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Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL

Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – REDE LFG

Curso de Pós-gradução Lato Sensu TeleVirtual em


DIREITO PROCESSUAL: GRANDES TRANSFORMAÇÕES

Disciplina

Processo Penal: Grandes Transformações

Aula 2
Índice
Leitura Obrigatória 1 ... p. 01
Leitura Obrigatória 2 ... p. 07
Leitura Obrigatória 3 ... p. 17

LEITURA OBRIGATÓRIA 1

Luiz Flávio Gomes


Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri.
Mestre em Direito penal pela USP.
Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG.

JUIZADOS CRIMINAIS – ALTERAÇÕES DA LEI 11.313/2006

Como citar este artigo:

GOMES, Luiz Flávio. Alterações da Lei 11313/2006. Material da 2ª aula da


disciplina Processo Penal: Grandes Transformações, ministrada no curso de
pós-graduação lato sensu televirtual em Direito Processual: Grandes
Transformações – UNISUL/REDE LFG.

A lei dos juizados criminais (Lei 9.099/1995) introduziu no Brasil um novo modelo de
justiça, o consensual. Quatro foram as medidas despenalizadoras previstas nesta lei:
transação penal (art. 76), composição civil extintiva da punibilidade (art. 74), representação
das lesões corporais culposas ou simples (art. 88) e suspensão condicional do processo (art.
89).
Por força do art. 60 da Lei 9.099/1995 os juizados criminais são competentes para a
conciliação, julgamento e execução das infrações de menor potencial ofensivo. Esse
dispositivo foi alterado recentemente pela Lei 11.313/2006.
A Lei 9.099/1995 excluía, da competência dos juizados, duas situações: 1ª)
agente não encontrado para ser citado pessoalmente (não existe citação por edital nos
juizados) e 2ª) causa que apresenta grande complexidade.
Além dessas duas hipóteses (que implicam a alteração da competência dos juizados
para o juízo comum) havia muita polêmica em torno de uma terceira, que ocorre quando há
conexão ou continência entre uma infração de menor potencial ofensivo e outra do juízo
comum (ou do júri). Porte ilegal de arma de fogo e lesão corporal leve, por exemplo. Outro
exemplo: tentativa de homicídio e lesão corporal leve. Discutia-se o seguinte: nesses casos,
de conexão, o correto era separar os processos (CPP, art. 79) ou promover a reunião deles
(CPP, art. 78)?
A doutrina inclinava-se (tendencialmente) para a primeira solução (separação) (cf.
GRINOVER et alii, Juizados especiais criminais, 5ª ed., São Paulo: RT, 2005, p. 71). A Lei
11.313/2006, de 28.06.06, entretanto, seguiu caminho diverso. Alterou o caput do art. 60 da
Lei 9.099/1995 e mandou respeitar as regras de conexão e continência. Em seguida, no
parágrafo único (que não existia), fixou o critério da reunião dos processos, in verbis:

“Art. 1o Os arts. 60 e 61 da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, passam a vigorar


com as seguintes alterações:
“Art. 60. O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e leigos,
tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais
de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência.
Parágrafo único. Na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri,
decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os
institutos da transação penal e da composição dos danos civis.” (NR)

A mesma regra foi estabelecida para os juizados federais:

“Art. 2o . O art. 2º da Lei no 10.259, de 12 de julho de 2001, passa a vigorar com a


seguinte redação:
“Art. 2o Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de
competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo,
respeitadas as regras de conexão e continência.
Parágrafo único. Na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri,
decorrente da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os
institutos da transação penal e da composição dos danos civis.” (NR)

Podemos e devemos extrair desses textos legais algumas conclusões importantes:

2
1ª) A força atrativa, para a reunião dos processos (como não poderia ser diferente), é
do juízo comum (estadual ou federal) ou do tribunal do júri (estadual ou federal). Ou seja:
seguindo o disposto no art. 78 do CPP manda a nova lei que no caso de crimes conexos haja
reunião dos processos na vara comum ou no tribunal do júri.
2ª) A nova lei tem aplicação imediata (entrou em vigor no dia 28.06.06, data de sua
publicação). Lei processual nova que altera ou que fixa competência tem aplicação imediata,
incluindo-se os processos em andamento. Exceção: a exceção que existe a essa regra reside
no processo que já conta com decisão de primeira instância. Nesse caso, não se altera a
competência recursal (não incide a lei nova para alterar a competência recursal).
3ª) Manda a nova lei que, na vara comum ou no tribunal do júri, sejam observados os
institutos da transação penal e da composição dos danos civis. Em outras palavras: a reunião
dos processos não constitui fato impeditivo para a aplicação desses institutos. A vara comum
ou o tribunal do júri conta com competência para isso.
4ª) Não quer a nova lei que se adote, em relação às infrações de menor potencial
ofensivo, outra política criminal distinta do consenso. Apesar da conexão ou da continência
(entre a infração de menor potencial ofensivo e outra do juízo comum), em relação à
primeira (menor potencial ofensivo) deve-se seguir a política do consenso (não a conflitiva).
5ª) Deve-se respeitar, de outro lado, a opção relevante que a lei dos juizados já havia
feito em favor da vítima. Havendo possibilidade de composição civil dos danos, não há como
evitar que isso possa acontecer. A velha reivindicação da Vitimologia (reparação dos danos em
favor da vítima) continua preservada, mesmo que haja conexão de infrações.
6ª) A reafirmação da lei nova em favor do consenso (mesmo havendo conexão) afasta
qualquer possibilidade de sua exclusão, salvo quando presentes os impedimentos para a
transação penal contidos na própria lei dos juizados (art. 76): ter o agente sido beneficiado
com outra transação nos últimos cinco anos, ter condenação definitiva anterior etc.
7ª) Em síntese: já não é possível somar a pena máxima da infração de menor potencial
ofensivo com a da infração conexa (de maior gravidade) para excluir a incidência da fase
consensual. A soma das penas máximas, mesmo que ultrapassado o limite de dois anos, não
pode ser invocada como fator impeditivo da transação penal.
8ª) A infração de menor potencial ofensivo (conexa) deve, dessa maneira, ser
analisada
isoladamente (é esse o critério adotado para a prescrição no art. 119 do Código penal). Cada
infração deve ser considerada individualmente.
9ª) A infração penal conexa de maior gravidade não pode ser invocada como fator
impeditivo da incidência dos institutos da transação ou da composição civil. A lei assim
determinou. De outro lado, no que se refere a essa infração de maior gravidade, recorde-se
que o agente é presumido inocente. Ela não pode, desse modo, ser fator impeditivo da
transação penal.
10ª) O juízo comum (ou do júri), que é o juízo com força atrativa, deve designar,
desde logo, uma audiência de conciliação (que deve ser prioritária). Primeiro deve-se
solucionar a fase do consenso (transação penal e composição civil). Depois vem a fase
conflitiva relacionada com a infração de maior gravidade. O processo penal, nesse caso, passa
a ser misto: é consensual e conflitivo. Consensual num primeiro momento e conflitivo após.
11ª) Pode ser que caiba, em relação à infração de maior gravidade, suspensão
condicional do processo. Na mesma audiência de conciliação as duas questões podem ser
tratadas. Mas isso pressupõe denúncia quanto à infração de média gravidade (pena mínima
não superior a um ano admite a suspensão condicional do processo).
12ª) Não pode haver denúncia (ou queixa) de plano em relação à infração de menor
potencial ofensivo. Quanto a ela rege a audiência de conciliação (ou seja: a fase consensual
da lei dos juizados). O acusador deve formular denúncia no que se refere ao delito maior e,

