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RETROATIVIDADE DAS ALTERAÇÕES REALIZADAS NA LIA.

Uma análise das decisões já prolatadas sobre o tema

Alberto Felipe Lima Coimbra


Graduado em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Membro do Grupo de Estudos de Direito Administrativo (GDA)
acoimbra@vieirarezende.com.br

Tiago ....
Graduado em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
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SUMÁRIO: Introdução. A retroatividade no Direito brasileiro. Os limites da retroatividade da


LIA traçados pelo STF no julgamento do Tema 1.199 e a construção da jurisprudência sobre
a matéria. Direito Penal, LIA e Direito Administrativo Sancionador, uma análise crítica.
Conclusão

I Introdução

Na esteira das grandes operações de combate à corrupção promovidas no decorrer


dos anos 2010, surgiu um grande debate sobre a necessidade de se aprimorar os instrumentos
legais de controle de atos da Administração Pública e dos agentes do Estado.
Nesse contexto, o Congresso Nacional aprovou e o Presidente promulgou a Lei nº
14.230/2021, que alterou a Lei nº 8.429/1992, conhecida com Lei de Improbidade
Administrativa ou LIA, a qual traz a definição e as devidas sanções aos atos de improbidade,
conforme delineado pelo art. 37, § 4º, da CF.1
Entre as diversas mudanças, esse artigo se debruçará especificamente sobre aquelas
que foram objeto de análise do STF no julgamento do ARE nº 843.989, recurso representativo
da controvérsia do Tema 1.199, quando a Corte definiu as seguintes teses:
1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos
atos de improbidade administrativa, exigindo-se nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA a
presença do elemento subjetivo dolo;

1
§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função
pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem
prejuízo da ação penal cabível.
1
2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 revogação da modalidade culposa do ato de
improbidade administrativa, é irretroativa, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI,
da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada;
nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;
3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa
culposos praticados na vigência do texto anterior, porém sem condenação transitada
em julgado, em virtude da revogação expressa do tipo culposo, devendo o juízo
competente analisar eventual dolo por parte do agente.
4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é irretroativo,
aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.

II A retroatividade no Direito brasileiro

Uma das principais funções do Direito é a regulação das relações sociais. Busca-se
através de um conjunto de regras estabelecer equilíbrio entre os ônus e bônus da vida em
comum, para que sob o império das leis alcancemos a paz e saibamos as consequências e
implicações àqueles que agirem em ilicitude.
Dentro desse contexto de previsibilidade das consequências do ilícito, em
homenagem ao princípio da segurança jurídica, o ordenamento jurídico pátrio optou por
definir como regra que as leis têm efeito imediato e irrestrito e não atingem o ato jurídico
perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido, conforme estabelecido pelo art. 6º, do Decreto-
Lei nº 4.657/1942 ou Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB)2.
Em suma, uma nova norma não será aplicada para reformar atos que tenham sido
praticados na forma prevista em lei vigente à época, não atingirá direitos já incorporados ao
patrimônio dos particulares e nem servirá como fundamento para questionar decisões
judiciais contra as quais não caibam mais recursos.
Trata-se do princípio da irretroatividade da norma, que protege o cidadão contra
alterações de regras no tempo, limitando o poder do Estado para alterar o status quo, criando
um núcleo duro de atos jurídicos imutáveis e fazendo com que as novas leis incidam sobre
casos ainda pendentes de julgamento final pelo Poder Judiciário ou instruam a atuação dos
órgãos da administração pública na análise de demandas que versem sobre meras expectativas

2
Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a
coisa julgada.
2
de direitos ainda não consolidados ou pendentes de atos ainda a serem praticados.
Todavia, como é sabido, a irretroatividade não é absoluta. A Carta Magna prevê no
art. 5º, LV, que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” e o Código Tributário
Nacional (“CTN”), em seu art. 106, estabelece a possibilidade de aplicação da lei a fatos
anteriores, quando se tratar de inovação favorável ao contribuinte. Ou seja, na seara do direito
criminal e do direito tributário, a lei nova pode retroagir quando mais benéfica ao sujeito
passivo.
Ambas as exceções carregam em si o mesmo princípio, qual seja, quando o
particular for beneficiado por uma nova norma, deve-se aplicá-la, afastando-se aquelas que
vigiam ao tempo dos fatos. Todavia, cumpre pontuar que na esfera do direito tributário, o
CTN expressamente limita a retroatividade aos fatos que ainda não tiveram julgamento
definitivo, enquanto no direito penal, um condenado por sentença transitada em julgado deve
ter sua pena revogada, caso lei posterior torne atípico o ato antes definido como criminoso.
Feitos esses apartes sobre a matéria da aplicação da lei no tempo e os princípios
jurídicos a ela afetos, passaremos à análise das decisões judiciais que definiram as balizas da
aplicabilidade das alterações introduzidas na LIA pela Lei nº 14.230/2021 aos casos concretos
quando beneficiam os acusados de ato de improbidade.

