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Aula 2
Índice
Leitura Obrigatória 1 ... p. 01
Leitura Obrigatória 2 ... p. 07
Leitura Obrigatória 3 ... p. 17
LEITURA OBRIGATÓRIA 1
A lei dos juizados criminais (Lei 9.099/1995) introduziu no Brasil um novo modelo de
justiça, o consensual. Quatro foram as medidas despenalizadoras previstas nesta lei:
transação penal (art. 76), composição civil extintiva da punibilidade (art. 74), representação
das lesões corporais culposas ou simples (art. 88) e suspensão condicional do processo (art.
89).
Por força do art. 60 da Lei 9.099/1995 os juizados criminais são competentes para a
conciliação, julgamento e execução das infrações de menor potencial ofensivo. Esse
dispositivo foi alterado recentemente pela Lei 11.313/2006.
A Lei 9.099/1995 excluía, da competência dos juizados, duas situações: 1ª)
agente não encontrado para ser citado pessoalmente (não existe citação por edital nos
juizados) e 2ª) causa que apresenta grande complexidade.
Além dessas duas hipóteses (que implicam a alteração da competência dos juizados
para o juízo comum) havia muita polêmica em torno de uma terceira, que ocorre quando há
conexão ou continência entre uma infração de menor potencial ofensivo e outra do juízo
comum (ou do júri). Porte ilegal de arma de fogo e lesão corporal leve, por exemplo. Outro
exemplo: tentativa de homicídio e lesão corporal leve. Discutia-se o seguinte: nesses casos,
de conexão, o correto era separar os processos (CPP, art. 79) ou promover a reunião deles
(CPP, art. 78)?
A doutrina inclinava-se (tendencialmente) para a primeira solução (separação) (cf.
GRINOVER et alii, Juizados especiais criminais, 5ª ed., São Paulo: RT, 2005, p. 71). A Lei
11.313/2006, de 28.06.06, entretanto, seguiu caminho diverso. Alterou o caput do art. 60 da
Lei 9.099/1995 e mandou respeitar as regras de conexão e continência. Em seguida, no
parágrafo único (que não existia), fixou o critério da reunião dos processos, in verbis:
2
1ª) A força atrativa, para a reunião dos processos (como não poderia ser diferente), é
do juízo comum (estadual ou federal) ou do tribunal do júri (estadual ou federal). Ou seja:
seguindo o disposto no art. 78 do CPP manda a nova lei que no caso de crimes conexos haja
reunião dos processos na vara comum ou no tribunal do júri.
2ª) A nova lei tem aplicação imediata (entrou em vigor no dia 28.06.06, data de sua
publicação). Lei processual nova que altera ou que fixa competência tem aplicação imediata,
incluindo-se os processos em andamento. Exceção: a exceção que existe a essa regra reside
no processo que já conta com decisão de primeira instância. Nesse caso, não se altera a
competência recursal (não incide a lei nova para alterar a competência recursal).
3ª) Manda a nova lei que, na vara comum ou no tribunal do júri, sejam observados os
institutos da transação penal e da composição dos danos civis. Em outras palavras: a reunião
dos processos não constitui fato impeditivo para a aplicação desses institutos. A vara comum
ou o tribunal do júri conta com competência para isso.
4ª) Não quer a nova lei que se adote, em relação às infrações de menor potencial
ofensivo, outra política criminal distinta do consenso. Apesar da conexão ou da continência
(entre a infração de menor potencial ofensivo e outra do juízo comum), em relação à
primeira (menor potencial ofensivo) deve-se seguir a política do consenso (não a conflitiva).
5ª) Deve-se respeitar, de outro lado, a opção relevante que a lei dos juizados já havia
feito em favor da vítima. Havendo possibilidade de composição civil dos danos, não há como
evitar que isso possa acontecer. A velha reivindicação da Vitimologia (reparação dos danos em
favor da vítima) continua preservada, mesmo que haja conexão de infrações.
6ª) A reafirmação da lei nova em favor do consenso (mesmo havendo conexão) afasta
qualquer possibilidade de sua exclusão, salvo quando presentes os impedimentos para a
transação penal contidos na própria lei dos juizados (art. 76): ter o agente sido beneficiado
com outra transação nos últimos cinco anos, ter condenação definitiva anterior etc.
7ª) Em síntese: já não é possível somar a pena máxima da infração de menor potencial
ofensivo com a da infração conexa (de maior gravidade) para excluir a incidência da fase
consensual. A soma das penas máximas, mesmo que ultrapassado o limite de dois anos, não
pode ser invocada como fator impeditivo da transação penal.
