
a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos;
b) Relativos ao tráfico de estupefacientes;
12
http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/
590ec3fbf20ce49980257de100574d24?OpenDocument
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 Artigo 189.º «Extensão» - 2 — A obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização
celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser
ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a
crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º e em relação às pessoas referidas no n.º 4 do
mesmo artigo.
 Artigo 252.º-A «Localização celular» - 1 — As autoridades judiciárias e as autoridades de
polícia criminal podem obter dados sobre a localização celular quando eles forem
necessários para afastar perigo para a vida ou de ofensa à integridade física grave.
 Artigo 4.º «Integração de lacunas» - Nos casos omissos, quando as disposições deste
Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que
se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do
processo penal.

Entendemos que localização por GPS não tem coisa alguma a ver com localização celular. A
localização celular funciona quando num telemóvel é activado o IMEI, ou seja, quando é feita
ou recebida uma chamada ou uma mensagem; só indica a “antena” que está a transmitir para
o IMEI alvo, ou seja, se é S. ou T. e não o local exacto onde está o telemóvel alvo.

[Permite saber se um determinado telemóvel esteve na área que é abrangida pela antena em
causa; está prevista no CPP, através da extensão do art. 189.º]

A localização por GPS é activada por um aparelho sintonizado com pelo menos dois satélites,
dos quais recebe a informação das coordenadas da longitude e da latitude a que o aparelho se
encontra, fornecendo-lhe assim a localização do sítio exacto por reporte ao mapa das estradas
dessa região, informação que é transmitida e reproduzida num receptor na posse, neste caso,
da autoridade policial.

[Coisa diferente é o localizador de GPS, que fornece a localização exata]

Ora o legislador, que bem recentemente, em Agosto de 2007, através da Lei n.º 48/2007, de
29-8, [REFORMA DO CPP] se preocupou a aperfeiçoar a individualização e o acautelamento
do uso de diversos mecanismos electrónicos tais como o telefone e o telemóvel (art.º 187.º), o
correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, bem como os
sofisticados e ainda raros aparelhos de escuta à distância de conversas a ocorrerem entre
pessoas presentes num local (art.º 189.º), a localização celular e os registos da realização de
conversas ou comunicações (art.º 190.º) – não podia desconhecer a existência de localizadores
GPS e as virtudes da sua utilização na investigação criminal. Não obstante, nada
regulamentou sobre a sua utilização, nem os proibiu.

Assim, aplica-se o art.º 125.º: «São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei».

[Ignorou-se a aplicação analógica da localização celular, e seguiu-se a via da «porta aberta» que
era o art. 125.º]

Sendo que a utilização de localizadores GPS não consubstancia qualquer dos métodos
proibidos de prova a que se refere o art.º 126.º.

Certo que no n.º 3 deste último preceito legal se estabelece que são nulas, não podendo ser
utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada. Mas o ter a autoridade
policial no decurso de um inquérito criminal acesso à informação de onde está a cada
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momento um determinado veículo automóvel, não pode ser visto como uma intromissão na
vida privada de quem vai nesse veículo, pois que o GPS é um aparelho surdo e cego no sentido
de que não escuta as conversas dos ocupantes do carro, nem identifica quem lá vai e o que
estão a fazer, apenas informa aonde está o veículo, circunstância que é visível a olho nu para
quem olhe para o carro e lhe vê a matrícula. Daí que expressões ou divulgações como: «estava
lá o carro de Fulano», «vi passar o carro de Sicrano» ou «o carro de Beltrano fica todas as
noites estacionado à porta da Maria», não constituam qualquer comportamento tipificado
como crime de devassa da vida privada, p. e p. pelo art.º 192.º do Código Penal.

Situação bem diferente seria – como está bom de ver – a de utilizar localizadores GPS em
pessoas individuais ou grupos de pessoas individuais. Mas não é esse, de forma alguma, o caso
dos autos.

[Argumento: não consubstancia intrusão na vida privada, logo, não há violação do art. 126.º, do
CPP.]

(…)

De resto, digamos que a localização por GPS é o «irmão gémeo electrónico» do clássico
seguimento do alvo por pessoas a bordo de um carro. E que tem vantagens e desvantagens em
relação a este seguimento personalizado. A principal vantagem será o permanente acesso à
localização em que se encontra o carro-alvo. A desvantagem mais evidente será a de que,
apesar de em qualquer momento se saber aonde está o carro, se desconhecer por completo o
que é que o seu ocupante ou os seus ocupantes estão a fazer de concreto. Nesse aspecto, o
seguimento clássico, por permitir, além do mais, escrutinar quem vai no carro e o que fazem os
ocupantes pelo menos quando o carro pára, para onde vão quando saem dele e com quem
falam, é um método muito mais intrusivo e abrangente do que o mero conhecimento da
localização do carro, pelo que o GPS servirá sobretudo como meio coadjuvante do seguimento
clássico – o qual, aliás, também pode ocorrer 24 sobre 24 horas. E não é por isso que as
autoridades policiais precisam de obter uma autorização judicial prévia para fazerem o
seguimento de uma pessoa que vai num veículo automóvel.

[Argumento: entenderam estes juízos de que a localização GPS é menos intrusiva do que a
‘’perseguição clássica’’.]

(…)

III

Termos em que, concedendo provimento ao recurso, se decide revogar o despacho recorrido e


autorizar:

A)...; e

B) A colocação de localizadores GPS nos veículos utilizados pelo suspeito por forma a
controlar os seus movimentos e pelo tempo tido por necessário pelo orgão de polícia criminal
encarregue do inquérito.

CONCLUSÃO: os juízes do TR de Évora entenderam que este é um meio atípico admissível de


obtenção de prova, e que não carece sequer de autorização judicial.
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
Acórdão da Relação do Porto, de 21/03/201313

Sumário: A localização através da tecnologia GPS (Global Positioning System) está sujeita a
autorização judicial, aplicando-se, por interpretação analógica, o disposto no artigo 187.° do
Código de Processo Penal.

O Ministério Público requereu, em sede de inquérito, a autorização para «a colocação de


localizadores ‘’GPS’’ nos automóveis utilizados pelos suspeitos de virem a praticar eventuais
crimes de furto.». Este pedido foi indeferido, pelo que o MP interpôs recurso desta decisão,
«pedindo a revogação daquela decisão e sua substituição por outra que julgue admissível o por
si requerido, concluindo que:

1.º) (…) quem se dedica ao furto em residências e estabelecimentos alheios, com arrombamento
e escalamento, a coberto da noite, tem o cuidado de verificar com cuidado, permanentemente,
com a colaboração de coautores “vigilantes”, se estão ou não, a ser vigiados, pelo que
qualquer seguimento policial à distância se revela infrutífero, bem assim a consequente recolha
de prova; [não valia a pena segui-los, porque eles iriam dar-se conta do seguimento pelos OPC]

2.º) O método de colocação em veículo utilizado por suspeito da prática de furtos qualificados,
de localizador GPS, não sendo meio proibido de prova nos termos do artigo 126.º do C. P.
Penal e 32.º, n.º 8 da C. Rep., é admissível nos termos do artigo 125.º do C. P. Penal, desde que
devidamente autorizado e controlado judicialmente, por aplicação analógica do preceituado
nas disposições conjugadas dos artigos 4.º e 189.º, n.º 2 do C. P. Penal.

[não é um meio proibido de prova, porque seria possível fazer uma analogia com o art. 189.º,
nº2, respeitante à localização celular; havendo autorização, era permitido.]

Porém, o Tribunal da Relação, analisados os autos, decidiu «no sentido de que o recurso não
merece provimento.»

II. Fundamentação

- Art. 32.º, n.os 1 e 8, da CRP: “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa,
(…)”, (…) e no seu n.º 8, (…) “São nulas todas as provas obtidas mediante (…) abusiva
intromissão na vida privada, (…)”.

- Arts. 34.º e 35.º, n.º5 + art. 25.º, da CRP: “O domicílio e o sigilo da correspondência e dos
outros meios de comunicação privada são invioláveis (n.º 1), sendo “[É] proibida toda a
ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais
meios de comunicação, salvo nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal”.
Para o efeito e no que concerne à utilização da informática, estabelece no artigo 35.º, n.º 5 que
“É proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excecionais previstos na
lei”. Este bloco constitucional normativo, em conjugação com o disposto no artigo 25.º da
constituição, que estabelece o direito fundamental à integridade pessoal e física, é a afirmação
plena do princípio à integridade pessoal das pessoas, designadamente na dimensão de
preservação da reserva da sua vida privada e contra a obtenção e utilização abusiva da
informação em relação a essas mesmas pessoas.

13
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/
b0fa2aa7d8fa4ce780257b4900518387?OpenDocument
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Arts. 18.º, n.º 2, da CRP: “A Lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos
expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, veio dirigir um
princípio de intervenção mínima na contrição dos direitos fundamentais e nas liberdades
públicas, assim como nos respectivos mecanismos jurídicos que os asseguram. Mas também
daqui resulta um nítido princípio da proporcionalidade, nas suas três variantes: da idoneidade
ou adequação (i), da necessidade ou exigibilidade (ii), ambos respeitantes à optimização
relativa do que é factualmente possível, e da proporcionalidade em sentido estrito ou da justa
medida (iii), o qual se reporta à optimização normativa.»

- «são objetos de prova “todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou


inexistência do crime” (124.º, n.º 1), estabelece o princípio da legalidade da prova, ao
consagrar no seu artigo 125.º que “São admissíveis as provas que não forem proibidas por
lei”. Não existe, no entanto, um regime de tipicidade de meios de prova nem de obtenção de
prova, podendo, por isso, as mesmas estar ou não indicadas no Código de Processo Penal, (…)
havendo até regimes específicos de obtenção de prova (…).

- Prova proibida: (…) o Código Processo Penal estabelece um catálogo de métodos proibidos
de prova no subsequente artigo 126.º, preceituando-se que “(…) são igualmente nulas, não
podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio,
na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular” (n.º
3).

(…)

- Também o regime jurídico para a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de


localização relativos a pessoas singulares (…), para fins de investigação, detecção e repressão
de crimes graves por parte das autoridades competentes (…), define dados como sendo “os
dados de tráfego e os dados de localização, bem como os dados conexos necessários para
identificar o assinante ou o utilizador” (…). Para o efeito de acesso a esses dados passou a
ficar expresso que “A transmissão dos dados às autoridades competentes só pode ser ordenada
ou autorizada por despacho fundamentado do juiz, nos termos do artigo 9.º”. Assim, dispõe-se
neste artigo 9.º que “A transmissão dos dados referentes às categorias previstas no artigo 4.º
só pode ser autorizada, por despacho fundamentado do juiz de instrução, se houver razões
para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria,
de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e
repressão de crimes graves” (n.º 1). (…) Mais se consignou que “A decisão judicial de
transmitir os dados deve respeitar os princípios da adequação, necessidade e
proporcionalidade, designadamente no que se refere à definição das categorias de dados a
transmitir e das autoridades competentes com acesso aos dados e à protecção do segredo
profissional, nos termos legalmente previstos” (n.º 4), sendo certo que “O disposto nos
números anteriores não prejudica a obtenção de dados sobre a localização celular necessários
para afastar perigo para a vida ou de ofensa à integridade física grave, nos termos do artigo
252.º-A do Código de Processo Penal” (n.º 5). Nestes casos de autorização o juiz deve sempre
proceder à comunicação da sua decisão, através da aplicação informática denominada
“sistema de acesso ou pedido de dados às operadoras de comunicações” (SAPDOC),
especificamente disponibilizada para o efeito (….).
(…) Mas já se sustentou que o uso de localizador GPS (…) pelos órgãos de polícia criminal,
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colocados em veículos de pessoas investigadas em inquérito, não está sujeito a autorização
judicial, considerando este sistema como um “irmão gémeo electrónico do clássico seguimento
do alvo de pessoas a bordo de um carro” (…). [no Acórdão referido anteriormente]

- Não cremos no entanto que a clássica vigilância convencional de seguimento seja equivalente
à localização através do localizador GPS e à sua monitorização, através do registo dos
respectivos dados, porquanto esta última permite traçar o perfil detalhado da vida pública e
privada de uma pessoa, como ainda recentemente foi sublinhado (…). - Por outro, lado não
faria sentido que apenas fosse sujeita a autorização judicial a localização celular através dos
dados telefónicos e já não o fosse o acesso a dados de localização através do mecanismo GPS,
uma vez que se tratam de dados sensíveis, que dizem respeito à vida íntima e encontram-se no
âmbito do direito fundamental à autodeterminação informativa.
- Nesta conformidade e sempre que esteja em causa a localização através da tecnologia GPS
(…) a mesma deve ser sujeita a autorização judicial, aplicando-se, por interpretação
analógica, o disposto no artigo 187.º do Código de Processo Penal.
No caso em apreço (…) este quadro factual é muito incipiente para que, de modo proporcional
e razoável, se possa determinar a pretendida autorização para se colocar uma localização GPS
em veículos automóveis, os quais até estão indeterminados.

CONCLUSÃO: Verificamos aqui uma posição oposta ao Acórdão anterior, na medida em que
se lança mão da analogia com a localização celular (do art. 189.º, do CPP), dizendo que esta é
admissível em última ratio, havendo sempre necessidade de autorização judicial. Diz-se ainda
que o GPS é um método ainda mais intrusivo do que o seguimento clássico (contrariamente ao
acórdão anterior), por se tratar de um método oculto de obter prova - a pessoa não sabe que lá
está o localizador -, consubstanciando-se uma intrusão na vida privada - pois conseguem-se
dados muito concretos da vida privada da pessoa, como em que dia, hora, onde e durante quanto
tempo esteve o suspeito em certo sítio.

Acórdão da Relação de Lisboa de 13/04/2016

[O acórdão é extremamente extenso; estará tudo resumido]

Os arguidos eram trabalhadores de um hotel (mais concretamente, tinham acesso às dispensas


do mesmo, e faziam o transporte de produtos aquando da prestação de serviços deste) e a
entidade empregadora considerava que estes estariam há algum tempo a cometer crimes de fruto
contra si. Assim, contrataram uma empresa para colocar o GPS nas viaturas do próprio hotel.
Chegaram à conclusão de que as suas suspeitas se confirmavam. Assim, poderiam os registos do
GPS serem utilizados como prova? O meio de prova era proibido, ou não? Vejamos.

Sumário: (…)

XVIII–A questão que se coloca é a de saber se um meio de obtenção de prova com estas
características, que não se confunde nem se equipara à intercepção das comunicações, é, entre
nós, permitido, dada a ausência de lei que legitime a sua utilização, delimite os crimes que a
admitem, estabeleça o procedimento a adoptar e fixe a competência para autorizar o seu uso
e controlar todo o procedimento que tiver lugar.

XIX–A resposta a esta questão deve ser negativa, em primeiro lugar porque um aparelho de
geolocalização, no caso, um “GPS tracker”, é um meio oculto de investigação que, por isso
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Ano Letivo 2020/2021

mesmo, só poderia ser admitido se existisse lei que o consagrasse como um meio de obtenção
de prova legítimo e regulasse todos os referidos aspectos do seu regime.

[tratando-se de um método oculto de obtenção de prova, tem sempre de ser regulado por lei.]

XX–Não se compreenderia que a localização celular de um telemóvel estivesse sujeita aos


apertados limites traçados pelos artigos 252.º-A e 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e a
geolocalização através de meios muito mais precisos fosse admitida sem qualquer limitação e
sem controlo.

[Ou seja, entendeu-se que é diferente da localização celular; não podemos lançar mão do art.
189.º, do CPP]

XXI–A utilização destes aparelhos, pelo sistemático e permanente registo de dados que
propicia, cujo tratamento permite, e pela natureza dos mesmos, é susceptível de violar a vida
privada dos utilizadores dos veículos em que se encontrem instalados.(…)

XXIV–Por tudo isto, e não obstante o facto de a prova assim obtida não ter resultado da
actividade dos órgãos de polícia criminal, deve entender-se que é proibida a valoração dos
registos obtidos através dos dois geolocalizadores instalados pela assistente nos seus veículos
sem consentimento os utilizadores dos mesmos, nem autorização da CNPD. É o que resulta do
artigo 32.º, n.º 8, da Constituição e do artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

XXV–A utilização dos dois geolocalizadores nas indicadas condições determina, como se disse,
a proibição de valoração dos registos através deles obtidos, podendo também «contaminar a
restante prova se houver um nexo de dependência cronológica, lógica e valorativa entre a
prova proibida e a restante prova. (…)

Discussão da questão:

GPS, meio oculto de investigação, não regulado a lei. 1.º É admissível? 2.º Sendo
admissível, tem ou não tem de haver autorização judicial?

A Doutora considera que, efetivamente, o grande problema é ainda não estar no direito
positivado a admissão de utilização de GPS. E porquê? Porque são restringidos direitos,
liberdades e garantias, sem uma lei que suporte essa restrição. Nos termos do art. 18.º, n.º 2, da
CRP, os direitos fundamentais só podem ser restringidos por via de lei / reserva de lei. Assim,
este meio de obtenção de prova, por ser altamente intrusivo na vida privada, tem de estar
regulado. Por exemplo, as escutas telefónicas ou a localização celular só são admissíveis dentro
dos requisitos apertados do art. 187.º, do CPP (estipula-se um catálogo de crimes em relação aos
quais são admissíveis as escutas telefónicas, e há um conjunto de pressupostos como: quem é
que pode ser escutado, em que circunstâncias estas podem ser feitas, como é que são transcritas,
com que periodicidade são levadas ao juiz de instrução, etc. - e mesmo assim muitos problemas
colocam-se em relação a estas). Por outro lado, apesar de o legislador vir fazer uma extensão
das escutas telefónicas à localização celular, já vimos que são coisas diferentes. COSTA
ANDRADE «Nem tudo o que é tecnologicamente possível, é processualmente admissível».

Trata-se de um meio intrusivo, que põe em causa a privacidade das pessoas, e não pode ser
utilizado lançando-se mão do argumento da analogia.
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
E se, mesmo assim, for utilizado o meio na investigação? Correm o risco se a prova ser
proibida, e todo o material que foi levado para o processo será nulo, não podendo ser utilizado.
A partir daí, deixamos de ter prova. Métodos de obtenção de prova proibidos, levam a provas
proibidas, nulas, que não podem ser utilizadas.

CONCLUSÃO: No fundo, o que está em causa quando questionamos a admissibilidade do


GPS (ou não), é verdadeiramente questionar se são ou não colocados em causa direitos
fundamentais do arguido.

Proibições de prova vs. regras de produção de prova

O princípio da legalidade da prova, consagrado no art. 125.º, do CPP, reconduz-nos ao


problema das proibições de prova. O nosso legislador constitucional ocupou-se, diretamente, da
matéria relativa às proibições de prova no art. 32.º, n.º 8, da CRP: «são nulas todas as provas
obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva
intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações».

 Porque é que é assim? Quais os fundamentos axiológicos ou político-constitucionais que


justificam esta norma do art. 32.º, n.º 8, da CRP, e em que se sustenta todo o edifício
normativo das proibições de prova?

1. Projeta-se no regime jurídico das proibições de prova a tutela da inviolabilidade dos direitos
fundamentais em face do interesse da investigação e da perseguição penal.

- previstos na Constituição: entre os direitos protegidos pelas proibições constitucionais em


matéria de prova, encontram-se, desde logo, a integridade física e moral da pessoa, a intimidade
da vida privada e familiar, a inviolabilidade do domicílio, o sigilo da correspondência e das
comunicações.

- doutrina e jurisprudência: porém, além destes, há também outros tutelados por via das
proibições de prova, e que vêm sendo autonomizados a partir de um labor doutrinal e
jurisprudencial, partindo da ideia da dignidade da pessoa. Ex.: direito à imagem, à palavra, à
autodeterminação informacional, e o direito à integridade e confidencialidade dos sistemas
informáticos14 Logo, os direitos fundamentais não são apenas que estão descritos como tal na
Constituição, não havendo numerus clausus deles na CRP.

 Por tudo isto se afirma que o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, da CRP) e
o direito à integridade pessoal (art. 24.º, da CRP), configuram afinal a verdadeira matriz
axiológica e material de todo o regime das proibições de prova.

