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Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL

Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – REDE LFG

Curso de Especialização Telepresencial em


DIREITO PROCESSUAL: GRANDES TRANSFORMAÇÕES

Disciplina
Processo Transformações
Administrativo: Grandes

Aula 2
Índice
Leitura complementar 1 ... p .01
Leitura complementar 2 ... p .12

LEITURA COMPLEMENTAR 1

GERMANA DE OLIVEIRA MORAES


Juíza Federal e Diretora do Foro na Seção Judiciária do Ceará.
Doutora em Ciências Jurídico-Políticas pela universidade de Lisboa.
Professora de cursos de graduação, especialização e mestrado em Direito na Universidade Federal do
Ceará.

CONTROLE JURISDICIONAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Como citar este artigo:

MORAES, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração


Pública. 2º ed. São Paulo: Dialética, 2004, pp. 73-76; 164-170. Material da
2ª aula da Disciplina Processo Administrativo: Grandes Transformações,
ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Direito
Processual: Grandes Transformações - UNISUL - REDE LFG.

1. A TEORIA DA “MARGEM DE LIVRE APRECIAÇÃO”DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

1
Consoante o magistério de Sérvulo Correia, “avulta pela sua importância, na República
Federal da Alemanha, o estudo doutrinário da margem de livre apreciação na aplicação de
conceitos jurídicos indeterminados e a procura de uma base teórica para a delimitação das
situações em que o juízo valorativo proferido pela Administração sobre os pressupostos
contidos na previsão da norma não deva ser controlado jurisprudencialmente,” o que
suscitou, continua ele, “a necessidade de repensar o posicionamento relativo da
discricionariedade e dos conceitos jurídicos indeterminados”. Destaca o insigne jurista, uma
margem de livre decisão com responsabilidade exclusiva da Administração, emergente da
falta de densidade da norma jurídica, na qual se enquadram a discricionariedade, que
envolve “a ponderação autônoma de interesses em conflito à luz de critérios de aptidão,
indispensabilidade e equilíbrio ou razoabilidade” e a margem de livre apreciação dos
conceitos jurídicos indeterminados, que envolve um “juízo autônomo de prognose somente
subordinado a critérios de aptidão”.1

Segundo a teoria da margem de livre apreciação, sustentada por Otto Bachof, na década de
50, reconhece-se em favor da Administração, no processo de aplicação de determinada
categoria de conceitos indeterminados, certa liberdade, uma margem de apreciação, um
espaço de apreciação ou uma prerrogativa de estimativa, ou seja, uma área de atuação
administrativa de impossibilidade de sindicância judicial.

Para o Bachof, a margem de apreciação define-se como o âmbito dentro do qual se reserva à
Administração uma área para livre apreciação dos pressupostos de sua conduta.

Segundo Bachof, nem todo conceito indeterminado atribui margem de livre apreciação. Por
outro lado, tanto os conceitos de experiência quanto os conceitos de valor para ele, podem
conferir um espaço de livre apreciação à Administração Pública. Conforme explica o Professor
Sérvulo Correia, “segundo Bachof, nem todo conceito indeterminado deve conferir uma
margem de livre apreciação à Administração. É ao legislador que incumbe escolher os casos
em que assim sucederá, o que faz de um modo geral quando usa conceitos de valor
(Wertbegriffe) mas também quando emprega conceitos de experiência (Erfahrungbegriffe)
aplicáveis a situações de facto complexas ou que envolvam uma quantidade de
imponderáveis”.2

Ao expor o pensamento de Bachof, observa Sérvulo Correia que para o autor alemão, no que
respeita à subsunção das situações concretas nos conceitos jurídicos determinados, o Tribunal
só não deve reconhecer a responsabilidade exclusiva da Administração quando existirem
parâmetros de controle suficientemente seguros, dos quais, no entanto, não dispõe, quando a
subsunção envolve valorações para as quais a Administração tenha maior perícia ou
experiência, ou quando pressupõe decisões insubstituíveis ou irrepetíveis.3

Antônio Francisco de Sousa sintetiza o pensamento de Bachof da seguinte maneira: “Bachof


faz a distinção entre a interpretação e a aplicação dos conceitos indeterminados no caso
concreto. A interpretação, isto é, a averiguação de seu conteúdo, é sempre uma ‘questão de
direito’, totalmente submetida ao controle jurisdicional. Do mesmo modo, a constatação real
dos fatos, é ‘sem margem para dúvidas’, controlável pelos Tribunais. Diferente é a aplicação,
isto é, a subsunção dos factos a um conceito indeterminado. Na aplicação deve se averiguar
se a lei quer ou não atribuir à autoridade administrativa um espaço de apreciação. Bachof
reconhece ser possível tanto a pluridimensionalidade dos conceitos de experiência (na medida
em que na prática não é possível uma apreciação suficientemente clara), como a univocidade
dos conceitos de valor (na medida em que a referida idéia de valor é suscetível de
objetivação, de modo que parece só existir uma única decisão correta). Nos conceitos de
experiência, o reconhecimento de uma ‘margem de apreciação’ depende da possibilidade
1
CORREIA, Sérvulo. Ob. cit., p. 760.
2
CORREIA, Sérvulo. Ob. cit, pp. 122/123.
3
Idem, ibidem, pp. 122/123.

2
prática de uma apreciação suficientemente clara dos factos, tendo em devida conta a
responsabilidade da autoridade administrativa”.4

Atualmente, muitas são as críticas que se insurgem contra as formulações teóricas que
restringem o controle jurisdicional da Administração Pública, sobremodo no que diz respeito à
valoração administrativa dos conceitos jurídicos indeterminados. Contrapondo-se à doutrina
da margem de livre apreciação, sobressaem o pensamento do jurista alemão Hans Rupp, a
forte reação do juspublicista espanhol Garcia de Enterría e as objeções do administrativista
português Antônio Francisco de Sousa, expostas na obra Conceitos indeterminados no Direito
Administrativo e em ensaios doutrinários.5

Entre os opositores da teoria da margem de livre apreciação, Rupp nega a existência de


diferença qualitativa entre conceitos determinados e indeterminados, defende “a vinculação
total da Administração à lei e a sua subordinação no que concerne à interpretação e aplicação
de conceitos legais indeterminados, a um controle jurisdicional igualmente total”. 6 Rupp
reconhece a falibilidade do juiz, contingência de ser humano, porém, para ele, “quem daí
pretender retirar que não há vantagem em substituir uma decisão problemática da
Administração por uma decisão não menos problemática do juiz mostra não ter compreendido
não só a função e a independência dos juízes, como também o sentido da divisão dos poderes
no Estado de Direito democrático”. 7

Sérvulo Correia sumaria o pensamento de Rupp, assegurando “segundo o autor citado, a


matéria dos poderes discricionários pode ser pensada em termos de normatividade e é
cognoscível através de meios de hermenêutica apropriados, especialmente o teleológico e o
tópico. As questões de discricionariedade administrativa, da discricionariedade judicial e dos
conceitos jurídicos indeterminados colocam-se de modo idêntico e reduzem-se todas elas ao
problema da interpretação e aplicação do Direito”.8

Outro crítico da teoria da margem de livre apreciação, Garcia de Enterría, enuncia da


seguinte forma: os conceitos de valor não se controlam exclusivamente pela apreciação dos
fatos, senão que implicam juízos de valores, que podem ser técnicos (impacto ambiental) ou
políticos (utilidade pública, interesse público. Esses conceitos de valor proporcionam à
Administração Pública certa presunção em favor de sua primeira e decisória apreciação que
se faz, em princípio, a partir de meios técnicos e critérios políticos que, na prática, só
negativamente, quando o erro e a arbitrariedade podem ser positivamente demonstrados,
podem ser controlados pelo juiz.9

Defende Garcia de Enterría10 que é sempre possível o controle jurisdicional da aplicação dos
conceitos jurídicos indeterminados, por amplo que seja o “halo do conceito”. Diz mais, que
este controle é sempre uma questão jurídica, à medida que esses conceitos procedem das leis
ou da Constituição. Cita Wolff, Bachof e Stober, para os quais a “interpretação de um
conceito legal indeterminado é como toda interpretação, uma questão jurídica.” Destaca a
função delimitadora de certos “pressupostos de atuação pública”, e das potestades

4
SOUSA, Antônio Francisco. Ob. cit., p. 340.
5
Antônio Francisco de Sousa aborda a evolução da doutrina da margem de apreciação no ensaio
intitulado “Margem de Apreciação e Estado de Direito”, publicado na Revista Polis nº 2, em janeiro de
1995, pp. 7-28.
6
SOUSA, Antônio Francisco de. Conceitos Indeterminados no Direito Administrativo, Coimbra,
Almedina, pp. 53/54.
7
Apud Antônio Francisco de Sousa, ob. cit., p. 53 (nota 85).
8
CORREIA, Sérvulo. Ob. cit., pp. 129/130.
9
ENTERRÍA, Eduardo Garcia de. Democracia, Jueces y Control de la Administración, Madrid, Civitas,
1995, p. 127.
10
ENTERRÍA, Eduardo Garcia de. Ob. cit, pp. 125 a 134.

3
administrativas de intervenção, para em seguida afirmar peremptoriamente que “recusar o
controle judicial por princípio do uso de tais conceitos indeterminados pela Administração
equivale a converter em ilimitados e deixados apenas ao arbítrio desta os pressupostos de
fato ou a extensão das potestades que a lei tenha querido determinada e limitada: é, pois,
não aplicar, manifestamente a lei que os haja formulado”.

Por fim, enfrenta o problema da alegada falta de legitimidade dos juizes. Sustenta que, ao
largo do processo puramente racional-jurídico do controle da presença efetiva do conceito
legal no caso que se ajuíza, não há o menor resquício para poder introduzir o argumento de
origem democrática ou não democrática dos agentes que tenham ditado a decisão ao redor da
qual o processo se debate, pois, em sua opinião, esse argumento refere-se ao interior da
organização do sujeito- Administração, não ao modo como esta deve atuar ante a lei, à qual
está sempre inteiramente vinculada.

Para Garcia de Enterría, cabe ao Juiz determinar se o pressuposto de fato discutido se


acomoda ou não ao tipo de conceitos aos quais a lei tenha conectado alguma conseqüência
jurídica, sempre que a Administração haja efetuado uma apreciação prévia da presença dos
limites dos conceitos legais, com base na qual tenha ditado um ato administrativo, e um
cidadão questionar em juízo a validade do ato, justamente porque a apreciação do
pressuposto de fato não esteja de acordo, segundo seu critério, com o conceito
indeterminado formulado pela lei no qual o ato pretende apoiar-se.

Neste mister, continua, “o juiz que examina, ante a apreciação contrária do mesmo conceito
pelo recorrente, e com a valoração da prova dos autos, a presença do pressuposto de fato em
que o conceito jurídico indeterminado se baseia, não está mais que aplicando a lei que tenha
enunciado dito conceito com sua função delimitadora; de nenhum modo pode pretender-se
que está entrando num âmbito político que só os representantes democráticos podem valorar;
está interpretando e aplicando a lei simplesmente, e se não o fizer, dando por solucionada a
questão com a interpretação definitiva e apodíctica da Administração, estaria faltando a sua
função constitucional de controle de legalidade da atuação administrativa”.11

Vê-se, pois que, para o juspublicista espanhol, a aplicação dos conceitos indeterminados
situa-se no plano estreito da vinculação. Reconhece, não obstante que, quando se trata do
controle da aplicação de conceitos de experiência, a sindicabilidade judicial é ilimitada, ao
passo que na aplicação de conceitos de valor (técnicos ou políticos), na prática, apenas
negativamente, quando o erro e a arbitrariedade possam ser manifestamente demonstrados,
podem ser revistos pelo juiz.

Na doutrina portuguesa, Antônio Francisco de Sousa não aceita a teoria da margem de


apreciação, pois a considera inconstitucional e contrária ao princípio do Estado de Direito.
Para ele, “a margem de apreciação, enquanto margem de liberdade da Administração não
existe (desde logo porque seria inconstitucional). Por isso, mesmo nas situações de valoração
a Administração mantém-se vinculada, sendo portanto o controlo jurisdicional de tais
valorações, em princípio, total ou pleno, admitindo-se apenas que face ao caso concreto o
juiz possa, por falta de provas ou de objectividade das situações recuar, no estrictamente
necessário, o seu controlo”.12

Não há como negar a existência de uma categoria de conceitos indeterminados, cuja


valoração administrativa é insuscetível de controle jurisdicional pleno. A melhor base teórica
para a identificação desses conceitos insindicáveis judicialmente é aquela proposta por
Walter Schmidt e aprimorada por Sérvulo Correia: as decisões que envolvem a densificação
dos conceitos de prognose, ou seja, aqueles cujo preenchimento demanda uma avaliação de

11
Idem, ibidem.
12
SOUSA, Antônio Francisco. “Margem de Apreciação e Estado de Direito”, Revista Polis n° 2, em
janeiro de 1995, p. 9.

4
pessoas, coisas ou processos sociais, por intermédio de um juízo de aptidão, são impassíveis,
à semelhança da atividade discricionária, de controle jurisdicional pleno.

Neste ponto, calha assinalar que, muito embora as noções de discricionariedade e de


conceitos jurídicos indeterminados sejam inconfundíveis, guardam entre si alguns pontos de
interseção. Surge, pois, após a busca da compreensão das razões da origem da diferenciação
entre essas categorias jurídicas, a partir do estudo da doutrina dos conceitos jurídicos
indeterminados, a necessidade de correlacioná-las. Assim, faz-se necessário, com o fim de
posteriormente delimitar as fronteiras do controle jurisdicional da atuação administrativa não
vinculada, de antemão, estabelecer as correlações entre discricionariedade e valoração ad-
ministrativa dos conceitos jurídicos indeterminados.

2. CONTROLE JURISDICIONAL DA DISCRICIONARIEDADE

No Direito Positivo Brasileiro, inexiste qualquer regra acerca dos limites do controle
jurisdicional da discricionariedade, comparável ao artigo 6° do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais - ETAF, aprovado pelo DL 129/84 de 27 de abril, de Portugal, em que
se preceitua o seguinte: “salvo disposição em contrário, os recursos contenciosos são de mera
legalidade e têm por objecto a declaração de invalidade ou anulação dos actos recorridos”. 13

As Constituições brasileiras de 1934 e 1937 14 vedavam expressamente o Poder Judiciário de


conhecer questões exclusivamente políticas. Essa vedação, no entender de Seabra Fagundes,
não obstante o silêncio da atual Carta Política, porque decorre da índole do regime e dos
imperativos do seu funcionamento. Para o ilustre autor, as atribuições de cunho estritamente
político dos Poderes Legislativo e Executivo são incompatíveis com a interferência do Poder
Judiciário.15

No entanto, a discricionariedade, considerada, conforme já exposto, 16 como margem de


liberdade do administrador para completar, mediante um juízo de ponderação, a norma
aberta, à luz dos princípios jurídicos e dos critérios de conveniência e de oportunidade, não
se esgota no aspecto político dos atos. Os atos políticos têm alto teor de discricionariedade,
mas, como todo e qualquer ato discricionário têm um componente jurídico, passível de
interferência judicial.

Afora essa subdivisão dos atos discricionários em atos políticos, torna-se difícil tipificar,
classificar ou catalogar aqueles primeiros, porque a discricionariedade existe precisamente
para, quer com vistas à realização da justiça, quer com vistas à consecução de máxima
eficiência da função administrativa, suprir a insuficiência do modelo esquemático da norma
jurídica, caracterizada pelos atributos de generalidade e de abstratividade. Essas razões se
refletem sobre o controle dos atos discricionários, de maneira que se torna frustrante
categorizar as hipóteses de invalidação e de suscetibilidade de substituição judicial do ato
discricionário.

13
Em comentários a essa disposição legal, o Professor João Caupers, da Universidade de Lisboa,
registra que o artigo 6° constitui a marca de origem do contencioso administrativo português e subsiste
como símbolo de uma época encerrada e de uma concepção esgotada, pois se introduziram novos
instrumentos processuais situados fora de um contencioso de mera legalidade, como as ações para
reconhecimento de direito ou interesse legalmente protegido e os pedidos de intimação. Contencioso
Administrativo Anotado e Comentado, Lisboa, Aequitas e Editorial Notícias, 1994, p. 23.
14
Consultar nota 9.
15
FAGUNDES, Seabra. Ob. cit., p. 158.
16
Consultar o Título I da Parte II desta obra que trata da definição de discricionariedade administrativa
e de sua distinção do mérito.

5
De toda sorte, a construção dogmática, somada à experiência dos Tribunais, vem fornecendo
seguras pistas para a detecção das hipóteses de invalidação dos atos discricionários, mediante
a sistematização dos denominados vícios de discricionariedade, bem como para a
identificação dos casos nos quais seja possível a substituição judicial do ato impugnado, com
a formulação doutrinária da redução da discricionariedade a zero.

2.1. VÍCIOS DE DISCRICIONARIEDADE

Os vícios s de discricionariedade dos atos administrativos são reconduzíveis à não


compatibilidade do conteúdo do ato ou do processo de tomada de decisão do ato com os
princípios gerais do Direito, em especial, com os princípios constitucionais da Administração
Pública e à violação aos direitos fundamentais consagrados na Lei Fundamental. 17

São passíveis de invalidação os atos discricionários, quando editados sem levar em


consideração as circunstâncias fálicas condicionantes de sua prática ou com desrespeito às
limitações jurídicas ao exercício da discricionariedade, designadamente aos parâmetros
traçados pelos princípios jurídicos.

São limitações jurídicas ao exercício da discricionariedade os princípios gerais do Direito,


especialmente os princípios constitucionais da Administração Pública consagrados explícita ou
implicitamente na Constituição e a proteção constitucional aos direitos fundamentais.

Por via de conseqüência, serão viciados os atos discricionários, cujo conteúdo se afasta do
único cabível, se for o caso, ante as circunstâncias de fato peculiares do caso concreto e
quando não guardam compatibilidade, seja no processo de tomada de decisão, seja na fixação
de seu conteúdo, com os princípios constitucionais da Administração Pública e quando
atentatórios aos direitos fundamentais consagrados na Constituição.18

Maurer classifica os vícios de discricionariedade, com subsídios na doutrina e na


jurisprudência, da seguinte maneira: a) transgressão dos limites assinalados ao poder
discricionário; b) não utilização ou subutilização do exercício de poder discricionário; c)
abuso do poder discricionário; e d) violação aos direitos fundamentais e aos princípios gerais
de Direito.19

17
Para a Professora Lúcia Valle Figueiredo, “a competência discricionária consiste no dever de a
Administração, no caso concreto, sopesar até que ponto os direitos individuais devem ceder passo aos
direitos coletivos, ou seja, ao interesse público, qualificado como
Tal”, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Malheiros, p. 130.
18
A Constituição Portuguesa prescreve que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias
nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art. 18°, 2). Preceitua,
ainda, que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias não podem diminuir a extensão e o
alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (art. 18°, 3) Art. 18.2. “A lei só pode
restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição,
devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos. Art. 18.3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de
revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o
alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.”
A vigente Constituição da República Federativa do Brasil dispõe no Título dos Direitos e Garantias
Fundamentais, no Capítulo dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos que “a lei punirá qualquer
discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais” (artigo 5°, XLI). Este comando
destina-se de igual modo aos particulares e aos administradores públicos.
19
Os dois primeiros tipos de vícios de discricionariedade podem ser classificados como vícios de
incompetência, o primeiro como excesso de poder, o segundo caracteriza a omissão do Poder Público.

6
Há transgressão aos limites do poder discricionário quando a autoridade administrativa opta
por uma conseqüência jurídica não prevista na norma de competência atributiva de tal poder,
ou seja, quando o ato administrativo contém um efeito não previsto nem autorizado na norma
de competência discricionária. É o que sucede, por exemplo, se a autoridade opta por fazer a
requisição de um bem, quando a norma lhe atribui a possibilidade de desapropriá-lo. Ou ainda
se impõe e exige o pagamento de uma multa acima dos limites previstos na lei. O poder de
polícia administrativa, por exemplo, autoriza a restrição e o condicionamento dos direitos
individuais, mas não tolera a supressão desses direitos.

Ocorre a não utilização ou subutilização dos poderes discricionários, quanto a autoridade


administrativa não usa ou subutiliza o poder discricionário que dispõe por inadvertência ou
por estimar equivocadamente que é titular uma competência vinculada.

Há o abuso do poder discricionário, o exercício defeituoso da discricionariedade ou erro sobre


o fim da discricionariedade quando se faz uso dela de modo não correspondente ao escopo da
atribuição dos poderes discricionários, ou seja quando a ação administrativa não está
orientada exclusivamente pelo fim contemplado na lei.