8ª) A infração de menor potencial ofensivo (conexa) deve, dessa maneira, ser
analisada
isoladamente (é esse o critério adotado para a prescrição no art. 119 do Código penal). Cada
infração deve ser considerada individualmente.
9ª) A infração penal conexa de maior gravidade não pode ser invocada como fator
impeditivo da incidência dos institutos da transação ou da composição civil. A lei assim
determinou. De outro lado, no que se refere a essa infração de maior gravidade, recorde-se
que o agente é presumido inocente. Ela não pode, desse modo, ser fator impeditivo da
transação penal.
10ª) O juízo comum (ou do júri), que é o juízo com força atrativa, deve designar,
desde logo, uma audiência de conciliação (que deve ser prioritária). Primeiro deve-se
solucionar a fase do consenso (transação penal e composição civil). Depois vem a fase
conflitiva relacionada com a infração de maior gravidade. O processo penal, nesse caso, passa
a ser misto: é consensual e conflitivo. Consensual num primeiro momento e conflitivo após.
11ª) Pode ser que caiba, em relação à infração de maior gravidade, suspensão
condicional do processo. Na mesma audiência de conciliação as duas questões podem ser
tratadas. Mas isso pressupõe denúncia quanto à infração de média gravidade (pena mínima
não superior a um ano admite a suspensão condicional do processo).
12ª) Não pode haver denúncia (ou queixa) de plano em relação à infração de menor
potencial ofensivo. Quanto a ela rege a audiência de conciliação (ou seja: a fase consensual
da lei dos juizados). O acusador deve formular denúncia no que se refere ao delito maior e,
3
ao mesmo tempo, fazer proposta de transação para o delito menor (ou fundamentar sua
recusa nas causas impeditivas da transação constantes do art. 76).
13ª) Caso o juiz receba a denúncia, deve marcar prontamente a audiência de
conciliação (para solucionar brevemente a infração de menor potencial ofensivo).
14ª) A recusa não fundamentada ou injustificada do órgão acusatório em oferecer
proposta de transação é regida pelo art. 28 do CPP (cabe ao juiz enviar os autos do processo
ao Procurador Geral de Justiça).
15ª) Nada impede que o juiz, desde que o réu tenha sido citado regularmente, logo
depois de concluída a audiência de conciliação, faça o interrogatório do acusado
(interrogatório relacionado com a infração conexa de maior gravidade).
16ª) Não havendo acordo penal em relação à infração de menor potencial ofensivo
cabe ao órgão acusatório aditar a denúncia (pode fazê-lo oralmente, reduzindo-se tudo a
termo) para dela constar a infração menor.
17ª) Nesse caso o processo terá prosseguimento normal, adotando-se o
procedimento de maior amplitude (relacionado com a infração de maior gravidade). O
procedimento sumaríssimo dos juizados não deve ser seguido na vara comum ou no júri.
18ª) Em se tratando de réu preso (pelo delito maior), o recomendável será fazer a
audiência de conciliação na mesma data do seu interrogatório (por razões de economia
processual).
19ª) Não é possível fazer transação penal em torno de sanção alternativa incompatível
com a prisão (se o réu está preso pelo delito maior, não pode, por exemplo, cumprir
prestação de serviços à comunidade).
20ª) No momento da transação penal devem ser observadas as disposições contidas no
art. 76 (incluindo-se as causas impeditivas da transação penal).
21ª) A condenação penal precedente, definitiva, por crime, a pena privativa de
liberdade, só impede a transação penal durante o lapso de cinco anos (STF, 1ª Turma, HC
86.646-SP, rel. Min. Cezar Peluso). Ultrapassado esse lapso temporal já não há impedimento
para a transação penal.
22ª) O fato de não ser possível a transação penal não impede que haja composição
civil dos danos em favor da vítima.
“Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos
desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não
superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.” (NR)
5
HABEAS CORPUS 88.547-1 SÃO PAULO
RELATOR : MIN. CEZAR PELUSO
PACIENTE(S) : SONIA JUBRAN RACY
IMPETRANTE(S) : MANUEL ALCEU AFFONSO FERREIRA
COATOR(A/S)(ES) : SEGUNDA TURMA DO COLÉGIO RECURSAL
CRIMINAL DO FORO CENTRAL DA COMARCA DE SÃO PAULO
EMENTA: COMPETÊNCIA CRIMINAL Juizado Especial Criminal Estadual. Ação penal.