Neste contexto, na tutela conferida aos direitos fundamentais enquanto limitação à produção de
prova, radica a posição do arguido enquanto sujeito processual. Podemos, aliás, dizer que o
étimo comum de muitos meios de prova proibidos pelo legislador reconduz-se à ideia
fundamental de que a participação ativa do arguido na descoberta da verdade tem de estar
sempre sujeita ao integral respeito pela sua decisão de vontade. Ex.: é por isso que se recusa o
recurso à hipnose, tortura, etc.

2. Por outro lado, o substrato da proibição de determinados meios de prova, pode ainda
encontrar-se numa ideia da preservação da integridade moral ou axiológica do Estado. Emerard
14
mais à frente iremos ver a diferença entre estes dois últimos.
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
Smith diz que se trata de ‘’preservar a própria superioridade ética do Estado’’. Então, a
justificação para que determinados meios de prova sejam proibidos, radica também numa ideia
de preservação da integridade moral ou axiológica do estado, na sua veste de administrador da
justiça penal.

Embora a obtenção de prova e o esclarecimento dos crimes assumam, no Estado de Direito, uma
grande importância, a verdade é que as instâncias de perseguição criminal não podem responder
à criminalidade com as mesma armas de que se servem os delinquentes na prossecução dos seus
objetivos (na prática dos crimes). Por isso, não podem admitir-se como válidos na perseguição
criminal todos os mecanismos que se comprovem eficazes nessa perseguição; a confiança
comunitária nas normas implica que a máxima eficácia na administração da justiça não
comprometa uma ideia de lealdade na realização do ius puniendi. É por isso que se
compreendem todas as cautelas e pressupostos associados (ou seja, o seu ‘’aperto’’) à
admissibilidade de métodos ocultos de investigação, como por exemplo, o caso das escutas
telefónicas. Desta perspetiva, e resumidamente, podemos dizer então que o regime das
proibições de prova, não protege apenas o titular dos direitos fundamentais atingidos, mas
também a própria credibilidade, reputação e imagem de um processo penal de um verdadeiro
Estado de Direito.

3. Por último, não são também estranhas à disciplina dos métodos proibidos de prova,
considerações epistemológicas de veracidade do processo de determinação dos factos. Estas tais
razões relacionadas com as considerações epistemológicas de veracidade do processo de
determinação dos factos, leva a que se deva afastar ex ante do horizonte do tribunal todas as
provas marcadas com o estigma da dúvida, assegurando-se a fiabilidade ou a validade racional
das informações obtidas e circunscrevendo, deste modo, preventivamente o eventual risco de
erro em sede de valoração das provas.

Ex.: é isto que sucede com as regras relativas ao reconhecimento de pessoas, onde a produção
de prova segue um determinado processo relacionado com a própria veracidade /fiabilidade
epistemológica da prova obtida. Outro exemplo é a exclusão do valor probatória das declarações
de um coarguido em prejuízo de outro, nos casos em que o declarante se exima à prestação de
esclarecimentos ou ao contraditório (art. 345.º, n.º 4, do CPP) - pois no caso de haver
coarguidos, não podem valer como meio de prova as declarações prestadas por um, em prejuízo
de outro, se o declarante não quiser ele mesmo responder às perguntas sobre os factos que lhe
são imputados [senão isto seria muito simples! No caso de haver vários arguidos, um deles
recuava-se a responder sobre os factos que lhe são imputados, e a dar eventuais esclarecimentos
sobre esses factos, mas ao mesmo tempo prestava declarações prejudicando o outro arguido; a
ideia é afastar, à priori, provas que possa ser duvidosa].

CONCLUSÃO: Assim, aquilo que podemos reconduzir ao fundamento axiológico e político-


criminal da norma das proibições de prova (art. 32.º, n.º 8  que depois dá origem ao art. 126.º,
do CPP), são estas três ideias fundamentais.

Por outro lado, temos sempre a finalidade da realização da justiça e da descoberta da verdade
material, que vai ao encontro da ideia da eficácia da investigação criminal, que é obviamente
interesse fundamental da comunidade.

[ou seja, por um lado temos as 3 ideias que referimos, e do outro lado, a ideia da eficácia da
investigação criminal como interesse fundamental da comunidade].
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 A distinção, mais concretamente, entre proibições de prova vs. regras de produção de


prova / regras processuais probatórias

Proibições de prova

Entre nós, como vimos anteriormente, tem-se entendido que estas constituem não só
instrumentos de proteção de direitos individuais, mas também instrumentos de proteção de
interesses de caráter supraindividual, representados pelo Estado e que ultrapassam a esfera
jurídica do arguido. Por isso, como acentuam alguns autores alemães (Ghoshal), as proibições
de prova são barreiras colocadas à determinação dos factos que constituem o objeto do
processo. No fundo, uma proibição de prova é uma prescrição de um limite à descoberta da
verdade.

Atualmente, há diversas classificações quanto ao caráter proibido da prova - isto é, quanto a


saber ‘’porque é que uma prova é proibida’’ ou ‘’em que casos não é admitida’’ - mas podemos
indicar três pontos de vista essenciais a este propósito:

1. O caráter proibido da prova pode advir de uma proibição de obter prova sobre determinado
acontecimento, isto é, pode tratar-se de uma proibição de obter prova sobre um certo
acontecimento. É o que o habitualmente se designa como «proibição do tema de prova». É o
que acontece, por exemplo, sob factos que são objeto do segredo de estado (art. 137.º, n.º1, do
CPP).

2. Pode advir ainda da proibição de utilização de um certo meio de prova. Ex.: é aproveitado
um testemunho de um descendente, quando este expressamente se recuse a prestá-lo (art. 134.º,
n.º 2, do CPP) - aqui, se a pessoa não tiver sido advertida dessa possibilidade de recusa de
prestação de depoimento, o depoimento tratar-se-á de um meio de prova proibido e,
consequentemente, a prova é proibida. Não se pode utilizar como meio de prova as declarações
de pessoa que poderia ter recusado ou que se recusou a prestar declarações.

3. A prova proibida pode advir também da proibição de um certo método de prova. Estão os
casos do art. 126.º, do CPP, designadamente, por exemplo, um interrogatório que é feito com
utilização de tortura. Neste caso, está em causa um método proibido de obtenção da prova, que
torna a prova também ela proibida.

Esta classificação tripartida é a que reúne maior consenso.

Ora, a violação de qualquer uma destas fontes de prova, isto é, desta proibição de obter prova
sob determinados factos, ou a violação da proibição de utilização de um certo meio de prova, ou
a violação da proibição de um certo método de obtenção de prova, leva, em princípio, à
proibição da valoração processual da prova alcançada.

Regras de produção de prova

As regras de produção de prova visam apenas disciplinar o procedimento exterior da realização


da prova na diversidade dos seus meios e métodos. Do que aqui se trata não é de estabelecer
limites à prova, como sucede com as proibições de prova, mas sim de disciplinar os processos e
os modos como a prova dos factos deve ser realizada.

Por isso, a violação das regras de produção de prova não acarreta, em regra, a proibição da
valoração da prova produzida; pode acarretar eventual responsabilidade disciplinar civil ou até
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criminal do autor da infração, ou a invalidade do ato processual correspondente – se as
irregularidades não forem arguidas, consideram-se sanadas (art. 123º CPP).

 Exemplos de violação das regras de produção de prova: quando não se cumprem as


regras prescritas no art. 341.º, do CPP, sobre a ordem de produção de prova na
audiência de julgamento. Outro exemplo é o de uma revista que não respeite o pudor do
visado (art. 175.º, n.º 2, do CPP). Por último, imaginemos que é feita uma prova
pericial, e o relatório pericial não é devidamente comunicado ao arguido, ficando este
impedido de requerer os esclarecimentos ao perito (art. 157.º, n.º1, do CPP) - há uma
violação no âmbito das regras de produção, mas a prova pericial continua, em si mesma,
a ser valorada pelo juiz15.

EM CONCLUSÃO: esta distinção, em termos práticos, é complicada, tendo gerado conflitos.


Por exemplo:

a) no caso de o arguido não ser previamente informado do seu direito ao silêncio (pois
há um dever de informação e advertência sobre o direito ao silêncio, que assiste ao arguido
quanto aos factos que lhe são imputados e que conforma o seu estatuto processual penal),
estamos perante uma verdadeira proibição de prova, ou apenas perante uma violação de uma
regra de produção de prova?

R.: Tem-se entendido (COSTA ANDRADE e SÓNIA FIDALGO) que esta omissão de
esclarecimento e advertência põe em causa o próprio estatuto do arguido enquanto sujeito
processual, frustrando a ideia fundamental de que a participação ativa do arguido na descoberta
da verdade deve passar sempre pela sua liberdade. Atentemos no art. 58.º, n.º 5, do CPP, o qual
diz expressamente que «A omissão ou violação das formalidades previstas nos números
anteriores [relativas à constituição de arguido] implica que as declarações prestadas pela
pessoa visada não podem ser utilizadas como prova» (mas não diz expressamente que são
nulas! Não é clara). Concluindo, deve ser integrado nas proibições de prova.

Consequências do desrespeito pelo princípio da legalidade da prova - consequências da


utilização de prova proibida

Como vimos, a lei não é clara quanto à violação deste princípio: por vezes estipula só a
nulidade, noutras vezes estabelece que essa prova não pode ser utilizada e noutros casos declara
que é nula e não pode ser utilizada.

Ora, por força do art. 32.º, n.º 8, da CRP, e também no art. 126.º, n.os 1 e 3 do CPP, o
desrespeito pelo princípio da legalidade da prova tem como consequência a nulidade das provas
obtidas através de métodos proibidos, não podendo as mesmas ser utilizadas.

Uma correta interpretação do art. 32.º, n.º 8, da CRP, permite autonomizar duas espécies
diferenciadas de provas proibidas, consoante a natureza dos direitos fundamentais em causa:
«são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou
moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou
nas telecomunicações».
15
Por regra, estas violações não constituem verdadeiras nulidades, mas sim meras irregularidades. Se não
forem arguidas, são consideradas sanadas nos termos do art. 123.º, do CPP. As nulidades são as
expressamente previstas, sendo que todas as irregularidades não previstas, são apenas irregularidades.
Não iremos explorar esta matéria (invalidades, irregularidades).
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Ano Letivo 2020/2021

 Na primeira parte da norma, estabelece-se, sem mais, a nulidade de todas as provas obtidas
mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa; na segunda parte da
norma, alude-se às provas obtidas com intromissão na vida privada, no domicílio, na
correspondência ou nas telecomunicações.

 Já na segunda parte, alude-se às provas obtidas com intromissão na vida privada, no


domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. Estas distinguem-se das primeiras pela
circunstância de, em relação a elas, a proibição só existir se a intromissão se revelar abusiva.
Esta qualificação de abusiva só surge na norma constitucional a circunscrever a área de tutela
constitucional dos direitos da privacidade, domicílio, correspondência e comunicações.

Deste modo, as proibições que se reportam à violação do direito à integridade pessoal são
proibições absolutas, não há forma de as contornar. Nestes casos, a proibição constitucional não
abre espaço para qualquer conformação por parte do legislador ordinário.

Nos outros casos (da segunda parte) as proibições são relativas, ou seja, só já verdadeira
proibição se a restrição dos direitos for abusiva. E será ao legislador ordinário que competirá a
demarcação das formas de intromissão não abusivas e consequentemente é a este legislador que
compete a definição do estatuto jurídico, nomeadamente do estatuto processual penal, destas
formas de intromissão não abusivas nos direitos fundamentais. Desta diferenciação
constitucional resulta uma dualidade de regimes. Esta dualidade exprime-se desde logo na
autorização constitucional concedida ao legislador ordinário para tipificar como válidos certos
meios de aquisição de prova que prima facie são conflituantes com alguns daqueles direitos. É o
que acontece entre nós se pensarmos, por exemplo, nas buscas domiciliárias e nas escutas
telefónicas. Para além disso, a referida diferenciação de regimes repercute-se também na
relevância ou não do consentimento prévio do visado como clausula dirimente da ilicitude do
método de obtenção de prova.

Nos casos referidos no artigo 126.º, n.º2, do CPP, os métodos são proibidos mesmo quando
obtidos com consentimento do titular. Já nos casos previstos no artigo 126.º, n.º3, do CPP os
métodos apenas são proibidos se obtidos sem o consentimento do titular.

Esta dualidade não se repercute, porém, numa diferenciação das consequências ao nível do
regime da invalidade dos tipos de proibição de prova. De acordo com a lei, as provas obtidas de
acordo com os métodos proibidos, quer sejam através do 1 e 2 … estas provas são nulas, não
podendo ser utilizadas. À sanção da nulidade acresce a proibição da valoração da prova obtida
através dos métodos proibidos: A lei diz “são nulas não podendo ser utilizadas”. Há casos,
porém, em que são identificáveis proibições de valoração da prova sem que a lei comine
também a sanção da nulidade (Ex.: art. 58.º, n.º6). E, por outro lado, o art. 118.º/3, do CPP,
estabelece expressamente que as disposições sob nulidades não prejudicam as normas do código
relativamente a proibições de prova. Como interpretar este artigo? Ora, a expressão «tais
normas não prejudicam outras» indica um problema de interpretação. Isto significa o quê? Que
as regras das nulidades prevalecem sobre as outras? Que afinal as outras é que prevalecem sobre
as das nulidades? Ou que os dois regimes devem compatibilizar-se, harmonizando-se os dois
regimes?

A questão irá ser analisada na próxima aula.

Aula 14/04
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
Todo este regime das nulidades no âmbito das proibições de prova não iremos analisar a fundo
e, como tal, não sairá em exame qualquer questão para explicar este regime. Temos de saber que
a consequência de uma violação de prova é a nulidade, e que não podem ser utilizadas.

Podemos encontrar uma espécie de dualidade de regimes no domínio das proibições de prova:
quando há proibição absoluta ou quando a proibição é relativa.

Qual é a consequência da violação de uma proibição de prova? O próprio artigo 126º estabelece
que as provas são nulas e que não podem ser utilizadas. Há certos casos em que o legislador
define uma proibição de valoração sem que comine a sanção da nulidade – como quando no ato
de constituição do arguido não é acompanhado da comunicação do direito de silêncio.

O art. 118.º, n.º 3 do CPP estabelece que «As disposições do presente título [sobre as nulidades]
não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova». Como interpretar
esta norma? Quando uma determinada norma diz que não prejudica o outro regime, sabemos
que vai dar azo a dificuldades de interpretação. Vamos então ver qual é a interpretação que tem
dominado.

A. Há uma corrente que entende que, desta norma, resulta uma total independência do regime
das proibições de prova em relação ao regime geral da invalidade dos atos processuais (regulado
nos art. 118.º e ss, do CPP).16

Assim, para estes autores, os arts. 118.º e ss, do CPP, não serão aplicáveis em matéria de
proibições de prova. A nulidade referida no art. 32.º, n.º 8, da CRP e no art. 126.º, do CPP, não
consubstancia uma nulidade em sentido técnico-processual, gerando antes uma consequência
jurídica específica que é a impossibilidade total de utilização das provas obtidas. Deste
entendimento resulta que, havendo uma proibição de prova, tal prova não pode ser utilizada
(oura e simplesmente) independentemente de qualquer tomada de posição do arguido. O
tribunal tem o poder-dever de oficiosamente declarar a verificação de proibição de prova, e dela
extrair a consequência da proibição da respetiva valoração.

B. Outra corrente17 - a maioritária na jurisprudência -, defendem que entre o regime das


proibições de prova e o das invalidades processuais, existe uma certa autonomia, bem como
certos pontos de contacto. Ora, entre estes autores, não há um absoluto consenso quanto aos
termos em que os dois regimes se vai aplicar às condições de prova. Porém, a ideia geral é a de
que a produção de uma prova proibida terá os efeitos de uma nulidade insanável, incluindo, por
isso, a possibilidade de conhecimento oficioso até ao trânsito em julgado da decisão final.
Atualmente, prevê-se no art. 449.º, n.º, al. e), do CPP, que é fundamento do recurso
extraordinário de revisão a descoberta que de «serviram de fundamento à condenação provas
proibidas nos termos dos n.os 1 a 3 do artigo 126.º.». O certo é que a CRP, no próprio art. 32.º,
n.º 8, da CRP diz que as provas são nulas, bem como no art. 126.º, do CPP.

Não taxatividade das provas proibidas

Temos estado a dizer os artigos 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º, do CPP preveem os métodos
proibidos de prova, mas este elenco não é taxativo.

16
Vide TERESA BELEZA, JOÃO CORREIA, HELENA MORÃO
17
De onde se destacam COSTA ANDRADE, GERMANO MARQUES DA SILVA, PAULO DE SOUSA
MENDES
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O artigo 126.º, do CPP não se apresenta como um catálogo fechado, que tipifique um numerus
clausus de provas proibidas. O reconhecimento de uma proibição de prova não depende da sua
previsão legal expressa. Para alem dos métodos proibidos elencados no art. 126.º, do CPP e de
outros que se encontram ao longo do CPP (por exemplo, art. 58.º, n.º5; art. 129.º, art. 147º, n.º7;
art. 190.º; art. 345.º, n.º4 e art. 355.º, n.º1, todos do CPP), a doutrina e a jurisprudência poderão
reconhecer outras proibições de prova. Tal deve ser feito sempre que o método utilizado
implicar uma intromissão injustificada nos direitos fundamentais do arguido ou de outras
pessoas, designadamente, nos casos em que há uma afronta (injustificada) à dignidade humana
ou à integridade pessoal.

Distinção entre proibição de obtenção de prova vs. proibição de valoração da prova

A doutrina e a jurisprudência costumam autonomizar o momento da produção ou recolha da


prova, do momento da sua valoração. A partir daqui distinguimos, então, entre proibição de
obtenção de prova e proibição de valoração da prova.

A regra é a de que a prova ilicitamente produzida ou recolhida não pode ser valorada , ou seja,
de uma proibição de prova, por regra, decorre a proibição de valoração da prova. Contudo, a
própria lei consagra uma exceção a proibição da valoração prescrita nos números 1, 2 e 3 do art.
126.º, do CPP. Vejamos o n.º 4: «Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste
artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os
agentes do mesmo.». Exemplo: a polícia lança mão da tortura para obter provas; as provas
obtidas podem ser utilizadas no processo-crime em que o objeto seja o crime da própria tortura.

Assim, nos termos deste artigo, as provas obtidas mediante os métodos proibidos, podem ser
valoradas para proceder contra os agentes que praticaram crimes ao utilizar tais métodos. Esta
exceção à proibição de valoração em por isso uma intenção dissuasora e preventiva, e vale quer
quando os métodos proibidos são realizados por particulares, quer quando são utilizados pelas
autoridades públicas de investigação e julgamento (estes não têm qualquer estatuto especial,
nem qualquer imunidade quando se trata de ilícitos criminais no exercício das suas funções).
Exemplos de provas obtidas através dos métodos do art. 126.º, por regra, implicam a prática de
crimes de coação, ou de ameaça, de ofensa à integridade física, etc.  o n.º 4 indica que as
provas obtidas mediante estes métodos proibidos (ou seja, praticando-se estes crimes) podem
ser valorada, no âmbito de um processo-crime relacionado com a utilização dos próprios
métodos proibidos, pois o agente pode vir a ser punido pela prática de um daqueles crimes. Esta
é a exceção à regra de que à proibição de prova corresponde uma proibição de valoração.

Para além desta exceção do art. 126.º, n.º 4, do CPP, por regra, a uma proibição produção de
obtenção prova, corresponde a proibição de valoração. Porém, esta ligação é apenas tendencial,
ou seja, é possível identificar casos em que não há uma absoluta consonância entre um
momento e outro, no sentido de podermos afirmar que uma prova licitamente obtida é sempre
licitamente valoravel - ou inversamente, que uma prova ilicitamente obtida nunca é suscetível
de valoração.

- Licitamente obtida  mas não pode ser, sem mais, licitamente valoravel

1. Diários pessoais - Ac. TC n.º 607/200318 [LER]

18
Vide pág. 4
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
Tratava-se de saber se podíamos valorar o conteúdo do diário para efeito de saber se estavam
reunidos os pressupostos para aplicação de uma medida de coação de prisão preventiva (isto é,
fortes indícios da prática do crime, art. 202.º, e se poderiam fundamentar as alíneas do art.
204.º, do CPP). Este diário foi apreendido licitamente, no decurso de uma busca válida, tendo
sido devidamente autorizada pelo juiz de instrução; logo, a sua forma de obtenção não foi
nenhuma das tipificadas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 126.º, do CPP. Colocou-se a
questão de saber se poderia ser utilizado o diário, mesmo sendo validamente produzida a prova.