3
ao mesmo tempo, fazer proposta de transação para o delito menor (ou fundamentar sua
recusa nas causas impeditivas da transação constantes do art. 76).
13ª) Caso o juiz receba a denúncia, deve marcar prontamente a audiência de
conciliação (para solucionar brevemente a infração de menor potencial ofensivo).
14ª) A recusa não fundamentada ou injustificada do órgão acusatório em oferecer
proposta de transação é regida pelo art. 28 do CPP (cabe ao juiz enviar os autos do processo
ao Procurador Geral de Justiça).
15ª) Nada impede que o juiz, desde que o réu tenha sido citado regularmente, logo
depois de concluída a audiência de conciliação, faça o interrogatório do acusado
(interrogatório relacionado com a infração conexa de maior gravidade).
16ª) Não havendo acordo penal em relação à infração de menor potencial ofensivo
cabe ao órgão acusatório aditar a denúncia (pode fazê-lo oralmente, reduzindo-se tudo a
termo) para dela constar a infração menor.
17ª) Nesse caso o processo terá prosseguimento normal, adotando-se o
procedimento de maior amplitude (relacionado com a infração de maior gravidade). O
procedimento sumaríssimo dos juizados não deve ser seguido na vara comum ou no júri.
18ª) Em se tratando de réu preso (pelo delito maior), o recomendável será fazer a
audiência de conciliação na mesma data do seu interrogatório (por razões de economia
processual).
19ª) Não é possível fazer transação penal em torno de sanção alternativa incompatível
com a prisão (se o réu está preso pelo delito maior, não pode, por exemplo, cumprir
prestação de serviços à comunidade).
20ª) No momento da transação penal devem ser observadas as disposições contidas no
art. 76 (incluindo-se as causas impeditivas da transação penal).
21ª) A condenação penal precedente, definitiva, por crime, a pena privativa de
liberdade, só impede a transação penal durante o lapso de cinco anos (STF, 1ª Turma, HC
86.646-SP, rel. Min. Cezar Peluso). Ultrapassado esse lapso temporal já não há impedimento
para a transação penal.
22ª) O fato de não ser possível a transação penal não impede que haja composição
civil dos danos em favor da vítima.

Art. 61 da Lei 9.099/1995

No que diz respeito ao conceito de infração penal de menor potencial ofensivo


a Lei 11.313/2006 estabeleceu o seguinte:

“Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos
desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não
superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.” (NR)

Do novo texto legal podemos e devemos extrair as seguintes conclusões:


1ª) Na redação original previa o art. 61 a pena máxima de um ano. Por força da Lei
10.259/2001 o conceito de infração de menor potencial ofensivo foi ampliado para dois anos.
A jurisprudência estendeu esse limite de dois anos para o âmbito dos juizados estaduais.
2ª) Diante da nova redação do art. 61 não há mais nenhuma dúvida: todas as
contravenções penais assim como os crimes com pena máxima até dois anos são de menor
potencial ofensivo. Doravante esse ponto já não permite nenhuma polêmica.
4
3ª) Não importa se essa pena máxima (até dois anos) vem cumulada ou não com multa
Fundamental é observar o limite máximo da pena privativa de liberdade. É ela que
rege o conceito de infração de menor potencial ofensivo. Se a lei comina pena de prisão
superior a dois anos não há que se falar em infração de menor potencial ofensivo. Quando a
pena não passa de dois anos é infração de menor potencial ofensivo (não importa eventual
multa cumulativa).
4ª) Quando a lei diz: pena máxima de cinco anos ou multa (Lei 8.137/1990, por
exemplo) está afastada a solução consensuada dos juizados, porque a pena máxima, nesse
caso, é de cinco anos. Cabe, nessa situação, suspensão condicional do processo (porque a
pena mínima é de multa). Não cabe a transação penal porque a pena máxima é de cinco anos.
5ª) Havendo concurso formal ou crime continuado, o aumento decorrente dessas
causas deve (ou não) ser levado em conta? No que diz respeito à suspensão condicional do
processo rege a Súmula 243 do STJ que manda computar o aumento decorrente do concurso
forma ou do crime continuado. Se a pena passa de um ano, não cabe a suspensão condicional
do processo.
6ª) Tese distinta pode ser sustentada, agora, em relação à transação penal. O novo
art. 60 manda “observar” o instituto da transação, mesmo depois da reunião dos processos
(que retrata uma situação de concurso material, em regra). Ora, se no concurso material vale
o art 60 c.c. art. 119, solução distinta não será possível sugerir em relação ao concurso formal
e ao crime continuado.
7ª) Outra novidade importantíssima: a nova lei eliminou qualquer referência ao
procedimento do delito. Ou seja: não importa se o crime conta ou não com procedimento
especial. Todos com pena máxima até dois anos, são de menor potencial ofensivo. Crime de
imprensa, crime de abuso de autoridade etc. Se a pena não passa de dois anos, é infração de
menor potencia ofensivo, independentemente do procedimento ser especial ou não.
8ª) A Lei 10.259/2001 já não ressalvava o procedimento especial. Doutrina e
jurisprudência firmaram entendimento no sentido de que esse dado deixou de ter relevância
para o conceito de infração de menor potencial ofensivo. Não ultrapassado o limite de dois
anos, é infração dos juizados.
9ª) Isso já estava pacificado em todo país. Mas a Primeira Turma do STF, em dois
julgados recentes, (surpreendentemente) vinha dissentindo desse entendimento. Vejamos:

27/09/2005 - PRIMEIRA TURMA


HABEAS CORPUS 86.102-4 SÃO PAULO
RELATOR : MIN. EROS GRAU
PACIENTE(S) : DEMÉTRIO CARTA
IMPETRANTE(S) : JOSÉ ROBERTO LEAL DE CARVALHO E OUTRO(A/S)
COATOR(A/S)(ES) : COLÉGIO RECURSAL CRIMINAL CENTRAL DA CAPITAL DO ESTADO DE
SÃO PAULO
EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME DE IMPRENSA. INCOMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL.
COMPETÊNCIA TERRITORIAL: DEFINIÇÃO.
1. O artigo 61 da Lei n. 9.099/95 é categórico ao dispor que não compete aos Juizados
Especiais o julgamento dos casos em que a lei preveja procedimento especial. É a
hipótese dos crimes tipificados na Lei n. 5.250/67.
2. A competência territorial é definida em razão do local onde é realizada a impressão
do jornal ou periódico (Lei de,Imprensa, artigo 42).
Ordem concedida.

23/05/2006 - PRIMEIRA TURMA

5
HABEAS CORPUS 88.547-1 SÃO PAULO
RELATOR : MIN. CEZAR PELUSO
PACIENTE(S) : SONIA JUBRAN RACY
IMPETRANTE(S) : MANUEL ALCEU AFFONSO FERREIRA
COATOR(A/S)(ES) : SEGUNDA TURMA DO COLÉGIO RECURSAL
CRIMINAL DO FORO CENTRAL DA COMARCA DE SÃO PAULO
EMENTA: COMPETÊNCIA CRIMINAL Juizado Especial Criminal Estadual. Ação penal.
Infração ou crime de menor potencial ofensivo.
Não caracterização. Delito de imprensa. Sujeição a procedimento especial.
Competência da Justiça Comum. HC concedido para esse fim.
Aplicação de art. 61 da Lei nº 9.099/95, que não foi revogado pelo art. 2º, § único, da
Lei nº 10.259/2001. Precedentes. É incompetente Juizado Especial Criminal Estadual
para processo e julgamento de delito previsto na Lei de Imprensa.