Diante da detecção comprovada da presença de um desses vícios de discricionariedade,


incumbe ao Juiz invalidar o ato administrativo. Em certas situações, além de determinar a
invalidação do ato administrativo, cabe ao Juiz determinar a substituição do ato anulado, por
outro ato, cujo conteúdo indica.

Na discricionariedade de efeitos, que sempre envolve, em certa medida, 20 a


discricionariedade quanto aos pressupostos, resultante da não especificação ou de
indeterminação dos conceitos na previsão da norma, as conseqüências do controle
jurisdicional limitam-se, na maioria das vezes, à invalidação do ato.21 De igual modo, no
terreno da aplicação das normas que contêm conceitos de prognose, cuja indeterminação
resulta da avaliação da situação concreta, superável mediante estimativas futuras do estado
de coisas, pessoas e processos sociais. Será sempre possível, no entanto, a determinação
judicial de substituição do ato impugnado, no controle jurisdicional dos demais conceitos
indeterminados - dos que não atribuem discricionariedade e dos que não são conceitos de
prognose, ou seja, quando a indeterminação do conceito resultar apenas da imprecisão da
linguagem e a indeterminação resultante das circunstâncias fálicas prescindir de um juízo de
prognose. Nestas últimas hipóteses, as conseqüências do controle jurisdicional compreendem,
para além da invalidação do ato impugnado, a substituição por outro, seja através dos meios
processuais ordinários, seja em sede de ações especiais, nomeadamente, o Mandado de
Segurança, a Ação Civil Pública e a Ação Popular.22

A determinação judicial de substituição do ato anulado também poderá suceder, muito


embora com raridade, quando se trata do exercício da denominada discricionariedade de
efeitos - da discricionariedade de decisão e da discricionariedade de escolha (optativa e
criativa).

Nas hipóteses discricionariedade de decisão, isto é, se cabe à Administração decidir se vai


agir ou não, os efeitos do controle jurisdicional nem sempre negativos, pois, em algumas
situações, a conseqüência lógica será a possibilidade de uma conduta unívoca para a
Administração.

O terceiro tipo de vício corresponde ao desvio de finalidade.


20
A propósito do tema “discricionariedade de efeitos”, consultar o Título I da Parte II desta.
21
Será possível a determinação judicial de substituição do ato impugnado, no controle jurisdicional da
discricionariedade, em algumas hipóteses de discricionariedade de decisão (quanto se permite à
Administração agir ou não agir) e na discricionariedade de escolha, com opções mutuamente
excludentes.
22
Sobre este assunto versa o capítulo seguinte.

7
Se o juiz concluir que a alternativa de não agir representa ofensa aos direitos fundamentais
ou preterição dos princípios gerais de Direito, infere-se que somente serão assegurados os
direitos fundamentais e respeitados esses princípios se a conduta da Administração for
positiva. Entretanto, o juiz nem sempre poderá dizer exatamente como a autoridade
administrativa deverá agir.

Em importante decisão de mérito do Recurso Extraordinário 192.568, relatado pelo eminente


Ministro Marco Aurélio de Mello Farias, o Supremo Tribunal Federal no Brasil, em 23 de abril
de 1996, decidiu que, se a autoridade administrativa recusasse o pedido de prorrogação da
validade do concurso público para provimento de cargos de magistrados, estaria ofendendo o
princípio da razoabilidade, e determinou, por conseguinte, que fosse prorrogada a validade
do certame, para fins de admissão de candidatos aprovados, conforme se verifica a partir da
ementa a seguir:

“Concurso Público. Vagas - Nomeação. O princípio da razoabilidade é conducente a presumir-


se, como objeto do concurso, o preenchimento das vagas existentes. Exsurge configurador de
desvio de poder, ato da Administração Pública que implique nomeação parcial de candidatos,
indeferimento da prorrogação do prazo do concurso sob justificativa socialmente aceitável e
publicação de novo edital com idêntica finalidade. “Como o inciso IV (do artigo 37 da
Constituição Federal) tem o objetivo manifesto de resguardar precedências na seqüência dos
concursos, segue-se que a Administração não poderá, sem burlar o dispositivo e sem incorrer
em desvio de poder, deixar escoar deliberadamente o período de validade de concurso
anterior para nomear os aprovados em períodos subseqüentes. Fora isto possível e o inciso IV
tornar-se-ia a letra morta, constituindo-se na mais rúptil das garantias.” (Celso Antônio
Bandeira de Mello, Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta,
p. 56).23

Outro exemplo de reconhecimento judicial da teoria da redução da discricionariedade a zero


se colhe entre as decisões do egrégio Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que autorizou,
em face de comprovada necessidade coletiva do serviço de transporte rodoviário
interestadual, a continuidade exploração de fato de linhas de ônibus, diante da omissão do
poder público outorgante em efetivar o procedimento licitatório para este fim, consoante se
lê na ementa abaixo transcrita:

Processual e Administrativo. Transporte Rodoviário de Passageiros.

- Inexistindo óbice considerável a inibir a continuidade da exploração, e a ausência da lesão


do direito de terceiros, resta autorizada a manutenção da situação de fato, até que a rota
rodoviária passe a ser explorada diretamente pelo poder publico, ou seja, submetida a
licitação publica (arts. 21, XII, e 175 da CF/88).

- Para evitar prejuízo aos usuários do sistema rodoviário, deve ser mantido o serviço
existente, até posterior conclusão de processo licitatório.

- Apelações e remessa improvidas.24

Por outro lado, o Judiciário pode concluir que a Administração ao decidir pela ação, em vez
da abstenção, estará vulnerando os princípios gerais do Direito, de duas maneiras: ou que a
única conduta da Administração compatível com os princípios gerais do Direito seria a
omissiva, obrigando-a, portanto, à inação (não agir), ou que aquele comportamento eleito,
aquela forma específica de agir ofende os princípios gerais do Direito. Na primeira hipótese, a
conseqüência do controle jurisdicional será, além da invalidação do ato, a substituição por

23
Revista de Direito Administrativo 206/185-269.
24
Apelação Cível 506.288/94-CE, 1ª Turma, Tribunal Regional Federal da 5ª Região, DJ de 10.3.95 -
Relator: Juiz Hugo Machado.

8
uma conduta omissiva da Administração Pública, quando por exemplo compele a
Administração a não censurar a exibição de um filme. Na segunda hipótese, contudo, resta
intocável uma área de autonomia administrativa, ou seja. a possibilidade de escolha entre os
diversos tipos de comportamento elegíveis a critério do administrador. Muito embora o Juiz
possa determinar o dever de atuação positiva, sempre poderá ir além a ponto de definir o
conteúdo da decisão administrativa em todos os seus termos.

Em suma, o controle jurisdicional do exercício da discricionariedade de efeitos, seja de


decisão - entre agir ou não agir, seja de escolha - entre mais de uma conduta, dentre uma
série limitada pré-fixada na norma (discricionariedade optativa) ou dentre uma série ilimitada
não pré-fixada normativamente, porém aceita pelo Direito (discricionariedade criativa), será
possível ao Juiz determinar a substituição do ato administrativo anulado por outro nas
situações em que há “ a redução da discricionariedade a zero”, símiles às ilustrações
indicadas.

2.2. A REDUÇÃO DA DISCRICIONARIEDADE A ZERO

Há redução da discricionariedade a zero, quando as circunstâncias normativas e fáticas do


caso concreto eliminam a possibilidade de escolha entre diversas opções a ponto de subsistir
apenas uma solução juridicamente possível,.

Segundo leciona Maurer, a possibilidade de escolha se elimina quando não há entre as opções
senão uma única decisão que não apresenta qualquer vício de discricionariedade, enquanto
todas as demais possibilidades de decisão estariam viciadas. A autoridade administrativa será
então obrigada a tomar a decisão que resta. Tem-se, então, a hipótese de redução da
discricionariedade a zero, também denominada de atrofia do poder discricionário.

A escolha da atuação administrativa pode recair sobre uma série ilimitada de opções 25
possíveis definidas pela lei, ou ainda a apenas duas opções, mas também “pode a
discricionariedade reduzir-se simplesmente à escolha entre a acção e a inacção - aí haverá
então uma série limitada”.26

Quando há duas opções previstas na lei, ou seja, quando a lei prevê, em tese, a possibilidade
de duas soluções, em princípio, indiferentemente aceitas pelo Direito, as condicionantes do
caso concreto e as limitações jurídicas ao exercício da discricionariedade poderão, na análise,
de cada caso, conduzir à conclusão de que uma da opções foi tomada sem levar em conta as
peculiaridades da situação ou fora desses limites jurídicos. Por exclusão, restará uma solução
unívoca para o caso e a Administração estará obrigada a tomá-la, podendo, portanto compeli-
la a tanto.

Para Maurer, o poder discricionário confere à Administração a possibilidade de escolha entre


diferentes tipos de comportamento. Em certos casos, afirma ele, a possibilidade de escolha
conduz a uma única decisão. Essa eliminação da idade de escolhas ocorre, repita-se, quando
as circunstâncias do caso conduzem a uma só decisão, porque há apenas uma opção que não
25
Como escreve Afonso Rodrigues Queiróz
, “o mais das vezes, o legislador concede à Administração o poder de escolher, dentro de uma série
mais ou menos ampla de comportamentos, em princípio igualmente lícitos, aquele que deve ser
utilizado para a prossecução do fim que deseja ver realizado e observa o ilustre autor português que
essa série de comportamento pode ser uma série de dois apenas: a ação (uma certa ação) e a
abstenção, ou uma de duas decisões positivas; e pode ser uma série extensa: abstenção e uma de
várias medidas positivas; uma de várias medidas positivas, uma ou várias medidas positivas, a praticar
em um de vários momentos.” – “Os Limites do Poder Discricionário”, Boletim da Faculdade de Direito
da Coimbra, vol. XLI, 1985, p.85.
26
PEREIRA, André Gonçalves. Erro e Ilegalidade no Acto Administrativo, Lisboa, 1962, p. 221.

9
apresenta vício de poder discricionário, ao passo que as outras opções apresentam tais vícios.

Recorre-se, então, ao método de exclusão, adotando como critério de exclusão a existência


de vícios de discricionariedade, eliminando-se as decisões contaminadas, até remanescer
aquela indene de vícios.

Nessas hipóteses de redução a uma solução unívoca entre as opções jurídicas, expressivo
segmento doutrinário vem entendendo que, em rigor não há substituição da decisão
discricionária, quando há a redução da discricionariedade a zero, ou seja, nessas situações
concretas, a decisão não se reveste de caráter verdadeiramente discricionário, porque sendo
condicionada pelas circunstâncias de fato e de direito, não remanesce para o administrador,
in actu, qualquer possibilidade de escolha - nota essencial da discricionariedade. 27 Explica
Schmidt-Assmann ser a redução da discricionariedade a zero o ponto final da restrição da
discricionariedade, pois dentro de uma abstrata possibilidade de ações que, por razões
jurídicas, se vão excluindo pouco a pouco todas as outras até remanescer uma única variante
de decisão, de modo que in concreto, para o autor, não existiria mais discricionariedade.
Acrescenta que as circunstâncias de fato, a práxis administrativa e, sobretudo, os direitos
fundamentais, representam uma base para a redução da discricionariedade.28

Sustenta-se, no entanto, que a partir da proposta de redefinição da discricionariedade feita


nesta obra e de sua distinção com o mérito do ato administrativo, torna-se possível referir-se
ao controle jurisdicional de decisões discricionárias.

27
Averba André Gonçalves Pereira ser a existência de várias soluções válidas a característica essencial
da discricionariedade e que permite distingui-la da interpretação da lei, da discricionariedade técnica
e da referência às normas de boa administração, já que todas, segundo o autor português, levam
apenas a uma solução objetivamente válida.
28
SCHMIDT-ASSMANN. Ob. cit, p. 749.

10
Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL
Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – REDE LFG

Curso de Especialização Telepresencial em


DIREITO PROCESSUAL: GRANDES TRANSFORMAÇÕES

Disciplina
Processo Transformações
Administrativo: Grandes

Aula 2

LEITURA COMPLEMENTAR 2

MARCO MASELLI GOUVÊA


Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro e Mestre em Direito Público pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.

BALIZAMENTOS DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA NA


IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS

Como citar este artigo:

GOUVÊA, Marco Maselli. Balizamentos da Discricionariedade Administrativa


na Implementação dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. In: GARCIA,
Emerson (Coord.). Discricionariedade Administrativa. Rio de Janeiro: Lúmen
Iuris, 2005, pp. 309-386. Material da 2ª aula da Disciplina Processo

11
Administrativo: Grandes Transformações, ministrada no Curso de
Especialização Telepresencial e Virtual em Direito Processual: Grandes
Transformações - UNISUL - REDE LFG.

SUMÁRIO: Introdução - Seção 1: Precedentes de Implementação de Direitos Sociais Positivos:


As Experiências Norte-Americana e Brasileira - Seção 2: Direitos Sociais e Prestacionais;
Políticas Públicas e Posições Jurídicas Fundamentais - Seção 3: Aspectos da Discricionariedade
Sensíveis à Temática dos Direitos Sociais. O Espaço Legítimo da Discricionariedade na Teoria
dos Atos Administrativos. Ocasiões para o Agir Discricionário na Esfera de Direitos Sociais -
Seção 4: Limites Clássicos da Discricionariedade na Órbita dos Direitos Sociais - Seção 5: O
Primado dos Direitos Fundamentais como Limite da Discricionariedade no Campo dos Direitos
Sociais: A Prioridade do Mínimo Existencial. Mínimo Existencial e Dignidade da Pessoa Humana.
Características e Prioridade dos Direitos Fundamentais - Seção 6: Discricionariedade e Direitos
Sociais nas Cortes Brasileiras. O Direito à Saúde nos Tribunais. Outros Julgados

INTRODUÇÃO

A Constituição Brasileira de 1988 se caracteriza pela profunda preocupação para com a


temática dos direitos sociais. Adotando o modelo do Estado Social de Direito, já no Título
referente aos direitos e garantias fundamentais a Carta consagra os direitos à educação, à
saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à
maternidade e à infância e a assistência aos desamparados (art. 6º), bens jurídicos estes que
serão objeto de disposições específicas ao longo do Título VIII, dedicado à Ordem Social.

É bem verdade que diversas reformas implementadas no texto constitucional desde sua
edição descaracterizaram, em larga medida, o modelo originalmente adotado. Mesmo assim,
sem embargo de algumas involuções na garantia das posições jurídicas concernentes à esfera
social, é de se ressaltar a existência de iniciativas que, na vertente oposta, vem reforçar o
caráter primitivo da Carta de 1988. Nesta direção, a Emenda Constitucional nº 26/2000, por
exemplo, veio reafirmar o status constitucional do direito à moradia; a Emenda nº 31/2000
instituiu os Fundos de Amparo à Pobreza; diversas outras Emendas estabeleceram vinculações
entre arrecadação e alocação de recursos na saúde e no ensino públicos. 29

O declínio do modelo original de Estado Social se faz acompanhar de um fenômeno curioso: o


reconhecimento de que certos direitos, afora sua caracterização como direitos sociais, são
também direitos fundamentais (ao menos no que tange ao seu mínimo essencial), e como tais
merecem proteção. Se antes moradia, saúde, habitação etc. eram direitos aclamados com
base no postulado de justiça social, que prega sobretudo a redução das desigualdades, hoje
em dia o núcleo destes direitos encontra eco nos reclamos pela garantia de condições
mínimas de existência condigna para o ser humano. Reconhece-se a existência de um núcleo

29
Na realidade, a suposta modificação do modelo de Estado brasileiro, passando de um Estão Social
para um de cunho (neo)Liberal, tem em vista fatores que vão além da reforma de dispositivos do texto
constitucional (a maioria dos quais, aliás, tem mais a ver com a redução da máquina administrativa do
que com a diminuição dos investimentos sociais). O neoliberalismo de modo sumário, pode ser descrito
como uma ideologia, cada vez mais espraiada na sociedade mundial e brasileira, que acaba orientando
a comunidade jurídica a eleger certos postulados como reorientadores da interpretação e aplicação do
direito. Embora influa diretamente nas alterações que o direito positivo brasileiro sofreu ao longo dos
últimos anos, é no campo interpretativo que a nova mundividência apresenta impacto mais incisivo,
modificando posições jurídico-subjetivas, a compreensão acerca do papel de certas instituições,
relativizando garantias etc.

12
de direitos sociais, oponíveis ao agir comissivo do Estado e de particulares, sem o qual a
consagração dos direitos de índole liberal (segurança, liberdade, incolumidade física) se torna
retórica vazia.

Outro aspecto curioso exsurge da crise do Estado Social. Sob a égide do modelo originário,
conferia-se atenção primordial à consagração, no ordenamento positivo, de determinado
direito, o que quase nunca era suficiente para garantir o bem jurídico visado. A
desregulamentação de certos interesses sociais, com o deslocamento de suas disciplinas para
o campo das políticas públicas, embora aparentemente tenha tornado estes bens jurídicos
ainda mais vulneráveis, se fez acompanhar do desenvolvimento de mecanismos supostamente
mais ágeis de controle da atividade estatal, através de órgãos com participação da sociedade
organizada e legislações mais dinâmicas, voltadas mais à aferição dos resultados (eficiência)
do que à verificação burocrática das condições iniciais em que determinado ato é praticado.
O desenvolvimento destes novos mecanismos é recente e exige inegáveis aperfeiçoamentos,
mas tende a se tornar um fator satisfatório de balizamento do poder público. Frise-se,
todavia, que estes novos mecanismos não devem levar à desvalorização dos métodos de
controle da Administração que a Constituição já previa.

Muitos autores têm criticado, por excessiva, a ambição constitucional de reconhecer, com
tamanha amplitude e minúcia, direitos cuja implementação depende muito mais da
existência de condições materiais do que da simples vontade estatal. 30 Diversamente dos
direitos liberais clássicos - vida, incolumidade física, liberdade de ir e vir-, consistentes de
abstenções do Estado e que portanto nada custariam, 31 os direitos sociais normalmente
assumem a feição de direitos prestacionais, direitos dependentes da atuação positiva do
poder público, o que dificulta sensivelmente a sua realização por via judicial. Outros fatores,
que serão detalhados mais adiante, contribuem para tornar ainda mais dificultosa a
sindicação destas posições jurídicas, ameaçando reduzi-las a letra-morta já que os
administradores públicos brasileiros, infelizmente, não lhes têm atribuído a importância que a
Constituição pretendeu imprimir.

De um modo geral - e já o afirmamos alhures -, a história do Direito Público se traduz numa


gradual extensão do espectro de prestações estatais judicialmente exigíveis. De tempos em
tempos, contudo, iniciativas judiciais de aprofundar o controle dos atos da Administração,
adentrando à apreciação de seus aspectos discricionários, são tolhidas pelos tribunais
30
Nesta direção, Ernest-Wolfgang Böckenförde, “Los Derechos Fundamentales Sociales en Ia Estructura
de Ia Constitución”, in Teoria e Interpretación de los Derechos Fundamentales, p. 77; J. J. Calmon de
Passos, “A Constitucionalização dos Direitos Sociais”, in Livro de Estudos Jurídicos nº 9, pp. 244 e ss., e
Ricardo Lobo Torres, “A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos”, in Teoria dos Direitos
Fundamentais, pp. 290 e ss., dentre outros autores cujos entendimentos serão analisados com mais
vagar posteriormente. Mesmo juristas mais inclinados à defesa dos princípios do Estado Social, como
Luís Roberto Barroso, denunciam, como causa da ausência de um legítimo sentimento constitucional
em nosso país, a “insinceridade normativa” do constituinte: “Igualmente irrealizável é o preceptivo
constitucional que padeça de excesso de ambição, colidindo com as possibilidades reais do Estado e da
sociedade” (O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas, p. 55).
31
Trata-se de assertiva que merece algumas considerações críticas. Cass Sunstein e Stephen Holmes,
em The Cost of Rights - Why Liberties Depends on Taxes, mostraram que também os direitos de índole
liberal são garantidos através de conduta comissiva - e por vezes bastante dispendiosa - do Estado.
Ultimamente, a guerra contra o terrorismo deflagrada pelos Estados Unidos da América tem tornado
evidente a necessidade de um imenso aporte de recursos que direitos de índole liberal, como a
segurança física, podem acabar por demandar. A crítica ao caráter não-dispendioso dos direitos havidos
como negativos foi introjetada na doutrina brasileira recente; Ingo Sarlet (A Eficácia dos Direitos
Fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, pp. 274-5), fazendo alusão crítica aos
trabalhos de Gustavo Amaral e Flávio Galdino, observa, contudo, que os tribunais brasileiros, embora
invoquem o dispêndio exigido pelos direitos sociais como argumento para negar-lhes eficácia, na
prática nunca consideram o fator custo como elemento relevante para deixar de reconhecer um direito
a abstenção estatal (direito negativo). A observação é sem dúvida pertinente, e faz refletir acerca dos
reais motivos que levam à não-implementação dos direitos de cunho positivo.