Ora, estariam em conflito o direito à privacidade do arguido e a realização da justiça e


descoberta da verdade material.

O TC admitiu não ser admissível esta intromissão na privacidade sem que faça uma ponderação
à luz dos princípios da necessidade e da proporcionalidade sobre o conteúdo, em concreto, dos
diários em causa. A intromissão do direito à privacidade é admissível em casos raros, depois de
feita esta ponderação. Não é pelo facto de o diário ter sido validamente obtido que significa,
necessariamente, que o seu conteúdo possa ser valorado sem mais.

- Ilicitamente obtida  mas mesmo assim pode ser licitamente valoravel

Há casos em que se tem entendido que uma prova proibida pode ser valorada, quando ela for
favorável ao arguido. Porquê? Porque a valoração desta prova pode / poderá implicar uma
absolvição do arguido ou um aligeiramento da sanção.

 Certos autores defendem uma geral valoração das provas proibidas favoráveis ao
arguido.

 Outros, porém,19 entendem que essa possibilidade de valoração de prova proibida,


em benefício do arguido, deve existir apenas em casos excecionais. Exemplo: pode acontecer
que a produção de uma prova configure um ilícito penal, mas que seja valorada num processo
penal. Vejamos o casos do depoimento de uma testemunha que está vinculada a sigilo
profissional, como médicos, advogados, etc. Ora, imaginemos que, convocado como
testemunha num processo penal, um médico presta um testemunho em que viola o dever de
segredo médico-paciente, referindo que a pessoa em causa é portadora de HIV. Tem-se
discutido muito se esta violação de segredo - que constitui crime nos termos do art. 195.º, do
CP. Entendendo-se que sim (que se trata de uma prova proibida), uma outra questão se coloca:
pode ou não ser valorada?

 Tem-se defendido que se se pretender valorar a prova para sustentar a condenação do


arguido, não é admissível, pois a condenação não deve ser sustentada numa prova
proibida.
 Por outro lado, deve admitir-se a valoração na medida em que tal se revelar necessário
para garantir a absolvição de um arguido (isto é, se for o único meio de garantir a sua
absolvição do arguido, enquanto inocente).

Um aparte: temos no art. 135.º, do CPP, regras especiais que se aplicam a testemunhas que estão
vinculadas às testemunhas vinculadas ao dever de segredo. Nos casos deste artigo, é o próprio

19
COSTA ANDRADE: defende que a prova proibida pode ser valorada quando essa valoração
representar a única possibilidade de absolvição de um inocente. A Doutora SÓNIA concorda.
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
tribunal superior, ponderando valores, que determina a quebra de segredo. Ora, é importante
fazer esta ressalva porque é diferente do que referimos, ou seja, casos em que a própria pessoa
decide quebrar o segredo.

DR. FIGUEIREDO DIAS20: questiona a ideia quase unânime na doutrina portuguese de que,
por regra, a uma proibição de prova corresponde uma proibição de valoração. No fundo,
questiona se tem sempre de ser assim. Pergunta se, no domínio das proibições de valoração, não
se pode admitir que se faça uma ponderação de valores conflituantes. Este autor recusa o caráter
absoluto das proibições de prova, questionando se não deverá ser feita uma ponderação com
base na ideia da «concordância prática dos interesses em conflito»: por um lado, a realização da
justiça e a descoberta da verdade material, por outro, a proteção dos direitos fundamentais das
pessoas21. O Doutor não oferece uma resposta, mas apenas levanta a questão.

EM SUMA: há várias posições diferentes, e não existe uma teoria geral em matéria de
proibições de prova.

Efeito à distância das proibições de prova

Um outro problema delicado e complexo é o problema do efeito à distância / efeito remoto /


teleefeito da provas proibidas. A questão que se coloca é a de saber se a impossibilidade de
utilização que incide sobre a prova primária, imediata ou direta, se vai transmitir aos meios
probatórios secundários, mediatos ou indiretos, de forma que a proibição de valoração se
estenda a todas as provas que só foram alcançadas por força daquela ilegalidade inicial.
Trata-se, no fundo, de saber se é possível, e em que condições será possível, utilizar como prova
válida uma prova recolhida ou produzida na sequência de uma prova proibida.

Foi nos EUA que a questão foi, primeiramente, identificada, e foi aí que esta questão conheceu
maiores desenvolvimentos através da denominada «Teoria dos frutos da árvore venenosa».

Em PT, por regra, tanto na doutrina, como na jurisprudência nacionais, reconhece-se que, por
princípio, uma prova que só foi conseguida à custa de uma anterior violação de uma proibição
de prova, fica também ela contaminada por essa mácula anterior e, por isso, não poderá ser
valorada como prova para fundamentar a decisão do tribunal em matéria de facto. Porquê?
Porque só deste modo as proibições de prova podem aspirar a um mínimo de eficiência e de
poder de persuasão sobre quem conduz a investigação criminal.

Assim, a regra é esta: se concluirmos que só se chegou / alcançou um determinado meio de


prova a partir de uma violação anterior de uma proibição de prova, deve considerar-se proibida
a prova sequencial / derivada / mediata / indireta.

 Exemplos:
o através de tortura a polícia consegue obter do arguido, suspeita da prática de um
crime de homicídio, a confissão sobre a localização do cadáver. Encontrado o
cadáver, descobrem-se vestígios que provam que o arguido daquele processo
esteve envolvido no crime de homicídio em mãos. Os vestígios podem ser

20
Ver artigo disponibilizado no inforestudante (revista de legislação de jurisprudência).
21
Esta ponderação tem sido feita, nos últimos anos, pelos próprios tribunais alemães, mesmo quando se
trata de provas proibidas. A valoração da prova em casos muito amplos pode pôr em causa os DF’s dos
arguidos.
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
valorados, tendo sido encontrados na sequência de utilização de tortura? tortura
 indicou o cadáver  no cadáver encontram-se os vestígios de sangue do
arguido. O mesmo se poderia dizer quanto à arma do crime (meio de prova).
o Por intermédio de escutas telefónicas ilegais tomou conhecimento de que os
arguidos estavam a transportar estupefacientes. São intercetados, descobre-se a
droga, e apreendida. Será que a droga pide valer como meio de prova no âmbito
de um crime de tráfico de estupefacientes? Ver Ac. TC n.º 192/2004.

DOUTRINA:

- Dominante: o efeito à distância (proibição de valoração das provas sequenciais) encontra a sua
justificação legal no art. 32.º, n.º 8, da CRP, pois não faz qualquer distinção entre provas
mediatas ou imediatas / provas obtidas de modo imediato ou provas obtidas indiretamente
através dos meios proibidos.

Também o art. 126.º, n.os 1 e 3, do CPP, não se faz distinção entre provas obtidas de modo
imediato ou provas obtidas indiretamente através dos meios proibidos.

Além disso, o art. 122.º, n.º 1, do CPP «as nulidades tornam inválido o acto em que se
verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.». Esta norma, de
modo claro, justifica o efeito à distância, sendo inválida a prova obtida de forma imediato, bem
como a prova sequencial.

 Para os autores que defendem que há certos segmentos do regime das nulidades que também
se aplicam às proibições de prova, esta norma do regime das nulidades justifica o efeito à
distância.

 Para aqueles autores que o regime das nulidades é um regime independente das proibições de
prova, e que não têm aplicação as normas do art. 118.º e ss, fundamentam o efeito à distâncias
apenas nas normas que referimos em cima (na própria ideia da Constituição que declara nulas
todas as provas obtidas mediante métodos proibidos).

EM SUMA [REGRA]: Ora, estes são os fundamentos legais que sustentam a doutrina do efeito
à distância e, de facto, daqui se retira que são nulas e não podem ser valoradas todas aquelas
provas obtidas à custa de uma anterior violação de uma proibição de prova.

Exceções

Porém, esta conceção também não impõe um absoluta impossibilidade de aproveitamento de


provas derivadas da prova proibida. Ou seja, também há exceções à ideia de que são proibidas,
não só as provas imediatas, como também as sequenciais (ver Ac. 198/2004). No fundo, não
podemos concluir que, pelo facto de num processo haver uma prova proibida, todas as provas
produzidas que possam estar com ela relacionadas, não podem ser valoradas.

À semelhança da doutrina americana, também entre nós, na doutrina e na jurisprudência


(comum e constitucional), têm-se apontado limites ao efeito à distância.

 Critério para averiguar se podemos ou não valorar a prova sequencial: tudo está em
saber se entre a prova proibida e a subsequente há uma relação de natureza causal, ou seja, se
esta pode ser objetivamente imputada aquela (prova proibida). Se pudermos imputar uma à
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Ano Letivo 2020/2021
outra, vale o efeito à distância; se, pelo contrário, não houver relação ou pudermos interromper,
já não vale. A regra é valer.

Vamos analisar 3 tipos de casos em que se vem entendo que há um limite ao efeito à distância,
isto é, em que a prova sequencial pode ser valorada, apesar de ter havido uma violação da regras
de proibição de prova imediata. Não vale, aqui, o efeito à distância.

1. Critério/teoria da fonte independente


2. Critério/teoria da mácula dissipada
3. Critério/teoria da descoberta inevitável ou dos curso hipotéticos de investigação ou
do comportamento lícito alternativo

1. Critério/teoria da fonte independente

Não há ED quando a prova sequencial (prova em causa) tem uma fonte de obtenção
independente, claramente autonomizável da prova inquinada. Isto é, nestes casos, há um outro
processo probatório percorrido, do qual resulta o apuramento dos factos que resultavam
igualmente da valoração da prova proibida. Aqui, não há um nexo de causalidade entre uma
prova e outra e, como tal, a prova obtida ou produzida de modo lícito pode ser validamente
utilizada e valorada. Ainda que ambas as provas sirvam para provar o mesmo facto, a prova
obtida por modo lícito, não é proibida. Ex.: faz-se uma escuta ilegal onde se identifica uma
pessoa que terá assistido a um crime de tráfico de estupefacientes. Chamada ao processo penal
para depor como testemunha, será prova proibida, pois o método de obtenção era ilegal; a
identificação da testemunha e depoimento é prova proibida. Ora, mas paralelamente a esta
escuta foi possível capturar imagens relativa ao tráfico (licitamente). Há uma relação causal
entra a prova primária - escutas ilegais - e a derivada - testemunha -, mas não há uma relação
causal entre as escutas e a captação de imagens, logo, pode usar-se as imagens para provar que
existiu tráfico. A questão suscita-se porque poderiam lançar mão do depoimento da testemunha
e também das imagens  mas não há qualquer relação entre elas. São somente duas provas
possíveis de um mesmo facto, ou seja, ambas visam provar o mesmo facto.

2. Critério/teoria da mácula dissipada ou da limpeza da nódoa

A delimitação que se opera através desta ideia da dissipação da mácula / limpeza da nódoa,
refere-se às hipóteses em que uma prova secundária a que as autoridades não teriam chegado
sem o método proibido (ou seja, sem a utilização da prova primária), pode, contudo, ser
valorada por o nexo entre aquela e esta se ter tornada débil, ao ponto de se poder dizer-se já que
ele é inexistente. Ao contrário do que sucede com o critério anterior, este pressupõe que a prova
limpa seja posterior à prova maculada/manchada - daí a designação ‘’critério’’. Também ao
contrário do critério anterior, nestes casos de mácula dissipada, não se pode afirmar uma
rigorosa independência entre a prova primária e a prova derivada, havendo ainda uma certa
relação causal entre elas. Porém, esta relação causal apresenta uma debilidade tal que já não se
pode afirmar um verdadeiro nexo de ilicitude entre ambas. Por isso, a prova secundária é
autónoma da prova proibida (é autónoma, mas não é totalmente independente / independente em
sentido estrito).

A doutrina alemã tem convocado uma projeção processual da teoria do direito penal substantivo
da imputação subjetiva, e entende que nestes casos se pode convocar uma ideia de interrupção
de nexo de causalidade.
Direito Processual Penal II
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Há duas situações paradigmáticas em que pode ocorrer a tal dissipação da mácula.

1.º ‘’limpeza da nódoa’’ pelos próprios responsáveis pela ação penal, mediante a
prossecução da investigação com recurso a meios lícitos e alternativos de indagação
continuando a recolher prova de modo autónomo e ‘’não manchado’’. A partir da prova
proibida inicial, podem as entidades de investigação enveredar por caminhos autónomos e
encontrar provas lícitas.

2.º casos em que, na sequência da recolha de uma prova primária proibida, ocorrem
depois atos de vontade livres e esclarecidos de arguido ou de terceiro, por exemplo, uma
testemunha, suscetíveis de ‘’limparem a norma’’. Exemplo: uma testemunha, que presta um
depoimento que havia sido invalidado por via de proibição de prova, mais à frente no processo,
presta declarações de livre vontade e depois de ter sido devidamente informada e esclarecida.
Tem-se entendido que tem de existir esta informação qualificada, isto é, de que as provas
previamente obtidas não vão ser valoradas. Obviamente, não havendo a informação, o efeito à
distância, abrange o depoimento.

3. Critério/teoria da descoberta inevitável ou dos cursos hipotéticos de investigação ou do


comportamento lícito alternativo

Contrariamente aos critérios anteriores, neste caso, não há um consenso: há quem aceite como
limite ao efeito à distância; há quem recuse como limite ao efeito à distância 22.

De acordo com este critério, não haverá efeito à distância sempre que se puder afirmar que os
factos teriam sido apurados através da valoração de outras hipotéticas provas limpas. Ou seja,
também não haverá efeito à distância quando se possa afirmar que um meio secundário de prova
seria, com toda a segurança, ou pelo menos com altíssima probabilidade, obtido mesmo que
não tivesse havido uma prova originária atingida pela proibição de valoração. Não bastará, por
isso, a mera possibilidade de os OPC acederem aos factos com recurso a outros meios de prova
lícitos; para a aplicação deste critério tem de se assegurar que a descoberta da verdade seria
inevitável através de outros meios lícitos que seriam, efetivamente, utilizados. Estes meios são
hipotéticos.

 Exemplo: recorre à tortura, e a partir desta o arguido diz onde está o cadáver. Vamos ao
local, e o cadáver lá se encontra. Mas, independentemente deste recurso à tortura, já
estavam a ser feitas escavações num local muitíssimo próximo, e numa questão de 1 ou
2 dias, certamente se iria encontrar o cadáver, ainda que o local exato não tivesse sido
indicado pelo arguido.

Por ser um critério mais débil, não há unanimidade.

Análise do Ac. TC 198/2004 - LER [IMPORTANTE]

NOTAS FINAIS DA DOUTORA:

A nulidade das escutas for invocada pelo arguido logo na fase de instrução. Porém, o juiz de
instrução não atendeu a essa alegação das escutas. Assim, só no momento da deliberação da
sentença é que os juízes de 1ª instância consideraram que as escutas eram inválidas, de facto.
Ou seja, já depois de os arguidos terem prestado declarações. O que o TC disse é que o arguido,

22
A doutora não indicou a sua posição.
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entretanto em recurso, invocou que nunca tinha sido informado de que as escutas eram ilegais, e
que a prova obtida diretamente através dessas escutas não poderia ser contra eles valorada;
porém, o TC refuta, afirmando que esta invocação não faz sentido, porque já desde o início do
processo que os arguidos vinham invocando a nulidade das escutas, estavam acompanhados por
advogado e, por isso, não faz sentido invocarem que deveriam ter sido informados de que a
prova já obtida não poderia contra eles ser utilizada.

Das teorias que referimos anteriormente, concluímos que o TC seguiu a teoria da mácula
dissipada. O domínio, por excelência, em que esta teoria é aplicada é quando, após uma prova
obtida por um modo ilícito, através de uma declaração de vontade livre e esclarecido do
arguido, ele presta declarações em relação ao caso.

Mas, para dizermos que o tribunal lançou mão desta teoria, parece que falta a nota fundamental
da informação qualificada  e é isso que invoca o arguido nos seus recursos. O arguido não foi
informado de que as provas já obtidas através das escutas ilegais não poderiam contra ele serem
invocadas. O Tribunal não levou em conta esta exigência e, por isso, pode ser duvidosa esta sua
decisão.

A Doutora Sónia afirma ainda que se o caso tivesse sido suscitado depois de 2008 (isto é, depois
do Acórdão do TEDH), em que ficou muito claro que, para que funcionasse o critério da mácula
dissipada, tinha de haver esta informação qualificada ao declarante, no sentido de as provas
proibidas que já constam do processo não podem contra ele ser valoradas, a decisão do TC
poderia ser outra. Se pretendiam seguir esta teoria, deveria ter havido informação qualificada.

[uma coisa é confessarmos um crime, pensando ‘’a prova já está no processo, já não há nada
que me valha, então eu confesso’’ - o facto de ele assumir, pode contribuir para a diminuição da
medida da pena; outra coisa é confessar mesmo sabendo que as provas que estavam no processo
não poderiam contra ele serem utilizadas.]

Aula 21/04

C. Princípio da livre apreciação da prova

Art. 127.º, do CPP - de acordo com esta norma, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a
prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

 Outrora

Ora, deste modo, não vale entre nós o sistema da prova legal, segundo o qual é o próprio
legislador que estabelece o valor a atribuir a cada meio de prova, ou seja, há regras legais que
pré-determinam o valor a atribuir à prova. Este sistema / princípio, acontecia muito nas
legislações do passado, pois havia receio de que o juiz incorresse em erro na valoração da prova
e, por isso, afirmava-se na lei um conjunto de regras de apreciação da prova. Por exemplo, nas
Ordenações dizia-se o seguinte: «um testemunho é o mesmo que nenhum testemunha», no
sentido de que ninguém poderia ser condenado com base apenas num testemunho.

No CPP de 1929 (anterior ao atual) dizia-se o seguinte: «a confissão, desacompanhada de outro


meio de prova, não vale como corpo do delito», logo, ninguém poderia ser condenado com base
na confissão.

 Hodiernamente
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Ano Letivo 2020/2021
Porém, tomou-se consciência de que o valor e a força dos meios de prova não podem ser
corretamente aferidos à priori, pelo legislador. Só na audiência de julgamento, na presença do
caso concreto, é o que o juiz se apercebe, verdadeiramente, das especificidades do caso; só
através de uma imediação com a prova é que o juiz se apercebe adequadamente do valor dessa
prova.

É verdade que o princípio da livre apreciação da prova tem especial relevo na fase de
julgamento, precisamente porque não valem para a formação da convicção do julgador
quaisquer provas que não forem produzidas ou examinadas em audiência - art. 355.º, n.º1, do
CPP. Contudo, este princípio vale também para outras entidades, nomeadamente, para o juiz da
instrução e para o MP, que apreciam livremente a prova. É, por isso, um princípio geral do
processo penal, com incidência no decurso de todo o processo.

 O que significa este princípio?

a) Dimensão negativa: pela negativa, este princípio significa a ausência de critérios legais pré-
determinados do valor a atribuir à prova - a lei não estabelece critérios, sendo que o juiz aprecia
livremente.

b) Dimensão positiva: pela positiva, a apreciação de prova de acordo com a livre convicção do
julgador não significa que a sua apreciação seja incontrolável ou imotivável, pois não é
puramente subjetiva. A apreciação tem de ser racionalizável, motivável e motivada, para se
impor à generalidade das pessoas e, designadamente, ao arguido. Este último tem de
compreender o sentida das várias decisões que o afetam, sobretudo quando se trata de uma
decisão de condenação. Liberdade não

Costumamos dizer que esta liberdade na apreciação da prova é uma liberdade de acordo com
um dever, nomeadamente, o dever de perseguir a realização da justiça e a descoberta da verdade
material - liberdade não é discricionariedade. A decisão tem de ser sempre fundamentada, tendo
de dizer-se sempre quais foram as provas que conduziram aquela decisão, como resulta do art.
365.º, n.º3, do CPP, que nos fala da deliberação e votação da sentença. Resulta também do art.
374.º, n.º2 e do art. 375.º, n.º1 e ainda o art. 379.º, n.º1, al. a), do CPP. Deste modo, o princípio
da livre apreciação da prova vale, em geral, no nosso processo penal, para todo o domínio
da prova produzida.