III Os limites da retroatividade da LIA traçados pelo STF no julgamento do Tema 1.199
e a construção da jurisprudência sobre a matéria

De início, cabe destacar que o acórdão ora em comento traz uma definição peculiar
do que é retroatividade, calcado no voto do Min. Relator, Alexandre de Moraes.

Conforme se depreende do trecho abaixo do referido voto condutor, o STF adotou


uma metodologia de dividir o objeto em dois grupos: (i) processos com decisão transitada em
julgado e (ii) processos em tramitação (em qualquer instância):

"O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES


(RELATOR) — 'O segundo ponto: ato de improbidade culposo
praticado antes da lei, mas sem condenação transitada em julgado.
Aqui, também se formou maioria acompanhando o Relator com
fundamentos diversos — eu entendo que é não ultra-atividade; e a
maioria, a retroatividade. Então, aqui, acompanharam o Relator: o
ministro André Mendonça; o ministro Nunes Marques; o ministro
3
Dias Toffoli; o ministro Ricardo Lewandowski; o ministro Gilmar
Mendes e ministro-presidente Luiz Fux (sete votos aqui pela
retroatividade, ou não ultra-atividade). Em outras palavras, o que
não transitou em julgado, o ato culposo não transitado em julgado,
deve ser extinta a ação".

Desta forma, a retroatividade seria a capacidade que a nova lei tem de atingir
especificamente a coisa julgada, extinguindo-a, e, para a maioria dos Ministros da Corte, esse
poder extintor é exclusivo de leis geridas no âmbito criminal (penal), o que significa dizer
que, ainda que não exista mais ato culposo de improbidade no atual ordenamento, as
sentenças condenatórias de atos culposos de improbidade, já transitadas em julgado, são
imutáveis, sendo mantidas as condenações, em linha com a natureza civil e não criminal das
ações de improbidade.

No que se refere à condenação por culpa em processos ainda em trâmite – em


qualquer instância – a Suprema Corte introduziu um outro elemento jurídico conceitual a não-
ultratividade de uma norma anterior, definida como a impossibilidade de se condenar o réu
com base em artigo ou normativo que, no momento da decisão, não está mais em vigor.

Em outras palavras, seja pela retroatividade da nova lei, seja pela vedação à
ultratividade do diploma revogado, restou decidido por maioria que se o processo ainda está
em tramitação, o réu não pode ser condenado se o tipo sancionador — no caso, o culposo —
não existe mais.

"Ressalte-se, entretanto, que apesar da irretroatividade, em relação a


redação anterior da LIA, mais severa por estabelecer a modalidade
culposa do ato de improbidade administrativa em seu artigo 10, vige
o princípio da não ultra-atividade, uma vez que não retroagirá para
aplicar-se a fatos pretéritos com a respectiva condenação transitada
em julgado, mas tampouco será permitida sua aplicação a fatos
praticados durante sua vigência, mas cuja responsabilização judicial
ainda não foi finalizada. Isso ocorre pelo mesmo princípio do tempus
regit actum, ou seja, tendo sido revogado o ato de improbidade
administrativa culposo antes do trânsito em julgado da decisão
condenatória; não é possível a continuidade de uma investigação, de
uma ação de improbidade ou mesmo de uma sentença condenatória
com base em uma conduta não mais tipificada legalmente, por ter
sido revogada.

4
Não se trata de retroatividade da lei, uma vez que todos os atos
processuais praticados serão válidos, inclusive as provas produzidas
— que poderão ser compartilhadas no âmbito disciplinar e penal —;
bem como a ação poderá ser utilizada para fins de ressarcimento ao
erário. Entretanto, em virtude ao princípio do tempus regit actum,
não será possível uma futura sentença condenatória com base em
norma legal revogada expressamente".