13
superiores, tanto no Brasil como no exterior. Sujeita-se a críticas, portanto, a afirmação
peremptória de que o Direito Público caminha, de modo inexorável, para a eliminação - ou
limitação extrema - da esfera de discricionariedade. Fatores os mais diversos, ligados à
circunstancial diminuição das possibilidades econômicas da sociedade sob análise, ao
recrudescimento talvez cíclico de uma postura política conservadora, ao arrefecimento e
queda de popularidade de setores mais atuantes do Judiciário (cuja conduta passa a ser
enxergada como ativismo irresponsável, usurpador do poder conferido aos mandatários eleitos
pelo povo), dentre outros, interrompem o fluxo aparentemente natural de imposição de
limites ao agir do administrador público. Estas retrações se evidenciam especialmente no
tocante aos direitos sociais, dada a sua vulnerabilidade às variáveis políticas e econômicas
externas ao dia-a-dia de juízes, advogados e da comunidade acadêmica.

A despeito disto, pode-se afirmar que a discussão sobre a sindicabilidade de prestações


estatais, com o desenvolvimento de ferramentas intelectivas capazes de possibilitar uma
análise mais profunda dos aspectos discricionários do ato administrativo, encontra-se, ela
sim, num aprimoramento constante. Percebe-se uma proliferação inédita de conceitos,
princípios e postulados capazes de estreitar o círculo da discricionariedade, a despeito de
suas aplicações sujeitarem-se às contingências já mencionadas. 32 Diante de circunstâncias
políticas e sociais favoráveis, esta efervescência de idéias disseminadas na comunidade
jurídica, possibilita o reconhecimento judicial de direitos sociais que, em outra conjuntura
cultural, seriam sumariamente rechaçados.

O objetivo deste capítulo consiste em analisar estas possibilidades argumentativas de


superação da esfera tradicional de reverência à discricionariedade, bem como as críticas que
lhes são opostas, enfocando-as sob o ponto de vista a partir do debate que hoje se trava,
dentro da ciência política, acerca do papel do Direito e do Poder Judiciário num Estado
Democrático.

Num primeiro momento, a fim de que o estudo não se perca em mal-entendidos


terminológicos, procurar-se-á tecer um breve relato acerca das iniciativas de implementação
de direitos sociais levadas a cabo nos Estados Unidos e no Brasil, situando a questão em seu
evolver histórico. Em seguida, serão abordados os conceitos de direito social, direito
prestacional, direito fundamental e política pública, objetivando-se subsidiar o estudo acerca
dos limites legítimos da atividade jurisdicional num Estado Democrático. Serão então
analisados os topoi argumentativos que permitiriam sustentar, nos dias atuais, uma pretensão
balizada de discricionariedade que favorecesse a implementação de direitos sociais,
finalizando-se com informações sobre a jurisprudência brasileira contemporânea e métodos
de imposição da tutela judicial.

SEÇÃO 1: PRECEDENTES DE IMPLEMENTAÇÃO DE DIREITOS SOCIAIS POSITIVOS: AS


EXPERIÊNCIAS NORTE-AMERICANA E BRASILEIRA

Foi nos Estados Unidos da América, durante a década de sessenta, que tiveram lugar as
experiências pioneiras de implementação de direitos prestacionais através da atividade
judicial. Explica esta circunstância uma complexa convergência de fatores, alguns
32
Humberto Bergmann Ávila (Teoria dos Princípios, São Paulo: Malheiros, 2003), em trabalho seminal,
colhe a expressão Estado Principiológico como designativo deste momento de “euforia constitucional”
em que a comunidade acadêmica, por vezes de modo assistemático, adentrou à discussão mais
aprofundada de categorias, classificações, “bens, interesses, valores, direitos, princípios, razões”;
enfim, todos aqueles topoi argumentativos que ele próprio considera elementos inespecíficos do
discurso jurídico. Após um primeiro momento de contato com idéias alienígenas, sobretudo norte-
americanas e alemães, começa-se a perceber uma consolidação de| posições acadêmicas acerca deste
novo arsenal de idéias, responsável, como já afirmado, por uma proliferação inédita de reflexões no
âmbito do direito, sobretudo administrativo e constitucional.

14
propriamente jurídicos - que incluem amadurecimento da tutela coletiva (class actions) e
mandamental (injunctions), além do estado avançado da reflexão jurídica naquele país - e
outros de índole sócio-econômica. Além da notória pujança econômica dos Estados Unidos,
deve-se ter em mente que foi precisamente na década de sessenta que despontaram
movimentos sócio-culturais de valorização de mulheres, negros, jovens e homossexuais,
evidenciando uma preocupação solidarística que se mostrou fundamental para a reversão da
mentalidade dos tribunais norte-americanos, originariamente avessa à implementação
coercitiva dos direitos sociais.33

Três importantes reformas estruturais demonstram a possibilidade de superação dos limites


impostos pela discricionariedade em um país cuja organização do Estado, em especial no que
toca à divisão de poderes e à adoção do princípio federalista, apresenta pontos de
coincidência com o Brasil: os mental hospital cases, os school desegragation cases e os príson
reform cases.

Os mental hospital cases foram um conjunto de ações e decisões judiciais que alteraram o
perfil do sistema de atendimento nos hospitais psiquiátricos públicos. Dentre estes casos,
destaca-se Halderman v. Pennhurst State School and Hospital, onde Halderman, interno do
sistema de atendimento psiquiátrico da Pensilvânia, requeria a modificação das condições de
tratatamento, que deveriam estar adequadas à diretriz da legislação estadual segundo a qual
o poder público deveria adotar o meio menos restritivo ao lidar com pessoas portadoras de
deficiência mental.

Após anos em que esta ação tramitou nas instâncias inferiores, a Suprema Corte norte-
americana, em 1984, finalmente decidiu que falecia às Cortes Federais competência para
apreciar uma ação em que se postulava, em última análise, o cumprimento, pelo Estado, de
sua própria legislação.34 A despeito do aparente insucesso, quando o feito chegou à Suprema
Corte muito das condições irregulares já havia sido alterado em virtude das primeiras
decisões judiciais.

Os casos de dessegregação do sistema educacional tiveram sua origem no famoso Brown v.


Board of Education, em que a Suprema Corte definitivamente enfrentou e rejeitou a doutrina
do equal but separate, que norteava a política convivência (melhor seria dizer tolerância)
inter-étnica naquele país. Não bastava, porém, a afirmação pura e simples de que negros e
brancos poderiam freqüentar as mesmas escolas: afigurava-se necessário dotar os bairros e
distritos de maioria negra e hispânica de escolas similares àquelas encontradas nos bairros e
distritos de maioria branca. Generalizaram-se, a partir de então, ações visando condenar os
governos estaduais e distritais a aparelhar adequadamente estas escolas, bem como a
construir escolas onde seu número se mostrasse insuficiente.35

Um dos casos mais rumorosos foi o célebre julgado Milliken v. Bradley, em que se buscava
reparar o originariamente segregado sistema de educação pública de Detroit. Após sete anos
de litígio, em 1977, a Suprema Corte finalmente travou contato com este processo,
33
Marcos Maselli Gouvêa, “O Direito ao Fornecimento Estatal de Medicamentos”, in Revista Forense,
vol. 370, p. 104.
34
465 U.S. 89.
35
Dentre as medidas de superação da segregação educacional, pode-se mencionar, ainda, as políticas
de ação afirmativa no campo do acesso ao ensino superior, em especial a instituição de quotas para
alunos de origem indígena, africana e hispano-americana. Estas medidas, no entanto, discrepam dos
objetivos do presente estudo, já que consistem em políticas adotadas pelas instituições de ensino
superior - majoritariamente particulares -, não implicando o exercício de prestação positiva pelo
Estado. Mencione-se, contudo, que recentemente, ao julgar o caso Michigan, a Suprema Corte decidiu
pela constitucionalidade destas medidas, desde que a avaliação dos candidatos não tomasse a condição
racial como critério exclusivo de inclusão dos mesmos nas quotas; v. Marcela de Oliveira Mello Gouvêa,
Ações Afirmativas no Ensino Superior Brasileiro — Construindo uma Política Pública Constitucional e
Nacionalmente Adequada, UERJ, mimeo.

15
assentando que as Cortes Federais poderiam adotar os remédios necessários para a conversão
dos sistemas educacionais discriminatórios em sistemas constitucionalmente adequados, à luz
da Décima Quarta Emenda. Poderiam, para tanto, determinar inclusive a realocação de
recursos, quando o orçamento global (total budget) se mostrasse suficiente para o
financiamento das medidas, que poderiam abranger, inclusive, a instituição de programas
educacionais especiais para compensar o déficit das crianças prejudicadas em função da
segregação até então existente.36

Mesmo antes do caso Milliken, o propósito decidido de levar-se adiante o programa de


dessegregação, apesar dos percalços políticos e conjunturais, acabou determinando soluções
inéditas para financiamento das medidas. Em Griffin v. County School Board, a Suprema Corte
já havia reconhecido a possibilidade de as Cortes Federais determinarem aos Legislativos
estaduais a criação de impostos necessários a fazer face às medidas - embora negando a
prerrogativa de os tribunais os instituírem por si mesmos.37

Mais adiante, já nos anos oitenta, a Corte de Apelação local, invocando aquele precedente,
reconheceu, no caso Liddel v. Missouri, a possibilidade de criação de impostos pelo próprio
Judiciário, desde que esgotados todos os mecanismos alternativos (inclusive a determinação
para que o Legislativo criasse o tributo, em consonância com o julgado Griffin).

Na mesma direção, já na década de oitenta, a Suprema Corte, por 5-4, assentou, no caso
Jenkins v. Missouri, que seria possível ao Judiciário determinar ao Poder Legislativo o
aumento de imposto e a emissão de títulos. Asseverou-se, tão-somente, que a realização
destas medidas diretamente pelo órgão jurisdicional deveria aguardar o esgotamento de todas
as possibilidades para que o Legislativo o fizesse, sem o que haveria violação ao princípio
discricionário. Assim se pronunciou a maioria, na trilha do voto do Justice White:

A Corte Distrital abusou de discricionariedade ao impor o aumento de imposto, o que


contrapõe-se aos princípios de comedimento. Embora a corte acreditasse que não tivesse
alternativa senão impor a exação ela mesma, ela, de (495 U.S. 33,35) fato, tinha a própria
alternativa rascunhada pela Corte de Apelação. Autorizando e direcionando as autoridades
locais a divisar e implementar remédios não apenas protege a função destas instituições mas,
na medida do possível, também coloca a responsabilidade de solucionar os problemas de
segregação sobre aqueles que criaram, eles mesmos, o problema. Conquanto a corte distrital
não deva outorgar ao governo local carte blanche, autoridades locais devem ao menos ter a
oportunidade de divisar suas próprias soluções para tais problemas. Aqui, KCMSD (a agência
distrital de educação) estava pronta, disposta e, menos em virtude da lei estadual, apta a
remediar a privação de direitos constitucionais ela mesma.

O voto vencido, da lavra do Justice Kennedy, alegava que, do ponto de vista prático, obrigar
a autoridade estadual a aumentar imposto ou realizar, diretamente por ordem judicial, o
incremento do tributo seriam medidas equivalentes.38

Os estudiosos que se debruçaram sobre o tema das structural injunctions divergem bastante a
respeito da alocação judicial de verbas orçamentárias, notadamente quando estas são
realizadas diretamente, dadas as implicações negativas no que concerne à separação de
poderes, ao federalismo e a certas normas procedimentais previstas em lei e na
Constituição.39 De fato, parece mais acertado que o Judiciário, reconhecendo a ilicitude de
uma determinada omissão estatal, concite a Administração a, ela própria, elaborar um plano
que permita solucionar o problema da forma que melhor se afinar às suas diretrizes políticas.
36
433 U.S. 267, 717 e 289.
37
377 U.S. 218.
38
495 U.S. 33, v. também Ricardo Lobo Torres, Os Direitos Humanos e a Tributação, pp. 167-8.
39
Ricardo Lobo Torres, op. cit., p. 166; v. também Feeley e Rubin, Judicial Policy Making and the
Modern State, Cambridge (Mass.): Cambridge Univ. Press, 1998, passim.

16
O que os exemplos listados demonstram, contudo, é a importância sobranceira que as cortes
norte-americanas conferem à defesa dos direitos reconhecidos, na letra da Constituição ou
pelo consenso da comunidade, como direitos fundamentais. Causa sem dúvida estranheza que
todo o debate que ora se trava no Brasil acerca da sindicabilidade destas posições jurídicas,
quando contrapostas à discricionariedade, se dê sem o auxílio precioso que adviria do estudo
dos cases norte-americanos. Tacha-se de ativismo judicial aquilo que, na matriz de nosso
sistema constitucional, é há décadas admitido - evidentemente, também com ressalvas e
limites.

Não obstante a importância social das reformas no sistema educacional, os analistas apontam
os prison reform cases como o mais complexo dos movimentos de implementação de
prestações positivas através de structural injunctions.

Até meados da década de sessenta, durante o período conhecido como hands off era, reinava
hegemônico o entendimento de que descabia à Justiça imiscuir-se na gestão dos presídios,
alçada reservada à discricionariedade do Poder Executivo. No ano de 1965, a Corte Federal do
Distrito Oriental de Arkansas, no célebre caso Talley v. Stephens, bruscamente deflagrou a
inversão daquela linha jurisprudencial, ao declarar que certas condições da colônia penal
estadual de Cummins Farm constituíam punição “cruel e incomum”, em desrespeito à Oitava
Emenda. No curso dos anos que se seguiram a referida instituição penitenciária foi declarada
inconstitucional em sua totalidade, editando-se uma série de injunctions (ordens) visando à
completa reformulação do sistema penal estadual.

Iniciativas semelhantes logo se propagaram, primeiramente pelos estados do sul - onde as


condições carcerárias eram piores - e depois por todo o país. Nos dez anos subseqüentes
(1965-1975), prisões de metade dos cinqüenta estados e a totalidade do sistema carcerário de
cinco estados já haviam sido reformuladas pela atuação dos juízes. Na década seguinte, a
abrangência dos prison reform cases alcançava prisões de trinta e cinco estados e o inteiro
sistema penitenciário de nove outros. Em 1995, a American Civil Rights Union (ACLU)
estimava que, à exceção de Minnesota, Nova Jersey e Dakota do Norte, todos os estados
norte-americanos, assim como o Distrito de Columbia, Porto Rico e as Ilhas Virgens, haviam
sido atingidos pelo movimento de reformas. Mesmo naqueles três estados virtuosos, ao menos
algumas celas foram adaptadas em decorrência de ordens judiciais.

Certas ordens judiciais chegaram a um grau surpreendente de detalhamento, prevendo a área


mínima das celas, o conteúdo dos cardápios, o número de banhos diários para cada preso e
mesmo a potência das lâmpadas usadas na iluminação das celas.40

A partir da década de noventa, o movimento sofreu considerável retração que se deveu, em


grande parte, ao fato de que os problemas prementes do sistema penitenciário já haviam sido
solucionados. Ademais, a década de oitenta e o início dos anos noventa foram marcados pelo
avanço, no seio da sociedade norte-americana, de uma mentalidade conservadora que se
traduziu em crescente aversão para com os direitos dos presos - sobretudo para com aqueles
direitos que, impondo despesas, iam de encontro à apregoada necessidade de contenção
orçamentária.41 Nem por isso o movimento extingui-se por completo: data de 1997, por
exemplo, importante acórdão confirmando reformas judicialmente impostas a presídios
californianos.

No Brasil, por sua vez, identificam-s e dois gêneros de direitos sociais, de cunho prestacional,
cuja implementação judicial vem sendo reiteradamente postulada, notadamente a partir da
edição da Constituição de 1988: aqueles referentes à saúde, em especial ao fornecimento
público de medicamentos e equipamentos necessários ao tratamento de doentes, e aqueles
ligados à proteção de crianças e adolescentes. Conforme já tivemos ocasião de demonstrar,
40
Feeley e Rubin, op.cit., p. 13
41
Ibid., p. 46.

17
o direito às prestações ligadas a saúde tem logrado obter consagração jurisprudencial; já as
garantias estabelecidas no art. 227 da Constituição e na Lei nº 8.069/90 esbarram
freqüentemente em contra-argumentos, ligados à noção de discricionariedade, que
42
lamentavelmente lhes retiram a efetividade.

Ao longo dos anos noventa, foi-se tornando cada vez mais freqüente a propositura de ações
judiciais visando ao fornecimento de remédios necessários à terapêutica da síndrome da
imunodeficiência adquirida (AIDS) e de outras doenças, especialmente daquelas que
representam ameaça à vida, tais como a fenilcetonúria (doença do pezinho), o câncer, a
cirrose, a doença renal crônica e a esclerose lateral amiotrófica (ELA). Hoje em dia, estes
feitos assumem uma porcentagem relevante dos processos que tramitam nas varas da fazenda
pública da Comarca do Rio de Janeiro, despertando uma série de questionamentos
concernentes à própria sindicabilidade destas posições jurídicas, à legitimidade passiva dos
entes de direito público, aos mecanismos de imposição das decisões judiciais etc.

Em um primeiro momento, estas ações tratavam, quase que exclusivamente, do fornecimento


de medicamentos para o combate à AIDS. Tinham por fundamento normativo o art. 196 do
Texto Maior, segundo o qual “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, e eram
sumariamente rejeitadas pelos tribunais que enxergavam, neste dispositivo constitucional,
uma norma meramente programática, insuscetível de produzir efeitos jurídico-positivos.
Filiava-se assim o Judiciário, nem sempre conscientemente, à concepção de que existem
diferenças, no que tange à esfera de liberdade outorgada administrador, quando a definição
de certa posição jurídica aparece apenas no texto constitucional (direitos originários a
prestações) - que equivaleria em última análise, a uma carta de princípios - e quando existe
lei infraconstitucional, ou outra iniciativa oficial, reafirmando aquilo que a Constituição
rascunhara (direitos derivados a prestações). É curioso como tal posicionamento, que
reconhece à mera lei infraconstitucional uma força norma capaz de suprimir espaços de
discricionariedade que a própria Constituição não é capaz de restringir, tenha ganho - e
continue ganhando, em certas decisões - acolhida dos tribunais brasileiros já no final do
Século XX, após toda a exortação em prol da efetividade constitucional. Enxergar a
Constituição como sendo, por excelência, mera carta de princípios é algo que a comunidade
jurídica internacional repele,43 conquanto seja evidente que a aplicabilidade de seus
dispositivos encontra-se condicionada a aspectos gramaticais, relativos ao texto da norma em
questão, e práticos, atinentes às possibilidades materiais de cada sociedade.

Após este primeiro momento, assistiu-se a uma intensa mobilização das associações de defesa
de soropositivos e de setores formuladores de políticas públicas na área de saúde,
objetivando compelir os Poderes Executivo e Legislativo a densificarem as normas
constitucionais reputadas ineficazes. Em 13 de novembro de 1996, premido pela intensa
mobilização da sociedade civil finalmente o Governo fez vir a lume a Lei na 9.313, dispondo
sobre “a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do HIV e doentes de AIDS”. 44

A lei em tela representou significativo avanço, não apenas pelo que expressamente estatuiu,
como também - e talvez principalmente - pelo influxo que imprimiu na conformação, no seio

42
O Controle Judicial das Omissões Administrativas, cit., Parte IV.
43
Sobre a controvérsia no direito constitucional italiano acerca da suposta não-juridicidade das normas
constitucionais programáticas, v. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, São
Paulo: Malheiros, 1998, pp. 78-81; sobre a superação da quizila na doutrina alemã, já na década de
1920, v. Friedrich Müller, “Concepções Modernas e a Interpretação dos Direitos Humanos”, in Anais da
XV Conferência Nacional da OAB, 1995, pp. 100-6. Ressalte-se que, sem maiores reflexões, o
argumento da falta de efetividade, em linha de máxima, das normas constitucionais permanece sendo
invocado nas decisões denegatórias de prestações positivas estatais, de cunho social, em nosso país.
44
De se frisar que, em certas unidades da Federação, legislação local já previa a distribuição gratuita
de medicamentos, inclusive sem limitá-los à terapêutica do HIV: nesta direção, registre-se a edição da
Lei nº 9.908/93, do Estado do Rio Grande do Sul.