 Limites

Vamos analisar vários meios de prova, para apreciar se, em relação a eles, vale ou não este
princípio:

1. prova testemunhal - regulada nos art. 128.º e ss, do CPP. Em relação a esta, vale
inteiramente o princípio da livre apreciação da prova. Entre nós, porém, só vale o testemunho
direto (testemunho de quem tem conhecimento direto dos factos), ou seja, para que estejamos
perante uma testemunha, é necessário que essa pessoa tenha conhecimento direto dos factos (art.
128.º, n.º 1, do CPP); por isso, o testemunho de ‘’ouvir dizer’’ não pode ser valorado pelo juiz
(há uma proibição de valoração de prova23). Nos termos do art. 129.º, n.º1, do CPP, o juiz já
poderá valorar o testemunho de ‘’ouvir dizer’’ quando não for possível a inquirição das outras
pessoas por morte, por anomalia psíquica superveniente ou por impossibilidade de serem

23
O juiz deve chamar ao processo quem disse, ou seja, a testemunha direta.
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
encontradas. Note-se, todavia, que haverá uma proibição de valoração absoluta se quem
estiver a depor se recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através
das quais tomou conhecimento dos factos.

- No caso de haver testemunhos contraditórios, o que faz o juiz? Extrai certidão e inicia-se um
processo penal por eventual crime de prestação de falsas declarações, para se apurar quem está a
mentir - num outro processo, obviamente. As testemunhas têm o dever de falar a verdade, art.
132.º, n.º, al.b), prestando juramento (ao contrário do arguido).

 livre apreciação em relação às declarações do arguido: vale ou não vale?

Como sabemos, o arguido tem o estatuto de sujeito processual penal. É titular de um conjunto
de direitos e deveres (arts. 60.º e 61.º, do CPP), e pode ser sujeito a diligências de prova (art.
61.º, n.º 6, al.d), do CPP). As próprias declarações do arguido constituem um meio de prova
(arts. 140.º e ss, do CPP); estas distinguem-se em declarações sobre a sua identidade e
declarações quanto aos factos, sendo que constituem prova estas últimas.

Quanto aos factos, o arguido pode ter um de três comportamentos: negar, confessar ou remeter-
se ao silêncio:

 se negar os factos, dizendo que não praticou nenhum deles, vale inteiramente o princípio da
livre apreciação da prova. Se a negação dos factos for uma mentira, não haverá nenhuma
responsabilização, pois não tem o dever de responder com verdade sobre as questões que
lhe são colocadas sobre os factos (art. 140.º, n.º 3, do CPP); trata-se de um direito a mentir?
Não, ele apenas não tem o dever de colaborar com a administração da justiça 24.
 se confessar o factos, dizendo a verdade:
o No CPP de 1929, a confissão, por si só, não serviria para condenar o arguido («não vale
como corpo do delito») / não vale como fundamento de condenação, por si só. Receava-
se, por um lado, que se utilizassem métodos abusivos/proibidos para a obtenção de uma
confissão e, por outro lado, que a autoincriminação se pudesse dever a anomalia psíquica.
o Atualmente, a confissão tem um valor diferente conforme a gravidade do crime em causa
(art. 344.º, do CPP). Tratando-se de pequena ou média criminalidade (ou seja, um crime
punível com pena de prisão não superior a 5 anos), e sendo a confissão integral, livre e
sem reservas, tal confissão vale, por si só, como meio de prova, e tem os seus efeitos
previstos no art. 344.º, n.º 2, do CPP25. Estando reunidos estes pressupostos, há uma
limitação ao princípio da livre apreciação da prova, dando-se os factos como provados.
Porém, o valor que a lei atribui às declarações do arguido neste contexto abrange somente
os casos em que a confissão é livre, valendo o princípio da livre apreciação da prova
quando o juiz aprecia o caráter livre da confissão. Por essa razão, só aparentemente há
uma limitação a este princípio26.
 se se remeter ao silêncio: art. 41.º, n.º 1, al. d), do CPP. Este direito é novamente afirmado
nas regras que se referem ao julgamento, ou seja, os arts. 343.º, n.º 1 e 345.º, do CPP, de
24
Note-se que também os seus familiares beneficiam deste ‘’não-dever’’ de colaborar, não sendo
obrigados a testemunhar contra o arguido (art. 134.º, do CPP).
25
Ou seja, não se produz mais prova, os factos dão-se como provados, passa-se de imediato para a fase
das alegações orais, e a taxa de justiça é reduzida a metade.
26
Isto é, só aparentemente há uma limitação, tendo em conta que o juiz tem de avaliar se a confissão é,
efetivamente, livre - é ele a decidir se se aplicam os efeitos do art. 344.º, do CPP, porque é ele que
aprecia. Desta maneira, acautelam-se os receios que referimos relativamente ao CPP de 1929.
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acordo com os quais o silêncio pode ser parcial ou total. Assim sendo, não vale, em relação
ao silêncio, não vale o princípio da livre apreciação da prova, pois este nunca pode ser
valorado (art. 343.º, n.º 1 e 345.º, n.º 1, do CPP). A partir do silêncio, não pode o juiz
concluir que o arguido é culpado. Se através de outras provas este concluir que o arguido é
culpado, não pode agravar a medida da pena pelo facto deste último ter permanecido em
silêncio.

2. prova pericial

Regulada nos arts. 151.º e ss, do CPP. Esta tem lugar quando a perceção ou apreciação dos
factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, artísticos ou científicos (art. 151.º, do CPP).
nos termos do art. 163.º, do CPP, o juízo técnico, científico, inerente à prova pericial, presume-
se subtraído à livre convicção do julgador, valendo o que o perito disser na sua perícia. Por isso,
esta prova constituiu um limite ao princípio da livre apreciação da prova. Ex.: o cirurgião atuou
com diligência? Utilizou uma técnica que um outro cirurgião, geralmente, utilizaria?

Todavia, o art. 163.º, n.º2, do CPP, estabelece que o juiz pode divergir do juízo apresentado pelo
perito, desde que fundamente essa divergência. Em que casos pode acontecer? Por exemplo, em
caso de erro óbvio. Imaginemos que o perito começa por dizer que A=B, e termina afirmando
que A=C, por engano. Pode chamar o perito para esclarecer, ou pode o juiz afirmar que se trata
de um erro óbvio, de puro lapso de escrita ou falta de atenção. Pode dar-se o caso também de o
juiz ser especializado na área, como por exemplo, tendo conhecimentos em arte, ou ser ele
próprio médico.

3. prova documental

Quanto aos factos constantes de documentos, vale inteiramente o princípio da livre apreciação
da prova, ainda que se trate de um documento autêntico ou autenticado. Isto porque a
autenticidade de um documento ou a veracidade do seu conteúdo podem ser fundadamente
postas em causa (art. 169.º, do CPP). O tribunal pode, ele mesmo e em qualquer caso, declarar
que um documento junto aos autos é falso (art. 170.º, do CPP).
D. Princípio in dúbio pro reu

Princípio de acordo com o qual o tribunal deve dar como provados os fatos favoráveis ao
arguido, quando apesar de toda a prova produzida o tribunal ficar aquém da dúvida razoável.
Por força do princípio da investigação, o tribunal tem o poder-dever de investigar o facto sujeito
a julgamento, independentemente dos contributos da acusação e da defesa, construindo
autonomamente as bases da sua decisão. Deste modo, a dúvida que fique aquém da dúvida
razoável, deverá ser valorada de forma favorável ao arguido, até porque este se presume
inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória. Produzida a prova nos termos do
art. 340.º e 341.º, do CPP, o tribunal vai apreciar essa prova segundo as regras da experiência e
a sua livre convicção - convicção essa que deve ser sempre objetivável e motivável, nos termos
do art. 127.º, do CPP.

O tribunal pode tomar uma de três conclusões:

1. se o tribunal concluir que foi produzida prova dos factos imputados ao arguido, então
estes devem ser dados como provados.
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2. se o tribunal concluir que não foi produzida prova dos factos imputados ao arguido,
estes devem ser dados como não provados.
3. se o tribunal concluir que, apesar da prova produzida, ficou aquém da dúvida
razoável, então deve dar como provados os factos favoráveis ao arguido.

Tem fundamento constitucional no art. 32.º, n.º 2, da CRP, na parte em que se refere que «o
arguido presume-se inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória». Da
presunção de inocência o arguido, só pode decorrer que se deem como provados os factos
favoráveis ao arguido, decidindo o tribunal como se tivesse sido feita prova desses factos, nos
casos em que ficar aquém da dúvida razoável.

Este vale para toda a matéria de facto, quer relativa ao crime, quer atinente à sanção que
lhe corresponde, mas já não vale quanto à matéria de direito (se o juiz tiver dúvidas quanto
à interpretação jurídica de uma norma, não vale a interpretação mais favorável ao arguido). Tal
não obsta, porém, a que um tribunal de recurso possa conhecer da violação do princípio in
dúbio pro reu, quando o recurso interposto seja um recurso de revista, pois esta violação integra
matéria de direito, como qualquer outra violação de um princípio jurídico (porque o princípio
diz respeito a matéria de facto, mas a violação desse princípio é a violação de um princípio
jurídico).

E. Princípios da oralidade e da imediação

São princípios relativos à forma, mas relacionam-se claramente também com a matéria da
prova.

 O princípio da oralidade tem a ver com a forma de alcançar a decisão, isto é, os atos
processais devem decorrer sob a forma oral, devendo a decisão ser proferida tendo por base uma
audiência oral. Está consagrado de modo direto e imediato no art.96.º, do CPP - a prestação de
declarações processa-se, por regra, de modo oral, não sendo autorizados também (e por regra), a
leitura de documentos escritos elaborados para aquele efeito.

 Este princípio relaciona-se com o princípio da imediação que, por sua vez, se traduz na
relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal
que o tribunal possa obter uma perceção própria do material que haverá de ter como base na sua
decisão (expressão de Figueiredo Dias). De modo mais breve, este princípio significa que o juiz
deve ter um contacto direto e imediato com os elementos de prova. Está consagrado no art.
355.º, do CPP.
Limitações - exemplos:
- Em certos casos, é admitido o julgamento na ausência do arguido (art. 333.º e ss., do CPP);
- em determinadas situações, é permitida a declaração ou leitura de autos ou declarações, e até a
leitura de declarações do arguido (art.355.º, n.º2, art.356.º e art.357.º, do CPP). O art. 357.º,
al.b), prevê que «1-A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido
no processo só é permitida: b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com
assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do
disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º». Durante muitos anos discutiu-se se era possível
ler em julgamento declarações prestadas pelo arguido no inquérito (e estando estas presentes no
auto), caso ele, em sede de julgamento, se remetesse ao silêncio ou prestasse declarações
diferentes. Antes, era possível se tivessem sido prestadas perante um juiz e se denotassem
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
contradições que não pudessem ser corrigidas de outra forma. Em 2007, já não se exigiam as
contradições ou discrepâncias sensíveis, nem a parte final em que se dizia ‘’se não puderem ser
esclarecidas de outra maneira’’. Assim, desde sempre, entre nós, só podiam ser lidas se tivessem
sido proferidas perante um juiz + se este tivesse confessado o facto e depois disser que não. Já
se se remetesse ao silêncio, não haveria contradição e, então, não podiam ser lidas.
Posteriormente, desde a última revisão de 2013, as suas declarações podem sempre ser lidas em
doc. se tiverem sido prestadas perante autoridade judiciarias (alargamento), desde que tivesse
estado presente um defensor e desde que este tivesse sido advertido de que, não exercendo o seu
direito ao silêncio, as declarações que ele prestar naquele momento podem depois ser utilizadas,
mesmo que este não esteja presente no julgamento e sob a tutela da livre apreciação de prova.
F. O princípio do contraditório
De acordo com este, toda a prossecução processual deve cumprir-se de forma a fazer ressaltar as
declarações da acusação e defesa, e há o dever de ouvir qualquer sujeito do processo ou mero
participante processual, quando se deva tomar qualquer decisão que o afete.
Há um verdadeiro direito de audiência, consubstanciando-se numa efetiva forma de participação
constitutiva na declaração de direitos, quando o declarante tenha o estatuto de sujeito
processual.
- Para o sujeito processual arguido este princípio é de extrema importância, na medida em que o
direito ao contraditório é uma das suas garantias de defesa que o processo penal deve,
obrigatoriamente, lhe assegurar (art. 32.º, da CRP). Está integrado no seu estatuto processual,
que lhe confere alguns direitos:

 direito a estar presente nos atos processuais que diretamente lhe digam respeito,
art.61º/1/a), do CPP;
 direito de ser ouvido pelo tribunal ou juiz de instrução sempre que estes tenham que
tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete, art.61º/1/b), do CPP;
 direito de intervir no inquérito e instrução, oferecendo provas e requerendo as
diligências que lhe afigurem necessárias, alínea g), do CPP.
- Já quando perspetivado de um modo geral, ele surge enquanto um princípio característico do
processo penal de estrutura acusatória, intimamente relacionada com a finalidade de proteção
das direitos das pessoas.

 art. 32.º, n.º 5, in fine, da CRP: a audiência de julgamento (art. 327.º, n.º2, do CPP) e os
atos instrutórios que a lei determinar estão subordinados a este princípio (fase de
instrução - art.289.º e art.298.º -, fase de inquérito, podendo surgir de uma forma mais
limitada, na medida em que, certos casos, podem estar sujeitos a segredo de justiça nos
termos no art.86.º/2 e 3 CPP)
- Por fim, este princípio integra também o estatuto processual do assistente competindo-lhe,
igualmente, intervir no inquérito e instrução, oferecendo provas e requerendo as diligencias
necessárias (art.62.º, al. a), do CPP).
2ª parte da matéria:
A PROVA DIGITAL
O uso da informática invadiu e invade progressivamente todos os setores da vida em sociedade,
melhorando muito a qualidade de vida. Contudo, simultaneamente, abriu uma porta a novas
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
formas de pôr em causa bens jurídicos de caráter individual ou coletivo e, por isso, começou-se
a falar em criminalidade informática.
Entre nós, até setembro de 2009, não existiam regras específicas adaptadas à recolha de prova
em suporte eletrónico. A sua investigação fazia-se de acordo com as regras gerais do CPP
relativas à investigação e obtenção de prova, art.171.º e ss, do CPP.

 A novidade surgiu com a Lei n. º 109/2009, de 15 de setembro, sendo conhecida,


vulgarmente, como a Lei do Cibercrime.
Procurou condensar num só diploma todas as normas respeitantes à criminalidade informática,
congregando normas de direito substantivo, prevendo um conjunto de tipos legais de crime
relacionados com a informática e normas de natureza processual, regulando um conjunto de
meios de obtenção de prova em suporte eletrónico e um conjunto de normas respeitantes a
cooperação judiciária internacional (Lei n.º 144/99).
Estes meios de obtenção de prova em ambiente digital aplicam-se em processos-crime onde
esteja em causa a investigação de um crime previsto na própria lei do cibercrime, mas também
noutros processos-crime em que seja necessário recolher prova em suporte eletrónico, art. 11.º,
da Lei do Cibercrime.

 Segundo o Professor Zieber, podemos distinguir as diversas fases do desenvolvimento das


legislações dos diversos países no que diz respeito à criminalidade informática.
Numa primeira fase, nos anos 70, aparecem as primeiras reações do legislador que visavam a
proteção da vida privada, perante as novas possibilidades de recolha e tratamento de dados
pessoais potenciados pela informática.
Numa segunda fase, a partir dos anos 80, o legislador já pretendeu combater a criminalidade
económica específica da informática, porque começou a ser visível que era difícil abranger
também, nas disposições penais que protegiam a propriedade, uma realidade imaterial, como
por ex. os programas informáticos / o software. Isto é, estes podem ser considerados coisa, para
efeitos dos crimes contra a propriedade? Tem-se entendido que não. Então, os legisladores
começaram a ter consciência de que há uma criminalidade económica específica da informática
(a tal realidade imaterial), cujas condutas não eram abrangidas pelos códigos penais no âmbito
dos crimes contra a propriedade. Por exemplo: manipulação do computador, adulterações de
programas de computador.
A partir de meados dos anos 80, numa terceira fase, verificaram-se alterações legislativas
destinadas a uma melhor salvaguarda da propriedade intelectual, coo sucedeu com aa proteção
dos programas de computador por meio dos direitos de autor. No fundo, a ideia de que os
autores dos programas deveriam ter uma proteção análoga à das que criam outras obras.
Já nos anos 90, numa quarta vaga, as preocupações do legislador caminharam no sentido da
introdução de inovações no campo do direito processual, com vista a aperfeiçoar a investigação
desta nova criminalidade, que é a criminalidade informática. Assistiu-se a uma preocupação em
criar novas processuais na investigação destes crimes.
A Doutora considera que, nos últimos anos, está em curso uma quinta vaga deste
desenvolvimento, pois atualmente há uma consciência forte de que, no âmbito da criminalidade
informática, não há fronteiras. Considera-se ser muito importante haver uma harmonização das
normas a nível internacional e uma cooperação judiciária: quer de normas de caráter
substantivo, que determinam quais os comportamentos que são crimes, quer de normas de
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
caráter processual.27 Atualmente, as formas mais graves de criminalidade organizada, por
exemplo, o próprio terrorismo, utilizam sucessivamente e cada vez mais, meios eletrónicos e
informáticos. Hoje, todos vivemos sob ameaça de agressões paralisantes de infraestruturas
chave, como sejam a distribuição de energia, dos transportes, das telecomunicações, serviços de
urgência ou os mercados financeiros28 - estruturas chave da sociedade que podem ser
paralisados com um ‘’simples’’ ataque informático.

Aula 28/04
Criminalidade informática ou cibercriminalidade: do que se trata?

Não há um conceito uniforme de criminalidade informática e cibercriminalidade, na medida em


que encontramos conceitos diferentes. Porquê? Porque tem sido integrado no fenómeno da
criminalidade associado às tecnologias de informação uma série de comportamentos que são
violadores de bens jurídicos de natureza distinta. Por isso, estas expressões de criminalidade
informática e cibercriminalidade têm sido utilizadas para descrever um vasto leque de ofensas,
que são muito distintas entre si e que, por isso, dificultam a aplicação de um único critério que
permita englobar todos os atos nos diferentes contextos em que possam ser praticados.

Criminalidade informática vs. cibercrime

São expressões diferentes porque, quando falamos de cibercrime, é necessário que ‘’aquela’’
conduta criminosa envolva a utilização de redes informáticas, enquanto a expressão «crime
informático» pode estar relacionada com computadores isolados, sendo esta última mais ampla
(pois abrange a cibercriminalidade e a criminalidade praticada no âmbito de um computador
isoladamente considerado).

Criminalidade informática em sentido amplo vs. criminalidade informática em sentido


estrito

[autor: Pedro Elias (ou Dias?) Venâncio]

 Em sentido amplo, abrange as condutas em que a informática é apenas um diferente


meio de entre outros para a prática de um determinado crime. Ex.: alguém pratica um
crime de injúria, utilizando meios informáticos (Facebook, por exemplo). Ver art. 3.º e
ss., da Lei do Cibercrime.
 Em sentido estrito, estamos a falar das condutas em que a informática aparece como um
elemento do tipo legal do crime ou como ‘’bem jurídico protegido’’ 29 (na aceção de
segurança e liberdade da utilização das tecnologias de informação e da comunicação).

As tecnologias de informação e de comunicação podem ser utilizadas enquanto instrumentos da


prática de crimes e estas permitem praticar os ‘’crimes tradicionais’’, utilizando os meios
tecnológicos, como as redes sociais. Consequentemente, as ofensas aos bens jurídicos são mais
27
Ver livro «Direito da Informática», de Garcia Marques e Lourenço Martins - contudo, não é um livro
de Direito Penal.
28
Exemplo: por via informática, entra-se numa rede de abastecimento de água, e altera-se a quantidade de
substâncias químicas na água. Ou, por exemplo, entram na rede informática dos hospitais, e desligam-se
determinadas máquinas.
29
Sendo que a informática, em si mesma, não é propriamente o bem jurídico protegido; este é, na
verdade, a segurança nas relações informáticas, ou a confidencialidade das informações.
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
intensas, e pode, muitas vezes, dificultar a descoberta da identidade dos seus autores. Ou seja,
os crimes acabam por ser os mesmos, mas os meios são novos, pois são meios informáticos /
digitais - o que leva ás referidas consequências mais ‘’fortes’’. Assim, por esta razão, não faz
sentido dizer que a criminalidade em sentido amplo é um domínio ou um setor específico
Direito Penal.