Ainda neste trecho do julgado, cabe sublinhar a definição, também peculiar, dada ao
princípio tempus regit actum.

Como se sabe, a referida expressão latina significa literalmente o tempo rege o ato,
no sentido de que os atos jurídicos (actum) se regem pela lei da época (tempus) em que
ocorreram.

Conforme se observa dos excertos acima, ao adotar o preceito de vedação da


ultratividade, o STF estabeleceu que o actum não mais é o agir do réu, mas sim a decisão do
juiz; ou seja, a ação que deve ser levada em conta, para fins de aplicação da lei no tempo, é a
do Judiciário, o ato de julgar.

Sendo assim, o intérprete da lei deve verificar qual lei vigora no momento em que
for prolatar sua decisão, não mais àquela que vigorava quando da prática do suposto ato
ímprobo.

Em outros termos, o julgado traz uma nova interpretação ao referido princípio, de


modo a possibilitar a aplicação da Lei nº 14.230/2021 aos processos em curso, mantendo
íntegras as condenações já transitadas em julgado.

Em julgados recentes sobre o tema, ainda não é unanimidade nas cortes nacionais a
aplicação das teses definidas no julgamento do Tema 1.199, conforme observaremos nos
acórdãos abaixo colacionados:

APELAÇÃO. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.


SENTENÇA QUE RECONHECE A PRESCRIÇÃO
INTERCORRENTE, COM BASE NAS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS
PELA LEI FEDERAL Nº 14.230/2021 À LEI DE IMPROBIDADE
5
ADMINISTRATIVA. RETROATIVIDADE DAS NORMAS DE
CONTEÚDO ESTRITAMENTE DE DIREITO MATERIAL.
IRRETROATIVIDADE DAS NORMAS DE CONTEÚDO
PROCESSUAL E TAMBÉM AS DE CONTEÚDO HÍBRIDO, A
EXEMPLO DA PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. SENTENÇA
REFORMADA PARA REJEITAR A PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE
E, ASSIM, PERMITIR O PROSSEGUIMENTO DA DEMANDA.
RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 01.
Cuidam os autos de apelação interposta contra sentença que
reconheceu a prescrição intercorrente da pretensão punitiva por ato
de improbidade, em razão das alterações promovidas pela Lei
Federal nº 14.230/2021. 02. É incabível a aplicação retroativa da
prescrição intercorrente, prevista no art. 23, § 5º, da Lei Federal nº
8.429/92 (Lei da Improbidade Administrativa ¿ LIA), dispositivo
acrescido pela Lei Federal nº 14.230/2021, mesmo à luz do direito
administrativo sancionador, pois sua aplicabilidade imediata não
pode atingir atos processuais perfectibilizados, considerando que a
norma tem conteúdo misto (processual e material). 03. Decerto, a
prescrição intercorrente tem feitio de direito material, já que fulmina
a pretensão punitiva, isto é, a aptidão do jus puniendi de ser
reconhecido em juízo. Todavia, sua deflagração e interrupção se
confunde com a prática de atos processuais (ajuizamento da ação de
improbidade, prolação da sentença, publicação de decisão ou
acórdão etc.) e tem como consequência imediata influenciar a marcha
processual, sinalizando ao Poder Judiciário e às partes a urgência
que se deve ou não imprimir à tramitação do feito e ao manejo das
estratégias de defesa e acusação. Logo, considerando que a
legislação à época não atribuía aos atos processuais a consequência
de reiniciar ou interromper o lapso prescricional, não se pode
reconhecer dos atos praticados à época, de forma retroativa, o
decurso do prazo prescricional intercorrente, mesmo porque a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça era consolidada no
sentido de que inexistia prescrição intercorrente, à míngua de
previsão legal. (...)
07. Trata-se, ademais, de certa maneira, de aplicação por analogia
da ratio decidendi da jurisprudência do STF quando à (in) existência
de prescrição intercorrente, antes do advento da Lei Federal
14.230/2021. Isso porque, se o entendimento era de que a prescrição
intercorrente ¿ embora prevista no sistema de direito penal
sancionador ¿ não se aplicava ao sistema de direito administrativo
sancionador por não existir expressa previsão legal, entende-se que,
mutatis mutandis, a aplicação retroativa do novel instituto
dependeria, igualmente, de determinação legal inequívoca quanto à
sua extensão frente aos atos processuais já praticados. 08. Veja-se o
teor da decisão: O Tribunal, por unanimidade, apreciando o tema
1.199 (...)3

3
TJ-CE - AC: 00007653320138060208 Ipu, Relator: PAULO FRANCISCO BANHOS PONTE, Data de
Julgamento: 06/02/2023, 1ª Câmara Direito Público, Data de Publicação: 07/02/2023
6
Conforme se observa no excerto acima, os Desembargadores do Tribunal de Justiça
do Ceará, reformaram a sentença considerando a 4ª norma fixada na tese: “4) O novo regime
prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos
temporais a partir da publicação da lei.”