10ª) Doravante já não existe nenhuma possibilidade de haver divergência: a nova lei
(Lei 11.313/2006) eliminou a referência que antes existia (no artigo 61) em relação ao
procedimento especial. Não importa (mais) o procedimento: todos os delitos com pena
máxima até dois anos são de menor potencial ofensivo.

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Curso de Pós-gradução Lato Sensu TeleVirtual em


DIREITO PROCESSUAL: GRANDES TRANSFORMAÇÕES

Disciplina

Processo Penal: Grandes Transformações

Aula 2
LEITURA OBRIGATÓRIA 2

Luiz Flávio Gomes


Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri.
Mestre em Direito penal pela USP.
Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG.

JUSTIÇA CONCILIATÓRIA, RESTAURATIVA E NEGOCIADA

Como citar este artigo:

GOMES, Luiz Flávio. Justiça Conciliatória, restaurativa e negociada.


Material da 2ª aula da disciplina Processo Penal: Grandes Transformações,
ministrada no curso de pós-graduação lato sensu televirtual em Direito
Processual: Grandes Transformações – UNISUL/REDE LFG.

Mediação e conciliação.1

1
Quanto à “mediação” e à “conciliação” como sistemas flexíveis de julgamento e solução de certos
conflitos, cf. na doutrina espanhola: VARONA MARTÍNEZ, G. La mediación reparadora como estratégia
de control social: una perspectiva criminológica. Granada: Editorial Comares, 1998; PÉREZ SANZBERRO,
G. Reparación y conciliación em el sistema penal: ¿Apertura de una nueva via? Granada: Editorial
7
A mediação e a conciliação não afastam o caráter público do Direito Penal: mediação e
conciliação  fórmulas flexíveis de solução de certos conflitos (normalmente de escassa
relevância, ex.: infrações de jovens e menores, infrações de menor potencial ofensivo etc.),
que substituem o julgamento convencional , tampouco contradizem a natureza pública do
Direito penal, sempre que operem no seio do sistema penal, com maior ou menor autonomia,
e não como alternativa a este, abordando desse modo o problema criminal como conflito
interno e doméstico (leia-se: como conflito a ser solucionado dentro do próprio Direito
penal).
Em tais âmbitos (infração de menor potencial ofensivo etc.), conciliação e mediação
parecem fórmulas idôneas e eficazes, porque o julgamento convencional e a sanção penal
produzem efeitos nocivos irreparáveis elevando a níveis preocupantes o custo social da
intervenção penal clássica.
Se de um lado ainda não temos amplas iniciativas de mediação já desenvolvidas em
nosso País, de outro, no que concerne à conciliação, a realidade é bem diferente. A lei dos
juizados especiais criminais (Lei 9.099/95, art. 74) prevê a possibilidade de conciliação como
resolução final do conflito (isso se dá nas infrações de menor potencial ofensivo e desde que a
ação penal seja de iniciativa privada ou pública condicionada). Nesses casos, a conciliação
(acordo) quanto à reparação dos danos significa renúncia ao direito de queixa ou de
representação (extinguindo-se o ius puniendi). Como se vê, a conciliação (pura e simples) não
é desconhecida no nosso direito.
Multiplicidade dos modelos e submodelos de mediação e conciliação: de qualquer
modo, certo é que a mediação e a conciliação, no Direito comparado, estão dando lugar ao
nascimento de uma rica gama de modelos e submodelos de solução consensuada de conflitos
(judicializados, não judicializados, desformalizados, desinstitucionalizados, comunitários
etc.). No Brasil particular referência deve ser feita à Lei dos Juizados Criminais (Lei 9.099/95,
art. 76), que admite a solução do conflito penal por meio da transação.
Mediação e conciliação constituem a base de um novo “modelo” ou “estilo” de
resposta ao comportamento delituoso:2 modelo muito ambicioso em seus objetivos (pretende
satisfazer as legítimas expectativas de todos os implicados no conflito criminal: infrator,
vítima, comunidade e Estado), mas bastante flexível em suas técnicas e procedimentos (seus
seguidores mais radicais sugerem fórmulas não oficiais  desoficializadas , desformalizadas,
desinstitucionalizadas, desjudicializadas, comunitárias, com uma terminologia ambígua e
imprecisa).
Mediação e conciliação contam com uma curta história mas um longo passado. Não se
trata de artifícios inovadores ou de fruto da mais avançada engenharia jurídica, mas sim de
estilos e procedimentos de solução de conflitos de estrutura bilateral ou trilateral, orientados
à negociação, ao compromisso. Isso sempre foi do conhecimento da humanidade. De fato,
impõe-se admitir que o número de casos que ingressam no sistema legal (Justiça criminal)
significa, em termos quantitativos, um percentual insignificante do total de conflitos que são
resolvidos por outros mecanismos alternativos ou complementares àquele.3
São muitas, de qualquer maneira (e muito díspares), as orientações político-criminais
contemporâneas que, por razões variadas, mostram-se partidárias destas técnicas de solução
de conflitos: as teses abolicionistas, os programas de origem anglo-saxônico de alternativas ao
julgamento convencional (diversion, restitution etc.), o movimento vitimológico, as