Atentando no art. 11.º da Lei do Cibercrime «1 - Com excepção do disposto nos artigos 18.º e
19.º, as disposições processuais previstas no presente capítulo aplicam-se a processos relativos
a crimes: a) Previstos na presente lei; b) Cometidos por meio de um sistema informático; ou c)
Em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico»,
verificamos que a própria lei distingue entre os crimes previstos na lei (sentido estrito) e os
cometidos por meio de sistema informático (sentido amplo).

A partir de certa altura, e em face da crescente importância das tecnologias da informação e


comunicação, nesta organização e no funcionamento das relações económicas, sociais e
culturais, o Estado começou a entender que determinados produtos informáticos mereciam
proteção equivalente à proteção dada aos bens corpóreos. Isto é, reconheceu-se que há
determinados produtos informáticos que merecem uma proteção equivalente à dada aos bens
corpóreos.

NOTA: esta evolução relaciona-se com a estudada na semana passada, da preocupação dos
Estados em relação à informática.

NOTA2: seja em sentido estrito, seja em sentido amplo, toda (esta) criminalidade é nova.
Mesmo quando estamos a falar da criminalidade em sentido amplo, isto é, de tipos de crime
tradicionais, mas que agora são cometidos através de meios informáticos, eles adquirem novas
características.

Características da cibercriminalidade ou da criminalidade informática 30

1. Transnacionalidade;
2. Anonimato;
3. Tecnologia;
4. Organização;
5. Impacto financeiro.

1. Transnacionalidade

O cibercrime não requer proximidade física entre o ofendido e o agente do crime, ou seja, estes
podem estar em cidades diferentes ou até mesmo em países diferentes; o cibercriminoso só
necessita de um computador com ligação à internet, tendo capacidade para cometer crimes
contra pessoas, negócios ou até governos em qualquer parte do mundo. Ex.: pornografia infantil,
tráfico de pessoas, tráfico de órgãos, etc.

2. Anonimato

Contrariamente à generalidade dos casos, os cibercriminosos conseguem frequentemente e com


uma grande facilidade manter-se anónimos. Muitas vezes, ainda que os OPC consigam
identificar a origem dos criminosos, a recolha das provas e a identificação dos suspeitos é difícil

30
Ver texto Dr. Rui Natário (cuidado: há uma certa de rigor no conceitos de processo penal).
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
quando o país a partir do qual foi realizado o crime se recusa a colaborar (cooperação
internacional). Há ainda uma grande facilidade na criação de falsas identidades.

3. Tecnologia (a sua utilização)

O cibercrime nem sempre tem apenas um agente e uma vítima, sendo um crime automatizado.
esta característica permite que os criminosos cometam vários (até milhares!) crimes de forma
expedita e sem grande esforço. Dificultam, assim, a investigação da prática dos crimes,
aumentar os lucros e o afetar um número maior de vítimas.

Associado ao uso da tecnologia está a técnica de utilizar ‘’técnicas de decifragem’’ ou de


encriptação, dificultando o acesso aos dados e, consequentemente, a investigação.

4. Organização

Há muitos grupos organizados, que cometem crimes informáticos. Estas organizações recrutam,
cada vez mais, adolescentes que deixam ‘’a criminalidade de rua’’ e ingressam no crime online,
pois podem realizá-los a partir de sua casa.

5. Impacto financeiro

Não há estudos, as cifras negras são imensas, sobre o impacto económico, mas é, obviamente,
um impacto que estende a vários milhões de euros.

EM SUMA: todas estas características distinguem este setor dos cibercrimes, da restante
criminalidade.

Legislação sobre esta matéria

 Lei da criminalidade informática - Lei n.º 109/91, de 17.08 (revogada)  Convenção


sobre o Cibercrime, de 23.11.2001
 Decisão-Quadro n.º 2005/222/JAI, do Conselho, de 24.02.2005, relativa a ataques
contra sistemas de informação
 Lei do cibercrime – Lei n.º 109/2009, de 15.09 (revogou a Lei n.º 109/91)
 Directiva 2011/92/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13.12.2011, relativa à
luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil […]
 Directiva 2013/40/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.08.2013, relativa a
ataques contra os sistemas de informação e que substitui a Decisão-Quadro
2005/222/JAI do Conselho
 Diretiva (UE) 2019/713 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17.04.2019, relativa
ao combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não em numerário
[...

O caráter transfronteiriço das tecnologias de informação e a transnacionalidade fez com que os


vários países sentissem necessidade da criação de normas internacionais onde houvesse uma
certa harmonização quanto à tipificação das condutas que constituem crimes informáticos, bem
como uma harmonização quanto aos meios que os Estados podem lançar mão para os investigar
- ou seja, uma harmonização quer quanto aos tipos legais de crime, quer quanto aos meios de
obtenção de prova utilizados na investigação desses crimes.
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
- Convenção de Budapeste / Convenção sobre o Cibercrime

Um diploma internacional muito importante nesta matéria é a designada Convenção de


Budapeste (ou Convenção do Cibercrime), aprovada pela Resolução da AR n.º 88/2009, de 15
de setembro. Esta tentou harmonizar, nos diversos Estados subscritores, a matéria relativa ao
direito penal substantivo, a matéria relativa ao direito processual penal e a matéria relativa à
cooperação judicial. O que encontramos nesta convenção…

-… relativamente a normas de direito penal substantivo: as infrações contra a confidencialidade,


integridade e disponibilidade de dados e sistemas informáticos. Os Estados signatários desta
convenção comprometeram-se, portanto, a classificar como crimes no âmbito do seu direito
interno os seguintes crimes: acesso ilício aos sistemas informáticos, à interseção ilícita de dados
informáticos, ao dano provocado nos danos informáticos, à sabotagem informática e à utilização
indevida de dispositivos; burla e falsidades informáticas; pornografia infantil; infrações
respeitantes a violações dos direitos de autor e direitos conexos. A convenção tem, portanto, um
«elenco luxuoso de crimes»31.

- Decisão-quadro relativa a ataques contra sistemas de informação (2005/222/JAI,


do Conselho, de 24.02.2005, relativa a ataques contra sistemas de informação) - foi
substituída por um Diretiva de 2013/40/EU de 12/08/201232

Nesta decisão quadro prevê-se o crime de acesso ilegal aos sistemas de informação,
interferência ilegal no sistema e interferência ilegal nos dados, vindo outra Diretiva
(2013/40/EU de 12.08.2012) a acrescentar o ilícito de interceção ilegal.

A opção do legislador português foi uma opção de transpor estes diplomas não fazendo a sua
introdução no CP, mas criando um diploma autónomo. Ao invés de introduzir as normas no CP,
ter optado por criar um diploma autónomo. É um domínio específico de criminalidade que exige
normas específicas e a ideia foi congregar num só diploma todas as normas relativas a esta
criminalidade. Mas também é uma matéria muito dinâmica, pelo que será mais aceitável alterar
a Lei do Cibercrime do que o CP e o CPP – tal argumento continua a cair um pouco por terra,
pois os códigos têm sido mais alterados do que a Lei do Cibercrime. As desvantagens são
claras: com a criação de legislação extravagante, há a dificuldade de concordar o regime dessa
legislação com a geral. É um argumento falso, pois o cibercrime não são só os crimes que estão
na LC – A combina com B por mail matar C, esta é um crime de homicídio, mas em que na
instigação daquele crime é necessário recolher prova em meio eletrónico. Durante muitos anos,
os profissionais forenses não se aperceberam que tínhamos uma lei que ia muito para além do
próprio cibercrime, pois aquela diz respeito à parte processual, bem como da cooperação
internacional. A parte processual aplica-se em todos os casos em que seja necessário recolher
prova em ambiente digital. Esta ideia de que é um domínio muito específico e que, por isso,
justificava uma legislação extravagante é um argumento falacioso.

31
Ver texto do Dr. Oliveira de Ascensão
32
Ainda não transposta em Portugal
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
- Código Penal

Alem da LC e da legislação europeia e internacional, temos um conjunto de crimes informáticos


no próprio CP, como 221º, 193º, 194º, 225º, 180º e 181º, 176º e 240/2). Todos estão no CP, mas
só os primeiros três fazem parte da criminalidade informática em sentido estrito. O nosso CP foi
alterado em 2018 pela Lei nº 44/2018, reforçando a tutela da intimidade da vida privada na
internet. Houve uma agravação dos crimes contra a reserva da vida privada. Vamos ver o que
aconteceu relativamente ao que aconteceu à violência doméstica (art. 152º CP). Em 2018, o
legislador introduziu uma alínea que leva à punição mais grave da pessoa que difundir dados
pessoais relativos à vida privada das vítimas. O nosso CP tem no art. 193º o crime de devassa
por meios informáticos. Parece estranho ao crime de VD a agravação, porque os crimes que
visam proteger a vida privada são aqueles do art. 190º e ss. se se considerasse que o agente
cometeu um crime de VD e de devassa teríamos um concurso de crimes, talvez, na prática,
pudesse acontecer que, a punição de concurso, punição fosse inferior àquela que se consegue
com a agravação prevista no art. 152º CP.

- Lei 67/2008, de 26 de outubro (Lei que assegura a execução do regime geral de proteção
de dados)

A lei do cibercrime estabelece expressamente, no seu art. 30.º, que «O tratamento de dados
pessoais ao abrigo da presente lei efectua-se de acordo com o disposto na Lei n.º 67/98, de 26
de Outubro, sendo aplicável, em caso de violação, o disposto no respectivo capítulo vi». Ora,
desde 98, tínhamos uma lei da proteção de dados pessoais. A novidade foi que, em 2016, foi
aprovado o regulamento geral de proteção de dados pessoais na UE, que entrou em vigor em
toda a EU no dia 25/05/2018 (não carece de transposição).

- Lei que assegura a execução do RGPD - Lei n.º 58/2019, de 08/08

 Utilização de dados de forma incompatível com a finalidade da recolha (art. 46.º)


 Acesso indevido (art. 47.º)
 Desvio de dados (art. 48.º)
 Viciação ou destruição de dados (art. 49.º)
 Inserção de dados falsos (art. 50.º) • Violação do dever de sigilo (art. 51.º)
 Desobediência (art. 52.º)

Acontece que este regulamento tinha muitas incompatibilidade com a nossa lei de proteção de
dados pessoais; a lei de proteção de dados pessoais não foi logo revogada, e colocou-se a
questão de saber se, sendo incompatível com um regulamento, como interpretar as nossas
normas e como fazer relativamente ao capítulo VI, que previa um conjunto de comportamentos
considerados crimes (tipos legais de crimes). Estes tipos legais de crime mantiveram-se em
vigor até 2019, data em que, com a Lei 58/2019, passou a prever um conjunto de crimes que
podem ser praticados pelas pessoas que violem as regras relativas à proteção de dados pessoais,
mas que na verdade vão ao encontro dos tipos legais de crime que tínhamos na Lei 67/98.

- Código de direitos de autor e direitos conexos

 Usurpação de obra (art. 195.º)


 Contrafacção de obra (art. 196.º
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021

 Tipos legais de crime previstos na Lei do Cibercrime (Lei 109/2009, de 15/09)

Como vimos pelo art. 1.º, que a presente lei estabelece as disposições penais materiais e
processuais, bem como as disposições relativas à cooperação internacional em matéria
penal.

Disposições penais materiais:

 Art. 3.º - falsidade informática;


 Art. 4.º - dano relativo a programas ou outros dados informáticos;
 Art. 5.º - sabotagem informática
 Art. 6.º - acesso ilegítimo;
 Art. 7.º - interceção ilegítima;
 Art. 8.º - reprodução ilegítima de programa protegido.

Art. 3.º - Crime da falsidade informática

«Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar
ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento
informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que
estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o
fossem, é punido com pena de prisão até 5 anos ou multa de 120 a 600 dias.»

Este artigo vai ao encontro ao Código Penal, designadamente, ao crime da falsificação de


documentos, previsto no art. 256.º. A novidade é que esta falsidade é no domínio da
informática.

Tem duas intenções / dupla intenção: provocar engano + de que estes sejam considerados ou
utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem  A Doutora considera
que é um pouco redundante, no sentido que a segunda intenção acaba por ser uma repetição da
primeira.

! Sentido estrito: A informática faz parte do próprio tipo legal de crime, é um elemento deste.

! Bem jurídico protegido: segurança das relações jurídicas.

NOTA: o n.º 2, na referência «Quando as ações descritas no número anterior incidirem sobre os
dados registados ou incorporados (…) em qualquer outro dispositivo que permita o acesso (…)
a serviço de acesso condicionado, a pena é de 1 a 5 anos de prisão», permite-nos responder à
questão de saber se a difusão ilegítima do canal TV Cabo é ou não punível entre nós, e se
podemos punir quer a pessoa que difunde, quer a que recebe o canal em sua casa. [ver próxima
aula]

Ac. TR de Évora, 19/05/2015 - análise

Problema: crime informático; falsidade; elementos da infração. Arts. 3.º e 4.º.

Sumário: 1. O tipo objetivo do crime de falsidade informática previsto no nº 1 do artigo 3º da


Lei nº 109/2009, de 15 de setembro, é integrado, no plano objetivo, pela introdução,
modificação, apagamento ou supressão de dados informáticos ou por qualquer outra forma de
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021

interferência num tratamento informático de dados, de que resulte a produção de dados ou


documentos não genuínos, consumando-se o crime apenas com a produção deste resultado.

2. Do ponto de vista subjetivo, o tipo legal supõe o dolo, sob qualquer das formas previstas no
artigo 14º do Código Penal, exigindo, enquanto elemento subjetivo especial do tipo, a intenção
de provocar engano nas relações jurídicas, bem como, relativamente à produção de dados ou
documentos não genuínos, a particular intenção do agente de que tais dados ou documentos
sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se fossem
genuínos.

3. O crime de falsidade informática previsto no artigo 3º da Lei nº 109/2009 visa proteger a


segurança das relações jurídicas enquanto interesse público essencial que ao próprio Estado
de Direito compete assegurar e não a confidencialidade, integridade e disponibilidade de
sistemas informáticos, de redes e de dados informáticos33.

4. A utilização do nome ou de parte do nome de outrem no nome de utilizador e/ou endereço


eletrónico, por parte de quem criou conta de correio eletrónico, traduz, no plano objetivo, a
produção de dados ou documentos não genuínos, mediante a introdução de dados informáticos,
e é idóneo a fazer crer que foi a pessoa a quem respeita o nome ou parte de nome quem
efetivamente criou e utilizou a conta de correio eletrónico em causa.

No âmbito de uma luta partidária, os arguidos neste processo criaram uma conta de correio
eletrónico, utilizando os dados de identidade de uma determinada pessoa (A) e, através dessa
conta, enviaram e-mails para os filiados do partido levando-os a crer que tais mensagens tinham
sido escritas por A. Estava em causa saber se «a criação e utilização de uma conta de correio
eletrónico, com utilização do nome e/ou parte do nome de alguém no endereço eletrónico e no
nome de utilizador que lhes estão associados, traduz, no plano objetivo, a produção de dados
ou documentos não genuínos, mediante a introdução de dados informáticos, que a al. b) do nº2
da Lei 109/2009 define como, “…qualquer representação de factos, informações ou conceitos
numa forma adequada para o processamento informático, incluindo um programa que permita
a um sistema informático executar uma função”.». O tribunal concluiu que sim, pelo que «a
utilização do nome ou de parte do nome de outrem no nome de utilizador e/ou endereço
eletrónico, por parte de quem criou conta de correio eletrónico, é idóneo a fazer crer que foi a
pessoa a quem respeita o nome ou parte de nome quem efetivamente abriu e utilizou a conta de
correio eletrónico em causa, pelo que, quando tal não corresponda à verdade, configura-se
uma situação de fraude na identificação em termos similares ao que sucede quando alguém
assina com o nome de outrem documento por si elaborado (vd P. Albuquerque, Comentário do
C.Penal, 2008, anotação ao art. 256º, p. 673.), dando origem a dados ou documentos não
genuínos para efeitos da previsão do nº1 do art. 3º da citada Lei do Cibercrime. (…) da
factualidade provada configura, assim, uma falsa representação da realidade quanto à
identificação do criador e utilizador da conta eletrónica que, deste modo, constitui dado ou
documento não genuíno para efeitos do preenchimento dos elementos típicos do crime de
Falsidade informática, sendo certo que, contrariamente ao que parece entender o recorrente,
não é determinante que o nome ou parte do nome usado possam ser relativamente comuns.
Desde que no contexto em que foi criada e utilizada a conta de correio eletrónico em causa, o

33
Citando, no Acórdão, Pedro Dias Venância, Crimes de Falsidade Informática in JusNet 120/2010,
acedido em abril de 2015.
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
nome de utilizador e o endereço eletrónico sejam adequados, em concreto, a fazer crer que
aquela conta pertence a pessoa determinada diferente daquele que, dolosamente, a criou e
utilizou com o intenção de provocar, desse modo, engano nas relações jurídicas, o tipo legal
pode ser preenchido.».

NOTA: é importante reter que deste acórdão resulta que o bem jurídico protegido é a segurança
das reações jurídicas, e não a confidencialidade. Isto é, não é necessário que haja violação da
confidencialidade para se verificar a prática de um crime de falsidade informática.

Art. 4.º - Dano relativo a programas ou outros dados informáticos

! Em sentido estrito: informática faz parte do tipo legal de crime.

! Bem jurídico protegido: património do lesado.

Corresponde: art. 212.º, do CPenal. Porque é que o legislador sentiu necessidade de criar este
crime? O software não é considerado uma coisa para efeitos do crime de dano. Não se encontra
muita jurisprudência quanto a este crime e isto não implica que ele não exista, mas que seja sim
muito difícil proceder à sua prova. é um crime informático em sentido estrito porque a
informática surge no próprio tipo legal.

É um crime cometido por alguém que difunde um vírus, e são eliminados os dados que o
destinatário tem no computador. O dano traduz-se na conduta daquele que «apagar, destruir
(…)», todavia, é difícil encontrar o autor destas práticas.

Art 5.º - Sabotagem informática

A sabotagem diz respeito ao sistema informático; o dano (art. 4.º) diz respeito aos dados.

! Bem jurídico protegido: segurança dos sistemas informáticos enquanto tais.

Sobreposição com o art. 329.º, do CPenal: se o crime de sabotagem foi praticado por meios
informáticos, e disser respeito a sistema informáticos que «que apoie uma actividade destinada
a assegurar funções sociais críticas, nomeadamente as cadeias de abastecimento, a saúde, a
segurança e o bem-estar económico das pessoas, ou o funcionamento regular dos serviços
públicos» podemos ter aqui um conjunto de condutas que caia no âmbito de ambos os artigos.
Portanto, para saber por qual crime condenar o agente, temos de atentar nos elementos dos
diferentes tipos legais de crimes [problema de concurso - não vamos aprofundar na nossa
disciplina].

Art. 6.º - Acesso ilegítimo

! Bem jurídico protegido: segurança dos sistemas informáticos (dimensão da confiança que os
utilizadores têm no próprio sistema); privacidade da pessoa (confidencialidade dos dados
armazenados no sistema informático).

Ac. TR Coimbra, 17/02/2016

Problemas: lei do cibercrime, acesso ilegítimo, tipo objetivo, tipo subjetivo

Sumário:
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021

I - É autor material de um crime de acesso ilegítimo, previsto no art. 6.º, n.ºs 1 e 4, al. a), da
Lei n.º 109/2009, de 15-09, quem, sendo inspector tributário - não obstante deter, para
exercício da sua função, instrumentos de segurança “username” e “PIN” -, por motivos
estritamente pessoais, acedendo ao sistema informático da autoridade tributária, consulta
declarações de IRS de outrem.

II - O tipo subjectivo daquele ilícito penal não exige qualquer intenção específica, como seja a
provação de prejuízo ou a de obtenção de benefício ilegítimo; fica preenchido com o dolo
genérico.

Um inspetor tributário foi condenado como autor material de um crime consumado de acesso
ilegítimo, nos termos do art. 6.º, n.º1 e n.º4, al.a), pelo facto de ter acedido às declarações de
IRS de B, sem que para tal tivesse qualquer justificação de trabalho ou de serviço, e sem para tal
estar autorizado. Ao aceder aos «dados pessoais de contribuintes contidos em sistema
informático de uso exclusivo da Direção-Geral dos Impostos, fê-lo por motivos pessoais ou
particulares bem sabendo que não o podia fazer e que acedia a dados confidencias protegidos
por lei.».

