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Capítulo I

Teoria da Prova
Sumário • 1. Noções introdutórias – 2. O direito fundamental à prova. Relação entre o princípio do contraditório
e o direito à prova – 3. Normas estruturantes do direito probatório: 3.1. Poderes instrutórios do juiz; 3.2. Aqui-
sição processual da prova ou comunhão da prova: 3.2.1. Noções iniciais; 3.2.2. Aplicação à valoração e eficácia
probatória; 3.2.3. Aplicação ao litisconsórcio; 3.2.4. Aplicação à admissibilidade probatória. O direito adquirido
à produção da prova; 3.2.5. Confronto com o ônus objetivo da prova; 3.3. Proibição do uso de prova ilícita; 3.4.
Livre convencimento motivado. Sistemas de valoração das provas – 4. Acepções da palavra “prova” – 5. Objeto
da prova: 5.1. Observação preliminar; 5.2. Características do fato probando; 5.3. Fatos que independem de prova
(art. 334, CPC); 5.4. Prova do direito; 5.5. Prova de fato ocorrido no estrangeiro – 6. Meios e fontes de prova: 6.1.
Generalidades; 6.2. Liberdade dos meios de prova. Meios típicos e atípicos – 7. Prova emprestada: 7.1. Conceito; 7.2.
Eficácia; 7.3. Outras questões – 8. Máximas da experiência, indícios e presunções: 8.1. As máximas da experiência;
8.2. Presunções e indícios: 8.2.1. Indício; 8.2.2. Presunção; 8.2.3. Classificação das presunções: 8.2.3.1. Simples,
comuns, “de homem” ou “hominis”; 8.2.3.2. Legais; 8.3. A recusa da parte a submeter-se a exame médico: o art.
232 do Código Civil, o par. ún. do art. 2º-A da Lei n. 8.560/1992, o enunciado n. 301 da súmula da jurisprudência
predominante do STJ e as ações de investigação de paternidade/maternidade e de investigação de ascendência
genética; 8.4. A prova prima facie; 8.5. Prova por amostragem –9. Classificação da prova – 10. O problema da
verdade e a prova – 11. Finalidade da prova – 12. Destinatário – 13. Ônus da prova: 13.1. Ônus da prova. Ônus
subjetivo e objetivo; 13.2. Ônus da prova como regra de julgamento e de aplicação subsidiária; 13.3. Distribuição
(estática) do ônus da prova; 13.4. Inversão do ônus da prova ope judicis e a chamada inversão do ônus da prova
ope legis; 13.5. Inversão do ônus da prova ope judicis. Causas de consumo e outras; 13.6. Convenções sobre ônus
da prova; 13.7. Ônus da prova de fato negativo; 13.8. Prova diabólica; 13.9. Teoria da distribuição dinâmica do
ônus da prova – 14. Instrução da causa – 15. Preclusão para o juiz em matéria de prova – 16. Natureza jurídica
das normas sobre prova.

1. Noções introdutórias
A noção de prova está presente em todas as manifestações da vida humana e
transcende o campo do Direito1. É, dos assuntos da dogmática processual, aquele
que exige do aplicador e do estudioso maior volume de noções de outras áreas do
conhecimento. A interdisciplinaridade, aqui, não é apenas um desejo acadêmico:
sem observar essa característica, não há como interpretar e aplicar corretamente
as regras do direito probatório.
Qualquer decisão humana, qualquer que seja o ambiente em que tenha sido
proferida (em um baile de carnaval, em um shopping center ou em um processo
jurisdicional), é resultado de um convencimento produzido a partir do exame de
diversas circunstâncias (de fato ou não); é baseada em diversos elementos de prova.
No processo jurisdicional, o objetivo principal é a efetivação de um determi-
nado resultado prático favorável a quem tenha razão, que seja produto de uma
decisão judicial que se baseie nos fatos suscitados no processo (normalmente pelas

1. ECHANDIA, Hernando Devis. Teoria general de la prueba judicial. 5 ed. Buenos Aires: Victor P. de
Zavalía Editor, 1981, t. 1, p. 9.