Comares, 1999; SAN MARTÍN LARRINOA, M. B. La mediación como respuesta a algunos problemas
jurídico criminológicos. Departamento de Justiça, Economia, Trabalho e Segurança Social do País
Vasco, 1997; La mediación penal (por: Rössner, Giménez Salinas, López Barja, Beristáin e outros),
Departamento de Justiça, Centre d'Estudis Juridics i Formació Especialitzada, 1999; GARCÍA-PABLOS, A.
Tratado de Criminología, cit., p. 988 e ss. (“El modelo integrado: conciliación-reparación”).
2
Sobre as ambigüidades, antagonismos, contradições e incógnitas com que depara este “modelo
integrador” de reação ao delito, cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 988 e ss. Suas
pouco homogêneas origens, fundamentos ideológicos e político-criminais e instrumentalização não
permite falar de um único modelo.
3
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 1.002 e ss.
8
concepções comunitárias (da denominada justiça restaurativa), as correntes radicais que
propugnam a reprivatização dos conflitos etc.4
Fundamentos dos modelos consensuais de justiça: seus teóricos partem da concepção
de que o crime retrata um conflito interpessoal, cuja solução efetiva, pacificadora, deve ser
encontrada pelos próprios implicados, “desde dentro”, por meio de um fluido processo de
comunicação, interação e negociação, em lugar de sua imposição pelo sistema legal, com
seus critérios formalistas, coativos e, além disso, de elevado custo social. 5
Refutação do caráter (puramente) repressivo do sistema penal: os sistemas de
mediação e conciliação resgatam a dimensão real, histórica, interpessoal e comunitária do
delito. Conseqüentemente propõem uma “gestão” (solução) participativa neste doloroso
“problema social”, ampliando o círculo tradicional dos operadores legitimados para nele
intervir (inclusão de mediadores, conciliadores, juiz de paz etc.).
Tudo isso se daria mediante técnicas e procedimentos operativos informais
(desinstitucionalizados), em favor de uma Justiça que pretende resolver o conflito, dar
satisfação à vitima e à comunidade, pacificar as relações sociais interpessoais e gerais
danificadas pelo delito e melhorar o clima social: sem vencedores nem vencidos, sem
humilhar nem submeter o infrator às “iras da lei”, nem apelar à “força vitoriosa do Direito”.
Uma Justiça, pois, “restaurativa”, de base comunitária, que se propõe intervir no
problema criminal construtiva e solidariamente, para resolvê-lo, porém, sem conotação
repressiva; não desde o imperium do sistema, senão confiando na capacidade dos implicados,
para encontrar fórmulas de compromisso, de negociação, de pacto, de conciliação, de
pacificação; confiando também na poderosa influência positiva dos grupos e instituições
primárias: na educação, na comunicação, na reconstrução dos vínculos informais do indivíduo
como garantia do acatamento sincero das normas comunitárias, assim como na prevenção do
delito.6
Os sistemas de mediação-conciliação são mais exigentes com o infrator, 7 de quem
reclamam uma sincera mudança de atitudes, mediante o processo de comunicação e
interação com sua vítima. Não basta, pois, o cumprimento do castigo, nem a reparação do
dano causado: pretende-se uma mudança qualitativa no infrator, de tal modo a implicá-lo
ativamente na solução do conflito que ele ocasionou.
O modelo integrador, de outro lado, é melhor que o convencional em relação às
necessidades da vítima, devolvendo-lhe um papel ativo e dinâmico. A forma clássica de
Justiça instrumentaliza a vítima, transformando-a em mero objeto passivo e fungível do
processo. Conciliação e mediação evitam (ou suavizam), pois, a perniciosa vitimização
secundária (que ocorre quando a vítima entra em contato com o sistema penal) e
impulsionam à efetiva reparação do dano assim como à justa satisfação da vítima (não
necessariamente na forma pecuniária), melhorando as atitudes desta última em relação ao
infrator e ao sistema legal.8
As diversas fórmulas de mediação-conciliação melhoram, ademais, a imagem da
Justiça criminal, ao permitir que o cidadão perceba sua face humana bem como sua
capacidade para resolver o doloroso problema social e comunitário do crime com critérios de
eqüidade.
Seria incorreto, por isso mesmo, confundir este novo modelo  ou estilo  de reação ao
crime com a (mera) reparação civil do dano, com o (simples) ressarcimento econômico, ou
mesmo com manifestações rituais da velha composição, da conciliação privada.
Críticas aos modelos consensuais de Justiça: mediação e conciliação também implicam
sérios riscos como formas de solução de conflitos: risco de mercantilização da justiça, risco
4
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 992 e ss.
5
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 1.008.
6
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 995 e ss.
7
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 1.010 e ss.
8
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 1.012 e ss.
9
de privatização total do conflito etc. Devemos, portanto, avançar nessa linha conciliadora,
mediadora ou restaurativa, mas com cautela e passo a passo.
Mediação e conciliação oferecem um balanço positivo quando, sem pretensões
utópicas de universalidade, circunscrevem seu objeto a conflitos concretos (ex. de jovens e
menores, infrações de escassa importância etc.), que envolvem infratores primários. Mas
correm o risco de se transformar em perversas e nocivas expressões de um tratamento
privatizador inadmissível do conflito criminal, quando aspiram a operar como alternativa
global do sistema  leia-se: da resposta pública e institucional ao delito , alternativa
externa, iludindo o controle jurisdicional e as garantias do cidadão que as instâncias do
controle social devem respeitar.
O sistema clássico de Justiça criminal acha-se, desde sempre, em crise. Porque
absolve ou condena, mas não “resolve” o problema criminal (praticamente nada de positivo
faz para a solução verdadeira do problema). Porque impõe suas decisões com imperium, mas
sem auctoritas. Porque se preocupa exclusivamente com o castigo do agente culpável  isto
é, com a pretensão punitiva do Estado, que é só um dos sujeitos implicados no problema
criminal  mas não atende às legítimas expectativas dos restantes: da vítima, da comunidade,
do próprio infrator. A efetiva reparação do dano causado pelo delito, a preocupação com a
reinserção social do delinqüente e a pacificação das relações interpessoais e sociais afetadas
pelo crime não são consideradas seriamente por aquele, que atua guiado mais por critérios de
eficiência administrativa do que de justiça e eqüidade.9
De outro lado, parece certo que a privatização do sistema penal pouco ou nada
soluciona. Tampouco lemas utópicos e demagógicos, com pretensões de universalidade, que
propugnam por uma “justiça legal” e “de aldeia”10 (ou de bairro ou de vizinhos) assim como
“a devolução” do conflito aos seus “proprietários” com o pretexto de que estes possam
resolvê-lo negociadamente  privadamente  sem a intervenção estigmatizadora das agências
oficiais do sistema (“que rouba o conflito”). 11 Ao contrário: impõe-se delimitar rigorosamente
sob que pressupostos e em que grupos de casos cabe substituir a atuação da pesada máquina
punitiva estatal  da Justiça criminal com suas fórmulas convencionais de julgamento  por
outras mais flexíveis de conciliação e mediação. E como articular estas (em todo caso, sob o
controle dos órgãos jurisdicionais) a fim de que a própria dinâmica negociadora de signo
privatizador não prejudique as garantias irrenunciáveis do cidadão assim como a própria
credibilidade da resposta ao delito.
De qualquer modo, não se pode ignorar o receio  o justo receio  que suscitam os
sistemas de reação ao delito de natureza e raízes privatistas, pois não em vão é que se deu a
transformação da arcaica justiça penal (que era justiça privada) ao modelo atual de justiça
pública (que dá solução institucional e formalizada aos conflitos). Isso supôs um progresso
histórico inquestionável, ao tornar-se possível desde então o controle racional do
funcionamento do sistema, a aplicação igualitária dos critérios de solução de conflitos bem
como a efetividade de certas garantias elementares do cidadão.

9
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 1.014 e ss.
10
Assim, CHRISTIE, N. Limits to pain. Oxford: M. Robertson, 1981, p. 97 e ss.
11
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 1.005 e ss. O autor refere-se ao pensamento
abolicionista, partidário da “radical non intervention”, no qual confluem correntes doutrinárias muito
díspares: o “novo realismo radical” (Mattews, Young, Jones, Maclean, Platt, Hogg, etc.), de finais dos
setenta, que sugere uma intervenção comunitária, enfatizando o rol da vitima do delito; orientações
criminológicas da década dos noventa, que se autodenominam “republicanas” (Hug Ford, Pettit, Duff,
Braithwaite, etc.), que propõem substituir a intervenção do sistema legal por outros controles
informais e comunitários (“através de cerimônias cidadãs de reprovação e vergonha reintegrativa”
melhores do que a criminalização, que só gera subculturas e marginalidade; o abolicionismo
fenomenológico (Hulsman, De Hann, etc.); o abolicionismo estruturalista (Scheerer, Zaffaroni etc.),
etc. O pensamento abolicionista europeu propugna fórmulas participativas e democráticas que evitem
a burocratização e profissionalização do sistema legal. Dentre seus principais representantes (Bernat
de Celis, Knopo, Van Swaaningen, Mathiesen, etc.) destacam-se três autores radicais: Bianchi, Hulsman
e Christie.
10
De outra parte, a experiência histórica colocou prontamente de manifesto o que
inevitavelmente acontece quando o problema criminal é contemplado e abordado como
questão doméstica, privada: há o risco de a resposta (ao delito) tornar-se veemente,
desproporcionada, irracional; há também o perigo de que não funcionem os mecanismos
internos nem externos de controle e se frustrem os mais elementares direitos e garantias do
indivíduo.
Sublinhe-se, ademais, que em uma sociedade pluralista, conflitiva e desigual, como a
do nosso tempo, já não cabe deixar nas mãos dos particulares implicados a reação ao delito,
porque não se pode esperar uma resposta justa quando uma instância pública não restabelece
previamente a igualdade real entre as partes enfrentadas. Dito de outra maneira: digam o
que digam os teóricos do pacto e da conciliação  ou da “plea negotiation”, não negocia
nem pactua, de fato, quem quer, senão quem pode. E se não existe equilíbrio real, é provável
que, a pretexto de uma liberdade ou autonomia processual (negociadora), mais nominal do
que efetiva, surjam novas formas de imposição, de dominação.12
Por último, como sublinhava graficamente Carnelutti contrapondo-se à “lógica da
negociação” no Direito civil e no Direito penal: “No penal, não se brinca com a lei. No civil,
as partes têm as mãos livres; no penal devem tê-las atadas. Aqui não existe lugar mais do que
para a lei, quer dizer, para o Direito já encontrado; não existe a possibilidade, quanto ao caso
singular, de encontrar outro”.13