Ora, o arguido alegou que «Não houve qualquer prejuízo material», contudo, não é necessário,
para preenchimento do elemento subjetivo do tipo, um «dolo agravado», mas apenas um «dolo
genérico», sendo que o art. 6.º não exige que haja intenção de alcançar um benefício ou
vantagem ilegítima (contrariamente à legislação anterior, de 1991) 34 - como resulta da expressão
(do artigo) « sem permissão legal ou sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por
outro titular do direito do sistema ou de parte dele».

Art. 7.º - Interseção ilegítima

Rem. art. 2.º, al. e)

! Bem jurídico protegido: segurança e privacidade das comunicações eletrónicas

Podemos ter sobreposição em relação ao crime do art. 124.º (violação de correspondência ou de


telecomunicações), sobretudo com o n.º 2, do CPenal. Neste n.º 2 fala-se em «conteúdo de
telecomunicações», que é, por exemplo, e-mail. Porém, o art. 7.º, da LC tem um âmbito de
aplicação mais amplo, pois não pressupõe que haja uma comunicação.

NOTA: Não vamos estudar cada um, até porque são, em regra, muito extensos com
especificidades. Mas a ideia da prof é que percebamos o que são os crimes informáticos e o que
temos na lei do cibercrime, quais as principais controvérsias doutrinais e jurisprudenciais.

Aula 5/05

Art. 8.º - Crime da reprodução ilegítima de programa protegido

O bem jurídico protegido é a propriedade intelectual, ou seja, de um direito análogo ao direito


de autor. O que se tem discutido é se esta propriedade intelectual não estaria já protegida por via
do código dos direitos de autor e direitos conexos [não vamos aprofundar este ponto].

34
NOTA: «No entanto, se ocorrer efetivo benefício ou vantagem patrimonial do agente, e eles forem de
valor consideravelmente elevado, tal circunstância modificativa agravante determinará a aplicação do
tipo agravado do seu nº 4º, b); mas são coisas distintas.»
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Ano Letivo 2020/2021
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, 30-10-2013 [análise]

Problema: reprodução ilegítima de programa protegido; programa informático; licença;


software.

Sumário:

1. O preenchimento da ação típica do crime de reprodução ilegítima de programa


protegido, não exige a verificação cumulativa das três modalidades de ação previstas
art. 9º, nº 1, da Lei n.º 109/91, de 17 de Agosto a saber, reprodução, divulgação e
comunicação ao público, de programa informático protegido;
2. Reprodução é a fixação da obra num meio que permita a sua comunicação e a
obtenção de cópias, integrais ou não, dela, o que engloba a reprodução em CD como a
reprodução na memória de computador;
3. Tendo o arguido instalado um programa informático em computadores da sociedade
que geria, sem que tivessem sido obtidas as necessárias licenças da proprietária
daquele, o que quis e sabia, está preenchido o tipo do crime de reprodução ilegítima de
programa protegido, ainda que a utilização do programa instalado fosse
exclusivamente para uso interno da sociedade.

Os recorrentes alegaram: invocaram de que não tinham conhecimento de que aquele


comportamento consubstanciava um crime, e que necessitavam de uma licença para cada
computador.

MAS: o gerente utilizava software todos os dias, tinha conhecimentos, logo, «no que respeita
ao elemento subjectivo do crime, interessa referir que nos factos dados como provados consta
que os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, tendo o arguido
agido de forma livre e voluntária, em representação e no interesse da empresa arguida, pelo
que entendemos estar, inequivocamente, preenchido o elemento subjectivo do crime em
referência».

Recorrentes: «Alegam, ainda os recorrentes, que a sentença recorrida não fez uma correcta
aplicação do direito à matéria de facto provada e não provada, não se encontrando preenchido
o tipo legal do crime pelo qual foram condenados, ou seja, o crime de reprodução ilegítima de
programa protegido, p. e p. pelo art. 9º da Lei n.º 109/91, de 17.8, aplicável aos programas de
computador por força do art. 14º do DL. n.° 252/94, de 20/10» (…) «Desta forma os
recorrentes dão a entender que, para que se considere verificado o crime em questão, a
reprodução do programa informático implica uma comunicação ao público, daí defenderem
que deveria ter sido dado como provado que os computadores e programas reproduzidos eram
apenas para uso profissional/interno da sociedade arguida, o que não foi.»

MAS: não podemos interpretar este artigo como se os requisitos da letra da lei fossem
cumulativos, pois ‘’reproduzir’’, ‘’divulgar’’ e ‘’comunicar ao público’’ são requisitos legais
alternativos (e não cumulativos). Logo, «Será, então, punível nos termos do art. 9º, n.º 1 da Lei
n.º 109/91 de 17/08, o acto de "reproduzir", independentemente da intenção com que essa
reprodução tenha sido efectuada. Ou seja, tanto é punível o acto de reproduzir um determinado
programa informático, como é punível o acto de o divulgar ou comunicar ao público.». Assim,
mesmo a reprodução privada já integra os elementos típicos.
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
Código penal

Art. 221.º - Crime de burla informática e nas comunicações

[sublinhar «utilização de dados sem autorização»]

Pertence ao conceito de criminalidade em sentido amplo, porque os elementos digitais são


elementos do tipo legal de crime; o BJ protegido é o património. A verdade é que este crime já
estava previsto no nosso CP desde 95, e encontramos abundante jurisprudência sobre este, indo
toda ao encontro da utilização abusiva de cartão de crédito.

Fazendo uma comparação com o crime de burla, previsto no art. 217.º, do CP, o crime de burla
informática não exige que se provoque erro ou engano na outra pessoa; os elementos típicos são
diferentes.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 14-03-2012

Problema: burla informática.

Sumário: «Integra uma das modalidades da acção típica do crime de burla informática, a
apropriação de dinheiro através da introdução e utilização no sistema informático das ATM de
dados sem autorização (introdução do cartão e digitação do código de acesso), com intenção
de obter enriquecimento ilegítimo, causando a outra pessoa prejuízo patrimonial.»

A pessoa A (não identificada) furtou um cartão bancário, juntamente com o respetivo código, e
entregou ao arguido B, em troca de dinheiro. O arguido C aceitou também uma playstation,
pagou uma dívida que tinha num stand, etc. - utilizaram o dinheiro desse cartão.

Pergunta: qual o tipo legal de crime em causa? Não seria o furto, mas sim a utilização posterior
deste mesmo cartão.

O Tribunal acabou por definir que se tratou de um crime de burla informática, pois estes
utilizaram o cartão e os seus dados sem autorização, (introdução do cartão e digitação do código
de acesso), com intenção de obter enriquecimento ilegítimo, causando a outra pessoa prejuízo
patrimonial. Mais uma vez, apura-se que não exige erro ou engano, bastando a utilização
abusiva do sistema informática e do enriquecimento ilícito, para se tratar de um crime de
burla informática nos termos do art. 221.º, do CPenal.

Art. 176.º - Pornografia de menores

O bem jurídico protegido é a liberdade e a autodeterminação sexual do menor / o adequado e


livre desenvolvimento do menor na esfera sexual.

A extensão das redes informáticas dificulta a perseguição das condutas ilícitas, propiciam
anonimato ao consumidor destes tipo de materiais informáticas, e há ainda vantagens inerentes à
própria rede informática, tendo em conta que é muito fácil aceder a estes materiais, e sem
qualquer custo - maior oferta, maior facilidade em aceder. Assim, a prática deste crime esteja,
por regra, associada à utilização de meios informáticos.

 Qual a natureza do bem jurídico protegido / em causa? Ora, atentemos na al. a) « Quem:
a) Utilizar menor em espetáculo pornográfico ou o aliciar para esse fim;» e al. c) «Produzir,
distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir, ceder ou disponibilizar a qualquer título ou por
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Ano Letivo 2020/2021
qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior;»; n.º 4 «Quem praticar os actos
descritos nas alíneas c) e d) do n.º 1 utilizando material pornográfico com representação
realista de menor é punido com pena de prisão até dois anos.» e n.º 5 «Quem,
intencionalmente, adquirir, detiver, aceder, obtiver ou facilitar o acesso, através de sistema
informático ou qualquer outro meio aos materiais referidos na alínea b) do n.º 1 é punido com
pena de prisão até 2 anos»; n.º 8 «Para efeitos do presente artigo, considera-se pornográfico
todo o material que, com fins sexuais, represente menores envolvidos em comportamentos
sexualmente explícitos, reais ou simulados, ou contenha qualquer representação dos seus
órgãos sexuais ou de outra parte do seu corpo.».

Uma coisa é a utilização em espetáculo, outra é a distribuição, importação, exportação,


divulgação, cedência ou disponibilização. Assim, quando estão em causa as condutas praticadas
nas al. a) e b), faz sentido dizer que o bem jurídico protegido é o livre desenvolvimento do
menor na esfera sexual, que é posto em causa, estando perante um crime de perigo abstrato. Por
outro lado, as condutas descritas na al. c) e d) e n.os 4, 5 e 6, casos em que uma outra pessoa
importa, exporta, divulga, etc., ou seja, em que as fotografias já foram tiradas, os vídeos já
foram feitas, o bem jurídico protegido será um bem jurídico supraindividual, que será a ideia da
tutela penal da infância e da juventude / dos menores. A conduta da mera importação,
exportação, etc., já não põe em causa o bem jurídico individual do livre desenvolvimento do
menor na esfera sexual.

Considera-se que estas condutas (das als. c) e d), n.os 4 e 5) deveriam estar tipificadas no
âmbito dos «crimes contra a família, sentimentos religiosos e o respeito devido aos mortos»,
arts. 247.º e ss, criando-se aí um novo tipo legal de crime.

 Divergência doutrinal: N.º 4 «com representação realista do menor» - o que significa isto?
Há muita divergência doutrinal, pois é diferente filmar uma criança real ou através de um
programa informático, criar uma ‘’criança’’ virtual.

Criaram-se, assim, os conceitos de:

 pornografia infantil real / pedopornografia real: filmar uma ‘’criança de carne


osso’’.
 pornografia infantil virtual / pedopornografia virtual: criar, através de meios
tecnológicos, imagens realistas de menor.
o pedopornografia virtual total: não há qualquer imagem de uma criança real
‘’por detrás da imagem que vemos’’, é completamente criada por meios
virtuais.
o pedopornografia virtual parcial: parte de uma imagem de uma criança real, e
depois, através de meios tecnológicos, alteram a sua aparência

Só faz sentido punir um comportamento enquanto comportamento punível no âmbito dos


crimes sexuais, no domínio da proteção de um bem jurídico, se por trás tivermos sempre
uma criança de carne e osso, mesmo que seja alterada - ou seja, só é punível pornografia
infantil real ou pedopornografia virtual parcial. Porquê? Porque não há bem jurídico a
proteger nos casos de pedopornografia virtual total.

 Por outro lado, tem sido muito discutido se deve ser punida e em que termos a conduta do
agente que se limita a ir à internet, e fazer o download dos materiais pornográficos.
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Foi sobre esta questão que se debruçou o Ac. TR Porto, de 7/12/2018 - análise:

Sumário: II - Fazer download de dados de pornografia de menores, de um servidor para o


dispositivo informático pessoal, relativos a ficheiros de imagens integra o conceito
de importar previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 176.º do Código Penal.

As entidades alemãs investigaram este tipo de criminalidade, e durante estas, detetaram várias
visitas a um site, em Portugal, por parte de um indivíduo. Através do IP do computador
conseguiram observar que fizera várias visitas a sites de pornografia, dos quais fez download
dos filmes, e colocava em discos rígidos, DVD’s, e ainda colocava os vídeos numa pasta
partilhada na internet, para que outras pessoas também pudessem ver.

O TB entendeu que deveria condenar o crime na prática de pornografia infantil, nos termos da
al. c), do n.º1, do art. 176.º, do CPenal. A defesa alegou, porém, que a « o download não pode
ser considerado "importação de pornografia de menores", para os efeitos do artigo 176°, n. ° 1
alínea c) do CP. 45ª Importação é um ato integrante da comercialização de pornografia de
menores, que equivale ao transporte de pornografia de menores de um país para Portugal.
46ª O ato de “importar” a que se refere esta norma implica, necessariamente, uma intenção de
lucro e de negócio entre cidadãos de diferentes Estados, o que não se verifica no caso dos
presentes autos.». Contudo, a Relação contrariou, dizendo que está preenchendo o tipo legal de
crime, pois efetivamente a importação verifica-se: «download significa literalmente “descer
carga”, descarregar, transferir, portanto, importar dados de um servidor para o seu
dispositivo informático, pelo que conclui que fazer download de dados de pornografia de
menores, de um servidor para o dispositivo informático pessoal, relativos a ficheiros de
imagens, integra o conceito de importar previsto na al. c) do nº 1 do art.º 176º Código Penal
(…) Mas mesmo que se admitisse que a “importação” tinha que se restringir ao ato de trazer
um produto de território exterior para Portugal, no caso foram as autoridades policiais alemãs
que detetaram a situação, não fazendo o arguido evidentemente download de sítios na internet
sedeados em Portugal.
De todo o modo (…) resulta claramente a exibição e cedência por parte do arguido dos
materiais previstos na al. b) do nº 1 do art.º 176º do Código Penal (como prevê a al. c) do
mesmo nº 1 do art.º 176º do Código Penal), ou seja, a conduta do arguido não se traduz em
mera detenção, antes servindo de veículo difusor, pelo que é claro o preenchimento do tipo
legal em causa. Note-se que o legislador refere a qualquer título, sendo por isso indiferente
que o agente aja a título gratuito ou oneroso, não se reportando a al. c) em causa apenas a
situações de “negócio”. Note-se também que a al. c) do nº 1 do art.º 176º do Código Penal
atribui relevância jurídico-penal a um vasto leque de condutas: produção, distribuição,
importação, exportação, divulgação, exibição e cedência de material pornográfico onde figure
menor.»

Assim, entendeu-se que o ato de fazer download cabe no conceito de importação.

Phishing

É utilizada de forma ampla como referência à criação e utilização de meios online para ??
fraudulenta. através deste pretende-se obter dados ou informações confidenciais dos utilizadores
da internet, para posterior benefício ilegítimo, através desses dados ou informações. O phishing
é principalmente efetuado através de mensagens de correio eletrónico e da criação de websites
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fraudulentos, que se servem da réplica de imagens de entidades fidedignas, como por exemplo,
de bancos ou de comércio. Ex.: Em PT, replica-se a página da Autoridade Tributária, dos CTT,
dos nossos bancos, etc.

Os ataques de phishing desenrolam-se da seguinte forma: o phisher envia uma mensagem de


correio eletrónico ou apresenta um website aparentemente legítimo quanto à sua origem e ao
seu conteúdo, usando imagens e linguagens referentes a uma entidades fidedigna; o fornecedor
dos serviços de internet entrega a mensagem, ou fornece um espaço para hospedagem, que vai
servir de isco (em ambos os casos, não se apercebendo que se trata phishing); a mensagem que é
enviada suscita um falso sentido de emergência no destinatário, ao indicar que este tem de
fornecer dados ou descarregar um determinado ficheiro para resolução de um problema; por
regra, o destinatário da mensagem realiza a ação pretendida; o phisher fica na posse das
informações (como códigos de acesso, por exemplo), e utiliza-as para seu enriquecimento.
Recorrem ainda, por vezes, ao malware (sofware malicioso) para monitorizar os dados
armazenados e veiculados nos computadores das vítimas, para vigiarem o seu tráfego na
internet ou para redirecionar o seu browser para determinados sites.

 Não existe um crime de phishing, um tipo legal. Então como é que vai ser punido o
phisher? A pessoa que leva a cabo estas práticas? Por quais crimes pode ser punido?

1.º Envia uma mensagem de correio eletrónico ou apresenta um website aparentemente legítimo
quanto à sua origem e ao seu conteúdo, usando imagens e linguagens referentes a uma entidades
fidedigna  crime de falsidade informática, art. 3.º, da LC; BJ: segurança das relações
jurídicas.

2.º Utilização de malware (técnica de phishing mais sofisticada), no momento em que acede ao
computador da vítima para lá instalar o software malicioso  crime de acesso ilegítimo, art. 6.º,
da LC; BJ: segredo do titular + integridade do sistema informático.

3.º Se o software instalado permite controlar o tráfego da internet  crime de interseção


ilegítima, art. 7.º, da LC. BJ: segurança e privacidade das comunicações eletrónicas.

4.º Fazer com que o browser redirecione para um site falso a nossa pesquisa, ou seja, permite
afetar a capacidade do acesso à internet  crime de dano relativo a programas informáticos, art.
4.º da LC; BJ a tutelar: património;

5.º utilização dos dados da vítima para benefício próprio ou de terceiro (códigos, palavras-
passe)  utilização de dados sem autorização  crime da burla informática, art. 221.º, CPenal.

Como o vamos punir? Por concurso, ou apenas pela conduta que preenche o último tipo
legal de crime?

Só pela burla? Não. Os BJ são diferentes, pode acontecer que leve a cabo todas as condutas, e
não se verificar, contudo, o crime de burla (por exemplo, se o vítima mudar as credenciais).

Há, entre nós, quem entenda que quando o agente chega ao fim, deve ser punido apenas pelo
crime de burla informática, no sentido de que este consome todos os outros – PAULO PINTO
ALBUQUERQUE. Há quem entenda que assim não é (como a doutora FIDALGO) porque os
bens jurídicos protegidos são diferentes e, além disso, pode acontecer que o agente até leve a
cabo todas as condutas anteriores, mas não consiga depois aceder às contas bancárias. A doutora
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Ano Letivo 2020/2021
diz que deve, no mínimo, punir-se em concurso entre a burla informática e a falsidade
informática.

Ac. TR de Coimbra, de 15-01-2019

De facto, em PT, não temos ainda jurisprudência de tribunais superiores de agentes pela prática
de phishing. Os acórdãos de tribunais superiores são acórdãos de natureza civil em que aquilo
que se discute se é o próprio banco que é responsável pela conduta do criminoso.

A utilização de homebanking através da internet, não se provando que o cliente agiu com
negligencia grave, recai sobre o banco a responsabilidade pela movimentação fraudulenta da sua
conta bancária se terceiros vierem a aceder à conta de que é titular. Em caso de fraude
informática, não age com culpa o cliente que introduziu numa página de web falta, clonada da
página o banco, as suas credenciais de acesso, na convicção que estava a fazê-lo na autêntica
página online do banco. Não tem havido processos penais relativamente a esta matéria, desde
logo porque é muito difícil apurar identidade do agente.

O TRC foi amigo do consumidor.

Na questão de concurso entre crimes, não encontrou acórdão especifico de uma situação de
phishing, mas há entre nos vários acórdãos que se dedicam à questão de saber se quando o
agente se dedica ???. Concurso de falsificação de documento e de burla. Muitas vezes, o que
verificamos é que o agente, para burlar, apresentou um documento falso. Aqui havíamos de
condenar só pelo crime de burla, pois consumia o crime de falsificação, ou se se tratava de um
caso de concurso de crimes. houve um acórdão de uniformização de jurisprudência que
determinou: se a conduta do agente preencher o tipo legal de falsificação e o crime de burla
(217º), deve entender-se que há concurso real ou efetivo de crimes. isto foi muito discutido.

Ac. TR do Porto, de 14-09-2016

Os bens jurídicos violados pela burla e pela falsificação são, respetivamente, o património do
burlado e a fé pública dos documentos necessária à normalização das relações sociais –
portanto, diversos e autónomos. Por isso, entre os crimes de burla informática (Artigo 221º do
Código Penal) e o crime de falsidade informática (Artigo 3º da Lei Cibercrime), existe concurso
real de infrações.

Roubo do sinal da televisão por cabo [curiosidade]35

Através da falsificação de dispositivos recetores, ilícitos, que não são comercializados nem
autorizados, recebe-se o sinal sem que haja um contrato, e difundem esse sinal para ‘’clientes’’.