Infração ou crime de menor potencial ofensivo.
Não caracterização. Delito de imprensa. Sujeição a procedimento especial.
Competência da Justiça Comum. HC concedido para esse fim.
Aplicação de art. 61 da Lei nº 9.099/95, que não foi revogado pelo art. 2º, § único, da
Lei nº 10.259/2001. Precedentes. É incompetente Juizado Especial Criminal Estadual
para processo e julgamento de delito previsto na Lei de Imprensa.
10ª) Doravante já não existe nenhuma possibilidade de haver divergência: a nova lei
(Lei 11.313/2006) eliminou a referência que antes existia (no artigo 61) em relação ao
procedimento especial. Não importa (mais) o procedimento: todos os delitos com pena
máxima até dois anos são de menor potencial ofensivo.
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Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL
Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – REDE LFG
Disciplina
Aula 2
LEITURA OBRIGATÓRIA 2
Mediação e conciliação.1
1
Quanto à “mediação” e à “conciliação” como sistemas flexíveis de julgamento e solução de certos
conflitos, cf. na doutrina espanhola: VARONA MARTÍNEZ, G. La mediación reparadora como estratégia
de control social: una perspectiva criminológica. Granada: Editorial Comares, 1998; PÉREZ SANZBERRO,
G. Reparación y conciliación em el sistema penal: ¿Apertura de una nueva via? Granada: Editorial
7
A mediação e a conciliação não afastam o caráter público do Direito Penal: mediação e
conciliação fórmulas flexíveis de solução de certos conflitos (normalmente de escassa
relevância, ex.: infrações de jovens e menores, infrações de menor potencial ofensivo etc.),
que substituem o julgamento convencional , tampouco contradizem a natureza pública do
Direito penal, sempre que operem no seio do sistema penal, com maior ou menor autonomia,
e não como alternativa a este, abordando desse modo o problema criminal como conflito
interno e doméstico (leia-se: como conflito a ser solucionado dentro do próprio Direito
penal).
Em tais âmbitos (infração de menor potencial ofensivo etc.), conciliação e mediação
parecem fórmulas idôneas e eficazes, porque o julgamento convencional e a sanção penal
produzem efeitos nocivos irreparáveis elevando a níveis preocupantes o custo social da
intervenção penal clássica.
Se de um lado ainda não temos amplas iniciativas de mediação já desenvolvidas em
nosso País, de outro, no que concerne à conciliação, a realidade é bem diferente. A lei dos
juizados especiais criminais (Lei 9.099/95, art. 74) prevê a possibilidade de conciliação como
resolução final do conflito (isso se dá nas infrações de menor potencial ofensivo e desde que a
ação penal seja de iniciativa privada ou pública condicionada). Nesses casos, a conciliação
(acordo) quanto à reparação dos danos significa renúncia ao direito de queixa ou de
representação (extinguindo-se o ius puniendi). Como se vê, a conciliação (pura e simples) não
é desconhecida no nosso direito.
Multiplicidade dos modelos e submodelos de mediação e conciliação: de qualquer
modo, certo é que a mediação e a conciliação, no Direito comparado, estão dando lugar ao
nascimento de uma rica gama de modelos e submodelos de solução consensuada de conflitos
(judicializados, não judicializados, desformalizados, desinstitucionalizados, comunitários
etc.). No Brasil particular referência deve ser feita à Lei dos Juizados Criminais (Lei 9.099/95,
art. 76), que admite a solução do conflito penal por meio da transação.
Mediação e conciliação constituem a base de um novo “modelo” ou “estilo” de
resposta ao comportamento delituoso:2 modelo muito ambicioso em seus objetivos (pretende
satisfazer as legítimas expectativas de todos os implicados no conflito criminal: infrator,
vítima, comunidade e Estado), mas bastante flexível em suas técnicas e procedimentos (seus
seguidores mais radicais sugerem fórmulas não oficiais desoficializadas , desformalizadas,
desinstitucionalizadas, desjudicializadas, comunitárias, com uma terminologia ambígua e
imprecisa).