Por outro lado, sobre o mesmo tema da prescrição intercorrente, vale mencionar o
seguinte acórdão prolatado no âmbito do Tribunal de Justiça da Paraíba no qual se considerou
a Lei nº 14.230/2021, contudo, desconsiderou a tese fixada pelo STF, ainda que o julgamento
tenha ocorrido em fevereiro de 2023:

APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE IMPROBIDADE


ADMINISTRATIVA. PROCEDÊNCIA, EM PARTE, DO PEDIDO.
PREJUDICIAL DE OFÍCIO. EXISTÊNCIA DE FATO
SUPERVENIENTE. LEI FEDERAL Nº 14.230/2021. APLICAÇÃO DA
NORMA MAIS BENÉFICA. RETROATIVIDADE. PRESCRIÇÃO, IN
CONCRETO, CONFIGURADA. INTERREGNO DE MAIS DE 06
(SEIS) ANOS ENTRE A PROPOSITURA DA AÇÃO E A SENTENÇA..
EXTINÇÃO DO PROCESSO COM RESOLUÇÃO DO MÉRITO
PARA RECONHECER A PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE.
APELOS PREJUDICADOS.

A Lei Federal nº 14.230/2021 promoveu diversas modificações na Lei


de Improbidade Administrativa, dentre as quais, a hipótese de
prescrição intercorrente da pretensão sancionatória, constituindo
norma de caráter mais benéfico ao réu.

No caso, operou-se a prescrição intercorrente, uma vez que já


decorreram mais de 06 (seis) anos entre o ajuizamento da demanda e
a sentença, atraindo a aplicação dos §§ 5º e 8º do art. 23 da LIA.
(...)
Ocorre que, em consonância com o novo § 5º, do art. 23, do
preceptivo normativo acima indicado, que incluiu o Instituto da
Prescrição Intercorrente, o lapso temporal após interrompido,
recomeça a correr do dia da interrupção, pela metade do prazo, ou
seja, por 04 (quatro) anos, nestes termos:

“Art. 23. A ação para a aplicação das sanções previstas nesta Lei
prescreve em 8 (oito) anos, contados a partir da ocorrência do fato
ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a
permanência. (…)

§ 5º Interrompida a prescrição, o prazo recomeça a correr do dia da


interrupção, pela metade do prazo previsto no caput deste artigo”.

7
Portanto, em se tratando de norma mais benéfica aos acusados,
deverá retroagir e ser aplicada aos fatos, por se tratar de princípio
constitucional do direito administrativo sancionador (art. 1º, § 4º, da
Lei nº 8.429/92).

Compulsando os autos, observa-se que os fatos ocorreram nos anos


de 2013 e 2014 e o respectivo ajuizamento da ação pertinente no ano
de 2015, gerando, assim, a causa interruptiva da prescrição.

Entretanto, a sentença de mérito somente foi prolatada no ano de


2021, mais de 04 (quatro) anos após o reinício do prazo, fazendo
incidir a prescrição intercorrente, que se caracteriza como matéria de
ordem pública, que pode ser conhecida e decretada de ofício, em
qualquer grau de jurisdição.(...)4

IV Direito Penal, LIA e Direito Administrativo Sancionador, uma análise crítica.

O relator do recurso, ministro Alexandre de Moraes, iniciou sua argumentação


destacando a natureza civil dos atos e da ação de improbidade administrativa, bem como que
o Direito Administrativo sancionador em nada se confunde com o Direito Penal. Nesse
sentido, entendeu que a aplicação ao sistema da improbidade dos princípios constitucionais
do Direito Administrativo sancionador não implica na aplicação também dos princípios
constitucionais penais, dentre os quais a retroatividade da lei mais benéfica — inciso XL do
artigo 5º da Constituição. In verbis:

A natureza civil dos atos de improbidade administrativa é essencial


para a análise da possibilidade ou não de aplicação retroativa das
previsões da nova lei e decorre – diretamente – do comando
constitucional, que é bastante claro ao consagrar a independência da
responsabilidade civil por ato de improbidade administrativa e a
possível responsabilidade penal, derivadas da mesma conduta, ao
utilizar a fórmula "sem prejuízo da ação penal cabível”.