18
da comunidade jurídica e da opinião pública em geral, de um princípio de prevalência e plena
aplicabilidade das ligadas à saúde. A lei determina que o Ministério da Saúde padronize os
medicamentos a serem entregues, o que poderia conduzir a um enfraquecimento de sua força
cogente: em última análise, o juízo discricionário do Ministro determinaria até que ponto a
norma teria eficácia. Esta padronização, prevista no § 1º do art. 1º da lei, no entanto, tem
sido pacificamente compreendida pelos tribunais como diretriz indispensável para que o
Poder Executivo organize seus estoques de medicamentos, não implicando em restrição para
que o jurisdicionado obtenha outros, desde que prescritos por médico.

Outro ponto supostamente fraco da lei é a remissão, no art. 2º, a um “regulamento” que
estabeleceria o mecanismo a ser adotado entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios para o financiamento das prestações. Também neste caso, os tribunais têm
restringido o poder regulamentar: ele é útil para a definição de responsabilidades principais
entre as esferas do poder público, não podendo ser oposto à pretensão do doente, que
indistintamente poderia demandar contra qualquer um; posteriormente, Caberia ao ente
onerado pleitear a reparação junto àquele que, nos termos do regulamento, incumbiria arcar
com o dispêndio.

Percebe-se, a partir de então, uma mudança no padrão decisório que não se explica,
meramente, pela entrada em vigor da Lei nº 9.313/96 - tanto que, a partir de então, os
tribunais passaram a acolher pretensões ao recebimento de medicamentos deduzidas por
portadores de doenças outras, que não apenas a AIDS. O exemplo da guinada jurisprudencial,
no que tange ao fornecimento de remédios, demonstra que o reconhecimento de uma
determinada •esfera de discricionariedade, cuja integração seria prerrogativa do
administrado público, depende muito mais da formação de consensos sociais e da comunidade
jurídica acerca da elevação de determinadas políticas públicas ao patamar de verdadeiros
direitos, exigíveis em virtude de um imperativo metapositivo partilhado pela comunidade de
princípios, do que, meramente, pela iniciativa do legislador - ainda que este legislador seja o
constituinte.

No que toca aos tribunais superiores, desde meados dos anos noventa o Superior Tribunal de
Justiça tem aceitado, pacificamente, os pedidos de medicamentos que chegam à sua
apreciação, mediante recursos ordinários ou especiais interpostos. 45 Mesmo em arestos que,
primordialmente, voltam-se para questões processuais, percebe-se uma nítida inclinação em
favor do acolhimento destas pretensões. Assim, por exemplo, nos Recursos Ordinários nº
6063/RS46 e 6371/RS,47 considerou-se que a restrição legal à concessão de medidas cautelares
contra o poder público “só subsiste enquanto o retardamento não frustrar a tutela judicial,
que é garantia constitucional”. Ambos os arestos abordam a probabilidade do acolhimento
final dos pedidos (fumus boni iuris), evidenciando assim juízo favorável, posto que
perfunctório, à tese dos requerentes.

Destoa dos acórdãos coligidos aquele proferido no Recurso Especial nº 57.614-8/RS, da lavra
do eminente Min. Demócrito Reinaldo, no qual se rejeita pedido de fornecimento de
medicamentos formulado por crianças fenilcetonúricas.48 O decisum em questão lastreia-se
num triplo fundamento: o descabimento do mandado de segurança pela não indicação do ato
(ainda que omissivo) ilegal; o caráter programático dos dispositivos constitucionais invocados,
bem como a inexistência de previsão orçamentária para as despesas necessárias. Datado de
45
Neste sentido: RESP 83.800/RS, 1ª T., maioria, Rel. Min. Gomes de Barros, vencido o Relator
originário, Min. Demócrito Reinaldo (medicamentos para fenilcetonúria); AGA nº 253938/RS, 1ª T.,
unânime, Rel. Min. José Delgado (medicamentos para AIDS); ROMS 11.183/PR, Ia T., unânime, lím. José
Delgado (medicamentos para esclerose lateral amiotrófica).
46
Rel. Min. Ari Pargendler, 2ª T., unânime, DJ 1º/12/97, p. 62700.
47
Rel. Min. Peçanha Martins, 2ª T., julg. em lº/04/96, unânime.
48
Julgado em 27/05/96, 1ª T., vencidos os Ministros Gomes de Barros e José Delgado, que voltaram
pelo não-conhecimento do recurso.

19
1996, não espelha a orientação mais moderna nossos tribunais.

Relatando hipótese semelhante, já em 1999, o Min. Demócrito Reinaldo: viu sua tese,
anteriormente acolhida, ser rejeitada pela 1ª Turma. No Recurso Especial nº 83.800/RS, 49
entendeu-se que a conduta da Administração evidenciava, senão uma ilicitude atual, decerto
um ato ilícito potencial. Nas palavras do Relator, Min. Gomes de Barros,

Tenho para mim que, na hipótese, a denegação foi confirmada pela Administração, quando
sustentou a impossibilidade de fornecer o medicamento. Isto significa: se houvesse formulado
a pretensão, o Impetrante receberia fatal indeferimento. Em hipóteses como tais, não é
racional e exigir-se do indivíduo a adoção de providência inócua. Para obviar quejadas
inutilidades, admite-se a concessão da Segurança pretendida.

Apreciando finalmente os dois fundamentos restantes do recurso ( contrariedade da decisão


impugnada ao caráter alegadamente programático do art. 196 da Constituição e
contrariedade ao princípio da legalidade orçamentária), o acórdão os considerou imunes ao
recurso especial, dado o assento constitucional dos preceitos suscitados. Conclui-se, portanto,
que a orientação recente do STJ é francamente favorável ao reconhecimento de direito ao
fornecimento de medicamentos pelo Estado, que possuiria esfera de discricionariedade
bastante restrita, nesta seara.

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, deparou-se com recursos extraordinários versando a
matéria entelada a partir do ano de 1999. Desde o primeiro momento, o posicionamento do
Excelso Pretório mostrou-se uníssono em favor destas postulações, que até o final do ano 2000
se circunscrevam à obtenção de medicamentos para a AIDS.50

Diversamente do que ocorre nas ações envolvendo a entrega de medicamentos, na seara da


infância e da juventude poucos são os processos que chegam aos tribunais superiores,
tornando-se por isto difícil precisar qual o entendimento do STF e do STJ sobre o tema. A
despeito do status prioritário que a Constituição e o Estatuto atribuem à matéria menorista,
constata-se uma profunda divergência jurisprudencial quanto à possibilidade de que
prestações positivas sejam implementadas neste campo. Embora haja uma tendência
favorável à implementação nas decisões judiciais de primeiro grau, os tribunais estaduais
ainda revelam uma postura refratária ao acolhimento destas postulações.

SEÇÃO 2: DIREITOS SOCIAIS E PRESTACIONAIS; POLÍTICAS PÚBLICAS E POSIÇÕES JURÍDICAS


FUNDAMENTAIS

Lamentavelmente, durante muito tempo prevaleceu, sobretudo no âmbito das ciências


sociais, a concepção de que investigar conceitos era sua tarefa precípua. Definir os
significados corretos das palavras e expressões com as quais lida determinado ramo de
conhecimento, contudo, há algum tempo já não figura entre as preocupações maiores de
filósofos e cientistas, especialmente diante da constatação de que não há um significado
correto para estas entidades lingüísticas. A linguagem é um instrumento essencial do
conhecimento humano - de certa forma, só pensamos criticamente na medida em que o
domínio da linguagem o permite -, mas reduzir as reflexões ao campo terminológico é ignorar
que a ciência, mediante o uso da palavra, lida, primordialmente, com os fenômenos e o modo
como estes se comportam. O espaço epistemologicamente legítimo da discussão sobre
49
Rel. Min. Gomes de Barros; 1ª T., maioria; julg. em 21/09/99.
50
V. RE 257.109 (Rel. Min. Maurício Corrêa, 2ª T.), RE 242.859 (Rel. Min. Ilmar Galvão, 1ª T., publ. DJ
17/09/99), 247.900 (Rel. Min. Marco Aurélio, julg. 20/09/99), RE 267.612 (Rel. Min. Celso de Mello,
julg. em 02/08/2000, com Agravo Regimental 271.286 julg. unânime pela 2ª T. em 12/09/2000), RE
279.519 (Rel. Min. Nelson Jobim, julg. em 22/09/2000) e RE 273834 (Rel. Min. Celso de Mello, julg. em
23/08/2000). Todos estes recursos são oriundos do Rio Grande do Sul.

20
conceitos, portanto, é o de possibilitar que se distingam fenômenos que, em função de suas
características díspares, merecerão tratamento diferenciado. Nesta direção, as considerações
seguintes, acerca dos conceitos de direito social, direito prestacional e de política pública
restringem-se a ressaltar aquilo que é necessário para o estudo, com certo grau de clareza,
das características e conseqüências juridicamente reconhecidas a cada um.

Definir algo significa, como o próprio vocábulo indica, especificar seus limites, estremando-o
de outras noções que integram o mesmo gênero. Conceituar os direitos sociais implica, deste
modo, em traçar os contornos que os singularizam dentre os direitos em geral; em termos
práticos, exige diferenciá-los dos direitos clássicos, de índole liberal ou - como alguns
preferem - de primeira geração.

Os direitos de primeira geração são aqueles que defluem imediatamente do postulado de


dignidade da pessoa humana, dizendo respeito à preservação de faculdades que são inerentes
ao homem, abstraídas suas relações sociais. Na medida em que a condição de pessoa
pressupõe capacidade - ao menos potencial - de autodeterminação, 51 os direitos de primeira
geração resguardam primordialmente a vida e a liberdade do indivíduo, em suas dimensões
física e psíquica. Historicamente, são direitos consagrados previamente aos direitos sociais,
muito embora questões complexas relacionadas aos mesmos permaneçam em evidência, nos
dias atuais. Porquanto se destinem a preservar capacidades que a pessoa já possui,
usualmente têm por contraponto abstenções do Estado. Não é possível, contudo, traçar uma
identificação precisa entre direitos de índole liberal e direitos negativos, já que os direitos de
primeira geração também carecem, para sua garantia, de prestações positivas estatais:
aparelhamento da polícia e da defesa civil organização de um sistema judiciário, edição de
normas de resguardo da propriedade, da segurança física e do acesso à Justiça etc.

Além disso, os reclamos mais recentes da sociedade levam à consagração de direitos a


prestações positivas para resguardo de interesses que, embora inspirados na noção primordial
de liberdade, não integravam o núcleo originário dos direitos de primeira geração - a plena
acessibilidade de deficientes físicos a prédios públicos, determinação constante do art. 227, §
1º,II e § 2º da Constituição, por exemplo, enquadra-se neste desdobramento do âmbito
inicialmente consagrado dos direitos de primeira geração, e possui evidente conteúdo
prestacional.52 Afora estes novos direitos que permanecem de modo inconteste na órbita dos
direitos liberais, mais adiante ter-se-á ocasião de analisar a classe de direitos
primordialmente sociais que, em virtude de sua importância para o pleno desenvolvimento
das liberdades psíquicas e para a subsistência física do indivíduo, passam, no curso das
últimas décadas, a integrar, também eles, o rol dos direitos fundamentais: tais são os direitos
ligados à noção de mínimo existencial, ou direitos sociais fundamentais.

Os direitos sociais ganharam impulso mais recente, sobretudo a partir dos movimentos
socialistas embrionários do Século XIX.53 Após obterem espaço - sem a rigidez que
posteriormente conheceriam - em certos textos constitucionais daquele século, inclusive na
Constituição do Império do Brasil, os direitos sociais definitivamente obtiveram assento
constitucional durante o Século XX, proliferando nas Constituições do pós-guerra. Conforme
afirma Ingo Sarlet,54 consistem em densificações do princípio da justiça social e da igualdade
material, muito embora a alguns deles, progressivamente venha sendo reconhecida
51
Eis o motivo pelo qual, desde o primeiro momento, nos posicionamos favoravelmente àqueles que
defendiam a possibilidade de aborto (que consideramos termo equivocado, uma vez que pressupõe a
existência futura de uma pessoa) de fetos anencefálicos, assunto que ultimamente esteve em voga
diante das ações ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal.
52
Sobre a garantia de acessibilidade no direito constitucional positivo brasileiro, v. nosso O Controle
Judicial das Omissões Administrativas, cit., pp. 73-5.
53
Acerca do desenvolvimento histórico da noção de direitos sociais, Ingo Sarlet, A Eficácia dos Direitos
Fundamentais, cit., pp. 52-3.
54
Ibid, p. 53.

21
importância existencial (por exemplo, a medicamentos essenciais e à educação fundamental,
dentre outros).

Os direitos sociais, primeiramente, assistiam de modo especial às classes menos favorecidas,


objetivando compensar desigualdades ou, ainda, possibilitar o acesso a bens da vida
considerados importantes mas que, em função de contingências econômicas, nem todos
poderiam comprar. Alexy, passagem sujeita a ressalvas, conceitua os direitos sociais como

... direitos do indivíduo frente ao Estado a algo que - se o indivíduo possuísse meios
financeiros suficientes e se encontrasse no mercado uma oferta suficiente - poderia obtê-lo
também de particulares. Quando se fala em direitos sociais fundamentais, por exemplo, do
direito à previdência, ao trabalho, à moradia e à educação, se faz referência
primordialmente a direitos a prestações em sentido estrito.55

O trecho amalgama, numa só conceituação, direitos sociais e direitos prestacionais em


sentido estrito, noções que impende distinguir. Ademais, restringe a órbita dos direitos sociais
àqueles oponíveis ao Estado – Ingo Sarlet, de modo pertinente, no trecho anteriormente
citado critica tal simplificação, e erige, como critério de especificação dos direitos sociais,
um dado que nos parece acessório - a possibilidade de sua obtenção junto ao mercado.

Repisando a finalidade de apenas conferir um norte que permita o estudo da noção de


direitos sociais, e sem ignorar que existam, como já afirmado, pontos limítrofes entre os
direitos de segunda e os de primeira geração, deve-se ter em vista que os direitos sociais são
direitos ligados a atributos que advêm, ou devem advir ao indivíduo, na medida em que este
se situa na vida de relação. Sem pretender cunhar uma definição à margem de críticas, é
imperioso reconhecer que os bens sobre os quais versam os direitos de primeira geração já
são detidos pelos seus titulares como prerrogativas inerentes à pessoa considerada em si
mesma - possuem, portanto, uma justificação existencial imediata -, ao passo em que os
direitos sociais relacionam-se a bens cuja possibilidade de aquisição ou cujo valor depende da
inserção da pessoa humana na sociedade.

O conceito de direitos prestacionais, por outro lado, pressupõe um corte analítico diverso
daquele que leva à caracterização de direitos de primeira geração e direitos sociais. Direitos
prestacionais, sinteticamente, são direitos a prestações estatais positivas. Nem todo direito
social é direito prestacional -o direito à greve, traduzindo-se numa liberdade pública, é antes
um direito à omissão do Estado e dos empregadores, que não devem obstaculizá-lo. Alguns
direitos, como a acessibilidade dos portadores de deficiência e certos direitos solidarísticos
ou de terceira geração (direitos titularizados pela sociedade em conjunto; por exemplo, o
direito ao prévio estudo de impacto ambiental, antes da aprovação de determinada obra),
embora possam assumir o aspecto de direitos prestacionais, não são direitos sociais.

A importância de se mencionar a categoria dos direitos prestacionais num estudo direcionado


aos direitos sociais deflui da constatação de que a maior parte dos obstáculos enfrentados à
implementação dos direitos sociais, em virtude da discricionariedade administrativa, na
realidade se dirige aos direitos prestacionais. Direitos sociais oponíveis a particulares, ou que
dependam de abstenções do poder público, não apresentam tanta dificuldade em sua
sindicação. Tormentosa, isto sim, é a implementação de direitos prestacionais, ainda que
tipicamente de primeira geração - como a plena acessibilidade de deficientes físicos aos
prédios públicos, ou o aparelhamento de penitenciárias.56

Há que se cuidar, por fim, da noção de políticas públicas, que muitos poderiam confundir com
a dos direitos prestacionais. O conteúdo do que se denomina política pública, de fato, se

55
Robert Alexy, Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 482.
56
Por esta razão, em nosso O Controle Judicial das Omissões Administrativas, cit., preferimos sempre
adotar, como foco investigativo, os direitos prestacionais.

22
aproxima do conteúdo dos direitos prestacionais. Seria até melhor, numa primeira análise,
utilizar aquela expressão, já consagrada em nossa literatura não só jurídica mas,
principalmente, sociológica e de ciência política, do que empregar a locução direito
prestacional, que a nós chegou a partir da doutrina alemã e que apresenta alguns
inconvenientes.57 De qualquer modo, para o objetivo do presente capítulo – discernir
possibilidades de implementação dos direitos sociais, a despeito das dificuldades introduzidas
pela noção tradicional, ampliada, de discricionariedade -, deve-se perfilhar uma compreensão
específica de política e pública que a estrema do conceito de direitos sociais, mormente
daqueles direitos sociais que possuem um caráter fundamental. Esta distinção fica clara à luz
dos ensinamentos de Ronald Dworkin.

O referente principal da teoria do direito dworkiniana é a noção de princípio. Este termo é


empregado, ao longo de sua obra, também no sentido utilizado por Alexy e outros autores
alemães: enquanto as normas-princípio seriam suscetíveis de aplicação mitigada, decorrente
de sua ponderação com princípios jurídicos contrapostos (de aplicação gradual ou mais-ou-
menos), as normas-regra seriam aplicáveis de modo binário, tudo-ou-nada. 58 Contudo, o
significado de princípio presente nos livros mais recentes de Ronald Dworkin, que ora mais de
perto interessa, diz respeito às questões de princípio como contrapostas às questões de
política (matter of principie / matter of policy).59

Princípios, de acordo com esta acepção empregada por Dworkin, são padrões de conduta
compartilhados por uma determinada comunidade de princípios, uma comunidade vinculada
não necessariamente por dados geográficos ou lingüísticos, mas por uma escala de valores
éticos e morais comuns. Estes padrões podem estar, e normalmente estão, cristalizados em
regras estatuídas mediante um processo legislativo formal (nas leis ou nos precedentes do
sistema de common law), mas seu reconhecimento transcende a positivação Dworkin
denomina rights model a sua concepção de juridicidade baseada em princípios transcendentes
descobertos e aprimorados pela comunidade de princípios, e de rule-book model a concepção
positivista que restringe o direito às regras estatuídas de acordo com um processo legislativo
autorizado.