Mediação e conciliação contam com uma curta história mas um longo passado. Não se
trata de artifícios inovadores ou de fruto da mais avançada engenharia jurídica, mas sim de
estilos e procedimentos de solução de conflitos de estrutura bilateral ou trilateral, orientados
à negociação, ao compromisso. Isso sempre foi do conhecimento da humanidade. De fato,
impõe-se admitir que o número de casos que ingressam no sistema legal (Justiça criminal)
significa, em termos quantitativos, um percentual insignificante do total de conflitos que são
resolvidos por outros mecanismos alternativos ou complementares àquele.3
São muitas, de qualquer maneira (e muito díspares), as orientações político-criminais
contemporâneas que, por razões variadas, mostram-se partidárias destas técnicas de solução
de conflitos: as teses abolicionistas, os programas de origem anglo-saxônico de alternativas ao
julgamento convencional (diversion, restitution etc.), o movimento vitimológico, as
Comares, 1999; SAN MARTÍN LARRINOA, M. B. La mediación como respuesta a algunos problemas
jurídico criminológicos. Departamento de Justiça, Economia, Trabalho e Segurança Social do País
Vasco, 1997; La mediación penal (por: Rössner, Giménez Salinas, López Barja, Beristáin e outros),
Departamento de Justiça, Centre d'Estudis Juridics i Formació Especialitzada, 1999; GARCÍA-PABLOS, A.
Tratado de Criminología, cit., p. 988 e ss. (“El modelo integrado: conciliación-reparación”).
2
Sobre as ambigüidades, antagonismos, contradições e incógnitas com que depara este “modelo
integrador” de reação ao delito, cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 988 e ss. Suas
pouco homogêneas origens, fundamentos ideológicos e político-criminais e instrumentalização não
permite falar de um único modelo.
3
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 1.002 e ss.
8
concepções comunitárias (da denominada justiça restaurativa), as correntes radicais que
propugnam a reprivatização dos conflitos etc.4
Fundamentos dos modelos consensuais de justiça: seus teóricos partem da concepção
de que o crime retrata um conflito interpessoal, cuja solução efetiva, pacificadora, deve ser
encontrada pelos próprios implicados, “desde dentro”, por meio de um fluido processo de
comunicação, interação e negociação, em lugar de sua imposição pelo sistema legal, com
seus critérios formalistas, coativos e, além disso, de elevado custo social. 5
Refutação do caráter (puramente) repressivo do sistema penal: os sistemas de
mediação e conciliação resgatam a dimensão real, histórica, interpessoal e comunitária do
delito. Conseqüentemente propõem uma “gestão” (solução) participativa neste doloroso
“problema social”, ampliando o círculo tradicional dos operadores legitimados para nele
intervir (inclusão de mediadores, conciliadores, juiz de paz etc.).
Tudo isso se daria mediante técnicas e procedimentos operativos informais
(desinstitucionalizados), em favor de uma Justiça que pretende resolver o conflito, dar
satisfação à vitima e à comunidade, pacificar as relações sociais interpessoais e gerais
danificadas pelo delito e melhorar o clima social: sem vencedores nem vencidos, sem
humilhar nem submeter o infrator às “iras da lei”, nem apelar à “força vitoriosa do Direito”.
Uma Justiça, pois, “restaurativa”, de base comunitária, que se propõe intervir no
problema criminal construtiva e solidariamente, para resolvê-lo, porém, sem conotação
repressiva; não desde o imperium do sistema, senão confiando na capacidade dos implicados,
para encontrar fórmulas de compromisso, de negociação, de pacto, de conciliação, de
pacificação; confiando também na poderosa influência positiva dos grupos e instituições
primárias: na educação, na comunicação, na reconstrução dos vínculos informais do indivíduo
como garantia do acatamento sincero das normas comunitárias, assim como na prevenção do
delito.6
Os sistemas de mediação-conciliação são mais exigentes com o infrator, 7 de quem
reclamam uma sincera mudança de atitudes, mediante o processo de comunicação e
interação com sua vítima. Não basta, pois, o cumprimento do castigo, nem a reparação do
dano causado: pretende-se uma mudança qualitativa no infrator, de tal modo a implicá-lo
ativamente na solução do conflito que ele ocasionou.
O modelo integrador, de outro lado, é melhor que o convencional em relação às
necessidades da vítima, devolvendo-lhe um papel ativo e dinâmico. A forma clássica de
Justiça instrumentaliza a vítima, transformando-a em mero objeto passivo e fungível do
processo. Conciliação e mediação evitam (ou suavizam), pois, a perniciosa vitimização
secundária (que ocorre quando a vítima entra em contato com o sistema penal) e
impulsionam à efetiva reparação do dano assim como à justa satisfação da vítima (não
necessariamente na forma pecuniária), melhorando as atitudes desta última em relação ao
infrator e ao sistema legal.8
As diversas fórmulas de mediação-conciliação melhoram, ademais, a imagem da
Justiça criminal, ao permitir que o cidadão perceba sua face humana bem como sua
capacidade para resolver o doloroso problema social e comunitário do crime com critérios de
eqüidade.