Nesse exato sentido, FÁBIO KONDER COMPARATO ensina que:

"a própria Constituição distingue e separa a ação condenatória do


responsável por atos de improbidade administrativa às sanções por
ela expressas, da ação penal cabível, é, obviamente, porque aquela
demanda não tem natureza penal” (Ação de improbidade: Lei

4
(TJ-PB - AC: 00001934320158150051, Relator: Des. Marcos William de Oliveira, 3ª Câmara Cível) - Data
de Julgamento: 02/02/2023
8
8.429/92. Competência ao juízo do 1° grau. Boletim dos
Procuradores da República, ano 1, n. 9, jan. 1999.).

Esse é o mesmo entendimento de GIANPAOLO POGGIO SMANIO e


de DAMÁSIO DE JESUS, ao afirmarem que:

"as sanções previstas para os atos de improbidade administrativa são


de natureza civil, distintas daquelas de natureza penal. Os atos de
improbidade administrativa deverão ser analisados na esfera da
ilicitude dos atos civis e não dos tipos penais” (Responsabilidade
penal e administrativa de prefeitos municipais. Boletim IBCCrim, n.
54, maio 1997).

A Lei 14.230/21, de maneira inexplicável, pretendeu, em seu artigo


17-D, excluir a natureza civil da ação de improbidade, em que pese,
esse substrato partir da própria Constituição Federal, ao prever:

“A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter


sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal
previstas nesta Lei, e não constitui ação civil , vedado seu
ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e
para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e
de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos
(Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021).

Ora, ao errônea e fictamente tentar excluir a natureza civil da ação


de improbidade, a lei não teve a força de excluir a natureza civil do
ato de improbidade e suas sanções, pois essa “natureza civil” tem
substrato diretamente do texto constitucional, conforme reconhecido
pacificamente por essa CORTE.

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL destacou, no julgamento do


TEMA 576 de Repercussão Geral, de minha relatoria (RE n°
976.566/PA), a natureza civil dos atos de improbidade administrativa,
afirmando que

“a Constituição Federal inovou no campo civil para punir mais


severamente o agente público corrupto, que se utiliza do cargo ou de
funções públicas para enriquecer ou causar prejuízo ao erário,
desrespeitando a legalidade e moralidade administrativas,
independentemente das já existentes responsabilidades penal e
político-administrativa de Prefeitos e Vereadores”.

Nesse mesmo sentido, essa SUPREMA CORTE afirmou que: “Os


agentes políticos, com exceção do Presidente da República,
encontram-se sujeitos a um duplo regime sancionatório, de modo que
se submetem tanto à responsabilização civil pelos atos de
improbidade administrativa, quanto à responsabilização
políticoadministrativa por crimes de responsabilidade.... O foro
especial por prerrogativa de função previsto na Constituição Federal
9
em relação às infrações penais comuns não é extensível às ações de
improbidade administrativa, de natureza civil ” (PET 3240 AgR/DF,
Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, j. 10/05/18).

De igual maneira, como bem recordado no parecer do Ministério


Público de São Paulo, que hoje se fez representar na sustentação oral
por seu eminente Procurador Geral de Justiça, MÁRIO LUIZ
SARRUBO:

“no julgamento da ADI n.° 2.797-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence,


em 15.09.2005, o STF declarou a inconstitucionalidade do foro
privilegiado instituído pelo § 2° da Lei n.° 10.628 de 24.12.2002, ao
argumento de que “a ação de improbidade tem natureza cível,
enquanto o foro por prerrogativa de função restringe-se à seara
penal”.

Ressalte-se, ainda, que o próprio legislador, ao editar a nova lei e


alterar o artigo 17 da LIA, determinou que se seguisse o
procedimento comum estabelecido no Código de Processo Civil,
deixando óbvia sua natureza civil.

Não há, portanto, qualquer dúvida sobre a previsão constitucional da


natureza civil dos atos de improbidade administrativa.