A conduta de quem tem o dispositivo ilícito para aceder ao sinal da TV Cabo, e a conduta
daquele que recebe o sinal (o ‘’consumidor final’’), constituem crime? Durante muitos anos
discutiu-se entre nós. nos termos desta lei, certas condutas, nomeadamente de quem utiliza o
dispositivo ilícito, já é considerado ilícito por esta lei. A conduta que recebia o sinal era
considerado ilícito, mas um ilícito contraordenacional – teria de pagar uma coima. O que é que
acontece? Com a entrada em vigor da LC, o que se tem considerado é que a conduta quer da
pessoa que falsifica os dispositivos e distribui o sinal, quer da pessoa que recebe o sinal, estas
condutas são ambas consideradas crime. E que crime é que se considera que cometem? O crime

35
Ver artigo de Pedro Verdelho.
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
de falsidade informática (art. 3º LC): “nº2: incidirem sobre os dados registados ou
incorporados em cartão bancário de pagamento ou em qualquer outro dispositivo que permita
o acesso a sistema ou meio de pagamento, a sistema de comunicações ou a serviço de acesso
condicionado, a pena é de 1 a 5 anos de prisão.”. a conduta do recetor do sinal ilegítimo
também é crime: nº3: foram objeto dos atos referidos no nº1 ou cartão ou outro dispositivo no
qual se encontrem registados ou incorporados …”. Estas condutas, com a LC, são ambas crime
– ao invés do que acontecia antes, em que quem recebia o sinal era somente punido como
contraordenacional.

Então: “roubo de sinal” de televisão consiste num crime de falsidade informática.

Problemas mais concretamente relacionados com a prova digital

 Evolução

As alterações tecnológicas são parte integrante da nossa vida, da nossa experiência individual e
coletiva, e influenciam todas as áreas sociais. Por isso, o Direito Processual Penal e o direito
Penal não são imunes a esta influência.

Tradicionalmente, os tribunais hesitavam em aceitar que a prova dos factos submetidos a juízo
fosse feita através de meios tecnológicos. Contudo, verifica-se uma mudança no sistema de
administração da justiça penal, devido ao uso continuado e o avanço tecnológico.

A verdade é que, atualmente, a grande parte da vida de cada um de nós deixa um rasto digital,
que se encontra armazenada em sistemas informáticos de diversa natureza. Além disso, há uma
ampla quantidade de informação que circula nas redes informáticas e essas redes informáticas
são também locais privilegiados para a prática de crimes. Então, por um lado, a vida diária cada
um de nós vai deixando um rasto digital armazenado em sistemas informáticos de diversa
natureza e por outro lado, as próprias redes informáticas são redes onde circula uma ampla
quantidade de informação e são também as próprias redes locais privilegiados para a prática de
crimes.

Estes dois fatores fazem compreender o interesse a que temos assistido nos últimos anos em
aceder a esses sistemas informáticos para recolher a prova da prática dos crimes, e determinar
quem foram os seus agentes. Não surpreende, por isso, que a prova digita tenho entrado nos
tribunais e que esteja hoje presente na generalidade dos processos de natureza criminal.

Numa fase inicial, enquanto a novidade foi apenas em relação ao formato de armazenamento
dos meios de prova, os participantes no processo penal adaptaram-se sem dificuldade
significativa. Por exemplo, juntávamos ao processo penal um e-mail, em vez de uma carta
escrita; juntávamos um ficheiro JPEG, em vez de uma fotografia impressa.

Porém, a tecnologia foi-se desenvolvendo, e a prova digital tornou-se cada vez mais complexa.
Atualmente discute-se, inclusivamente, a aplicação de técnicas de inteligência artificial no
domínio da prova digital

 Noção de prova digital

Muitas vezes, encontramos indistintamente a expressão «prova digital» e «prova eletrónica»


(ex.: art. 189.º, CPPenal; arts. 1.º, 11.º, n.º1, al.c), etc., da LC). Assim, a legislação tanto usa a
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Ano Letivo 2020/2021
expressão prova digital, como prova eletrónica, isto é, prova guardada em sporte digital e prova
guardada em suporte eletrónico.

Assim, são a mesma coisa? Como podemos distinguir?

O conceito de prova eletrónica é um conceito mais abrangente que o de prova digital pois o
primeiro engloba não apenas a prova obtida através de dados em formato digital, como também
a prova alcançada por meios de dados em formato analógico.

Qual o conceito de prova digital?

Podemos encontrar conceitos de prova digital em textos de caráter internacional: a prova digital
é a prova produzida a partir de dados em formato digital, ou seja, dados na forma binária, que
são manipulados, armazenados ou comunicados através de qualquer dispositivo, computador ou
sistema informático, ou que são transmitidos através de um sistema de comunicação.

Fontes de prova digital

A prova digital pode encontrar-se em fontes diversificadas como, por exemplo, computadores,
smarphones, smartwatches, tablets, câmaras fotográficas ou câmaras de vídeo digitais,
impressoras, scanners, armazenamento USB, videojogos, sistemas de videovigilância ou em
redes de comunicações eletrónicas; em qualquer um destes elementos podemos encontrar prova
digital. Eles estão referidos guia do Conselho da Europa, atualizado em 6/03/2020.

Através da recolha de prova em ambiente digital, conseguirá aceder-se a dados informáticos


como ficheiros de imagem ou de vídeo, podemos aceder ao conteúdo de e-mails, a dados de
tráfego, de localização, entre outros - podemos encontrar mais variada informação. Vemos,
assim, o carácter tão invasivo que tem esta obtenção de prova em ambiente digital ou então,
numa aceção mais ampla, em ambiente eletrónico.

Características da prova digital

A prova digital tem determinadas características que a distinguem da prova físicas

1. Desde logo para uma digital tem as características de imaterialidade ou invisibilidade: a prova
digital é composta por uma sequência de bits, e existe independentemente do suporte material
no qual se encontre incorporada. Por isso, tal prova só é encontrada em locais acessíveis através
de ferramentas específicas e onde apenas especialistas conseguiram pesquisar. É, assim,
imaterial e invisível aos olhos do cidadão.

2. A esta ideia de uma materialidade associa-se ainda que de caráter frágil e volátil da prova
digital: a prova digital pode ser destruída, apagada, quer por influência do utilizador (e mesmo
que de forma remota), quer através de forma automática, pelo próprio sistema operativo. Pode
acontecer ainda que, entre o momento em que se procede à obtenção da prova, e o momento em
que ela vem a ser valorada, ocorram chamadas influências externas, por parte dos agentes do
crime, dos ofendidos, dos investigadores em geral e até mesmo por parte de quem procede à
recolha da prova. Estas influências externas podem alterar a prova, contaminando-a,
inutilizando-o ou ainda pondo em causa a autenticidade e a fidedignidade da mesma. Uma
prova contaminada pode deixar de ser utilizada em julgamento ou então pode ser posta em
causa a sua autenticidade e a sua fidedignidade.
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
Atendendo a estas características da prova digital, faz com que se compreenda a importância de
um método científico de identificação, recolha e análise de provas em ambiente digital - e essa
ciência é de ciência forense digital, cujo papel é evitar que a prova se perca, se contamine, etc.,
para que seja validamente apresentada em tribunal.

Em Portugal, até setembro de 2009, não existiam regras específicas adaptadas à investigação em
ambiente eletrónico ou digital, ou seja, quer na investigação relacionada aos crimes
informáticos, quer na investigação relacionada com outros crimes mas em que fosse necessário
proceder à recolha de provas, recorria-se aos meios de obtenção de prova previstos no Código
de Processo Penal (artigos 171 e seguintes). Assim, até 2009, não tínhamos regras especiais
relativamente a meios de obtenção de provas.

Acontece que a Lei do Cibercrime, nº 109/2009, trouxe novidades nesta matéria. Esta lei, logo
no art. 1º, determina que é a competente para estabelecer as disposições penais materiais e
processuais relativas ao domínio do cibercrime e da recolha de prova em suporte eletrónico. De
facto, esta lei tem três capítulos distintos:Cap. I - Objeto e definições;

a) Cap. II - Disposições penais materiais, onde tem os diverso tipos legais de crime;
b) Cap. III - Disposições processuais.  dimensão verdadeiramente inovadora
c) Normas respeitantes à cooperação penal internacional - que complementam as
disposições da Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal – Lei nº
144/99, de 31/08

A lei do cibercrime prevê um conjunto de meios de obtenção de prova novos, em relação ao


CPPenal, em suporte eletrónico - mas em que processos?

- Art. 11.º - 1 - Com exceção do disposto nos artigos 18.º e 19.º *, as disposições processuais
previstas no presente capítulo aplicam-se a processos relativos a crimes:

a) Previstos na presente lei; - crimes informáticos;

b) Cometidos por meio de um sistema informático; ou - são aqueles que fazem parte da noção
de criminalidade informática em sentido amplo (ex.: injúria através de Facebook)

c) Em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico. -
todos, mesmo os ‘’tradicionais’’, em que seja necessário recolher prova em suporte eletrónico.

CRÍTICA (à al.c): a lei do cibercrime compreendo, afinal, um regime geral sobre a recolha de
prova em suporte eletrónico, aplicável ao processo por qualquer crime. Ou seja, as regras
probatórias previstas na lei do cibercrime, correspondem assim a um regime sobre prova
eletrónica; elas não são apenas regras processuais específicas para o setor da cibercriminalidade,
ou sequer apenas relativas a crimes praticados em sistemas informáticos. Aliás, o próprio art. 1.º
da LC diz que se estabelecem regras relativas ao domínio do cibercrime e na recolha de prova
em suporte eletrónico, por isso temos estes 2 domínios.

Neste sentido, tem-se dito (e com razão, da perspetiva da doutora) que não se compreende por
que motivo estas regras não foram inseridas no próprio código de processo penal. Esta inserção
destas normas no código de processo que não teria sido por isso a opção mais correta tendo em
conta a inconveniência de ver dispersas em leis extravagantes regras gerais carecidas de
integração no CPP, e que são de aplicação no processo de investigação qualquer crime. Sendo
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
um diploma extravagante, por vezes, traz a dificuldade de compatibilização com normas
do próprio CPP, e também com normas de outros diplomas. Por exemplo. compatibilização
com o art. 189.º, do CP.

Que dificuldades existem na compatibilização de normas noutros diplomas?

Atentemos no n.º 2 do art. 11.º: «As disposições processuais previstas no presente capítulo não
prejudicam o regime da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho». Esta é a chamada Lei Da Conservação
De Dados Gerados Ou Tratados No Contexto Oferta De Serviços De Comunicações Eletrónicas.

Art. 1.º : regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos
a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para
identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e
repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem
jurídica interna a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de
Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços
de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações,
e que altera a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de
Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das
comunicações electrónicas.  Assim, esta lei impõe aos fornecedores de serviços de
telecomunicações (como MEO, NOS, etc.) que conservem / retenham os dados de tráfego e de
localização relativas às comunicações eletrónicas com a finalidade ali descrita, dos seus
clientes, durante 1 ano.

Note-se que não se trata do conteúdo das próprias conversações, mas sim quando é que a
chamada foi efetuada, o momento em que se iniciou a conversação e em que terminou.

ATENÇÃO: na Lei 41/2004 temos uma noção de «dados de tráfego», porém, no art. 2.º, al.c),
da Lei do Cibercrime, também dá uma noção de «dados de tráfego» - e não são propriamente
coincidentes. A Doutora considera isto ‘’uma trapalhada’’.

O art.6.º da Lei 32/2008 dita que «As entidades referidas no n.º 1 do artigo 4.º devem conservar
os dados previstos no mesmo artigo pelo período de um ano a contar da data da conclusão da
comunicação.» para a eventualidade de ser necessário aceder aos dados no âmbito de uma
investigação - rem. p/ art. 9.º: « A transmissão dos dados referentes às categorias previstas no
artigo 4.º só pode ser autorizada, por despacho fundamentado do juiz de instrução, se houver
razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova
seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção
e repressão de crimes graves ».  rem. p/ art. 2.º, n.º1, al.g), da presente lei.

NOTA: Esta Lei 32/2008 tem suscitado questões sobre se é ou não válida, tendo em conta que a
Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, foi
considerada inválida.

12/05/2021

[continuação da análise da Lei da Conservação de dados de tráfego - Lei n.º 32/2008, de 17


de julho]
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
O art. 11.º, n.º 2 estabelece que as disposições processuais não prejudicam o regime da Lei nº
32/2008. É uma lei de conservação de dados de tráfego: regula a conservação e transmissão dos
dados de tráfego relativos a pessoas singulares e coletivas para fins de investigação, deteção e
repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes. De acordo com esta lei, os
fornecedores de comunicações eletrónicas (MEO, Vodafone, etc) ficam obrigados a conservar
os dados de tráfego e localização de todos os seus clientes para a eventualidade de eles virem a
ser objeto da investigação de crimes graves. A lei diz que se conservam os dados de tráfego e
localização, desde 2004 já tínhamos a Lei do Tratamento dos Dados Pessoais e Proteção de
Privacidade no setor das comunicações eletrónicas (Lei nº41/2004). A própria lei do cibercrime
também dá uma noção de dados de tráfego. Assim, a Lei 32/2008, de 17 de julho consagra que
todos os fornecedores públicos de comunicações eletrónicas estão obrigados a conservar, reter,
os dados de tráfego de todos os seus clientes para a eventualidade de investigação de crimes
graves.

A lei estabelece que esses dados têm de estar preservados pelo período de um ano a contar da
data da conclusão da comunicação. Diz também esses dados só poderão ser transmitidos pelas
operadoras de comunicação se houver um despacho fundamentado do juiz de instrução nesse
sentido (art. 9º). Toda a lei diz que os dados de tráfegos são conservados para a eventualidade
de ser necessário recorrer a eles no âmbito da investigação de crimes graves – cuja definição
está prevista no art. 2º, n.º1, al.g) [fazer remissão do art. 2º para os códigos do CP respetivos -
“terrorismo” art. 1º, al.i), “criminalidade violenta art. 1º/j) e “criminalidade altamente
organizada” art. 1º/m) do CPP].

EM SUMA: obrigados a conservar estes dados + pelo período de 1 ano + p/ eventualidade


de ser necessário recorrer ao mesmos em sede de investigação dos crimes graves referidos
+ mediante despacho fundamentado do juiz de instrução.

NOTA: não confundir! Não são as conversas que temos por telefone ou online que ficam
registadas e guardadas; é, por exemplo, para quem ligamos, em que momento se iniciou
essa conversação, quando cessou, etc. Excetuam-se os casos em que damos autorização
para a gravação.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA DECLAROU A INVALIDADE DA DIRECTIVA


2006/24/CE, em 8 de Abril de 2014 (Processos C-293/12 e C-594/12)

As coisas estão muito complicadas em relação a esta Lei. Ora, esta nossa lei, como dito,
transpõe para a ordem jurídica interna uma Diretiva de 2006. Contudo, esta diretiva, entretanto,
foi declarada inválida pelo TJUE – Ac. TJUE 8 de abril de 2014 (Ireland Digital Rights). Esta
declaração de invalidade foi proferida na sequência de questões prejudiciais, que foram
colocadas pelo Supremo Tribunal Irlandês e pelo Tribunal Constitucional austríaco. Como a
declaração de invalidade foi proferida na sequência de questões prejudiciais, tem-se entendido
que esta declaração de invalidade tem eficácia jurídica limitada aos casos em que foi suscitada,
embora haja quem entenda que essa declaração tem uma eficácia geral. É uma questão de
direito europeu que não vai ser aqui tratada. A doutora tende a considerar que tem eficácia
jurídica limitada.

A questão é: de qualquer modo, temos uma Lei nº 32/2008, em vigor no nosso OJ, resultado que
da transposição de uma diretiva que foi considerada inválida pelo TJUE.
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
O que é que o TJUE invocou neste acórdão? O tribunal começou por entender que os dados
conservados ao abrigo desta diretiva permitem, do seu todo, retirar conclusões precisas sobre
a vida privada dos titulares dos dados retidos, tal como os hábitos quotidianos, os locais
permanentes ou temporários de residência, os seus movimentos diários, atividades
desenvolvidas, relações sociais, bem como locais frequentados. Assim, concluiu pela
invalidade por violação dos direitos à reserva da intimidade da vida privada e à proteção de
dados pessoais e ao princípio da proporcionalidade. Uma diretiva que impõe que os serviços de
comunicações guardem os dados de tráfego de todos os seus clientes violaria todos estes
direitos.

Logo, a nossa lei é válida ou não?

Entre nós a questão ano está anda clara. O que acontece é que A Comissão Nacional De
Proteção De Dados, entre nós, é a entidade responsável pela tramitação dos processos
contraordenacionais decorrentes de violações da Lei n.º 32/2008 e esta comissão já anunciou,
desde 2017, que deixaria de aplicar a lei por a considerar que esta viola a CDUE e a própria
CRP.

Por sua vez, o Gabinete do Cibercrime (Da Procuradoria-Geral Da República), emitiu uma nota
prática36 - Nota nº7/2015 de 30 de dezembro - referindo que a Lei nº32/2008 mantinha-se válida
porque o legislador nacional foi muito para além das exigências da Diretiva, e o legislador
português acautelou a maior parte das cautelas alertadas pelo TJUE. O legislador português já
acautelou a generalidade dos direitos (reserva da intimidade da vida privada e a ideia de
proporcionalidade). Assim, a comissão diz que não aplica a lei porque viola a CEDH, o
Gabinete do Cibercrime diz que a lei se encontra em vigor.

O que é que aconteceu em janeiro de 2019?

A Provedoria de Justiça recomendou ao Ministério da Justiça que promovesse a alteração desta


lei, a fim de o regime se conformar com as exigências do TJUE. O Ministério Da Justiça
respondeu a dizer que a lei oferecia as garantias suficientes para se darem como protegidos os
direitos fundamentais que podem ser postos em causa por aquela lei. Porque se entendeu assim?

1. O acesso aos dados de tráfego ou localização só é autorizado por um despacho


fundamentado pelo juiz de instrução;
2. tem de haver um requerimento prévio do MP
3. e, além disso, só é possível esse requerimento dos dados em relação a um catálogo de
crimes previamente definidos na lei.

* O facto de haver a intervenção de um JI e só podem ser pedidos no domínio de crimes graves


são duas exigências que não resultavam da Diretiva, mas o nosso legislador acautelou. As
críticas que justificavam a declaração de invalidade não se verificariam, assim, perante a nossa
lei portuguesa. Temos sempre aqui uma ideia de ponderação, pois apesar de se estar a invadir
direitos fundamentais dos visados (de todos nós), e haver um grande problema da privacidade e
proteção de dados pessoais, há restrições que têm que ver com o momento em que vamos
proceder a essa intromissão.

36
Obs.: notas práticas são orientações que devem ser seguidas pela generalidade dos procuradores, e não
vinculativas.
Direito Processual Penal II
Ano Letivo 2020/2021
Em 26 agosto de 2019, a Provedora De Justiça requereu ao TC a fiscalização abstrata da
constitucionalidade da Lei n.º 32/2008, por violação do princípio da proporcionalidade na
restrição aos direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar (26.º, n.º1 CRP), ao
sigilo das comunicações (34.º) e, ainda, ao direito a uma tutela jurisdicional efetiva. A verdade,
porém, é que até hoje o TC ainda não se pronunciou relativamente a este requerimento.

Já houve, porém, outros casos em que, não sendo diretamente posta em causa a
constitucionalidade desta lei, o TC já teve de lateralmente apreciar a constitucionalidade de
certas normas desta Lei n.º 32/2008. Vejamos:

- Acórdão do TC n.º 420/2017, de 13 de julho

A declaração de invalidade de uma diretiva não tem uma consequência automática sobre a
validade de um ato nacional que o transponha. No caso, queria-se acesso ao IP. O tribunal a quo
considerou que não se podia aplicar o art. 6. º porque essa norma era inconstitucional, na
sequência da invalidade da diretiva. O TC entendeu que a invalidade da Diretiva não interfere
com a validade da Lei n.º 32/2008, uma vez que esta última tem autonomia relativamente à
primeira. O TC decidiu “Não julgar inconstitucional a norma que estabelece o dever de os
fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de uma
rede pública de comunicações conservarem pelo período de um ano a contar da data da
conclusão da comunicação, os dados relativos ao nome e o endereço do assinante ou do
utilizador registado, a quem o endereço do protocolo IP estava atribuído no momento da
comunicação, constante do disposto no artigo 6.º e do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), 2.ª parte, e
n.º 2, alínea b), subalínea iii), ambos da Lei n.º 32/2008 de 17 de julho”

Neste caso, estava apenas em causa os dados relativos ao nome e endereço do assinante. No
fundo, na investigação já estava a informação relativamente ao IP, o que se pretendia era saber o
nome da pessoa que usava esse IP. Como vimos, considerou que a norma não era
inconstitucional.