Justiça negociada e princípio da “oportunidade”

A justiça negociada no sistema penal brasileiro: justiça negociada (ou consensuada) é


locução que se utiliza para exprimir o modelo de solução de conflitos penais fundado no
acordo, no consenso, na transação, na conciliação ou negociação (plea bargaining).
No âmbito da Justiça criminal, atualmente, é preciso distinguir o espaço de consenso
do espaço de conflito. Aquele resolve o conflito mediante transação, acordo ou negociação.
Este exige o clássico devido processo penal (denúncia, processo, provas, ampla defesa,
contraditório, sentença, duplo grau de jurisdição etc.).14
Impõe-se diferenciar, de outro lado, duas formas de justiça consensuada ou negociada:
(a) a que se situa dentro do próprio sistema penal; (b) a que se realiza fora do sistema penal
(considerado em sentido estrito).
A primeira nos leva a questionar a natureza pública do Direito penal, mas não se situa
fora dele. A segunda apresenta-se como forma ou modelo alternativo de solução de conflitos.
Aquela pertence ao Direito penal (é “solução” intra-sistemática); esta se aproxima de (ou
integra) um outro Direito (que pode ser chamado de sancionador, como veremos).
No Direito brasileiro vigente temos a segunda forma de Justiça negociada (Lei
9.099/95: lei dos juizados especiais criminais) (art. 76). Justiça negociada dentro do sistema
penal só temos em algumas situações de delação premiada (que está muito distante do plea
bargaining americano). A conciliação da Lei 9.099/1995 acontece dentro dos juizados (que é

12
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 1.021 e ss.
13
CARNELUTTI, F., La equidade en el juicio penal (para la reforma de la corte de asises). In:
Cuestiones sobre el proceso penal. Trad. Sentis Melendo, Buenos Aires: Librería el Foro, 1960, p. 292 e
ss. Cf. LIMA LOPES Jr., A. C. Sistemas de instrucción preliminar en los derechos español y brasileño.
Madrid: Tesis doctoral, 1999, p. 88.
14
Sobre o modelo consensuado de justiça no Brasil cf. GRINOVER, Ada Pellegrini et all. Juizados
especiais criminais: comentários à lei 9.099/95. 5. ed. São Paulo: RT, 2005; GOMES, Luiz Flávio.
Suspensão condicional do processo penal. 2. ed. São Paulo: RT, 1997; IDEM, Juizados criminais federais
e seus reflexos nos juizados estaduais. São Paulo: RT, 2002 (vid. ainda e especialmente a rica e ampla
bibliografia citada nas p. 48-60).
11
um sistema paralelo de solução de conflitos). Em nossa opinião os juizados criminais não
podem ser inseridos no âmbito do Direito penal, embora o art. 76 fale em “penas”.
A transação prevista na Lei 9.099/95 (lei dos juizados criminais) não pode ser enfocada
como instituto que pertença a esse Direito penal clássico. Aliás, nos juizados, seguimos um
novo devido processo legal, que chamamos de consensual. Não há inquérito policial (sim,
termo circunstanciado), não há denúncia (sim, proposta de transação), não há prisão
(sim, sanções alternativas) etc. Logo, a transação e os juizados, numa nova perspectiva do
Direito penal, estão fora do Direito penal clássico e pertencem ao que estamos denominando
de Direito sancionador (que será visto mais adiante, detalhadamente).
O princípio que vigora, como regra, no nosso direito processual penal é o da
obrigatoriedade da ação penal pública (que em alguns países se chama princípio da legalidade
da ação penal), sempre que haja fumus boni iuris (fumus delicti). Esse princípio está previsto
no art. 24 do CPP. Seu oposto é o princípio da oportunidade, que preside a ação penal privada
(a vítima, nesses casos, ingressa com a ação penal se quiser).
Em 1995 a Lei 9.099 (dos juizados criminais) quebrou o rigorismo do princípio da
obrigatoriedade da ação penal e permitiu, na ação penal pública, a transação penal. Em lugar
da denúncia, desde que presentes todos os requisitos legais (Lei 9.099/95, art. 76) faz o
Ministério Público a proposta de transação penal. Adotou-se, como salienta a doutrina, o
princípio da discricionariedade regrada ou princípio da obrigatoriedade mitigada, porque a lei
traça detalhadamente as hipóteses em que é possível deixar de denunciar.

PAUSA EXCURSIVA: JUSTIÇA PENAL CONSENSUADA: CONCILIAÇÃO, MEDIAÇÃO E


NEGOCIAÇÃO. Há três modelos de resolução dos conflitos penais (cf. GARCIA-PABLOS DE
MOLINA e GOMES, L. F., Criminologia, 6. ed., São Paulo: RT, p. 398 e ss.):
(a) modelo dissuasório clássico, fundado na implacabilidade da resposta punitiva estatal, que
seria suficiente para a reprovação e prevenção de futuros delitos. A pena contaria, portanto,
com finalidade puramente retributiva. Neste Direito penal punitivista-retributivista não
haveria espaço para nenhuma outra finalidade à pena (ressocialização, reparação dos danos
etc.). Ao mal do crime o mal da pena. Nenhum delito pode escapar da inderrogabilidade da
sanção e do castigo. Razões de justiça exigem um Direito penal inflexível, duro, inafastável,
porque somente ele seria capaz de deter a criminalidade, por meio do contra-estímulo da
pena;
(b) modelo ressocializador, que atribui à pena a finalidade (utilitária ou relativa) de
ressocialização do infrator (prevenção especial positiva). Acreditou-se que o Direito penal
poderia (eficazmente) intervir na pessoa do delinqüente, sobretudo quando ele estivesse
preso, para melhorá-lo e reintegrá-lo à sociedade;
(c) modelo consensuado (ou consensual) de Justiça penal, fundado no acordo, no consenso, na
transação, na conciliação, na mediação ou na negociação (plea bargaining).
Dentro deste terceiro modelo (que se ancora no consenso) impõe-se distinguir dois sub-
modelos bem diferenciados:
(a) modelo pacificador ou restaurativo (Justiça restaurativa, que visa à pacificação
interpessoal e social do conflito, reparação dos danos à vítima, satisfação das expectativas de
paz social da comunidade etc.) e
(b) modelo da Justiça criminal negociada (que tem por base a confissão do delito, assunção
de culpabilidade, acordo sobre a quantidade da pena, incluindo a prisional, perda de bens,
reparação dos danos, forma de execução da pena etc., ou seja, o plea bargaining).