Para além do direito positivo, a definição de normas de conduta teria como esteio, como
fundamento, a existência de obrigações comunitárias. Ressalta-se, mais uma vez, que a
comunidade de princípios, para Dworkin, não se confunde com um grupamento definido
territorialmente, nem tampouco pelo compartilhamento de laços emocionais ou de
convenções, constituindo, precisamente, uma comunidade transcendental, ligada por
princípios de conduta, onde as pessoas “aceitam que seus destinos estão fortemente ligados
da seguinte maneira: aceitam que são governadas por princípios comuns, e não apenas por
regras criadas por um acordo político”:

57
O Controle Judicial das Omissões Administrativas, cit., pp. 7-8, aborda a problemática do use da
expressão direitos prestacionais. Em primeiro lugar, a caracterização dos direitos prestacionais como
verdadeiros “direitos” sindicáveis é mais problemática do que o uso da locução parece sugerir. Além
disso, prestacional todo direito é, já que tem por objeto uma prestação; na matriz alemã, o adjetivo
prestacional refere-se, mais exatamente, à idéia de Estado de Prestações Sociais, dentro da qual o
conceito se sedimentou.
58
Diversos autores já cuidaram de mostrar que esta distinção é uma simplificação e muito mais uma
questão de grau do que algo logicamente rígido; v. Humberto Bergmann Ávila, op. cit., p. 42; Daniel
Sarmento, A Ponderação de Interesses na Constituição Federal, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, pp.
106-7 (em que se cita o magistério do Min. Eros Roberto Grau).
59
Também na linguagem coloquial usamos estas duas acepções do termo princípio. Quando dizemos: “
em linha de princípio, prefiro isto àquilo”, estamos nos referindo a uma opção que formulamos de
modo condicionado, que admite exceções diante de casos concretos que refogem ao usual. Já quando
afirmamos, por exemplo, que “certas coisas na vida são circunstanciais, mas que não podemos nos
afastar dos nossos princípios”, estamos empregando princípio da mesma forma que Dworkin, quando
alude às “questões de princípio”, distintas das “questões de política”

23
Os membros de uma sociedade de princípio admitem que seus direitos e deveres políticos não
se esgotam nas decisões particulares tomadas por suas instituições políticas, mas dependem,
em termos mais gerais, do sistema de princípios que essas decisões pressupõem e endossam. 60

Conforme afirmado acima, estes princípios, base da normatização da conduta de determinada


comunidade, não são apenas descobertos, mas também aprimorados, construídos, pela
comunidade de princípios. A cada nova decisão judicial proferida, a cada novo diploma
legislativo que o Congresso vota, o poder público, através de seus agentes, a) rememora o
direito construído até aquele determinado momento e b) profere uma decisão que irá se
somar coerentemente ao encadeamento de decisões judiciárias e legislativas que a
precederam, c) atentando sempre para o controle jurídico-processual (através de recursos,
possíveis ações diretas de inconstitucionalidade etc.) e social (repercussão na mídia, junto à
opinião pública, à comunidade acadêmica) da sua decisão. Deste modo, o direito mantém sua
integridade: coerência com o passado, com os cânones doutrinários, mas também atualização
de certos aspectos que não mais se afinam à sensibilidade da opinião pública.61

O método construtivo do direito permite compreender criticamente um direito superador da


lei, sem que se tenha de fazer alusão à existência de posições jurídicas naturais,
absolutamente corretas e de alguma forma revelada dogmaticamente. Permite que se
compreenda a dinâmica pelo qual um direito metapositivo pode ser paulatinamente
aprimorado, sem que se descambe para o puro subjetivismo, haja vista a existência de
balizamentos exteriores, sociais e processuais, que eliminam decisões que inobservem o
postulado de integridade do direito. À luz do método construtivo, é possível, sob uma ótica
contemporânea, compreender o caráter transcendental dos direitos fundamentais, direitos
ligados a princípios perfilhados por uma comunidade que a cada dia, se torna mais planetária,
e que portanto tem pretensão a que certos valores e normas de conduta possuam validade
universal.

Consoante o ora exposto, a noção de política pública não goza da mesma dignidade conceitual
das questões de princípio dworkinianas e dos direitos fundamentais. Políticas públicas são
escolhas circunstanciais, que não dizem respeito à essência das obrigações comunitárias
percebidas por determinada sociedade. Muitas vezes, a efetivação de um determinado direito
fundamental exige a definição de uma política pública através da qual o mesmo será
implementado; ainda neste caso, a política pública será ancilar ao princípio, podendo,
posteriormente, ser reavaliada e substituída por oura política mais eficiente.

Toda esta digressão encerra o fio condutor da posição que ora se perfilha: de que o Estado
Democrático de Direito exige respeito para com os princípios nesta acepção dworkiniana, ou
seja, para com os direitos fundamentais. O campo por excelência de incidência da
discricionariedade (e aqui se alarga o conceito para incluir não apenas a discricionariedade
administrativa, mas também a esfera de liberdade do legislador, conforme propõe Diogo de
Figueiredo Moreira Neto)62 será o das políticas públicas.

Certas políticas públicas aparecem definidas em meros atos regulamentares e em condutas do


Poder Executivo. Quando este, por exemplo, cria sacolões ou restaurantes populares, muito
embora tenha em vista um direito fundamental - o direito à alimentação, como é evidente -,
a definição de que tal direito fundamental será contemplado através da medida específica de

60
Ronald Dworkin, O Império do Direito, São Paulo: Martins Fontes, p. 254.
61
Gustavo Binenbojm cunha explicação extremamente feliz para a forma como se garante o controle
intersubjetivo de normas jurídicas num modelo de direito superador da lei, por parte da comunidade
de princípios: “A fonte última de legitimação da justiça constitucional se no ‘plebiscito diário’ a que
estão sujeitas suas decisões e na sua capacidade de gerar consenso, de forma a que sejam aceitas
como justas e extraídas dos valores constitucionais básicos” (A Nova Jurisdição Constitucional
Brasileira, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 116).
62
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Legitimidade e Discricionariedade, Rio de Janeiro: Forense, p. 31.

24
se criar um restaurante popular é uma decisão de política pública. Caso não haja lei impondo
a existência destes restaurantes, será admissível que o Executivo os extinga - desde que,
simultaneamente, estabeleça uma outra política eficiente capaz de garantir o implemento do
direito fundamental à alimentação (o qual acarreta uma vedação de retrocesso nesta área).

Já quando a lei ampara a política pública em questão, densifica-se a posição jurídica em


favor do jurisdicionado. O direito social assim instituído somente comportará postergações em
virtude de circunstâncias excepcionais de carência de recursos ou choque com outros direitos.

Quando o que está em jogo é não apenas uma política pública mas, sim, um direito
fundamental, insculpido ou não no ordenamento positivo, seu descumprimento pelo poder
público configura mais do que o não cumprimento de um objetivo circunstancialmente eleito,
mas a inobservância de um dos pilares sobre os quais se assenta a vida comunitária, o que é
substancialmente diferente. Juridicamente, não seria admissível postergá-los, já que estes
direitos, como afirma Dworkin, constituem trunfos em face de outros direitos63 e do próprio
interesse público.64

Nas seções seguintes, as conseqüências da classificação de uma determinada posição jurídica


em cada uma destas categorias será analisada detalhadamente. Ainda que possam figurar de
modo indistinto na Constituição e nas leis, a classificação de determinada postulação no rol
das políticas públicas ou dos direitos fundamentais implica em correlações de forças distintas,
quando cotejada com a discricionariedade.

SEÇÃO 3: ASPECTOS DA DISCRICIONARIEDADE SENSÍVEIS À TEMÁTICA DOS DIREITOS SOCIAIS

Rascunhada a forma pela qual os tribunais norte-americanos e brasileiros têm se defrontado


com a questão da implementação dos direitos sociais e traçadas certas considerações
indispensáveis sobre a terminologia envolvida na discussão, impende esmiuçar de que maneira
considerações ligadas a discricionariedade têm sido levadas em conta e, eventualmente,
ultrapassadas nos casos já levados à apreciação judicial. Para tanto, a despeito do muito o
que vozes mais ilustres já aduziram com respeito à discricionariedade, impõe-se realizar uma
breve recapitulação e tecer algumas observações adicionais.

Retomar a abordagem do tema da discricionariedade exige algumas considerações prévias. Em


certo sentido, toda a problemática da implementação de direitos sociais prestacionais gravita
em torno da discricionariedade. Quando se fala em efetividade (especialmente na
interpretação de conceitos indeterminados), proporcionalidade e direitos fundamentais, está-
se aludir a instâncias que limitam a discricionariedade. No presente momento tratar-se-á,
especificamente, das contribuições recentes oriundas da doutrina administrativista, que tem
admitido um maior controle da discricionariedade a partir de conceitos-chave substanciais
como a moralidade e a b administração (sound governance).

O ESPAÇO LEGÍTIMO DA DISCRICIONARIEDADE NA TEORIA DOS ATOS ADMINISTRATIVOS

A doutrina decompõe o ato administrativo em cinco elementos: o sujeito, agente que pratica
o ato e que há de ser dotado de competência; a finalidade, que em seu sentido amplo
corresponderá sempre ao interesse público, sob pena de viciar-se o ato por desvio de poder; a
forma, que usualmente é escrita, mas que em casos específicos pode variar do tácito ao

63
Ronald Dworkin, A Matter of Principle, Cambridge (Mass.): Harvard, p. 89.
64
Robert Alexy, El Concepto y la Validez del Derecho, Barcelona: Gedisa, pp. 207-8.

25
solene; o objeto e o motivo.65 Relacionam-se à temática da discricionariedade, predominante,
os dois últimos elementos, que serão por isso delineados com maior acuro nas linhas que
seguem.66

Conteúdo ou objeto67 do ato administrativo é o efeito jurídico imediato que o ato produz: a
criação, modificação e extinção de situações jurídicas; a alteração na qualificação de pessoas
e bens. Como no direito privado, a validade do ato administrativo requer seja o objeto lícito e
possível.

Já o motivo corresponde ao conjunto de pressupostos de fato e de direito que servem de


fundamento ao ato administrativo.68 A ausência de motivo, ou a indicação de motivo falso,

65
Celso Antônio Bandeira de Mello (Discricionariedade e Controle Jurisdicional. São Paulo:Malheiros.
1998, p. 51} e Maria Sylvia Zanella di Pietro (Discricionariedade Administrativa na Constituição de
1988, p. 178) que, na direção oposta, sustentam que o uso destes conceitos enseja em que a finalidade
é discricionária. Data venia de suas reconhecidas autoridades, secundamos, neste passo, as lições
hegemônicas dos eminentes Caio Tácito e Diogo de Figueiredo Moreira Neto (Legitimidade e
Discricionariedade, Rio de Janeiro: Malheiros, p. 51), para quem o elemento finalístico é sempre
vinculado.

Não parece correto asseverar que este elemento comportaria discricionariedade, por exemplo quando
um administrador autoriza uma reunião em praça pública apreciando se isto ofende ou não a ordem
pública, ou quando avalia se um determinado traje ofende o decoro. Tal sorte de atos administrativos
sem dúvida comportam parcela de discricionariedade, mas não da finalidade, e sim do motivo ou do
conteúdo (nas duas hipóteses ventiladas acima, recai sobre o motivo), a despeito da tentativa de uma
tênue vinculação através do uso do termo impreciso finalístico, como curou-se demonstrar acima.

Os cinco elementos em que a teoria decompõe o ato administrativo guardam assimetrias para as quais
os doutrinadores geralmente não atentam. Sem a pretensão de avançar demais no tema, pode-se dizer
que, a rigor, somente sujeito, forma e conteúdo são verdadeiramente elementos intrínsecos ao ato.
Estatuto ontológico diverso possuem o motivo, que é a situação pressuposta pelo ato, algo que
antecede sua formulação, e a finalidade. A finalidade, dado extrínseco ao ato, é a instância axiológica
que permite legitimar, em sede de atos discricionários, a escolha de uma determinada situação
(motivo) como sendo oportuna para a adoção de uma providência estatal, e de um conteúdo como
sendo conveniente para fazer face àquela situação. A finalidade, em suma, não aparece isoladamente:
ela constitui um parâmetro externo que permitirá validamente extrair uma oportunidade da situação
fática e avaliar a conveniência das medi-a serem adotadas. Avalia-se, assim, se as escolhas do motivo e
do objeto (estes sim sujeitos a discricionariedade) observaram a finalidade (parâmetro vinculado por
definição). Se a finalidade não fosse pressuposta, instrumentalmente, como algo vinculado, de nada
valeria como conceito controlador; isto não obsta a que sua compreensão, o seu preenchimento com
estes ou aqueles valores mais específicos, varie no tempo e no espaço.
Pode-se afirmar, sinteticamente, que o ato administrativo (sujeito, forma e objeto) é a resposta que o
administrador dá a um pressuposto de fato e de direito (o motivo) tendo em vista uma finalidade.
66
Deve-se reconhecer, de qualquer sorte, que também a forma pode ser discricionária, prevendo a lei
mais de um modo de exteriorização do ato administrativo. A incidência da discricionariedade no
tocante à forma do ato, contudo, não interessa tanto ao estudo em tela tendo em vista que, embora
discricionária, a escolha dentre as diversas formas possíveis empreendida pelo administrador
normalmente não envolve a formulação de um mérito, ou seja, de um juízo de valor político. Por
exemplo, a escolha entre a divulgação de um ato por notificação, e não através da publicação de um
edital, em regra constitui uma mera questão de conveniência administrativa, sem que esteja envolvido
qualquer juízo político-teleológico.
67
Conforme preleciona Maria Sylvia di Pietro (Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, item 7.7),
autores existem que, fulcrados na lição de Zenobini, denominam de objeto, especificamente, o objeto
mediato (o bem-da-vida, na terminologia carnelluttiana) sobre o qual incide o ato administrativo.
Assim, numa desapropriação, objeto seria o imóvel desapropriado, e conteúdo o pró-ato da
desapropriação.
68
Por serem ambos elementos relacionados à formação da vontade da Administração, impende ter em
mente a distinção entre motivo e finalidade. Finalidade é o sentido axiológico do ato administrativo, e

26
carreiam a sua invalidade. A exposição por escrito dos motivos é denominada motivação.

Há casos em que a lei dispõe de modo exauriente acerca do motivo e do objeto de um ato
administrativo. Por exemplo, quando um servidor que preenche os requisitos constitucional e
legalmente previstos para a aposentadoria a requer, cumpre à Administração conceder a
aposentadoria, sem que lhe seja deferida qualquer margem de apreciação subjetiva destes
requisitos ou de escolha quanto às conseqüências da aposentadoria. Nesta hipótese, em que a
lei estabelece uma única solução possível diante de uma determinada situação de fato, diz-se
que o ato é vinculado.

Hipóteses existem, contudo, em que a lei não define de modo exaustivo o pressuposto fático
e jurídico para realização do ato, ou não descreve minuciosamente, ou univocamente, o
conteúdo do ato a ser produzido. Dentro dos limites traçados pela lei, incumbirá ao
administrador deliberar em que situação atuar e como atuar, segundo critérios de
oportunidade e conveniência; tais são os atos discricionários.69

Celso Antônio Bandeira de Mello conceitua discricionariedade como

a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios


consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante
cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação
da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade
conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca
para a situação vertente.70

Esta definição já insere no conceito mesmo de discricionariedade certas instâncias de


controle do uso da liberdade pelo administrador além da lei - quais sejam, a razoabilidade e a
necessidade de otimização das escolhas em função da finalidade legal. A nosso sentir, porém,
peca por considerar que a fluidez dos conceitos indeterminados, por si só, dá margem à
discricionariedade.; conforme já enfatizado em obra anterior, 71 a discricionariedade há de ser
reconhecida apenas quando expressamente o legislador ou o constituinte o estabelecem, ou
quando da vagueza do termo empregado isto resultar implícito.

Aclarando o ponto de vista que se defende, insta examinar a lição de Diogo de Figueiredo
Moreira Neto que, menos centrado na dogmática administrativista, tratou da
discricionariedade como um fenômeno que transcendem os limites deste ramo do direito,
espraiando-se por todo o direito público como uma atividade que a lei comete ora à
Administração, ora ao Legislativo e ao Judiciário. 72 Da lavra do eminente Procurador do
Estado é a seguinte definição juspolítica de discricionariedade:

Discricionariedade é a qualidade da competência cometida por lei à Administração Pública


para definir, abstrata ou concretamente, o resíduo de legitimidade necessário para integrar a
definição de elementos essenciais à prática de atos de execução voltados ao atendimento de
deve corresponder sempre ao interesse público, conforme definido em lei; motivo são os pressupostos
objetivos, de fato e de direito, que, valorados sob o prisma da finalidade pública, engendram a
deliberação, pela Administração, de um objeto, que será o núcleo do ato administrativo.
69
A formulação e a aplicação destes critérios, insta reconhecer, implicam a participação da
mundividência subjetiva do administrador. O esforço de parcela da doutrina contemporânea, no qual
este trabalho se inspira, de desenvolver mecanismos de controle da discricionariedade não pode
significar uma oposição sistemática a qualquer manifestação desta subjetividade, mas antes a
exigência de que a liberdade do administrador se conforme às diversas instâncias limitantes, de tal
modo que a liberdade do administrador seja efetivamente discricionariedade, e não arbítrio.
70
Discricionariedade e Controle Judicial, São Paulo: Malheiros, cit., p. 48.
71
O Controle Judicial das Omissões Administrativas, cit., seção II.1.f.
72
Celso Antônio Bandeira de Mello discorda de que se possa qualificar de discricionária a atividade de
juízes e legisladores (op. cit., p. 26, na 12).

27
um interesse público específico.73

O mérito maior do conceito juspolítico é o de enfatizar a inextricável associação entre a


discricionariedade e a legitimidade. Sua exata compreensão exige uma breve digressão no
campo da ciência política.

No Estado de Direito, o interesse público, índice de legitimidade, vincula todo exercício de


poder político, quer na esfera constitucional, quer na legislativa, administrativa ou
jurisdicional. O interesse público, noção vaga, usualmente apresenta-se aos titulares dos
Poderes constituídos, depurado de sua originária imprecisão, sob a forma de comandos
positivados na Constituição ou na legislação ordinária.

No que toca ao Poder Constituinte Originário, inexiste normatização estatal prévia que limite
as possibilidades de apreensão deste interesse público; a percepção que o constituinte tem da
legitimidade fica assim balizada apenas por suas concepções políticas. 74 Instaurado pela
Constituição o Estado de Direito, o exercício do poder há de se pautar, em regra, pela
objetividade, resultante do acatamento das normas constitucionais. A expressão Estado de
Direito há de ser compreendida, sobretudo, como consagradora do Império da Lei e da
impessoalidade no exercício do poder. A liberdade dos Poderes derivados será exercida, tão-
somente, nos limites outorgados pela Constituição. O legislador ordinário, responsável pela
nomogênese derivada, possui ainda um grau relativamente amplo de apreciação política; ao
Executivo, entretanto, resta apenas uma margem residual de liberdade na aferição imediata
do interesse público, devendo em regra pautar-se pelo juiz; político já positivado na
Constituição e nas demais leis.

Estas considerações permitem compreender o conceito juspolítico de discricionariedade.


Retomando a definição acima transcrita, a atividade discricionária consistirá na integração da
vontade estatal através da disposição de resíduos de legitimidade, que o constituinte
excepcionalmente deixou de definir com precisão, delegando aos Poderes constituídos tal
encargo. Embora juridicamente circunscrita, trata-se uma atividade inegavelmente política,
na qual ocorre uma alocação subjetiva de esforços e recursos públicos, de acordo com
critérios do administrador.75

Associada à noção de discricionariedade encontra-se a de mérito. Diogo de Figueiredo Moreira


Neto conceitua o mérito como o resultado do agir discricionário; a discricionariedade é a
técnica, a atividade, enquanto o mérito é o elemento político ínsito ao ato, oriundo desta
atividade. Pode-se decompor o mérito em duas dimensões: a oportunidade e a conveniência,76
sendo certo que há atos onde a margem de liberdade diz respeito à oportunidade e outros
onde é a conveniência que exigirá a integração pelo administrador.77

Deve-se ter em mente que o mérito do ato aparece sempre circunscrito a limites de
legalidade - e, conforme os postulados mais modernos do Estado de Direito, de moralidade,
razoabilidade, respeito aos direitos fundamentais não positivados, ao imperativo de boa
administração etc. Dentro destes limites, por definição, o mérito é insindicável. A
inobservância dos limites estritos do mérito, contudo, implica em exercício ilegítimo da
73
Legitimidade e Discricionariedade, cit., p. 33.
74
Op. Cit., pp. 25-6, nas quais o administrativista vale-se das lições de Rudolf Laun.
75
Op. cït., p. 33. O autor remete ao conceito de política definido por David Easton como atividade em
que ocorre uma alocação autoritária de valores.
76
Op. cit., pp. 46 e ss.
77
Conforme já explicitado em nota precedente, Maria Sylvia Zanella di Pietro e Celso Antonio Bandeira
de Mello sustentam que também a finalidade poderá ser discricionária, com o que dissente o presente
estudo, afinando-se ao posicionamento hegemônico. Nesta direção, Diogo de Figueiredo Moreira Neto
assevera que “[a] Administração, ao agir, tem na finalidade, que é o interesse público especificado na
lei, um elemento reconhecidamente vinculado” (op. Cit., p. 37)

28
discricionariedade, ensejando o controle judicial do ato administrativo.