Seria incorreto, por isso mesmo, confundir este novo modelo ou estilo de reação ao
crime com a (mera) reparação civil do dano, com o (simples) ressarcimento econômico, ou
mesmo com manifestações rituais da velha composição, da conciliação privada.
Críticas aos modelos consensuais de Justiça: mediação e conciliação também implicam
sérios riscos como formas de solução de conflitos: risco de mercantilização da justiça, risco
4
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 992 e ss.
5
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 1.008.
6
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 995 e ss.
7
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 1.010 e ss.
8
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 1.012 e ss.
9
de privatização total do conflito etc. Devemos, portanto, avançar nessa linha conciliadora,
mediadora ou restaurativa, mas com cautela e passo a passo.
Mediação e conciliação oferecem um balanço positivo quando, sem pretensões
utópicas de universalidade, circunscrevem seu objeto a conflitos concretos (ex. de jovens e
menores, infrações de escassa importância etc.), que envolvem infratores primários. Mas
correm o risco de se transformar em perversas e nocivas expressões de um tratamento
privatizador inadmissível do conflito criminal, quando aspiram a operar como alternativa
global do sistema leia-se: da resposta pública e institucional ao delito , alternativa
externa, iludindo o controle jurisdicional e as garantias do cidadão que as instâncias do
controle social devem respeitar.
O sistema clássico de Justiça criminal acha-se, desde sempre, em crise. Porque
absolve ou condena, mas não “resolve” o problema criminal (praticamente nada de positivo
faz para a solução verdadeira do problema). Porque impõe suas decisões com imperium, mas
sem auctoritas. Porque se preocupa exclusivamente com o castigo do agente culpável isto
é, com a pretensão punitiva do Estado, que é só um dos sujeitos implicados no problema
criminal mas não atende às legítimas expectativas dos restantes: da vítima, da comunidade,
do próprio infrator. A efetiva reparação do dano causado pelo delito, a preocupação com a
reinserção social do delinqüente e a pacificação das relações interpessoais e sociais afetadas
pelo crime não são consideradas seriamente por aquele, que atua guiado mais por critérios de
eficiência administrativa do que de justiça e eqüidade.9
De outro lado, parece certo que a privatização do sistema penal pouco ou nada
soluciona. Tampouco lemas utópicos e demagógicos, com pretensões de universalidade, que
propugnam por uma “justiça legal” e “de aldeia”10 (ou de bairro ou de vizinhos) assim como
“a devolução” do conflito aos seus “proprietários” com o pretexto de que estes possam
resolvê-lo negociadamente privadamente sem a intervenção estigmatizadora das agências
oficiais do sistema (“que rouba o conflito”). 11 Ao contrário: impõe-se delimitar rigorosamente
sob que pressupostos e em que grupos de casos cabe substituir a atuação da pesada máquina
punitiva estatal da Justiça criminal com suas fórmulas convencionais de julgamento por
outras mais flexíveis de conciliação e mediação. E como articular estas (em todo caso, sob o
controle dos órgãos jurisdicionais) a fim de que a própria dinâmica negociadora de signo
privatizador não prejudique as garantias irrenunciáveis do cidadão assim como a própria
credibilidade da resposta ao delito.
De qualquer modo, não se pode ignorar o receio o justo receio que suscitam os
sistemas de reação ao delito de natureza e raízes privatistas, pois não em vão é que se deu a
transformação da arcaica justiça penal (que era justiça privada) ao modelo atual de justiça
pública (que dá solução institucional e formalizada aos conflitos). Isso supôs um progresso
histórico inquestionável, ao tornar-se possível desde então o controle racional do
funcionamento do sistema, a aplicação igualitária dos critérios de solução de conflitos bem
como a efetividade de certas garantias elementares do cidadão.
9
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 1.014 e ss.
10
Assim, CHRISTIE, N. Limits to pain. Oxford: M. Robertson, 1981, p. 97 e ss.