Diante do que acaba de ser exposto, parece correto (e necessário) distinguir, no


âmbito da Justiça criminal, atualmente, o “espaço de consenso” do “espaço de conflito”.
Aquele resolve o conflito penal mediante conciliação, transação, acordo, mediação ou
negociação. Este não admite qualquer forma de acordo, ou seja, exige o clássico devido
12
processo penal (denúncia, processo, provas, ampla defesa, contraditório, sentença, duplo
grau de jurisdição etc.). O modelo consensual pertence ao primeiro espaço (do consenso); os
modelos punitivistas (dissuasório e ressocializador) integram o segundo espaço (do conflito).
Mas não existe um só modelo consensual de Justiça penal. Em outras palavras, dentro
do espaço de consenso (da Justiça consensuada) impõe-se bem definir e distinguir as
múltiplas formas de resolução dos conflitos penais: (a) conciliação, (b) mediação e (c)
negociação.
A conciliação é típica dos juizados criminais no nosso país. Ela é dirigida pelo juiz (ou
conciliador) e visa, sobretudo, à reparação dos danos em favor da vítima. Busca-se pela
conciliação (que é um gênero) tanto a reparação ou composição civil como a transação penal
(que são suas espécies). Essa forma de resolução de conflitos só é apropriada para as
infrações penais menos graves, que se denominam no nosso país “infrações penais de menor
potencial ofensivo” (legalmente são as infrações punidas com pena máxima não superior a
dois anos, nos termos das Leis 9.099/1995 e 11.313/2006).
A mediação é, na atualidade, a forma predileta de resolução de conflitos da chamada
Justiça restaurativa (cf. SICA, Leonardo, Justiça restaurativa, Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007). Por meio dela, que deve ser dirigida por terceiros imparciais (mediadores
profissionais), objetiva-se a integração social de todos os envolvidos no problema, a
preservação da liberdade, a ampliação dos espaços democráticos dentro da Justiça penal,
redução do sentido aflitivo e retributivo da pena, superação da filosofia do castigo a todo
preço, restauração do valor da norma violada, da paz jurídica e social etc. A mediação não
pode ser concebida como uma panacéia porque parece válida apenas para alguns delitos
(normalmente de média gravidade), excluindo-se os fatos de alta ou altíssima potencialidade
lesiva.
Recorde-se que o modelo de Justiça restaurativa, de outro lado, pode acontecer (a)
dentro do próprio sistema penal ou (b) fora do sistema penal. O primeiro nos leva a
questionar a natureza pública do Direito penal, mas não se situa fora dele. O segundo
apresenta-se como forma ou modelo alternativo de solução de conflitos. Aquele pertence ao
Direito penal (é “solução” intra-sistemática); este se aproxima de (ou integra) um outro
Direito (que pode ser chamado de sancionador).
Os sistemas de mediação-conciliação (como ainda pondera Garcia-Pablos) são mais
exigentes com o infrator, de quem reclamam uma sincera mudança de atitudes, mediante o
processo de comunicação e interação com sua vítima. Não basta, pois, o cumprimento do
castigo, nem a reparação do dano causado: pretende-se uma mudança qualitativa no infrator,
de tal modo a implicá-lo ativamente na solução do conflito que ele ocasionou.
Esse modelo integrador ou restaurativo, de outro lado, é melhor que o convencional
em relação às necessidades da vitima, devolvendo-lhe um papel ativo e dinâmico. A forma
clássica de Justiça instrumentaliza a vítima, transformando-a em mero objeto passivo e
fungível do processo. Conciliação e mediação evitam (ou suavizam), pois, a perniciosa
vitimização secundária (que ocorre quando a vítima entra em contato com o sistema penal) e
impulsionam à efetiva reparação do dano assim como à justa satisfação da vitima (não
necessariamente na forma pecuniária), melhorando as atitudes desta última em relação ao
infrator e ao sistema legal.
As diversas fórmulas de mediação-conciliação melhoram, ademais, a imagem da
Justiça criminal, ao permitir que o cidadão perceba sua face humana bem como sua
capacidade para resolver o doloroso problema social e comunitário do crime com critérios de
eqüidade.
Seria incorreto, por isso mesmo, confundir este novo modelo  ou estilo  de reação ao
crime com a (mera) reparação civil do dano, com o (simples) ressarcimento econômico. Ou
mesmo com manifestações rituais da velha composição, da conciliação privada.
De qualquer modo, é certo que esses modelos consensuais não estão isentos de
críticas. Também implicam sérios riscos como formas de solução de conflitos: risco de
mercantilização da justiça, risco de privatização total do conflito etc. Devemos, portanto,
13
avançar nessa linha conciliadora, mediadora ou restaurativa, mas com cautela e passo a
passo.
Mediação e conciliação oferecem um balanço positivo quando, sem pretensões
utópicas de universalidade, circunscrevem seu objeto a concretos conflitos (ex. de jovens e
menores, infrações de escassa ou média importância etc.), que envolvem infratores
primários. Mas correm o risco de se transformar em perversas e nocivas expressões de um
tratamento privatizador inadmissível do conflito criminal, quando aspiram a operar como
alternativa global do sistema  leia-se: da resposta pública e institucional ao delito ,
alternativa externa, iludindo o controle jurisdicional e as garantias do cidadão que as
instâncias do controle social devem respeitar.
O sistema clássico de Justiça criminal acha-se, desde sempre, em crise. Porque
absolve ou condena, mas não “resolve” o problema criminal (praticamente nada de positivo
faz para a solução verdadeira do problema). Porque impõe suas decisões com “imperium”,
mas sem “auctoritas”. Porque se preocupa exclusivamente com o castigo do agente culpável
 isto é, com a pretensão punitiva do Estado, que é só um dos sujeitos implicados no
problema criminal  mas não atende às legítimas expectativas dos restantes: da vitima, da
comunidade, do próprio infrator.
A efetiva reparação do dano causado pelo delito, a preocupação com a reinserção
social do delinqüente e a pacificação das relações interpessoais e sociais afetadas pelo crime
não são consideradas seriamente pelo modelo clássico, que atua guiado mais por critérios de
eficiência administrativa do que de justiça e eqüidade.
Há, portanto, espaço para o crescimento no Brasil da chamada Justiça restaurativa, de
qualquer modo, como sublinhava graficamente Carnelutti (comparando-se a negociação civil
com a penal): “No penal, não se brinca com a lei. No civil, as partes têm as mãos livres; no
penal devem tê-las atadas. Aqui não existe lugar mais do que para a lei, quer dizer, para o
Direito já encontrado; não existe a possibilidade, quanto ao caso singular, de encontrar
outro”15.
A negociação, por último, é a marca registrada do modelo norte-americano de Justiça
criminal, que é conhecido como plea bargaining. Mais de 90% dos delitos (nos EUA) são
resolvidos por esse sistema, que permite acordo sobre todos os aspectos penais (sobre pena,
sobre a definição do delito, perda de bens, forma de execução da pena etc.). Nos EUA o plea
bargaining é válido, de outro lado, para todos os delitos, em princípio, incluindo-se fatos
extremamente graves. O acusado assume responsabilidade pelo injusto cometido (ou seja:
aceita sua culpabilidade) e a negociação se faz entre ele, seu defensor e o representante do
Ministério Público.
Já contamos no Brasil com o modelo conciliatório (juizados criminais). Não temos
ainda a mediação (como forma de resolução de conflitos penais) nem o plea bargaining. A
primeira, apesar de todos os problemas que apresenta (veremos isso em outro artigo), deveria
ser imediatamente introduzida na nossa cultura jurídica. Quanto ao segundo, o debate é
muito mais complexo. De qualquer modo, preservadas todas as garantias legais e
constitucionais, depois de definido o fato (ou fatos) imputado (s), ou seja, depois do
recebimento da denúncia, com defesa preliminar obrigatória antes do juízo de
admissibilidade da peça acusatória, é chegado o momento de se começar a refletir sobre a
possibilidade de se alterar o ordenamento jurídico para se adotar um tipo de plea bargaining
no Brasil, mas diferente dos EUA, que vêm dando evidências, em favor do primeiro, de um
claro desequilíbrio entre o eficientismo e o garantismo (cf. abaixo as duras críticas ao atual
sistema norte-americano de Justiça).
Críticas ao modelo de Justiça negociada: são precisamente os modelos de “justiça
negociada” (“plea negotiation”, “plea bargaining” etc.), intra-sistêmicos, isto é, que operam
no seio do sistema penal e que hoje contam com uma força expansiva extraordinária, os que,