Em que pese sua natureza civil, o ato de improbidade administrativa é


um ato ilícito civil qualificado e exige, para a sua consumação, um
desvio de conduta do agente público, devidamente tipificado em lei, e
que, no exercício indevido de suas funções, afaste-se dos padrões
éticos e morais da sociedade, pretendendo obter vantagens materiais
indevidas (artigo 9º da LIA) ou gerar prejuízos ao patrimônio público
(artigo 10 da LIA), mesmo que não obtenha sucesso em suas
intenções, apesar de ferir os princípios e preceitos básicos da
administração pública (artigo 11 da LIA).

A Lei 14.230/2021 reiterou, expressamente, a regra geral de


necessidade de comprovação de responsabilidade subjetiva para a
tipificação do ato de improbidade administrativa, exigindo – em todas
as hipóteses – a presença do elemento subjetivo do tipo – DOLO,
conforme se verifica nas novas redações dos artigos 1º, §§ 1º e 2º; 9º,
10, 11; bem como na revogação do artigo 5º:(...)

No mesmo sentido, a ementa do acórdão que fixou a tese em comento:

11. O princípio da retroatividade da lei penal, consagrado no inciso


XL do artigo 5º da Constituição Federal (“a lei penal não retroagirá,
salvo para beneficiar o réu”) não tem aplicação automática para a
responsabilidade por atos ilícitos civis de improbidade
administrativa, por ausência de expressa previsão legal e sob pena de
10
desrespeito à constitucionalização das regras rígidas de regência da
Administração Pública e responsabilização dos agentes públicos
corruptos com flagrante desrespeito e enfraquecimento do Direito
Administrativo Sancionador.

Ainda nessa linha, a novel jurisprudência do Tribunal de Justiça do Ceará:

04. Embora se apliquem ao sistema de proteção da probidade


administrativa os princípios constitucionais do direito administrativo
sancionador (art. 1º, § 4º, da LIA), a similitude com o direito penal
sancionador não é o mesmo que identidade. Explica-se: enquanto no
direito penal, a proteção que se confere ao réu é justificadamente
maior, por versar sobre o direito de liberdade do indivíduo; na seara
administrativa, os direitos individuais passíveis de cerceamento
temporário são de menor expressão (propriedade, liberdade
contratual e exercício dos direitos políticos). Assim, conquanto se
justifique a necessidade de proteção especial ao acusado frente ao
direito punitivo do Estado (direito sancionador), despontam como
bens jurídicos de igual relevância a proteção ao patrimônio público e
a vedação ao retrocesso no combate à improbidade, princípios ínsitos
ao direito administrativo que também possuem índole constitucional
(art. 23, inciso I e art. 37, § 4º, da CF/88).

05. É a principiologia constitucional e administrativa, portanto, que


indica que o princípio da retroatividade das normas mais benéficas,
embora existente, é aplicada, na seara do direito administrativo
sancionador, de forma distinta que na do direito penal, mesmo porque
o art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, ao instituir a
retroatividade (irrestrita) das normas benéficas ao réu, menciona tão
somente a lei penal. 06. Nesse trilhar, entende-se que a retroação de
normas de conteúdo processual ou híbrido (processual e penal), na
seara do direito administrativo sancionador, carece de expressa
previsão legal, o que não existe no caso. De fato, o legislador, ao
editar a Lei Federal nº 14.230/2021, sequer cuidou de instituir uma
norma de transição, o que dirá disciplinar a retroação de normas
benéficas. Nesse diapasão, a Lei Federal nº 14.230/2021, ao revogar
as disposições da LIA que se referiam a normas do Código de
Processo Penal, e instituir a aplicação subsidiária do Código de
Processo Civil, "salvo o disposto nesta Lei" (art. 17, da LIA), indica
que o respeito aos atos jurídicos processuais perfeitos (art. 14, do
CPC e art. 6º, da LINDB) certamente é uma das diretrizes para a
aplicação de normas processuais ou mistas.5
V Conclusão

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TJ-CE - AC: 00007653320138060208 Ipu, Relator: PAULO FRANCISCO BANHOS PONTE, Data de
Julgamento: 06/02/2023, 1ª Câmara Direito Público, Data de Publicação: 07/02/2023
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REFERÊNCIAS

JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da Lei de Improbidade Administrativa: Lei 14.230


comparada e comentada. 1. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2021.

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