A margem de discricionariedade outorgada ao administrador varia de ato para ato e, embora


sejam comuns aqueles com conteúdo predominantemente político, inexistem os que o sejam
exclusivamente, como certos manuais insistem em asseverar, de modo simplista. 78 Mais do
que a existência de atos políticos, parece acertado sustentar a presença de fatores políticos
em diversos atos praticados pela Administração. Embora o juiz deva, na apreciação de atos
que apresentem tais fatores, portar-se com contenção, de modo a não invadir a esfera
destinada à integração dos demais Poderes, é forçoso asseverar que, no controle dos fatores
jurídicos, sua atividade não deve ser tolhida.79

Sob a perspectiva que ora se perfilha, na esteira de administrativistas consagrados como


Garcia de Enterría e Diogo de Figueiredo Moreira Neto, resulta clara a conclusão de que a
discricionariedade, ao contrário do que muitos parecem crer, não é a regra, mas a exceção. A
premissa implícita na cláusula do Estado de Direito é a de que apenas residualmente os
Poderes constituídos atuam politicamente:

A discricionariedade de frente ao que pretendia a antiga doutrina não é um suposto de


liberdade da administração frente à norma, mas, ao contrário, é um caso típico de remissão
legal: a norma remete parcialmente para completar o quadro regulador do poder e de suas
condições de exercício a uma estimação administrativa, só que não realizada por via
normativa geral, senão, analiticamente, caso por caso, mediante uma apreciação de
circunstâncias singulares, realizável no momento que precede ao processo aplicativo. Não há
discricionariedade à margem da lei. mas na medida em que a lei haja disposto. 80

Entenda-se bem: esta não é uma premissa histórica (já que o governo ilimitado precedeu o

78
Vale aqui retomar o magistério de Garcia de Enterría, que identifica as circunstâncias excepcionais
em que se forjou, na França, a doutrina dos atos políticos e de sua insindicabilidade. Conforme explana
Enterría com sua costumeira proficiência, a doutrina dos atos políticos foi criada pelo Conselho de
Estado para fundamentar o não-conhecimento de uma série de reclamações oriundas da derrocada do
regime napoleônico. Esta doutrina manteve-se firme até o restabelecimento do sistema de jurisdição
delegada, em 1872, quando então o Conselho de Estado a abandonou. Atualmente, apenas se admite
ampla discricionariedade em matérias muito específicas, por motivos que são peculiares a cada uma
delas: relações internacionais, relações inter-constitucionais entre o Executivo e o Parlamento, além
de questões referentes ao perdão e à anistia (Eduardo Garcia de Enterría, Curso de Direito
Administrativo, RT, 1990, pp. 497-8; nesta direção, José Ribamar Barreiros Soares, O Controle Judicial
do Mérito Administrativo, Brasília: Brasília Jurídica, pp. 42-7).
79
José de Ribamar Barreiros Soares (op. cit., p. 46) fornece interessante exemplo de ato, prima facie
político, no qual se identificam evidentes fatores jurídicos, plenamente controláveis pelo Judiciário:
“Exemplifiquemos com o processo de cassação de mandato por falta de decoro parlamentar. Trata-se
de processo cuja natureza não é administrativa, judicial ou penal, mas meramente política. Estamos,
pois, diante de um ato político, resultante da discricionariedade da Casa Legislativa para expulsar de
seus quadros parlamentares indesejáveis, cuja conduta ameaça a dignidade, a moralidade, a
confiabilidade e a honradez da instituição que representem. Seu mérito será de interesse interna
corporis, escapando ao exame judicial. Todavia, pode ser que esse processo de cassação esteja eivado
de abuso de poder ou deixe de observar as formalidades estipuladas, legal e regimentalmente, para sua
formação e desenvolvimento regular. A questão deixará de ser meramente política para se sujeitar ao
controle jurídico, ante possíveis violações de garantias mínimas fundamentais”.
Reitera-se aqui a tese acima explanada: no Estado de Direito, nenhum ato é meramente político.
Tomada ao pé-da-letra a caracterização, constante do primeiro parágrafo do trecho acima transcrito,
da cassação do mandato como ato “meramente político”, não haveria “formalidades estipuladas, legal
e regimentalmente” que pudessem ser violadas. E logicamente absurdo que uma condição de
juridicidade do ato somente seja reconhecida a partir do momento em que inobservada. Conclui-se
assim que o autor da passagem acima, na verdade, quis referir-se a atos em aparência meramente
políticos.
80
Eduardo Garcia de Enterría, apud José de Ribamar Barreiros Soares, op. cit., p. 62.

29
governo constitucional), nem uma premissa que necessariamente conduzirá a um
cerceamento efetivo da atuação política da Administração. Trata-se de uma premissa
ideológica, claramente ínsita na idéia de Estado de Direito, que permite refutar, em
determinadas hipóteses a alegação de intangibilidade dos atos administrativos discricionários.
Isto de modo algum afasta a recomendação de que os juizes, na prática, procurem respeitar,
quando possível, a esfera que tradicionalmente se reserva ao juiz discricionário da
Administração. O Judiciário é a última instância legitimda a avaliar o cabimento de seu
controle sobre atos de outros poderes; é o juiz de seu próprio controle, e possui, por
conseguinte, a responsabilidade de exercê-lo com o máximo de prudência, sob pena de
provocar-se, nas hipóteses mais extremas, até mesmo um impasse institucional.

Devem os juizes reconhecer, sobretudo, que a discricionariedade, em seus limites adequados,


afigura-se uma opção legítima do constituinte, que resolveu delegar à apreciação
circunstancial a resolução de certas questões, proporcionando um dinamismo indispensável
para a obtenção do máximo de participação popular e eficiência estatal.

A existência de fatores discricionários pode ser justificada por razões de cunho doutrinário e
prático. Do ponto de vista doutrinário, exsurge do princípio da separação de poderes e do
caráter eminentemente representativo do Poder Executivo.

No Estado Democrático, a soberania emana do povo. Os titulares do poder público são sempre
representantes do povo, ainda que não tenham sido investidos pelo sufrágio. Do ponto de
vista jurídico, isto ocorre porque as regras investidura acham-se positivadas na Constituição,
a qual, por sua vez, exprime as intenções da Assembléia popularmente constituída. Desta
forma, num certo sentido, também o Judiciário é um órgão de representação popular.

Sem embargo, a participação popular na escolha dos membros da cúpula do Poder Executivo e
do Parlamento manifesta-se em grau maior, ou se processa de forma mais imediata, do que na
investidura de magistrados. A titulação através do voto popular é o principal fundamento
doutrinário para que se reconheça ao Executivo e ao Legislativo o papel de complementação
das diretrizes políticas do constituinte, excluindo-se tal atividade de integração da avaliação
judicial. Diz-se por isto que a revisão judicial de atos da Administração apresenta sempre uma
dificuldade contramajoritária, um componente de violação da provável vontade popular.81

Além disso, a Administração Pública, contando com corpos técnicos devidamente aparelhados,
possui condições mais satisfatórias de formular uma estratégia de atendimento, a médio e
longo prazos, dos reclamos da população. Munida destes dados técnicos, o Poder Executivo
pode avaliar quando é preferível postergar um investimento em virtude da prioridade de
outro. Em outras palavras, razão determinante da discricionariedade seria a visão
macroscópica da conjuntura socioeconômica nacional ou regional, em regra faltante ao
magistrado.

Existe, desta forma, uma inequívoca tensão, consistente em precisar-se os contornos desta
discricionariedade, tornando o Estado o mais dinâmico e participativo possível dentro dos
necessários balizamentos impostos pelo Estado de Direito.82

81
Sobre o caráter contramajoritário do judicial review, v. Alexander Bickel, The Least Dangerous
Branch, 6ª ed., pp. 16 e ss.
Decerto, não se deve superestimar a crítica contramajoritária; o Estado agigantado dos dias atuais
convive com uma série de autarquias e agências que, presididas por burocratas remotamente
vinculados ao mandatário político sufragado, também mereceriam tal pecha. O Congresso, por sua vez,
é sobremodo influenciado pelas pressões dos lobbies, dos burocratas do Executivo e, na prática,
comandado pelas cúpulas partidárias.
82
Na doutrina brasileira, enfatiza esta tensão Carlos Roberto Siqueira Castro, O Devido Processo Legal
e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil, pp. 213-63.

30
OCASIÕES PARA O AGIR DISCRICIONÁRIO NA ESFERA DE DIREITOS SOCIAIS

A ausência de uma tradição de controle destas omissões da Administração Pública (apenas nos
últimos anos experiências incipientes vêm sendo levadas a cabo, como será explanado
oportunamente) decerto não se deve ao acaso, mas a uma série de fatores jurídicos e extra-
jurídicos,83 que atuam como permissões para que o administrador eleja discricionariamente
determinado motivo como ensejador da prática de um ato, ou para que conforme
discricionariamente seu objeto. Algumas destas supostas lacunas, à luz do conhecimento
jurídico mais recente, não significam permissão para o agir discricionário - são o que se
poderia chamar de esfera tradicional, ampliada, da discricionariedade, não correspondendo à
extensão que atualmente se reconhece ao exercício legítimo da liberdade do administrador.
Outras, embora de fato incluam uma esfera de mérito, o possuem em grau bem mais modesto
do que a doutrina clássica preleciona. Finalmente, há que se reconhecer a existência de
fenômenos que determinam uma esfera de fato substancial de mérito. Sem pretensão de
esgotar a análise destas lacunas, ensejos ou ocasiões para exercício do agir discricionário -
que, vistos por outro lado, podem ser caracterizados como empecilhos ou obstáculos para a
efetivação dos direitos sociais -, faz-se necessário, ao menos, rascunhá-los.

As mais singelas dentre estas brechas para o agir discricionário dizem respeito a supostos
defeitos nas disposições normativas que, aparentemente, reconheceriam certo direito social.
Estes defeitos dizem respeito à alegada ineficácia das normas constitucionais definidoras de
direitos prestacionais, bem como a lacunas aparentes por vezes detectáveis no texto da
norma.

Existem autores que compreendem o problema da sindicação das prestações estatais como
circunscrito aos direitos prestacionais originários - ou seja, aqueles que aparecem apenas na
Constituição, sem norma ordinária que permita densificá-los:

Se há alguma questão que merece ocupar um lugar de destaque no âmbito da problemática


da eficácia dos direitos fundamentais esta é, sem dúvida, a indagação em torno da
possibilidade de se reconhecer, diretamente com base na norma constitucional definidora de
um direito fundamental, social, e independentemente de qualquer interposição legislativa,
um direito subjetivo individual (ou coletivo) a uma prestação concreta por parte do Estado ...
Em suma, cuida-se de averiguar até que ponto os direitos sociais prestacionais efetivamente
carecem de uma plena justiciabilidade, razão pela qual, segundo alguns, são merecedores do
qualificativo leges imperfectae, devendo, de acordo com outros, ser considerados como
direitos relativos, porquanto geram direito subjetivo apenas com base e nos termos da
legislação concretizadora.84

83
A distinção entre fatores jurídicos e extra-jurídicos diz respeito, tão-somente, às suas origens, sendo
formulada, nesta dissertação, por imperativo de clareza didática.
Fatores jurídicos são os argumentos que se originam de discussões travadas no âmbito do próprio
subsistema jurídico (concepções acerca da hierarquia entre as normas e do papel das normas
constitucionais, lacunas aparentes nos programas normativos, princípios de organização do Estado tais
como a separação de poderes), enquanto os fatores extra-jurídicos provêm de conhecimentos afetos,
em princípio, a outros códigos culturais (por exemplo, à economia). Impõe-se assinalar, contudo, que a
partir do momento em que uma assertiva prima facie extra-jurídica é pragmaticamente direcionada a
influenciar a solução de uma determinada questão jurídica — sob forma de conceito, princípio,
proposta de interpretação, doutrina etc. -, transmuta-se em argumento jurídico como qualquer outro,
e é nesta condição que a presente dissertação estudará os fatores originariamente extra-jurídicos que
gerem implicações na questão dos direitos prestacionais.
84
Op. cit., p. 279. De se enfatizar que Ingo Sarlet não ignora as dificuldades que também a
implementação de direitos derivados experimenta. Seu trecho, de todo modo, exprime um ponto de
vista, centrado nos problemas referentes aos direitos originários, que, na obra de outros autores -

31
O trecho acima transcrito sugere que, para certos autores, o problema da sindicação dos
direitos prestacionais acha-se inserto na teoria geral do ordenamento jurídico, relacionando-
se à eficácia, ou força normativa, das normas constitucionais em que normalmente
encontram-se insculpidos os direitos prestacionais.

Colocado desta forma o problema, soa como eco extemporâneo das antigas teses que
negavam ou restringiam a força normativa dos preceitos constitucionais. Desde a década de
sessenta sedimentou-se definitivamente a concepção de que as normas constitucionais são
normas jurídicas e não meras exortações. 85 A despeito da propalada aceitação pacífica desta
doutrina,86 pode-se afirmar que, especificamente no tocante às normas definidoras de
direitos prestacionais, permanece controvertida a atribuição de força normativa.

Análise mais aprofundada da questão, porém, permite constatar que o obstáculo fundamental
já não repousa numa anacrônica teoria do ordenamento jurídico - segundo a qual normas
constitucionais, em linha de princípio, devem ser consideradas meras reivindicações
desprovidas de sanção jurídica. A grande maioria dos opositores do reconhecimento de
direitos prestacionais originários, sem negar em tese a força normativa da Constituição e sua
ascendência hierárquica sobre as demais normas jurídicas, afastam-na ou mitigam-na em
função de objeções mais substanciais.

Sustentam alguns que as normas - constitucionais ou não - definidoras das situações jurídicas
prestacionais normalmente são vazadas em termos por demais imprecisos, valendo-se de
conceitos indeterminados ou fluidos tais como interesse público, pobreza, etc., e que esta
circunstância - e não uma oposição pura e simples à eficácia dos dispositivos constitucionais -
determinaria a ausência de auto-aplicabilidade das normas em questão. Uma vez que a
integração destes comandos imperfeitos exigiria, necessariamente, alguma espécie de juízo
político, não objetivo, careceriam as cortes de legitimidade para aplicar imediatamente tais
normas.

Sobretudo quando a fixação de situações jurídicas politicamente desgastantes exigem a


definição de conceitos deste tipo - que é o que normalmente ocorre quando se trata de
direitos prestacionais -, há de se reconhecer que o Poder Judiciário brasileiro tende a aderir
ao entendimento de que não lhe compete tal interpretação, carecendo de auto-aplicabilidade

certamente não de Sarlet -, assume a exclusividade das atenções.


85
Obra capital na consolidação da doutrina da eficácia das normas constitucionais é o texto de Konrad
Hesse, “La Fuerza Normativa de la Constitución” (in Escritos de Derecho Constitucional, edição
espanhola do Centro de Estudios Constitucionales). No Brasil, corresponde-lhe a festejada monografia
de José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais.
86
Tão pacífica que o tema praticamente não é mais estudado na doutrina alemã, onde surgiu na
década de vinte, sendo considerado por muitos um trivialismo sem contribuição a dar para solução dos
problemas jurídicos contemporâneos.
Nesta direção, v. as produções mais recentes de Eriedrich Müller: “Na época (nos anos vinte),
efetividade do direito fundamental significava: os direitos fundamentais devem ser aplicados como
“regras jurídicas atuais” (aktuelle Ftechtssätze); eles não são meras “regras programáticas”
(Programmsätze). Isso é correto. Mas como elas devem ser interpretadas corretamente? O princípio da
efetividade não se pronuncia a respeito disso” (Concepções Modernas e a Interpretação dos Direitos
Humanos, p. 102).

32
o preceito legal que a contém enquanto o Legislativo não atuar.87

Argumento semelhante, ainda ínsito no rol dos obstáculos decorrentes de alegados defeitos
no texto da norma, é o de que as normas tipificadoras de situações jurídicas prestacionais
normalmente aludem a objetos amplos demais. Assim, por exemplo, o direito à saúde, por
não estabelecer contornos precisos de sua sindicabilidade, careceria de auto-aplicabilidade. A
norma constitucional não estabelece se o titular deste interesse tem direito a ações
preventivas e curativas, ou só preventivas, e em qual extensão; não esclarece se o Estado
deve proporcionar o máximo em assistência à saúde (o que seria sobremodo complexo, já que
se pode aventar infinitas ações que, em tese, e ainda que de forma mediatizada,
contribuiriam para o incremento da saúde da população), ou um patamar mínimo; se a
assistência pública deve ser gratuita mesmo para os que dispõem de recursos, etc. Inexistindo
definição deste âmbito de proteção no texto constitucional, cumpriria ao legislador e, em
último caso, ao administrador fixá-lo, mas nunca ao Poder Judiciário, já que - aqui como na
interpretação dos conceitos indeterminados – exigir-se-ia alguma forma de atuação política.

Conforme preleciona Alexy, os direitos de defesa permitem claramente definir seu objeto:
uma vez que consistem em proibições, importam a vedação de toda e qualquer conduta
contrária. Todos os possíveis meios de infringência da proibição encontram-se interditados.
Já os direitos prestacionais, que ordenam promover algo, não significam uma ordem para que
o Estado pratique todas as ações protetivas e promocionais concebíveis. Normalmente existe
uma pluralidade de meios de atingimento deste direito, sendo suficientes que o Administrador
opte por um deles. Conforme exemplifica o autor alemão,

... a proibição de matar implica prima facie a proibição de toda ação de matar;
diversamente, o mandado de salvamento não implica o mandado de toda ação de salvamento.
Se é possível salvar alguém que se está afogando, ou nadando, ou lançando-lhe um salva-
vidas, ou com a ajuda de um bote, de modo algum estão ordenadas, ao mesmo tempo, as três
ações de salvamento.88

A norma definidora de direito prestacional, a não ser que especifique minuciosamente o


procedimento a ser adotado para atingimento daquele direito, faculta à Administração uma
gama de procedimentos aptos a assegurá-los, um “campo de ação” dentro do qual se move a
discricionariedade do agente público.89 A extrema difusão deste campo de ação, para a
corrente que se opõe aos direitos prestacionais, desaconselha a imposição judicial de
prestações positivas, já que o magistrado teria de eleger, consoante um juízo político que não
lhe é próprio, a ação a ser implementada.

Este argumento é desenvolvido com especial proficiência por Böckenförde, para quem

A pretensão constitucional neles (nos direitos fundamentais sociais de prestação) contida é


tão geral que não podem deduzir-se pretensões jurídicas concretas por via da interpretação.
De que forma deve-se realizar, por exemplo, o direito à moradia, mediante a construção e

87
Esta postura tem pautado as decisões do Excelso Pretório, como se depreende do julgados acerca do
limite constitucional à taxa de juros reais e da maioria dos pronunciamentos relacionados à
constitucionalidade de medidas provisórias, em que o Supremo Tribunal Federal negou-se aferir a
“relevância e urgência” dos atos, reiterando que tal tarefa incumbia, exclusiva Poder Legislativo.
Apenas recentemente, ao examinar Medida Provisória 1577-6/97 (que alargava as hipóteses de
cabimento e o prazo para propositura de ações rescisórias pela Fazenda Pública), permitiu-se o
Supremo Tribunal Federal invalidá-la por ausência do requisito de urgência (ADIMC nº 1753/ DF, Órgão
Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Rte.: Conselho Federal da OAB, julg. em 16/04/98, publ. DJ
12/06/98).
88
Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, cit., p. 447.
89
Loc cit.: “Com a expressão ‘campo de ação’, pronunciou-se a frase chave com respeito à
justiciabilidade dos direitos a ações positivas”.

33
distribuição de moradias construídas e mantidas pelo Estado, mediante a fixação estatal de
preços das moradias ou sob o marco do mercado livre de moradias através da concessão de
subsídios à locação; com que extensão deve-se aplicar a responsabilidade própria e a
prestação própria e que tamanho ou equipamento da moradia deve-se considerar adequado;
se a provisão da moradia deve redundar em benefício de todos os cidadãos ou só dos menos
afortunados (“acomodados”); deve-se resolver de início tudo isto para criar uma pretensão
jurídica concreta do particular, determinada em seu pressuposto, em seu conteúdo e em seu
alcance.90

Diante da vagueza do programa normativo — inerente à própria técnica de positivação


constitucional, que não se coaduna com regulações minuciosas - 91, insuficiente para definir o
conteúdo da prestação, caberia “em primeiro lugar ao legislador legitimado
democraticamente de maneira direta e em segundo termo à Administração” integrar o
comando constitucional, descabendo ao magistrado arrogar-se o papel de legislador. 92

Um dos principais argumentos suscitados em desfavor dos direitos prestacionais é o da reserva


do possível. Aqui, o obstáculo não mais diz respeito à possíveis defeitos no dispositivo
positivador do direito prestacional, mas sim ao dado concreto de que tais situações jurídicas
exigem, para sua efetivação, o dispêndio de recursos financeiros, que o Estado, sabidamente,
detém de forma limitada. Na lição de Böckenförde,

A concreta garantia de direito fundamental sobrevêm dependente dos meios financeiros


estatais disponíveis. A “impossibilidade econômica” se apresenta como limite - necessário - da
garantia (prestacional) dos direitos fundamentais.93

Uma eventual generalização dos direitos prestacionais judicialmente imponíveis, como


salienta Robert Alexy, “conduziria a que a política evidentemente estaria determinada, em
partes essenciais, pelo direito constitucional”.94 Mais que isto, alguns autores chegam a
visualizar que, em situações extremas, as despesas realizadas em função de direitos
prestacionais judicialmente impostos inviabilizariam outros projetos estatais, eventualmente
até projetos relacionados a outros direitos fundamentais. Certas prestações, uma vez
determinadas pelo Judiciário em favor do postulante que ajuizasse ação neste sentido,
poderiam exigir tal aporte de recursos que se tornaria impossível estendê-las a outras
pessoas, com evidente prejuízo ao princípio igualitário:

As inevitáveis decisões sobre prioridades, sobre o emprego e distribuição dos meios


financeiros estatais disponíveis, motivadas escassez de recursos, passam, de ser uma
questão de discricionariedade política, a uma questão de direitos fundamentais, mais
exatamente: de concorrência e conflito de direitos fundamentais; com isto se convertem,
formalmente, em uma questão de interpretação dos direitos fundamentais. Sendo
conseqüentes, a competência para adotá-las se deslocaria do Parlamento, ou, em seu caso,
do Governo como detentor da competência orçamentária, aos Tribunais, e em última
instância ao Tribunal Constitucional Federal. A conseqüência seria uma juridificação das
disputas políticas, unida a uma deslocação da competência de importantes dimensões em
90
Ernest Wolfgang Böckenförde, “Los Derechos Fundamentales Sociales en la Estructura de la
Constitución”, in Escritos sobre Derechos Fundamentales, cit., p. 77.
91
Böckenförde dirige este argumento aos direitos prestacionais positivados constitucionalmente
(originários, no sentido empregado por Ingo Sarlet no trecho acima transcrito). Contudo, pode-se dizer
que, muitas vezes, também o legislador ordinário incorre nesta falta de minúcia; esta circunstância se
verifica, sobretudo, nas grandes codificações e estatutos (como ocorre, por exemplo, com o Estatuto
da Criança e do Adolescente e com a Lei dos Deficientes Físicos).
92
Böckenförde, op. cit., pp. 77-8.
93
“Teoria e Interpretación de los Derechos Fundamentales”, in Escritos sobre Derechos
Fundamentales, p.
94
Alexy, op. cit., p. 491.