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partes, mas que, em algumas situações, podem ter sido suscitados pelo próprio
magistrado) e postos sob o crivo do contraditório.
O fenômeno jurídico não prescinde da averiguação da ocorrência dos fatos,
sobre os quais incide o enunciado normativo, dando-lhe eficácia jurídica.
Cada uma das partes conta a sua versão sobre o que aconteceu. A versão
mais bem provada, aquela que vier a convencer o julgador, tem tudo para ser a
vencedora. A “arte do processo não é essencialmente outra coisa senão a arte de
administrar as provas”2, como afirmou Bentham, em pensamento clássico.
Este capítulo é dedicado ao estudo da teoria geral da prova: o conjunto de
conceitos e regras gerais para o estudo do direito probatório.

2. O direito fundamental à prova. Relação entre o prin-


cípio do contraditório e o direito à prova
O direito à prova é conteúdo do direito fundamental ao contraditório. A dimen-
são substancial do princípio do contraditório o garante.3 Nesse sentido, o direito
à prova é também um direito fundamental.
Esse direito fundamental também está previsto em tratados internacionais
incorporados ao direito brasileiro: (i) a Convenção Americana de Direitos Huma-
nos (Pacto de São José da Costa Rica), incorporado pelo Decreto n. 678/69, no
seu art. 8.º; (ii) o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, incorporado
pelo Decreto n.º 592/92, no seu art. 14.1, alínea “e”.4 Não custa lembrar que, na
forma do § 3º do art. 5º da CF/88, após a EC n. 45/2004, os tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
O direito fundamental à prova tem conteúdo complexo.
Ele compõe-se das seguintes situações jurídicas: a) o direito de produzir provas;
b) o direito de participar da produção da prova; c) o direito de manifestar-se sobre
a prova produzida; d) o direito ao exame, pelo órgão julgador, da prova produzida.

2. BENTHAM, Jeremías. Tratado de las pruebas judiciales. E. Dumont (org.). Manuel Ossorio Florit (trad.).
Buenos Aires: Valletta Ediciones Jurídicas Europa-América, 1971, v. 1, p. 10.
3. Assim, por exemplo, MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas de processo civil. São Paulo: Malheiros,
1999, p. 258-259; CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil. São Paulo: RT,
2001, p. 166; DORIA, Rogério Dotti. “O direito à prova e a busca da verdade material” In: Daniel Amorim
Assumpção Neves (coord.). Provas: Aspectos atuais do direito probatório. Rio de Janeiro: Método, 2009,
p. 326
4. CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil, cit., p. 167-168.

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Quanto ao primeiro aspecto, Eduardo Cambi esclarece que esse direito fun-
damental à prova tem caráter instrumental; e sua finalidade, afirma, é o alcance
de uma tutela jurisdicional justa. Por isso, deve-se sempre buscar dar efetivida-
de a tal direito. E “nesse contexto, a efetividade do direito à prova significa o
reconhecimento da máxima potencialidade possível ao instrumento probatório
para que as partes tenham amplas oportunidades para demonstrar os fatos que
alegam”,5 influindo, assim, no convencimento do julgador. Deve-se assegurar,
pois, o emprego de todos meios de prova imprescindíveis para a corroboração dos
fatos. Mas tal assertiva não deve ser encarada de modo absoluto; não se trata de
direito fundamental absoluto. O direito ao manejo das provas relevantes à tutela
do bem perseguido pode ser limitado, excepcionalmente, quando colida com ou-
tros valores constitucionalmente consagrados. Há inúmeras regras que limitam o
direito à produção da prova. Elas serão estudadas oportunamente, no exame de
cada um dos meios de prova.
Mas o direito à produção da prova tem autonomia suficiente para ser objeto de
um processo autônomo. A ação probatória autônoma é uma demanda que possui
como único propósito a produção de uma prova. Há ações probatórias autônomas
típicas, como a produção antecipada de provas (arts. 846-851, CPC), a exibição
(arts. 844-845, CPC) e a justificação (arts. 861-866, CPC). Há quem defenda,
corretamente, a possibilidade de uma ação probatória autônoma atípica, em que se
busca a produção de uma prova, simplesmente, fora das hipóteses típicas mencio-
nadas – e independente de urgência. O titular desse direito é a parte que pretende
estar mais bem informada para decidir se leva ou não a questão a juízo ou se lá a
mantém, se já litigiosa. Destacam-se aí os poderes de busca e obtenção da prova,
que viabiliza a adequada avaliação da parte interessada de suas chances de êxito
em atual ou futura batalha judicial – não visando, necessariamente, usá-la como
via de convencimento do juiz em julgamento estatal de mérito. Seria um “direito
à investigação”6 – que a conduz à situação equiparável àquela observada em sede
de inquérito civil, próprio das questões relacionadas aos direitos transindividuais
(sobre o tema, cf. o v. 4 deste Curso). Ao estudo das ações probatórias autônomas
dedica-se um capítulo inteiro neste volume do Curso.
O direito à participação na produção da prova é garantia básica inerente ao
contraditório. Não se pode admitir prova produzida secretamente, muito menos se
permite a utilização de uma prova contra quem não participou da sua produção.

5. CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil, cit., p. 170.


6. YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova.
São Paulo: Malheiros, 2009, p. 47, 211 e 212; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Ações Probatórias
Autônomas. São Paulo. Saraiva, 2008.

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A regra do art. 431-A, que cuida da realização da prova pericial, concretiza essa
garantia. As exigências para a utilização da prova emprestada, examinadas neste
capítulo, idem.
O direito de manifestar-se sobre a prova produzida é concretizado em diver-
sas regras. Confiram-se, por exemplo, a que permite a apresentação de laudo do
assistente técnico da parte sobre o laudo pericial (art. 433, par. ún., CPC) e a que
permite a apresentação das razões-finais, após a audiência de instrução (art. 454,
CPC).
O direito ao exame da prova produzida é corolário do direito à produção da
prova. De pouco valeria ter o direito à produção de um meio de prova, se o juiz
pudesse, solenemente, ignorá-lo. Se a prova foi produzida, é porque o órgão jul-
gador a considerou relevante para a causa; essa decisão gera para a parte a expec-
tativa legítima de que a prova seja valorada. Trata-se de imposição do princípio
do contraditório, mais uma vez, e do princípio da cooperação, pois essa conduta
revela respeito do juiz pela atuação processual da parte.

3. Normas estruturantes do direito probatório


3.1. Poderes instrutórios do juiz
Importante analisar qual o papel das partes e do juiz na atividade probatória;
quais são os poderes atribuídos a cada um desses sujeitos processuais.
Fala-se, basicamente, em dois modelos possíveis: a) os sistemas informados
pelo princípio dispositivo, em que cabe às partes em litígio a iniciativa probató-
ria, com a coleta e apresentação das provas de suas próprias alegações – que é
tradicional nos países anglo-saxônicos (common law), o adversarial system; b) e
os sistemas informados pelo princípio inquisitivo, em que são atribuídos maiores
poderes ao juiz, cabendo-lhe uma postura mais ativa na atividade de instrução, que
deve contar com a iniciativa oficial – que é característico dos países da Europa
Continental e da América Latina (civil law), o inquisitorial system.7 Sobre a dis-

7. A propósito, dentre outros, MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Correntes e contracorrentes no processo
civil contemporâneo”. Temas de Direito Processual – nona série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 56 e 57.
Nesse contexto, Michele Taruffo faz severas críticas à terminologia tradicionalmente utilizada. Para o
autor italiano o termo “inquisitivo” é equivocado, senão inútil. Invoca o espírito da Santa Inquisição em
cujos processos a parte não tinha poder de defesa diante do tribunal onipotente. O termo é inadequado
(ambíguo/duvidoso), diz, pois não há e nunca houve nenhum ordenamento cujo processo civil fosse ver-
dadeiramente inquisitivo – isto é, inteiramente conduzido pelo juiz e com partes totalmente destituídas de
direitos e garantias. Assim, sem desconsiderar a validade da contraposição entre processo adversarial e
processo inquisitorial, para a comparação de famílias jurídicas, propõe que se abandone o termo “inqui-
sitivo” ou “inquisitorial” no processo civil, para limitar-se a falar de modelos mistos, em que convivem

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