11
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 1.005 e ss. O autor refere-se ao pensamento
abolicionista, partidário da “radical non intervention”, no qual confluem correntes doutrinárias muito
díspares: o “novo realismo radical” (Mattews, Young, Jones, Maclean, Platt, Hogg, etc.), de finais dos
setenta, que sugere uma intervenção comunitária, enfatizando o rol da vitima do delito; orientações
criminológicas da década dos noventa, que se autodenominam “republicanas” (Hug Ford, Pettit, Duff,
Braithwaite, etc.), que propõem substituir a intervenção do sistema legal por outros controles
informais e comunitários (“através de cerimônias cidadãs de reprovação e vergonha reintegrativa”
melhores do que a criminalização, que só gera subculturas e marginalidade; o abolicionismo
fenomenológico (Hulsman, De Hann, etc.); o abolicionismo estruturalista (Scheerer, Zaffaroni etc.),
etc. O pensamento abolicionista europeu propugna fórmulas participativas e democráticas que evitem
a burocratização e profissionalização do sistema legal. Dentre seus principais representantes (Bernat
de Celis, Knopo, Van Swaaningen, Mathiesen, etc.) destacam-se três autores radicais: Bianchi, Hulsman
e Christie.
10
De outra parte, a experiência histórica colocou prontamente de manifesto o que
inevitavelmente acontece quando o problema criminal é contemplado e abordado como
questão doméstica, privada: há o risco de a resposta (ao delito) tornar-se veemente,
desproporcionada, irracional; há também o perigo de que não funcionem os mecanismos
internos nem externos de controle e se frustrem os mais elementares direitos e garantias do
indivíduo.
Sublinhe-se, ademais, que em uma sociedade pluralista, conflitiva e desigual, como a
do nosso tempo, já não cabe deixar nas mãos dos particulares implicados a reação ao delito,
porque não se pode esperar uma resposta justa quando uma instância pública não restabelece
previamente a igualdade real entre as partes enfrentadas. Dito de outra maneira: digam o
que digam os teóricos do pacto e da conciliação ou da “plea negotiation”, não negocia
nem pactua, de fato, quem quer, senão quem pode. E se não existe equilíbrio real, é provável
que, a pretexto de uma liberdade ou autonomia processual (negociadora), mais nominal do
que efetiva, surjam novas formas de imposição, de dominação.12
Por último, como sublinhava graficamente Carnelutti contrapondo-se à “lógica da
negociação” no Direito civil e no Direito penal: “No penal, não se brinca com a lei. No civil,
as partes têm as mãos livres; no penal devem tê-las atadas. Aqui não existe lugar mais do que
para a lei, quer dizer, para o Direito já encontrado; não existe a possibilidade, quanto ao caso
singular, de encontrar outro”.13
12
Cf. GARCÍA-PABLOS, A. Tratado de Criminología, cit., p. 1.021 e ss.
13
CARNELUTTI, F., La equidade en el juicio penal (para la reforma de la corte de asises). In:
Cuestiones sobre el proceso penal. Trad. Sentis Melendo, Buenos Aires: Librería el Foro, 1960, p. 292 e
ss. Cf. LIMA LOPES Jr., A. C. Sistemas de instrucción preliminar en los derechos español y brasileño.
Madrid: Tesis doctoral, 1999, p. 88.
14
Sobre o modelo consensuado de justiça no Brasil cf. GRINOVER, Ada Pellegrini et all. Juizados
especiais criminais: comentários à lei 9.099/95. 5. ed. São Paulo: RT, 2005; GOMES, Luiz Flávio.
Suspensão condicional do processo penal. 2. ed. São Paulo: RT, 1997; IDEM, Juizados criminais federais
e seus reflexos nos juizados estaduais. São Paulo: RT, 2002 (vid. ainda e especialmente a rica e ampla
bibliografia citada nas p. 48-60).
11
um sistema paralelo de solução de conflitos). Em nossa opinião os juizados criminais não
podem ser inseridos no âmbito do Direito penal, embora o art. 76 fale em “penas”.
A transação prevista na Lei 9.099/95 (lei dos juizados criminais) não pode ser enfocada
como instituto que pertença a esse Direito penal clássico. Aliás, nos juizados, seguimos um
novo devido processo legal, que chamamos de consensual. Não há inquérito policial (sim,
termo circunstanciado), não há denúncia (sim, proposta de transação), não há prisão
(sim, sanções alternativas) etc. Logo, a transação e os juizados, numa nova perspectiva do
Direito penal, estão fora do Direito penal clássico e pertencem ao que estamos denominando
de Direito sancionador (que será visto mais adiante, detalhadamente).