34
favor do Terceiro Poder.95

Sente-se mais de perto o óbice representado pela reserva do possível, justamente, em países
como o Brasil, onde a maioria da população, carente, seria destinatária por excelência dos
direitos prestacionais. É nos países pobres que a questão da alocação de recursos traduz-se,
efetivamente, numa escolha dramática, em que deliberar a realização de uma determinada
despesa, contemplando certo projeto, importa reduzir ou suprimir os recursos necessários
para outra atividade. Estas escolhas dramáticas, envolvendo uma deliberação de prioridades
que, em princípio, não comportaria critério objetivo, deveriam incumbir às autoridades
eleitas.

No Estado contemporâneo, o fórum onde se travam as discussões acerca da alocação dos


recursos públicos é, por excelência, o orçamento público — “o documento de quantificação
dos valores éticos, a conta corrente da ponderação dos princípios constitucionais, o plano
contábil da justiça social, o balanço das escolhas dramáticas por políticas públicas em um
universo fechado de recursos financeiros escassos e limitados”. 96 Atenta a isto, a doutrina
refratária aos direitos prestacionais aventou, em adição à reserva do possível fática, a
reserva do possível jurídica. Mesmo que o Estado disponha, materialmente, dos recursos
necessários a um determinado direito prestacional, e ainda que eventual dispêndio destes
recursos não obstaculize o atendimento a outro interesse fundamental, não disporia o
Judiciário de instrumentos jurídicos para, em última análise, determinar, por via oblíqua, uma
reformulação do orçamento, documento formalmente legislativo para cuja confecção devem
somar-se, por determinação constitucional, os esforços do Executivo e do Legislativo.

Especialmente nos Estados Unidos, juristas, políticos e economistas têm enfatizado o reflexo
do reconhecimento dos direitos prestacionais na esfera orçamentária. 97 Numa era em que o
equilíbrio fiscal exsurge como um dos objetivos centrais da política 98 - ou talvez como o
estorvo central de qualquer política -, a preservação e incremento de direitos prestacionais
passa a suscitar controvérsias mesmo em países com tamanha suficiência econômica.

Sustentar o reconhecimento judicial dos direitos prestacionais exige, assim, legitimar a


disposição dos limitados recursos orçamentários pelo Poder Judiciário.

Topos argumentativo que permeia todas estas considerações é o princípio da separação de


poderes. O suprimento das imprecisões verificáveis no texto normativo seria uma atividade
alheia ao Poder Judiciário, justamente, pela inexistência de critérios objetivos que
permitissem aos juizes, tecnicamente, fundamentar uma ou outra interpretação. Exigindo-
se, portanto, um juízo político, em certo sentido subjetivo, legitimados encontrar-se-iam os
Poderes Legislativo e Executivo, dadas as suas investiduras pelo voto popular. Juízes são
escolhidos, em países como o Brasil, através de concurso público; este procedimento objetiva
a seleção dos candidatos mais capacitados segundo seu conhecimento técnico-jurídico, e não
segundo suas posições político-ideológicas. Um juiz ativista, que se propusesse a invadir a
órbita originariamente destinada aos demais ramos, estaria, desta forma, subvertendo o
princípio democrático, pelo qual prevalecem as posições políticas da maioria da população.

95
Böckenförde, loc. cjt.
96
Ricardo Lobo Torres, “A Cidadania Multidimensiorial na Era dos Direitos”, in Teoria dos Direitos
Fundamentais, pp. 278-9.
97
Stephen Holmes & Cass Sunstein, The Cost of Rights - Why Liberty Depends on Taxes; Jeffrey D.
Straussman, “Rights-Based Budgeting”, in New Directions in the Budget Theory, pp. 100-23.
98
Objetivando a obtenção deste equilíbrio fiscal, o Partido Republicano submeteu ao Congresso, em
1995, proposta de Emenda Constitucional sobre o orçamento - a Balanced Budget Constitutional
Amendment - pela qual as despesas governamentais que excedessem o total das receitas fossem
previamente autorizadas por dois terços do Congresso americano. Na Seção III, 1.f., comenta-se mais
detalhadamente esta iniciativa e o atual estágio da discussão nos Estados Unidos.

35
Diversos autores já tiveram ocasião de expor a objeção que Bickel, em. seu famoso trabalho
acerca do judicial review, caracterizou como “a dificuldade contramajoritária”. 99 O
argumento clássico de Hamilton100 segundo o qual o magistrado, ao controlar a atuação dos
demais poderes, está fazendo com que prevaleça não a sua vontade pessoal, mas sim a
vontade do povo - corporificada na Constituição - esbarra na consideração de que, encerrados
os trabalhos da Assembléia Constituinte, a vontade do Parlamento e do Executivo é a versão
mais atualizada da vontade popular.101

O receio da prevalência do ponto de vista judiciário em questões politicamente delicadas


levou Learned Hand, em passagem espirituosa, a asseverar que, a despeito dos defeitos da
representação parlamentar, seria mais repulsivo ser governado por uma casta de
Guardiães Platônicos, mesmo que eu soubesse como distingui-los, o que eu certamente não
sei. Se eles estivessem no comando, eu deveria perder o estímulo de viver numa sociedade
onde eu tenho, ao menos teoricamente, alguma participação no direcionamento dos assuntos
públicos. É claro que sei quão ilusória seria a crença de que meu voto determina qualquer
coisa; mas sem embargo quando eu vou às urnas tenho a satisfação em sentir que nós todos
estamos engajados numa empreitada comum. Se você retrucar que um cordeiro em seu grupo
pode sentir algo semelhante, eu replicarei, seguindo São Francisco, “Meu irmão, eis o
Cordeiro”.102

O princípio da separação de poderes compreende, portanto, uma vertente político-


funcionalista que não se pode desprezar, sob pena de restringir-se a soberania popular. Afora
este componente, a separação de poderes traduz-se numa consideração de ordem técnico-
operacional. O Legislativo e principalmente o Executivo encontram-se aparelhados de órgãos
técnicos capazes de assessorá-los na solução de problemas mais complexos, em especial
aqueles que geram implicações macropolíticas, afetando diversos campos de atuação do
poder público. O Poder Judiciário, por sua vez, não dispões de iguais subsídios; a análise que
faz do caso concreto tende a perder de vista possíveis implicações fáticas e políticas da
sentença, razão pela qual os problemas de maior complexidade – incluindo a implementação
de direitos prestacionais – devem ser reservados ao administrador público.

Aos empecilhos normativo-estruturais, financeiros e políticos listados acima somam-se os


obstáculos processuais. Ao passo em que os direitos liberais há séculos já se encontram
consagrados nos ordenamentos e na jurisprudência dos mais diversos países, apenas no Século
XX passou-se a reservar maior atenção aos direitos prestacionais. Existe uma notável
discrepância entre a complexidade e a eficiência dos remédios jurídicos destinados à
salvaguarda dos direitos liberais (habeas corpus, mandado de segurança) e a completa
ausência de instrumentos específicos de tutela dos direitos prestacionais. Não existe ainda,
com pertinência a estas situações jurídicas, a vasta produção doutrinária e os precedentes
jurisprudenciais que amoldam, encorpam, os direitos de primeira geração.

A organização ora conferida aos argumentos contrários à sindicação, como já restou


sublinhado, obedece acima de tudo a um imperativo didático. No mais das vezes, a crítica
prefere correlacionar diversos destes fatores, sem distingui-los exaustivamente. Böckenförde,
por exemplo, sumariza os distintos argumentos ao asseverar que os direitos a pretensões
sociais de prestação, ainda quando postulados na qualidade de consectários dos direitos de
defesa, não contêm em si mesmos nenhuma pauta para a amplitude de sua garantia
99
Alexander M. Bickel, The Least Dangerous Branch - The Supreme Court on the Bar of Politics, pp 16
e ss.
100
Alexander Hamilton, 78th Federalist, apud Bickel, loc. cit.: “Ele (o judicial review) somente supõe
que o poder do povo é superior a ambos (os poderes do Judiciário e do Legislativo): e que onde a
vontade da legislatura, declarada em suas leis, fica em oposição àquela do povo, declarada na
Constituição, os juizes devem ser governados pela última e não pela anterior”.
101
Op. cit., pp. 16-7.
102
Learned Hand, The Bill of Rights, apud Alexander M. Bickel, op., cit., p. 20.

36
(equipamento mínimo, máximo ou normal; com que prestação própria); não dispõem de
nenhum critério para as prioridades entre as pretensões de prestação dos diferentes direitos
fundamentais, não indicam que parte dos recursos financeiros estatais devem manter-se à sua
disposição.103

Em suma, todos os argumentos acima listados negam que o ordenamento jurídico autorize o
reconhecimento judicial, tout court, de pretensões jurídicas a prestações materiais do
Estado. Desta forma, o juiz que resolvesse implementar estes alegados direitos prestacionais
estaria, indevidamente, invadindo a esfera de discricionariedade dos demais ramos — ou seja,
seu espaço de atuação livre, circunscrito pela Legalidade, que se reputa insindicável com
fundamento nos princípios democrático e da separação de poderes.

SEÇÃO 4: LIMITES CLÁSSICOS DA DISCRICIONARIEDADE NA ÓRBITA DOS DIREITOS SOCIAIS

Embora ainda seja bastante comum a invocação da discricionariedade - apresentada sob a


forma de algum dos argumentos listados na seção anterior -, por parte de parcela respeitável
da doutrina e dos órgãos de advocacia pública (Procuradorias de Municípios, de Estados e
Advocacia da União), a jurisprudência brasileira e alienígena, já rascunhada em seção
anterior deste estudo e que será detalhada mais adiante, nos faz deparar com o fato, cuja
positividade não se pode ignorar, de que direitos sociais prestacionais vêm sendo
implementados judicialmente, com o aval dos tribunais superiores. Que circunstâncias
permitem ultrapassar a barreira da discricionariedade? Estas decisões se baseiam em mero
subjetivismo judicial ou é possível sustentar sua legitimidade, a despeito da aparente
violação ao princípio da separação de poderes e do princípio democrático-majoritário, pelo
qual os mandatários eleitos, notadamente os integrantes do Poder Executivo, têm a
prerrogativa de definir a destinação das verbas, por vezes escassas, de que dispõe a
Administração?

Inicialmente, cumpre enfatizar a importância da sistematização traçada na seção


antecedente. Nem todos os opositores da implementação de direitos sociais se baseiam nos
mesmos argumentos, e contra óbices diversos, diversos são os conceitos-chave que, no direito
público contemporâneo, permitirão aos direitos sociais ganhar acolhida jurisprudencial. É
digno de nota que os argumentos que levam - por exemplo - certos tribunais, mais
conservadores e ligados à tradição normativista, a rejeitar a consagração de direitos sociais
são diferentes dos argumentos sofisticados que a parcela do meio acadêmico afinada às teses
de Ely e Böckenförde suscita. Seria inadequado contrapor a uma argumentação normativista
contrária aos direitos sociais originários uma rebuscada digressão teórica calcada na produção
estrangeira mais recente acerca dos direitos fundamentais e das bases transcendentes do
direito, da mesma forma que não faz sentido invocar, meramente, dispositivos legais quando
a crítica à implementação judicial de prestações estatais se lastreia em considerações
filosóficas e econômicas. Para cada nível de óbice, deve-se buscar contrapor o argumento
compatível, sob pena de os interlocutores, assim não o fazendo, gravitarem em paradigmas
jurídicos distintos que inviabilizam o diálogo frutífero e o eventual atingimento de consensos.

A oposição à efetivação de direitos sociais prestacionais com esteio em considerações de


índole positiva - falta de norma regulamentadora, insuficiência da previsão do direito
meramente no texto constitucional, que seria programático, sem aplicabilidade imediata -
pode ser rebatida com o recurso a um postulado hermenêutico - o postulado de efetividade
do direito e de supremacia da Constituição - e, no caso brasileiro, com o auxílio da
interpretação, em moldes tradicionais, do texto constitucional, bastante minucioso e
claramente instituidor de posições jurídicas diretamente desfrutáveis.

103
Op. cit., p. 78.

37
Muito já se falou acerca da efetividade das normas constitucionais, postulado que permite,
senão eliminar, ao menos mitigar o alcance do primeiro nível de crítica à plena sindicação dos
direitos sociais. Este postulado (também designado princípio da eficiência ou da
interpretação efetiva) desenvolve-se em nosso país, sobretudo ao longo da última década, a
partir dos contributos de Luís Roberto Barroso e Clèmerson Merlin Clève, 104 e corresponde
última etapa de um movimento gradual de reconhecimento de força normativa Constituição,
para o qual contribuíram, com especial destaque, Konrad Hesse e, no Brasil, José Afonso da
Silva, com sua monografia, hoje consagrada, sobre a aplicabilidade das normas
constitucionais.

Admitir a eficácia jurídica de todo o texto constitucional já foi uma importante conquista,
diante da constatação de que, até meados do Século XX, muitos autores, especialmente no
Brasil, enxergavam as normas constitucionais como simples programas políticos. Ao longo da
última década, entretanto, a doutrina constitucional brasileira cuidou de sistematizar
diversos postulados que visam a enfatizar não apenas a esfera de eficácia formal do Texto
Maior, mas sua implementação concreta, sua eficácia social, sua efetividade. A análise da
efetividade transcende a aferição da mera aptidão jurídica para a produção de efeitos,
preocupando-se em averiguar se tais efeitos vêm sendo concretamente obtidos, bem como
em desenvolver conceitos e instrumentos processuais capazes de eliminar os óbices que o
dificultam.

Pugnar pela efetividade da Constituição implica, em termos práticos extrair de seu programa
normativo o maior número de comandos auto-aplicáveis, distintamente do que ocorria no
constitucionalismo tradicional, que tendia a considerar meramente programáticas todas
aquelas normas que apresentassem alguma dificuldade para sua concretização. Isto acarreta
uma conseqüência evidente no campo das normas lacunosas, ou vertidas mediante conceito;
imprecisos: sob o influxo do conceito de efetividade, é possível identificar nestas normas
aparentemente programáticas comandos auto-aplicáveis.

O princípio da máxima efetividade, recomendando a aplicação direta dos dispositivos


constitucionais e legais, reforça a possibilidade de o Judiciário densificar os preceitos que
utilizam conceitos indeterminados sem aguardar por sua definição legislativa ou
regulamentar. Atente-se, ainda, para o fato de que é corolário do princípio da efetividade o
postulado de interpretação conforme a Constituição, segundo o qual não se deve
compreender a Constituição à luz da legislação infraconstitucional, mas, ao contrário, as leis
ordinárias e complementares em consonância com o Texto Maior. Daí se conclui que, sob o
prisma da efetividade, o juiz não deve deixar de aplicar um determinado preceito sob o
argumento de que existe termo carente de definição.

Tome-se o exemplo do art. 230 da Constituição, que atribui direitos assistenciais, de índole
social, ao “idoso”. Quando a Constituição reconhece um direito assistencial do idoso, sem
estabelecer uma idade fixa a partir da qual assume-se esta condição, cabe ao magistrado
socorrer-se de todas fontes hermenêuticas reconhecidas como legítimas pelo direito e pela
sociedade para interpretar este comando. A partir do elemento sistemático, poderá, por
exemplo, propor que “idoso”, para os fins do art. 230, caput e § 1º, será o maior de sessenta
e cinco anos, dadas as normas que elegem esta idade para atribuir ao idoso a gratuidade de
transportes coletivos urbanos (art. § 230) e a não-incidência 105 do imposto de renda sobre
104
Luis Roberto Barroso, O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas, Rio de Janeiro:
Renovar, 1991, passim, e Interpretação e Aplicação da Constituição, São Paulo: Saraiva, pp. 219 e ss.;
Clèmerson Merlin Clève, “A Teoria Constitucional e o Direito Alternativo”, in Uma Vida Dedicada ao
Direito - Homenagem a Carlos Henrique de Carvalho, pp. 34 e ss.
105
É curiosa a natureza jurídica desta “não-incidência”. Ela possui decerto um fundamento ligado à
defesa do mínimo existencial, no que amoldar-se-ia ao conceito de imunidade; entretanto, além de
não-auto-aplicável (pela expressa remissão à lei regulamentadora), trata de modo homogêneo todos os
aposentados maiores de sessenta e cinco anos, sem distingui-los com base em suas condições

38
aposentadorias e pensões (art. 153, § 2º, II).

No exemplo acima, havia elementos sistemáticos que permitiam ao juiz fundamentar, à luz da
metodologia tradicional, sua interpretação de idoso. Isto contudo nem sempre ocorre, o que
poderia levar um jurista especialmente cioso do método clássico a imaginar que, nestes
casos, a ausência de qualquer critério legal de interpretação conduziria o juiz,
necessariamente, ou a uma definição arbitrária (algo sem dúvida indesejado) ou à
subordinação da eficácia do preceito ao advento de norma regulamentadora.

Esta alternativa, contudo, somente resume o espectro de soluções possíveis sob a ótica da
metodologia tradicional. A hermenêutica clássica, apegando-se estritamente ao texto da
norma, apenas explica a interpretação dos conceitos indeterminados quando, valendo-se do
elemento sistemático, intérprete pode buscar em outras passagens da Constituição a chave
para compreensão do preceito interpretado. Entretanto, mesmo quando o direito positivo não
fornece elementos sistemáticos que permitam preencher a lacuna aparente do texto
normativo, continua o magistrado incumbido de construir uma interpretação adequada para o
conceito indeterminado, para o que deverá valer-se de considerações deontológicos (os
“princípios gerais do direito” a que alude a vetusta Lei de Introdução), dos precedentes
judiciários, da doutrina jurídica e até mesmo de conhecimentos técnico-científicos e de
saberes outros, originariamente externos ao mundo jurídico.

Retornando-se ao exemplo dos direitos assistenciais do idoso, poder-se-ia imaginar que, à


falta de critérios positivados, o juiz interpretasse o conceito indeterminado de modo
finalístico, sustentando que idoso, para fruição de uma determinada ação assistencial,
deveria ser aquela pessoa de quem se pudesse, de acordo com regra comum de experiência,
presumir a dificuldade de suportar de per si, em razão da idade avançada, os ônus
econômicos de determinado bem da vida, carecendo por isso da atuação estatal. Assistido por
pareceres e estatísticas, poderia o magistrado concluir que, atualmente, a dificuldade em
suportar financeiramente os ônus de determinado bem de vida essencial acometa, em geral,
pessoas com idade superior a sessenta e cinco (ou sessenta, ou setenta) anos de idade, razão
pela qual as ações assistenciais levadas a cabo pelo poder público devem beneficiar este
grupo.