EM SUMA: a tendência do TC em relação aos vários aspetos particulares é de entender que as


normas não são inconstitucionais.

Feito este percurso, as nossas dúvidas mantêm-se: nossa Lei n.º 109/2009 diz, no seu art. 11.º,
n.º2 «que as disposições processuais não prejudicam o regime da Lei n. º32/2008» – que está
em vigor -, mas nalguns aspetos do regime entra em contradição com o que é disposto na Lei do
Cibercrime.

O problema é que a lei do cibercrime veio a simplificar o regime de acesso aos dados
informáticos em geral (não implicando os requisitos exigidos pela Lei nº32/2008), podendo, em
certos casos, a transmissão desses dados ao processo ser ordenada também pelo próprio MP e,
além disso, a LC prevê o acesso a dados no âmbito de processos por crimes que não são crimes
graves na aceção da Lei n. º32/2008. Como é que vamos harmonizar o regime das duas leis?
Há duas posições fundamentais:
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 Minoritária – diz que a LC revogou tacitamente o disposto na Lei n.º 32/2008 no que diz
respeito ao regime de acesso aos dados e esta lei subsiste, sobretudo, no que diz respeito ao
estabelecimento dos deveres dos fornecedores de serviços e à prestação dos dados. No
fundo, este entendimento defende que a Lei n.º 32/2008 só deve vigorar nas dimensões que
não foram expressamente reguladas pela LC. A doutora não concorda com esta posição.
 Maioritária – a relação entre estas duas leis é de complementaridade. Não é pelo facto de
LC ser posterior que se verifica uma revogação tácita. Cabe ao intérprete determinar o
âmbito de aplicação de cada lei e justifica-se o regime mais rigoroso que decorre da Lei
n.º32/2008, pois quanto maior for o acervo de informação sensível existente, maior deverá
ser, também, o cuidado no seu acesso. Já que o legislador impõe uma conservação
preventiva dos dados, então compreende-se que, concomitantemente, ele restrinja a
possibilidade da sua utilização apenas aos casos em que um juiz, independente e imparcial,
considere que o acesso a tais dados é indispensável.

Então, é preciso harmonizar as duas leis. Porém, como está nas mãos do intérprete decidir
qual a norma aplicável, a confusão é imensa. Os acórdãos são tão diversos e as fundamentações
que a doutora não os vai disponibilizar, mas vai antes fazer uma síntese relativa a esta matéria.
O que exige uma análise das disposições processuais da LC. É no capitulo III da LC que
encontramos as disposições processuais onde esta lei foi mais inovadora. A dimensão
processual é a mais importante na LC.

Quando falamos nestas disposições costumamos fazer uma distinção entre (1) disposições
processuais que eram totalmente desconhecidas do ordenamento jurídico-português (foram uma
total novidade) e, depois, (2) outras disposições processuais que, não sendo verdadeiras
inovações, foram adaptações ao ambiente informático ou digital de institutos que já eram
conhecidos do nosso direito processual penal.

 (1) o art. 12º, 13º e 14º:

a) Preservação expedita de dados armazenados num sistema informático (art. 12.º) – se no


decurso do processo for necessária à produção da prova, tendo em vista a descoberta da
verdade, obter acesso a dados específicos armazenados num sistema informático, incluindo
dados de tráfego, em relação aos quais haja receio de que possam perder-se, alterar-se ou deixar
de estar disponíveis, a autoridade judiciária competente ordena a quem tenha disponibilidade ou
controlo desse dados, designadamente a fornecedor de serviço, que preserve os dados em causa
- por isso se chama uma ordem de preservação de dados. Há um conjunto de dados que está
num sistema informático e há receio de que eles desapareçam, então as AJ dão uma ordem à
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pessoa que tem a titularidade sobre esses dados para que esses sejam preservados: dados de
tráfego, documento eletrónico, programa de computador, dados pessoais, dados de tráfego, etc.
Esta disposição legal não permite a obtenção pelas autoridades dos dados informáticos em si
mesmos, apenas obriga a quem tenha a disponibilidade e controlo desses dados a preservá-los
por um determinado período de tempo. A partir desta disposição não há um acesso aos
dados, mas apenas uma ordem para que os dados sejam preservados!! A ordem de
preservação pretende apenas permitir que informação previsivelmente importante não
seja destruída. Esta ordem de preservação destina-se a ser executada primordialmente por
fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas, mas também pode ser executada por
qualquer pessoa que tenha controlo sobre um sistema informático onde certos dados estejam
armazenados.
Ora bem, já vimos que a entidade com competência para dar esta ordem pode ser o MP
ou o juiz, mas há casos em que esta ordem também pode ser dada pelos OPC, como disposto no
n.º2. Esta referência à possibilidade de intervenção direta do OPC acontece muitas vezes na LC
e, como veremos, é um crítica feita a esta LC, pois não se sabe se acautela ou não corretamente
os direitos dos contribuintes.
- períodos de preservação
Os dados devem ser preservados até um máximo de 3 meses (art. 12.º/2), porém, a AJ pode
ordenar a renovação dessa ordem de preservação por períodos sucessivos sempre com o
máximo de 3 meses quando se verifiquem os respetivos requisitos de admissibilidade até ao
limite de um ano (n.º5).
- Art. 6.º da Lei 32/2008
Isto afinal pode entrar em conflito com o disposto na Lei n.º 32/2008 - como é que vamos
compatibilizar esta preservação expedita de dados com o disposto na lei e na LC? Sabemos
que a lei n.º 32/2008 é uma imposição legal aos fornecedores serviços no sentido de conservar
os dados de tráfego. Ao abrigo da Lei n.º32/2008, os fornecedores têm o dever de conservar os
dados, independentemente de qualquer processo, para a eventualidade de virem a ser
necessários, como é que compatibilizamos a obrigação que decorre da imposição legal com as
ordens concretas que podem ser dadas no âmbito de processos concretos para a preservação de
dados. A doutora diz que a interpretação mais correta parece ser: a possibilidade permitida pelo
art.12º veio reforçar, no âmbito de um processo concreto, a obrigação que os fornecedores de
serviços já têm de observar por força da Lei n.º 32/2008. Esta última lei impõe aos fornecedores
de serviço a obrigação de preservação genérica de dados de tráfego e de localização pelo
período de um ano a contar da data da conclusão da comunicação.
Qual é, então, a novidade do art. 12º?
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- A ordem que decorre do art. 12º da LC veio complementar esta obrigação, por exemplo,
quanto a investigações criminais quando se trate de crimes que não sejam crimes graves, nos
termos da lei n.º 32/2008. Além disso, esta ordem de preservação nos termos do art. 12º pode ter
como destinatários eventuais fornecedores de serviços que não estejam abrangidos pelas
obrigações resultantes da Lei n.º 32/2008, por ex: pode ter como destinatário uma instituição
bancária que permita o acesso aos seus serviços online através dos serviços que comummente
são designados como home banking; os bancos não estão sujeitos às imposições da Lei
nº32/2008, mas podem ser destinatários desta ordem, não obstante esta ordem ter de estar
harmonizada com as leis de sigilo bancário por ex.
- Terceira diferença: o art. 12º da LC abrange todos os dados informáticos e não só os dados de
tráfego e localização.
- Quarta diferença: quanto aos dados preservados ao abrigo do art. 12º da LC, eles destinam-se a
servir como prova no próprio processo em que a sua preservação for ordenada. Ora, os outros
dados que são retidos pela imposição da Lei n.º 32/2008, são retidos para a eventualidade de, no
futuro, ser necessário recorrer a eles num processo por crime grave. Ex.: A pornografia infantil
cabe no conceito de criminalidade violenta (art. 1º/j) do CPP); imaginemos que na sua
investigação é necessário recorrer a certos dados informáticos (como o IP) ou saber qual foi a
comunicação/percurso feito pela comunicação, a que horas começou determinada comunicação,
já estão a ser conservados ao abrigo da lei nº32/2008, mas, ainda assim, pode ser interessante no
processo em concreto uma ordem de preservação expedita de dados. Imaginemos que está
mesmo a terminar o prazo de um ano em que os dados são preservados pela imposição legal da
lei nº32/2008. Esta tem sido uma questão, que agora está mais pacificada, muito discutida: por
vezes, o MP dava uma ordem de preservação de dados por 3 meses e as operadoras diziam que,
por imposição legal, tais dados só podiam ser preservados por 12 meses, recusando a
preservação. Houve vários acórdãos relativos a esta matéria, pois as operadoras recusavam-se a
preservar os dados por mais tempo.
NOTA: Assim, tem-se entendido que determinados dados de tráfego ou de localização fiquem
preservados durante 2 anos (casos em que se aplica o regime das duas leis).

b) Revelação expedita de dados de tráfego (art. 13.º) – Tendo em vista assegurar a


preservação dos dados de tráfego relativos a uma determinada comunicação,
independentemente do número de fornecedores de serviço que nela participaram, o fornecedor
de serviço a quem essa preservação tenha sido ordenada nos termos do artigo anterior indica à
AJ ou OPC, logo que o souber, outros fornecedores de serviço através dos quais aquela
comunicação tenha sido efetuada, tendo em vista permitir identificar todos os fornecedores de
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serviço e a via através da qual aquela comunicação foi efetuada. Ora, a informação respeitante
ao caminho que efetuou no seu percurso vai ficando registada de forma repartida por vários
fornecedores de serviço, porém quem está a investigar só vai sabendo progressivamente quem é
o fornecedor de serviço que se segue no percurso da comunicação à medida que cada um deste
fornecedores lhe vai dizendo de onde veio e para onde foi a comunicação. No fundo, cada um
dos fornecedores de serviço vai indicar às AJ ou aos OPC a origem e o destino da comunicação
que atravessou a sua rede ou usou os seus servidores. Deste modo, o trabalho de reconstrução de
um percurso informático, numa rede de comunicações aberta (como a internet), vai depender da
gradual obtenção de informação sobre esse percurso e sobre o destino seguinte em cada uma das
etapas percorridas. O conhecimento deste percurso informático está dependente da prestação da
informação de cada um dos servidores sobre qual foi o servidor que se seguiu no caminho da
informação - cada um vai dizer de onde veio e para onde foi a comunicação. Existe em
complemento de outro meio de conservação de prova: a ordem de preservação. Por vezes, pode
ser preciso obter esta revelação expedita.
Exemplo da pornografia infantil: alguém colocou online elementos da pornografia infantil, mas
para isso não se limitou a usar um servidor; há um percurso por vários fornecedores de serviço.

c) Injunção para a apresentação ou concessão do acesso a dados (art. 14.º) – se no decurso


do processo se tornar necessário à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade,
obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema
informático, a AJ competente ordena a quem tenha disponibilidade ou controlo desses dados
que os comunique ao processo ou que permita o acesso aos mesmos, sob pena de punição por
desobediência (art. 348º CP). Num processo concreto, pode haver uma ordem nos termos do art
12º, 13º e, ainda, uma desta que visa a apresentação dos dados retidos. Porque é que está aqui
esta injunção para apresentação ou concessão de acesso aos dados? Esta norma justifica-se
porque quem investiga sente, muitas vezes, dificuldade no acesso à informação quando ela
estiver armazenada em sistemas informáticos, sobretudo em consequência da grande capacidade
de armazenamento dos sistemas modernos e da sua enorme complexidade. Na verdade, por um
lado, dada a imensidade de espaço de armazenamento dos modernos suportes digitais, pode ser
muito moroso e difícil encontrar a informação que se pretende se não se contar com a
colaboração de quem tem disponibilidade sobre o sistema. Por outro lado, são hoje conhecidas
diversas possibilidades de ocultar a informação ou de bloquear o acesso a essa informação, por
ex: através da encriptação ou cifragem ou através da introdução de palavras-passe que
bloqueiam o acesso a determinadas áreas do sistema informático e que, por isso, dificultam a
procura da informação se não houver colaboração de quem tem o domínio sobre esse sistema
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informático. É importante que quem domine o sistema informático permita o acesso a esse
sistema, mas o art.14º preocupou-se com a proteção de alguns direitos fundamentais e diz,
expressamente no nº5, que a injunção prevista neste artigo não pode ser dirigida a suspeito ou
arguido nesse processo, porquê? violador do princípio da proibição à autoincriminação. Ou, por
ex., têm acesso a um determinado sistema informático e exigir-se que o arguido diga em que
pasta de documento está algo não é possível. Não pode igualmente fazer-se uso da injunção
quanto a sistemas informáticos sujeitos a profissões sujeitas a segredo (nº6). Esta norma do art.
14º visa sobretudo obter informações dos fornecedores de serviço, mas não só. Esta norma
permite facilitar, por ex., o acesso a computadores de estruturas empresariais onde os suspeitos
ou arguidos exerçam funções e em cujos sistemas informáticos tenham deixado provas das suas
atividades ilícitas. Então, o administrador informático de uma determinada empresa ou rede
empresarial, por ex., pode ser sujeito a uma injunção nos termos do art. 14º para que forneça
prova armazenada no sistema informático que ele administra e que possa ser importante no
âmbito de um determinado processo penal. Assim, é uma injunção que se pode destinar a um
fornecedor de serviço, mas também relativamente a um simples dirigente empresarial. Tem-se
colocado a questão de saber se pode ser pedido diretamente pelo MP ou se tem de ser o juiz a
fazer esse pedido aos fornecedores de serviço, bem com questiona-se qual a norma que autoriza
o acesso ao IP. O que é isto do endereço IP? Ao ligar o computador e conectá-lo a uma rede, o
aparelho recebe um endereço IP, mas a partir do momento em que começa a navegar na rede é-
lhe atribuído um outro numero. Quando se começa a navegar na rede, começa-se com outro
número. Aquilo que se tem dito é saber se deve ser considerado um dado de tráfego o IP ou se,
pelo contrário, deve ser designado como um dado de base, como tradicionalmente. O que era
isto de dados de base? Designação que já não surge na LC, mas significava: dados recolhidos e
que servem de base aos procedimentos necessários para a realização de comunicações. São
então os dados para acesso à rede pelos utilizadores compreendendo a identificação dos
utilizadores e a sua morada. Noutros diplomas utilizava-se esta expressão, mas a LC utiliza
outra expressão: dados relativos aos clientes ou assinantes de fornecimento de serviços,
referidos no art. 14º/3 ou 4 da LC. Ora bem, o que se tem perguntado é saber se o IP deve ser
considerado um dado de base ou um dado de tráfego e, além disso, pode colocar-se a questão de
outra perspetiva: podem as AJ já estarem na posse do IP em causa e querer saber a identidade
do cliente que num determinado contexto temporal utilizou esse endereço IP. O IP em si só não
nos dá indicação ao percurso feito. A questão é saber: trata-se de que tipo de dados? O acesso a
dados de tráfego tem de ser sempre autorizado por um JI, levantando todos os problemas
relativos à lei nº32/2008, ou, pelo contrário, devem ser entendidos como os tradicionais dados
de base, relativos a clientes e assinantes de serviços e, como tal, podem ser acedidos por mero
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despacho do MP. Porque é que a questão se coloca? Se olharmos para a lei nº32/2008, no artigo
4º/2 a), consideram-se dados de tráfego o nome e o endereço do assinante, dados estes que antes
eram considerados meros dados de base. Não é, então, nada claro se a identidade do assinante
deve ou não ser considerado dado de tráfego. Mas devem assim ser considerados quando
estiverem associados a uma determinada comunicação. Se forem considerados isoladamente, já
podem ser considerados dados de base. Ex: as autoridades têm o numero de telefone e elas
querem só saber de quem é o numero, saber a identidade do mesmo, independentemente de
qualquer comunicação, então neste caso trata-se de dados de base, podendo ser pedidos pelo
MP; tratando-se de dados relacionados com uma determinada comunicação, então eles já devem
ser considerados dados de tráfego e, por isso, têm de ser pedidos pelo juiz. para a doutora as
coisas não ficam nada claras: se é verdade que a identificação era tida como dados de base,
também é verdade que a lei 32/2008 diz que esse dado é um dado de tráfego; para além disso, o
disposto no art. 14º é aplicável a fornecedores de serviço a quem pode ser ordenado que
comuniquem ao processo dados relativo ao tráfego ou conteúdo. Pode ser dada uma ordem de
acesso desde que sejam dados diferentes de dados relativos ao tráfego e ao conteúdo,
designadamente a identidade, morada, telefone e qualquer outro numero de acesso. Ao lermos
esta alinea b) encontramos uma certa contradição, porque a lei diz que se pode pedir aos
fornecedores de serviço a identidade, a morada e o número de telefone e qualquer outro numero
de acesso, de que numero estaremos a falar? Parece que o legislador aqui quis referir-se ao
endereço IP. A LC não considera aqueles dados como dados de base, mas sim de trafego! O
gabinete do Cibercrime já emitiu uma nota prática acerca disto, dizendo que o MP, de acordo
com o 14/4, pode diretamente pedir a informação relativa à identificação do cliente e a
informação relativa ao internet protocol. Ora bem, a jurisprudência tem sido muito diversa aqui,
apresentando-se alguma “guerra” entre o MP e os juízes. O gabinete do cibercrime tem
tendência a fazer interpretações que sejam mais “amigas” da investigação e mais restritivas de
direitos fundamentais. Atentar no Acórdão da TRL de 19/06/2014. A lei nº32/2008 considera a
dado de tráfego, sujeita aos pressupostos da lei, a LC diz que não devem ser entendidos como
dados de tráfego. A confusão.
 Levanta-se, ainda, outra questão ainda relativamente ao IP: relacionado com
uma determinada comunicação. Há pouco, de acordo com a lei n32/2008, os
fornecedores de serviço estão obrigados a conservar os dados pelo período de
um ano, mas para o efeito de serem utilizados para a investigação de crimes
graves. Mas e se não for um crime grave? Quanto tempo os dados ficam
conservados? Se não for um crime grave, se admitirmos que se pode pedir o IP
o abrigo do 14/4, inclusivamente pelo MP, então qual é o prazo dentro do qual
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esses dados podem ser pedidos? Porque a obrigação de preservar durante um
ano é só para os crimes graves. Não Há na lei diretamente nenhuma informação
relativa a esse prazo, tendo-se entendido que esse prazo é de 6 meses, que
resulta de uma lei já antiga dos serviços públicos: Lei nº23/96, de 26 de julho, é
conhecida como a Lei dos Serviços Públicos, criando um conjunto de
mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos. O art. 10º
desta lei diz que o direito ao recebimento do preço de um serviço prestado
prescreve no prazo de 6 meses a contar após a prestação do serviço, ou seja, os
fornecedores de serviços tem direito a reter pelo seu interesse e proteção dos
consumidores pelo prazo de 6 meses porque o direito ao recebimento prescreve
no prazo de 6 meses – ao fim desses os dados têm de ser eliminados.

 (2) art. 15º, 16º, 17º, 18º e 19º:

a) Pesquisa de dados informáticos (art. 15.º) – em termos de direito processual penal, a


tradução (search) é através da utilização da palavra “busca”. A pesquisa de dados informáticos
não é mais do que uma busca a um sistema informático.
b) Apreensão de dados informáticos (art. 16.º) – é uma apreensão incorpórea.
c) Apreensão de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhantes
(art. 17.º) – é uma norma especial da nossa lei que não estava na Convenção de Budapeste, foi
uma originalidade do nosso legislador.
d) Interceção de comunicações (em processos relativos a certos crimes - art. 18.º)
e) Ações encobertas (em processos relativos a certos crimes - art.º 19)

A doutora diz que, para efeitos de conservação da prova, o MP não se deve precipitar, de forma
a evitar que a prova seja considerada proibida. Quem tudo quer tudo perde. O MP deve pedir ao
JI um despacho e, munido deste despacho, já poderá ultrapassar estas dificuldades. Em relação a
isto não há grandes duvidas, podendo ser pedidos mesmo fora do âmbito da lei n32/2008, mas
mesmo isto é duvidoso. A jurisprudência tem ido no sentido de admitir o acesso a esses dados.
Por via das dúvidas, mais vale o MP munir-se de tal despacho, pois caso seja invocada a
violação de regras de produção de prova, estaremos no âmbito do 126º.
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