O princípio que vigora, como regra, no nosso direito processual penal é o da
obrigatoriedade da ação penal pública (que em alguns países se chama princípio da legalidade
da ação penal), sempre que haja fumus boni iuris (fumus delicti). Esse princípio está previsto
no art. 24 do CPP. Seu oposto é o princípio da oportunidade, que preside a ação penal privada
(a vítima, nesses casos, ingressa com a ação penal se quiser).
Em 1995 a Lei 9.099 (dos juizados criminais) quebrou o rigorismo do princípio da
obrigatoriedade da ação penal e permitiu, na ação penal pública, a transação penal. Em lugar
da denúncia, desde que presentes todos os requisitos legais (Lei 9.099/95, art. 76) faz o
Ministério Público a proposta de transação penal. Adotou-se, como salienta a doutrina, o
princípio da discricionariedade regrada ou princípio da obrigatoriedade mitigada, porque a lei
traça detalhadamente as hipóteses em que é possível deixar de denunciar.
15
CARNELUTTI, F., La equidade en el juicio penal (para la reforma de la corte de asises). In:
Cuestiones sobre el proceso penal. Trad. Sentis Melendo, Buenos Aires: Librería el Foro, 1960, p. 292 e
ss.
14
de fato, estremecem a natureza pública do ius puniendi, minando os pilares do sistema
acusatório (princípio do contraditório, da publicidade, da igualdade de armas, da legalidade e
da segurança jurídica etc.) assim como as garantias fundamentais do cidadão contempladas
no devido processo legal.16
Com razão sublinha a doutrina que os sistemas de justiça negociada não são
conseqüência necessária do sistema acusatório, senão desviações dele.17
O modelo acusatório parte da separação entre juiz e acusação, da igualdade entre
acusação e defesa, da oralidade e publicidade do processo... etc. Mas a discricionariedade da
ação penal (livre acusação) e o pacto ou negociação não têm vinculação com aquele modelo
teórico (sistema acusatório) nem com o chamado “processo penal de partes”, senão com
características singulares do sistema norte-americano bem como com o princípio da
oportunidade.
Os sistemas de justiça negociada, nos Estados Unidos, ostentam uma efetividade
estatisticamente muito significativa, sendo elevado número de processos penais que se
iniciam e não chegam à fase instrutória em virtude de acordo entre promotor e defesa. 18 Sem
dúvida, a dinâmica do pacto ou da negociação, impulsionada pelo flexível princípio da
oportunidade, permite soluções rápidas com indiscutível economia de tempo e redução de
custos. Mas, inevitavelmente, também implica alto custo para as garantias do cidadão.
A doutrina tem se preocupado em sublinhar até que ponto a justiça negociada (plea
bargaining, plea negotiation etc.) viola frontalmente os princípios fundamentais do sistema
acusatório assim como as garantias que este pretende fazer valer, por mais que tais
desviações ou perversões do sistema acusatório apelem ao “processo penal de partes” e
costumem ser apresentados como um desenvolvimento coerente daquele.19
A “negotiation” afirma-se infringe, antes de tudo, a função garantista do Direito
penal e do processo penal, enquanto monopólio estatal da resposta ao delito, na medida em
que, estando nas mãos do promotor, que atua de acordo com sua discricionariedade, fulmina
o estrito controle judicial assim como os limites da legalidade. Trata-se consoante
acrescenta a doutrina de uma “degeneração do processo contraditório... mostra
consonância, pelo contrário, com as práticas de persuasão permitidas pelo segredo nas
relações desiguais do modelo inquisitorial”.20
A posição de supremacia do Ministério Público (o promotor, pode-se dizer
criticamente, “é o juiz às portas do tribunal”) e o sincretismo de umas negociações sem
igualdade efetiva de armas constituem outros tantos vícios da “justiça negociada” que
atentam contra os pilares do sistema acusatório. Pois se o essencial desse sistema é a
confrontação clara, pública e antagônica de duas partes em igualdade de condições, nada
disso acontece na “justiça negociada”.
16
Cf. LIMA LOPES Jr., A. C. Sistemas de instrucción preliminar en los derechos español y brasileño,
cit., p. 83 e ss.