15
CARNELUTTI, F., La equidade en el juicio penal (para la reforma de la corte de asises). In:
Cuestiones sobre el proceso penal. Trad. Sentis Melendo, Buenos Aires: Librería el Foro, 1960, p. 292 e
ss.
14
de fato, estremecem a natureza pública do ius puniendi, minando os pilares do sistema
acusatório (princípio do contraditório, da publicidade, da igualdade de armas, da legalidade e
da segurança jurídica etc.) assim como as garantias fundamentais do cidadão contempladas
no devido processo legal.16
Com razão sublinha a doutrina que os sistemas de justiça negociada não são
conseqüência necessária do sistema acusatório, senão desviações dele.17
O modelo acusatório parte da separação entre juiz e acusação, da igualdade entre
acusação e defesa, da oralidade e publicidade do processo... etc. Mas a discricionariedade da
ação penal (livre acusação) e o pacto ou negociação não têm vinculação com aquele modelo
teórico (sistema acusatório) nem com o chamado “processo penal de partes”, senão com
características singulares do sistema norte-americano bem como com o princípio da
oportunidade.
Os sistemas de justiça negociada, nos Estados Unidos, ostentam uma efetividade
estatisticamente muito significativa, sendo elevado número de processos penais que se
iniciam e não chegam à fase instrutória em virtude de acordo entre promotor e defesa. 18 Sem
dúvida, a dinâmica do pacto ou da negociação, impulsionada pelo flexível princípio da
oportunidade, permite soluções rápidas com indiscutível economia de tempo e redução de
custos. Mas, inevitavelmente, também implica alto custo para as garantias do cidadão.
A doutrina tem se preocupado em sublinhar até que ponto a justiça negociada (plea
bargaining, plea negotiation etc.) viola frontalmente os princípios fundamentais do sistema
acusatório assim como as garantias que este pretende fazer valer, por mais que tais
desviações ou perversões do sistema acusatório apelem ao “processo penal de partes” e
costumem ser apresentados como um desenvolvimento coerente daquele.19
A “negotiation”  afirma-se  infringe, antes de tudo, a função garantista do Direito
penal e do processo penal, enquanto monopólio estatal da resposta ao delito, na medida em
que, estando nas mãos do promotor, que atua de acordo com sua discricionariedade, fulmina
o estrito controle judicial assim como os limites da legalidade. Trata-se  consoante
acrescenta a doutrina  de uma “degeneração do processo contraditório... mostra
consonância, pelo contrário, com as práticas de persuasão permitidas pelo segredo nas
relações desiguais do modelo inquisitorial”.20
A posição de supremacia do Ministério Público (o promotor, pode-se dizer
criticamente, “é o juiz às portas do tribunal”) e o sincretismo de umas negociações sem
igualdade efetiva de armas constituem outros tantos vícios da “justiça negociada” que
atentam contra os pilares do sistema acusatório. Pois se o essencial desse sistema é a
confrontação clara, pública e antagônica de duas partes em igualdade de condições, nada
disso acontece na “justiça negociada”.
16
Cf. LIMA LOPES Jr., A. C. Sistemas de instrucción preliminar en los derechos español y brasileño,
cit., p. 83 e ss.
17
Assim, FAIRÉN GUILLÉN, V., em La Reforma procesal penal -1988-1992. In: Estudios de Derecho
Procesal Civil, Penal y Constitucional. Madrid: Edersa, 1992, p. 88. Também, FERRAJOLI, L. Derecho y
razón: teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 1997, p. 747 e ss., quem qualifica de “totalmente
ideológica e mistificadora” a suposta conexão dos sistemas de justiça negociada com o sistema
acusatório e o processo penal de partes. Cf. LIMA LOPES Jr., A. C. Sistemas de instrucción preliminar
en los derechos español y brasileño, cit., p. 83 e ss.
18
Segundo FIGUEIREDO DIAS, J. e COSTA ANDRADE, M. (Criminologia: o homem delinquente e a
sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra, 1992, p. 484 e ss.), os sistemas de “plea bargaining”
resolvem, nos Estados Unidos, entre os 80 e os 95% dos conflitos criminais. A juízo de Rubén Castillo,
mais de 90% dos processos penais iniciados acabam em um acordo entre o Promotor e a defesa (cf.
LIMA LOPES Jr., A. C. Sistemas de instrucción preliminar en los derechos español y brasileño, cit., p.
85) nos Estados Unidos.
19
Por todos, e referindo-se aos sistemas norte-americanos de plea negotiation e plea bargaining, LIMA
LOPES Jr., A. C. Sistemas de instrucción preliminar en los derechos español y brasileño, cit., p. 83 e
ss.
20
Assim, LIMA LOPES Jr., A. C. Sistemas de instrucción preliminar en los derechos español y brasileño,
cit., p. 84.
15
Na “plea negotiation” (“plea bargaining” etc.) o pacto se concretiza nos gabinetes do
Ministério Público, sem publicidade. O Tribunal não intervém nem controla: limita-se a
homologar os resultados do acordo entre acusado e promotor. Na verdade, a negociação é
fictícia, porque normalmente prepondera a vontade e o poder do mais forte (do promotor).
Somente o promotor dispõe do poder real de negociar e estabelecer as condições e o preço do
negócio. Não existe, pois, contradição nem igualdade de armas.
O processo transforma-se em um genuíno mercado, o pacto em um intercâmbio
perverso e a acusação em um mero instrumento de pressão que alimenta auto-acusações
falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstruções ou prevaricações em prejuízo do
direito de defesa, desigualdade e insegurança jurídica. 21 Nas palavras de FERRAJOLI: “Todo
um luxo reservado somente para aqueles que estejam dispostos a enfrentar seu preço e seus
riscos”.22
O direito a um processo justo, à presunção da inocência e à pena justa brilham,
também, por sua ausência na “plea negotiation”.
Não cabe falar de “processo justo”  adverte-se  quando pressões psicológicas ou
táticas coativas compelem o acusado a aceitar o pacto e inclusive a segurança do mal menor
da declaração de culpa. Ou mesmo quando o imputado tem que escolher entre reconhecer
uma culpa inexistente e a admissão de uma pena menor, ou o risco de um processo desigual,
estimulado pelo promotor, que pode formular acusações desmesuradas (na eventualidade de
que se frustre a negociação).23
Tampouco é respeitada, desde logo, a presunção da inocência com todas as suas
implicações (ex. “onus probandi”), porque o status de inocente desaparece na “negotiation”
(que é feita antes do processo ou antes da sentença), sem que a acusação tenha tido que
provar suas imputações contra o imputado. Nem se respeita o princípio da culpabilidade como
critério de imposição e medida da pena, pois esta dependerá mais da habilidade negociadora
da defesa e da discricionariedade da acusação do que da gravidade objetiva do fato cometido
ou mesmo da responsabilidade subjetiva do autor.24
No que concerne aos diversos e heterogêneos processos que costumam ser lembrados
como exemplos (outros) das tendências privatizadoras experimentadas nas últimas décadas
pelo sistema penal25 (polícias ou seguranças privadas, movimento vitimológico e associativo
para a prevenção do delito, privatização ou terceirização dos presídios, programas de
diversion − desjudicialização do conflito − e restitution, intervenção da iniciativa privada no
âmbito social pós-penitenciário, no tratamento de toxicômanos ou na organização da
execução de sanções alternativas à privação de liberdade etc.) faz-se necessária uma análise
particularizada que será levada a efeito em capítulos posteriores.

Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL


Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – REDE LFG
21
Neste sentido, LIMA LOPES Jr., A. C. Sistemas de instrucción preliminar en los derechos español y
brasileño, cit., p. 85.
22
Derecho y razón: teoría del garantismo penal, cit., p. 748.
23
Cf. LIMA LOPES Jr., A. C. Sistemas de instrucción preliminar en los derechos español y brasileño,
cit., p. 86-87.
24
Ibidem.
25
Cf. ZUGALDÍA ESPINAR, J. M. Fundamentos de Derecho penal, cit., p. 42-43.
16
Curso de Pós-gradução Lato Sensu TeleVirtual em
DIREITO PROCESSUAL: GRANDES TRANSFORMAÇÕES

Disciplina

Processo Penal: Grandes Transformações

Aula 2

LEITURA OBRIGATÓRIA 3

Luiz Flávio Gomes


Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri.
Mestre em Direito penal pela USP.
Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG.

JUSTIÇA PENAL RESTAURATIVA: PERSPECTIVAS E CRÍTICAS

Como citar este artigo:

GOMES, Luiz Flávio. Justiça Penal Restaurativa: perspectivas e críticas.


Disponível em: http://www.blogdolfg.com.br. 27 junho. 2007. Material da
2ª aula da disciplina Processo Penal: Grandes Transformações, ministrada
no curso de pós-graduação lato sensu televirtual em Direito Processual:
Grandes Transformações – UNISUL/REDE LFG.

O modelo consensuado (ou consensual) de Justiça penal, como vimos em artigo


anterior, realiza-se pela conciliação ou mediação ou negociação. As duas primeiras são formas
aceitas pela Justiça restaurativa. A terceira é típica do modelo norte-americano (plea
bargaining).
Os sistemas de mediação e conciliação (como registra García-Pablos de Molina na obra
escrita em conjunto com L.F. Gomes, Criminologia, 5. ed., São Paulo: RT, p. 398 e ss.)
resgatam a dimensão real, histórica, interpessoal e comunitária do delito. Conseqüentemente
17
propõem uma "gestão" (solução) participativa neste doloroso "problema social", ampliando o
círculo tradicional dos operadores legitimados para nele intervir (inclusão de mediadores,
conciliadores, juiz de paz etc.).
Tudo isso se daria mediante técnicas e procedimentos operativos informais
(desinstitucionalizados), em favor de uma Justiça que pretende resolver o conflito, dar
satisfação à vitima e à comunidade, pacificar as relações sociais interpessoais e gerais
danificadas pelo delito e melhorar o clima social: sem vencedores nem vencidos, sem
humilhar nem submeter o infrator às "iras da lei", nem apelar à "força vitoriosa do Direito".
Uma Justiça, pois, "restaurativa", de base comunitária, que se propõe intervir no
problema criminal construtiva e solidariamente, para resolvê-lo, porém, sem conotação
repressiva; não desde o "imperium" do sistema, senão confiando na capacidade dos
implicados, para encontrar fórmulas de compromisso, de negociação, de pacto, de
conciliação, de pacificação; confiando também na poderosa influência positiva dos grupos e
instituições primárias: na educação, na comunicação, na reconstrução dos vínculos informais
do indivíduo como garantia do acatamento sincero das normas comunitárias, assim como na
prevenção do delito.
Os sistemas de mediação-conciliação (como ainda pondera Garcia-Pablos) são mais
exigentes com o infrator, de quem reclamam uma sincera mudança de atitudes, mediante o
processo de comunicação e interação com sua vítima. Não basta, pois, o cumprimento do
castigo, nem a reparação do dano causado: pretende-se uma mudança qualitativa no infrator,
de tal modo a implicá-lo ativamente na solução do conflito que ele ocasionou.
Esse modelo integrador ou restaurativo, de outro lado, é melhor que o convencional
em relação às necessidades da vitima, devolvendo-lhe um papel ativo e dinâmico. A forma
clássica de Justiça instrumentaliza a vítima, transformando-a em mero objeto passivo e
fungível do processo. Conciliação e mediação evitam (ou suavizam), pois, a perniciosa
vitimização secundária (que ocorre quando a vítima entra em contato com o sistema penal) e
impulsionam à efetiva reparação do dano assim como à justa satisfação da vitima (não
necessariamente na forma pecuniária), melhorando as atitudes desta última em relação ao
infrator e ao sistema legal.
As diversas fórmulas de mediação-conciliação melhoram, ademais, a imagem da
Justiça criminal, ao permitir que o cidadão perceba sua face humana bem como sua
capacidade para resolver o doloroso problema social e comunitário do crime com critérios de
eqüidade.
Seria incorreto, por isso mesmo, confundir este novo modelo de reação ao crime com a
(mera) reparação civil do dano, com oou estilo (simples) ressarcimento econômico. Ou
mesmo com manifestações rituais da velha composição, da conciliação privada.
De qualquer modo, é certo que esses modelos consensuais não estão isentos de
críticas. Também implicam sérios riscos como formas de solução de conflitos: risco de
mercantilização da justiça, risco de privatização total do conflito etc. Devemos, portanto,
avançar nessa linha conciliadora, mediadora ou restaurativa, mas com cautela e passo a
passo.
Mediação e conciliação oferecem um balanço positivo quando, sem pretensões
utópicas de universalidade, circunscrevem seu objeto a concretos conflitos (ex. de jovens e
menores, infrações de escassa ou média importância etc.), que envolvem infratores
primários. Mas correm o risco de se transformar em perversas e nocivas expressões de um
tratamento privatizador inadmissível do conflito criminal, quando aspiram a operar como
alternativa global do sistema , alternativa externa,leia-se: da resposta pública e
institucional ao delito iludindo o controle jurisdicional e as garantias do cidadão que as
instâncias do controle social devem respeitar.
O sistema clássico de Justiça criminal acha-se, desde sempre, em crise. Porque
absolve ou condena, mas não "resolve" o problema criminal (praticamente nada de positivo
faz para a solução verdadeira do problema). Porque impõe suas decisões com "imperium", mas
sem "auctoritas". Porque se isto é, com apreocupa exclusivamente com o castigo do agente
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culpável pretensão punitiva do Estado, que é só um dos sujeitos implicados no problema mas
não atende às legítimas expectativas dos restantes: da vitima, dacriminal comunidade, do
próprio infrator.
A efetiva reparação do dano causado pelo delito, a preocupação com a reinserção
social do delinqüente e a pacificação das relações interpessoais e sociais afetadas pelo crime
não são consideradas seriamente pelo modelo clássico, que atua guiado mais por critérios de
eficiência administrativa do que de justiça e eqüidade.
Há, portanto, espaço para o crescimento no Brasil da chamada Justiça restaurativa, de
qualquer modo, como sublinhava graficamente Carnelutti (comparando-se a negociação civil
com a penal): "No penal, não se brinca com a lei. No civil, as partes têm as mãos livres; no
penal devem tê-las atadas. Aqui não existe lugar mais do que para a lei, quer dizer, para o
Direito já encontrado; não existe a possibilidade, quanto ao caso singular, de encontrar
outro"26.

26
CARNELUTTI, F., La equidade en el juicio penal (para la reforma de la corte de asises). In:
Cuestiones sobre el proceso penal. Trad. Sentis Melendo, Buenos Aires: Librería el Foro, 1960, p. 292 e
ss.

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