17
Assim, FAIRÉN GUILLÉN, V., em La Reforma procesal penal -1988-1992. In: Estudios de Derecho
Procesal Civil, Penal y Constitucional. Madrid: Edersa, 1992, p. 88. Também, FERRAJOLI, L. Derecho y
razón: teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 1997, p. 747 e ss., quem qualifica de “totalmente
ideológica e mistificadora” a suposta conexão dos sistemas de justiça negociada com o sistema
acusatório e o processo penal de partes. Cf. LIMA LOPES Jr., A. C. Sistemas de instrucción preliminar
en los derechos español y brasileño, cit., p. 83 e ss.
18
Segundo FIGUEIREDO DIAS, J. e COSTA ANDRADE, M. (Criminologia: o homem delinquente e a
sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra, 1992, p. 484 e ss.), os sistemas de “plea bargaining”
resolvem, nos Estados Unidos, entre os 80 e os 95% dos conflitos criminais. A juízo de Rubén Castillo,
mais de 90% dos processos penais iniciados acabam em um acordo entre o Promotor e a defesa (cf.
LIMA LOPES Jr., A. C. Sistemas de instrucción preliminar en los derechos español y brasileño, cit., p.
85) nos Estados Unidos.
19
Por todos, e referindo-se aos sistemas norte-americanos de plea negotiation e plea bargaining, LIMA
LOPES Jr., A. C. Sistemas de instrucción preliminar en los derechos español y brasileño, cit., p. 83 e
ss.
20
Assim, LIMA LOPES Jr., A. C. Sistemas de instrucción preliminar en los derechos español y brasileño,
cit., p. 84.
15
Na “plea negotiation” (“plea bargaining” etc.) o pacto se concretiza nos gabinetes do
Ministério Público, sem publicidade. O Tribunal não intervém nem controla: limita-se a
homologar os resultados do acordo entre acusado e promotor. Na verdade, a negociação é
fictícia, porque normalmente prepondera a vontade e o poder do mais forte (do promotor).
Somente o promotor dispõe do poder real de negociar e estabelecer as condições e o preço do
negócio. Não existe, pois, contradição nem igualdade de armas.
O processo transforma-se em um genuíno mercado, o pacto em um intercâmbio
perverso e a acusação em um mero instrumento de pressão que alimenta auto-acusações
falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstruções ou prevaricações em prejuízo do
direito de defesa, desigualdade e insegurança jurídica. 21 Nas palavras de FERRAJOLI: “Todo
um luxo reservado somente para aqueles que estejam dispostos a enfrentar seu preço e seus
riscos”.22
O direito a um processo justo, à presunção da inocência e à pena justa brilham,
também, por sua ausência na “plea negotiation”.
Não cabe falar de “processo justo” adverte-se quando pressões psicológicas ou
táticas coativas compelem o acusado a aceitar o pacto e inclusive a segurança do mal menor
da declaração de culpa. Ou mesmo quando o imputado tem que escolher entre reconhecer
uma culpa inexistente e a admissão de uma pena menor, ou o risco de um processo desigual,
estimulado pelo promotor, que pode formular acusações desmesuradas (na eventualidade de
que se frustre a negociação).23
Tampouco é respeitada, desde logo, a presunção da inocência com todas as suas
implicações (ex. “onus probandi”), porque o status de inocente desaparece na “negotiation”
(que é feita antes do processo ou antes da sentença), sem que a acusação tenha tido que
provar suas imputações contra o imputado. Nem se respeita o princípio da culpabilidade como
critério de imposição e medida da pena, pois esta dependerá mais da habilidade negociadora
da defesa e da discricionariedade da acusação do que da gravidade objetiva do fato cometido
ou mesmo da responsabilidade subjetiva do autor.24
No que concerne aos diversos e heterogêneos processos que costumam ser lembrados
como exemplos (outros) das tendências privatizadoras experimentadas nas últimas décadas
pelo sistema penal25 (polícias ou seguranças privadas, movimento vitimológico e associativo
para a prevenção do delito, privatização ou terceirização dos presídios, programas de
diversion − desjudicialização do conflito − e restitution, intervenção da iniciativa privada no
âmbito social pós-penitenciário, no tratamento de toxicômanos ou na organização da
execução de sanções alternativas à privação de liberdade etc.) faz-se necessária uma análise
particularizada que será levada a efeito em capítulos posteriores.
Disciplina
Aula 2
LEITURA OBRIGATÓRIA 3
26
CARNELUTTI, F., La equidade en el juicio penal (para la reforma de la corte de asises). In:
Cuestiones sobre el proceso penal. Trad. Sentis Melendo, Buenos Aires: Librería el Foro, 1960, p. 292 e
ss.
19