Sem embargo de a definição destes conceitos incumbir por excelência ao Poder Judiciário,
nada impede (e na prática isto será o mais comum) que o juiz resolva acolher a conceituação
elaborada prima facie pelo Executivo. Além do conhecimento presumido dos órgãos técnicos
que assessoram o Poder Executivo, milita em favor deste acolhimento um imperativo de
segurança jurídica que, se não é incontrastável, deve sem dúvida ser levado em conta. A lei,
no Estado de Direito, é o que os tribunais entendem que seja, consoante uma atividade
cognitiva que leva em conta critérios sistemáticos, de senso comum, históricos etc.; sob esta
perspectiva, a opinião do ramo executivo será um dos componentes mais valiosos para a
formação do entendimento juiz-intérprete. Valioso, porém não condicionante.

Exceções serão as hipóteses em que esta definição legal ou administrativa encontrar-se


exigida por norma constitucional ou legal que expressamente o preveja. Neste caso, não se
trata de interpretação do conceito indeterminado, mas propriamente de sua integração,
atividade que o legislador pode cometer aos órgãos politicamente investidos. Esta integração
ocorre notadamente, nos casos de normas com remissões expressas a leis ou a atos
administrativos regulamentadores. Mesmo diante destas hipóteses, porém, caberá ao
Judiciário zelar para que o conteúdo mínimo ligado ao concerte impreciso seja respeitado.

Existem conceitos de pobreza, por exemplo, elaborados pela ONU e por organizações

econômicas. Melhor parece conceituá-la, pura e simplesmente, como uma isenção constitucional.
De qualquer sorte, atualmente a Constituição não mais prevê este benefício, que remanesce, contudo,
na legislação ordinária.

39
internacionais, como existe também o critério da renda equivalente ao salário-mínimo
legalmente fixado, como existem os parâmetros do art. 6º da Constituição. Se uma
organização internacional, por exemplo, utiliza como critério para definição de pobreza a
miséria absoluta, consistente em não se ter sequer o necessário à subsistência, decerto que
não é este conceito mínimo o que deflui como adequado (a partir de uma análise do sistema
social e jurídico e do senso comum generalizado entre os brasileiros) à interpretação da
maioria dos preceitos que, em nosso direito positivo, utilizam o termo pobreza. Seria
absurdo, por exemplo, que o legislador estabelecesse, a título de regulamentação do art. 5°,
LXXIV, da Constituição, que apenas o miseráveis teriam direito à assistência judiciária:
embora sob o prisma lingüístico isto fosse possível, sob o prisma jurídico-teleológico
implicaria restrição inaceitável.

Resta abordar aquelas hipóteses em que o defeito aparente do programa normativo decorre
da indefinição da amplitude do direito social. Exemplo disso é o art. 196 da Constituição, que
trata do direito à saúde.

O art. 196 é um daqueles dispositivos da Constituição que, tradicionalmente, seriam


considerados meramente programáticos, a despeito de qualificar a saúde como “direito de
todos e dever do Estado”. Isto porque o termo saúde, à vista de seu caráter genérico,
dificulta a definição de um campo preciso de sindicação. Em tese, seria possível aventar uma
infinidade de medidas que contribuiriam para a melhoria das condições de saúde da
população, decorrendo daí a necessidade de se precisar que meios de valorização da saúde
poderiam ser postulados judicialmente.106 Um grupo de cidadãos poderia advogar que a ação
do Estado, na área de saúde, fosse máxima, fornecendo tudo o quanto, ainda remotamente,
pudesse satisfazer tal interesse; outros poderiam enfatizar o cuidado com as práticas
preventivas, concordando com o fornecimento, pelo Estado, de vacinas de última geração, de
eficácia ainda não comprovada; um terceiro grupo poderia pretender que o Estado desse
impulso a uma política de saúde calcada na medicina alternativa, ou no subsídio aos planos
privados de saúde. Existe, enfim, um leque infinito de estratégias possíveis, o que
aparentemente tornaria inviável sindicar-se prestações positivas, nesta seara, sem que o
constituinte ou o legislador especificassem uma delas.107

A Constituição, ao invés de ser específica, estabelece que o direito à saúde será “garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação” (grifou-se). Aparentemente, não há pretensão jurídica dedutível do dispositivo
em apreço. Defender-se que, à falta de esclarecimento mais preciso, incumbiria à
Administração prover a todos os reclamos referentes à saúde, em grau máximo, é

106
Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, cit., pp. 483 e ss.; Ingo Sarlet, A Eficácia Direitos
Fundamentais, cit., p. 297.
107
Cf. Alexy, op. cit., p. 485, em trecho no qual cita N. R. Breuer.

40
simplesmente irrealista, especialmente se se tem em conta o “acesso universal igualitário”. 108

Uma interpretação fulcrada no imperativo de máxima efetividade, entretanto, deve


reconhecer que, embora não se possa pleitear uma determinada prestação estatal, pode-se
sem dúvida sindicar-se a existência de alguma política de redução do risco da doença e de
acesso universal e igualitário à promoção, proteção e recuperação da saúde.

Imagine-se uma determinada região do país onde se verifique uma certa epidemia. Muito
embora não se possa exigir - prima facie, repita-se - que o Estado forneça uma determinada
prestação, é exigível que este possua alguma política de combate à epidemia, e que seja uma
política dotada de algum grau de eficácia.109

Salienta-se, no parágrafo anterior, que a inexigibilidade de uma ação determinada é prima


facie porque existem certas doenças em que o procedimento de combate não comporta mais
de uma política. Assim, por exemplo, pessoas com o vírus HIV têm de ser tratadas, de acordo
com o protocolo médico hoje em dia reconhecido pacificamente, através de coquetel de
medicamentos. Muito embora seja discutível se superdoses integram este coquetel, certo será
que pelo menos as doses usuais poderão ser exigidas do Estado. O órgão responsável, dentro
da estrutura do poder público, que não fornecesse tal coquetel de drogas estaria,
simplesmente, deixando de adotar qualquer política para recuperação da doença, o que é
vedado, a contrario sensu, pelo dispositivo em tela.

Nesta direção, sublinha Canotilho que, embora certos direitos não correspondam a deveres
jurídicos específicos, poderão ensejar a sindicação de uma prestação determinada caso
somente exista um instrumento eficiente para consecução daquele fim:

... o Estado, os poderes públicos o legislador, estão vinculados a proteger o direito à vida, no
domínio das prestações existenciais mínimas escolhendo um meio (ou diversos meios) que
tornem efectivo este direito, e, no caso de só existir um meio de dar efectividade prática,
devem escolher precisamente esse meio.110

108
Cf. Ricardo Lobo Torres, “A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos”, cit., pp. 183-5, em que
se critica o irrealismo de um sistema de saúde universal e gratuito: “o acesso universal e igualitário às
ações e serviços de saúde, assegurado no art. 196 da Constituição, transformado em gratuito pela
legislação infraconstitucional, é utópico e gera expectativas inalcançáveis para os cidadãos. As
prestações de medicina curativa, compreendidas no âmbito dos direitos sociais (art. 6º da
Constituição), devem ser analisadas a partir dos critérios elaborados pela teoria da justiça. Dependem
de escolhas orçamentárias, sempre dramáticas num ambiente de escassez de recursos financeiros, que
conduzem inexoravelmente à exclusão de alguns - a depender das opções por investimentos em
hospitais, sanatórios ou postos médicos que atendam à população segundo as condições de idade, sexo
ou domicílio. Qual é o cardíaco brasileiro que tem o direito de ser operado pelo Dr. Jatene? Qual o
critério de justiça que deve presidir as opções fundamentais em torno da saúde? Essas questões, que
constituem o cerne da discussão em torno da justiça local, estão inteiramente obscurecidas entre nós
pela proclamação demagógica da universalidade e da igualdade no atendimento! (...) De notar que não
se defende a extinção da universalidade do atendimento, mas a sua adequação ao sistema realista em
que se mesclem e se somem as contribuições dos usuários, excluídos os pobres, e os aportes
orçamentários financiados pela receita dos impostos.”
Nos Estados Unidos, Dworkin também acusa de irrealismo o rescue principle, segundo o qual deve o
Estado responsabilizar-se por todas as demandas na área da saúde, “até que o próximo dólar gasto não
contribua mais para um incremento da saúde” (Sovereign Virtue, pp. 309 e ss).
109
Este grau mínimo de eficácia será definido através de um juízo de razoabilidade, em que a
comunidade jurídica procurará incorporar os valores compartilhados pela média da sociedade. Tais
valores, por sua vez, encontram-se condicionados pelo nível de condições materiais, participação
política e avanço tecnológico da sociedade em questão, conforme melhor será aclararado nos capítulos
seguintes.
110
Canotilho, Tomemos a Sério os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, p. 34, apud Ingo Sarlet, op.
cit., p. 299.

41
Conforme já se rascunhou, linhas acima, os obstáculos argumentativos mais complexos que a
implementação de direitos sociais enfrenta são aqueles que não dizem respeito, meramente,
à suposta insuficiência do texto da norma. A crítica mais severa à implementação destes
direitos baseia-se em considerações que, inicialmente, poderiam ser havidas como
metajurídicas, mas que assumem status de argumento jurídico na medida em que são
mobilizadas em discursos de convencimento, engendrando o surgimento de novas categorias
jurídicas complexas, em face das quais simplesmente alegar que o texto da lei prevê direitos
sociais é inócuo, insuficiente.

Na medida em que são ilimitadas as necessidades sociais e finitos os recursos que compõem o
Erário, questiona-se como pode o Poder Judiciário subtrair do Legislativo e do Executivo,
órgãos investidos mediante sufrágio popular, a escolha dos investimentos públicos que serão
priorizados. Em linha de princípio, a implementação judicial de direitos sociais parece ferir o
princípio da separação de poderes, tão caro ao Estado de Direito. Ademais replica
participação do Judiciário, por via oblíqua, no orçamento, ato-condição da gestão financeira
estatal cuja confecção é constitucionalmente cometida aos demais Poderes.

Uma vez que estas críticas mais complexas não se baseiam em disposições de direito positivo,
ultrapassando os limites da argumentação jurídica tradicional, é natural que os argumentos
favoráveis aos direitos sociais aptos a contraditá-las repousem, eles também, em idéias-chave
doutrinárias e princípios metapositivos. De nada valeria, por exemplo, que um dispositivo
constitucional enfatizasse que os direitos sociais podem ser implementados a despeito da
carência de recursos econômicos (à feição, por exemplo, do que estabelece o § 1º do art. 5º
da Constituição): o obstáculo econômico permanece intocado, já que sua origem não se
encontra no direito positivo, mas em dados que, inicialmente suplantando a teoria
tradicional, não podem mais ser havidos, pela comunidade jurídica, como algo exterior. A
modernidade impõe que o jurista adentre a estes questionamentos e desenvolva instrumentos
capazes de possibilitar o manejo das categorias econômicas, políticas etc. que passam a
interessar ao Direito, sob pena de o solipsismo de seu conhecimento torná-lo inútil.

Sem a pretensão de esgotar o estudo das possibilidades argumentativas que atualmente


podem ser mobilizadas na implementação de direitos sociais, poder-se-ia estremar, para fins
didáticos, aqueles conceitos-chave que têm relação mais estreita com o que tradicionalmente
se considera a alçada do Direito Administrativo - princípio da moralidade, princípio da boa-
administração, princípio da razoabilidade - e os conceitos-chave desenvolvidos a partir de
considerações ligadas à Filosofia do Direito e ao Direito Constitucional contemporâneo,
notadamente o postulado de primado dos direitos fundamentais. Repise-se que esta divisão é
didática; o emprego freqüente destas categorias em conjunto, na prática jurídica, demonstra
que não existe uma autonomia entre estes ramos do Direito - como na verdade - não há
autonomia, no sentido de compartimentalização estanque que muitos pretendem enxergar,
entre quaisquer disciplinas em que, artificialmente e para fins didáticos, se subdivide o
conhecimento humano.

Um dos conceitos-chave substantivos mais interessantes, no que tange ao controle da


discricionariedade administrativa, é o de moralidade, consagrado no art. 37 da Carta da
República.111

111
Na esteira do princípio da moralidade, o constituinte consagrou dispositivos à defesa da probidade
(art. 37, § 4ª), reiterou a destinação da ação popular ao resguardo da moralidade administrativa (art.
5º, LXXIII) e atribuiu ao Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas da União, apreciar a
legitimidade das contas prestadas pela Administração Pública (arts. 70 e 71).

Sob a égide da Constituição anterior, houve quem sustentasse que a moralidade se inseria em um
conceito amplo de legalidade. Atualmente, figura a moralidade como um princípio à parte, em uma
série de dispositivos constitucionais, acima mencionados, e legais.
Frise-se novamente que, na esteira do pensamento clássico, consideramos insidicável mérito do ato

42
Escapa ao objetivo do presente capítulo - até porque, com mais competência, já o fizeram ao
longo da presente obra coletiva - repisar toda a sorte de distinções que classicamente
permitem estremar a moral do direito. Usa-se salientar que as regras morais não são
necessariamente positivadas, provindo de uma instância ética interna, dotada de uma sanção
autônoma, de natureza psíquica. O direito, por sua vez, é uma instituição social, dotada de
um mecanismo heterônomo de sanção responsável pelo seu caráter coercível. As normas
morais são preceitos que o ente moral aplica a si mesmo, independentemente de qualquer
relação externa, enquanto as normas jurídicas regulam relações entre indivíduos, sendo por
isso dotadas de reciprocidade.112

Do ponto de vista prático, o postulado de moralidade vem permitir o controle de legitimidade


de atos administrativos, diante da insuficiência da técnica de positivação para relacionar as
condições que o senso comum exigiria do ato. O princípio da moralidade exige que o ato
administrativo, além de lícito, paute-se pela consonância com o interesse público, pela
honestidade, probidade, lealdade, justiça, retidão, equilíbrio, boa-fé, ética e respeito à
dignidade do ser humano.113 Em sentido lato, todos estes diversos valores penetram no
discurso jurídico de controle dos atos administrativos através da categoria da moralidade.

A invalidade de atos movidos por intenções pessoais, escusas ou arbitrárias sempre mereceu a
chancela da doutrina e dos tribunais. Como salienta Diogo de Figueiredo Moreira Neto, desde
1864 - quando do julgamento do Caso Lesbats pelo Conselho de Estado francês - a vetusta
noção de desvio de poder, ao exigir que o exercício da discricionariedade não se desvie para
fins privados ou ilegítimos, já permitia atribuir a pecha de nulidade a atos administrativos
prima facie legais.114 Além do desvio de poder (détournement du pouvoir), consistente em o
administrador, valendo-se de competência que em tese possui, buscar uma finalidade alheia
ao interesse público, a doutrina clássica também consagrou o desvio de procedimento
(détournement de procedure), em que o administrador, embora buscando um interesse
público, o faz mediante ato cuja destinação legal é diversa.115

Atualmente, o que o princípio da moralidade reclama não é a ausência de uma intenção


viciada, mas um ato que, efetivamente, atenda ao interesse público. Superou-se, desta
forma, na doutrina mais atualizada, a antiga concepção subjetivista que tradicionalmente
permeia o conceito de desvio de poder:

Relacionar a moralidade com a intenção do agente significa colocar a questão em termos de


legalidade e tirar qualquer sentido às normas constitucionais que revelam a preocupação do
constituinte brasileiro em inserir a moralidade como requisito de validade da atuação
administrativa. Mas há ainda outro inconveniente resultante desta colocação: é o fato de ser
extremamente difícil a pesquisa da intenção do agente, de modo a concluir pela ilegalidade
do ato.

administrativo. Quando neste capítulo nos referimos a controle da discricionariedade, portanto,


estamos aludindo ao controle dos atos que, apesar de prima facie legais não observam outros
balizamentos impostos pelo Estado de Direito, manifestando sua ilegitimidade quando submetidos a
uma análise mais criteriosa.
112
Para uma análise mais atualizada do conceito de moralidade e de suas relações com o direito, cf. a
multicitada obra de Jürgen Habermas, Direito e Democracia - entre facticidade e validade. Sobre as
relações entre moral e direito, além dos livros de Hart e Dworkin, v. Lon Fuller, The Morality of Law,
28ª ed. (revised edition).
113
Cf. José de Ribamar Barreiros Soares, op. cit., p. 57.
114
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, op. cit., p. 51. Frise-se, ainda, que Celso Antônio Bandeira de
Mello, embora conferindo-lhe uma feição mais abrangente, utiliza preferencialmente a expressão
desvio de poder em seu livro dedicado ao controle de discricionariedade (Discricionariedade e Controle
Judicial).
115
Celso Antônio Bandeira de Mello, op. cit., pp. 58 a 67; Maria Sylvia di Pietro, Discricionariedade
Administrativa na Constituição de 1988, pp. 109-10.

43
Por isso mesmo, a moralidade há de estar localizada em outros aspectos que não o da
finalidade, ainda que nesta esteja também presente. A sua presença há de ser mais objetiva
do que subjetiva.116

Vê-se que a questão da moralidade deve estar desvinculada da finalidade, devendo seu
critério ser mais objetivo do que subjetivo. Assim, a moralidade não pode ser colocada em
relação à intenção do agente, sob pena de se retirar o verdadeiro sentido das normas
constitucionais, que evidenciam a preocupação do legislador pátrio em alçar a princípio
constitucional a moralidade administrativa.117

Em outros termos: trata-se de considerar não mais apenas um desvio de finalidade, que seria
uma traição da vontade da lei, mas uma insatisfação da finalidade, o descumprimento
indireto da vontade da lei.118

Mesmo que a autoridade seja honesta, proba, leal e tenha obrado de boa-fé, o ato
administrativo poderá ser declarado inválido, por inobservância destes princípios, se deixar
de atender ao melhor interesse público. Este postulado de correção objetiva é o que se
denomina boa administração119, conceito originariamente ligado à ciência da administração e
que, hoje em dia, acha-se preenchido por considerações não apenas econômicas, mas
também de justiça.120

Conforme enfatiza Celso Antônio Bandeira de Mello, a discricionariedade é balizada não


apenas pelo texto legal, mas também por condicionantes circunstanciais, verificáveis caso-a-
caso. É equivocado supor que a lei possa ser invocada como fundamento exclusivo para um
determinado ato discricionário; quase sempre, o mérito prima facie do ato é restringido por
dados da hipótese concreta:

Segue-se que a abstraia liberdade conferida ao nível da norma não define o campo da
discricionariedade administrativa do agente, pois esta, se afinal for existente (ao ser
confrontada a conduta devida com o caso concreto), terá sua dimensão delimitada por este
mesmo confronto, já que a variedade de soluções abertas em tese pela norma traz consigo
implícita a suposição de que algumas delas serão adequadas para certos casos, outras para
outra ordem de casos e assim por diante. Então o controlador da legitimidade do ato (muito
especialmente o Poder Judiciário), para cumprir sua função própria, não se poderá lavar de
averiguar, caso por caso, ao lume das situações concretas que ensejaram o ato, se, à vista de
cada uma daquelas específicas situações, havia ou não discricionariedade e que extensão
tinha, detendo-se apenas e tão-somente onde e quando estiver perante opção administrativa
116
Maria Sylvia Z. di Pietro, op. cit., p. 110.
117
José de Ribamar Barreiros Soares, op. cit., p. 58.
118
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, op. cit., p. 52.
119
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, op. cit., pp. 44 e ss.; José de Ribamar Barreiros Soares, p. 61;
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, pp. 49 e ss.
Bastante curioso é o livro de Cristopher Edley Jr., Administrative Law - Rethinking Judicial Control of
Bureaucracy, 1990, que enxerga o ideal de boa-administração como algo autônomo em relação aos
demais princípios de controle da discricionariedade, que considera deferentes demais para com a
Administração Pública. Edley preconiza que o direito administrativo deixe de lado o respeito pela
discricionariedade. Os juizes, segundo seu modelo, deveriam agir como co-administradores, registrando
em suas decisões as considerações políticas, técnicas e jurídicas que a motivaram, ao invés de aludir a
falsas categorias jurídicas, através das quais somente consegue empreender um controle velado,
insuficiente e hipócrita. Trata-se de um livro bastante instigante - muito bem documentado inclusive
—, mas com o qual não é possível concordar. Edley não consegue explicar, convenientemente, como
seria possível resolver a superposição funcional entre os juízes e as autoridades administrativas, no
caso de o Judiciário recepcionar sua radical concepção ativista.
120
Celso Antônio Bandeira de Mello, op. cit., p. 45, em passagem na qual remete ao magistério de
Guido Falzone.

44
entre alternativas igualmente razoáveis, por ser in concreto incognoscível a solução perfeita
para o atendimento da finalidade, isto é, do interesse consagrado na norma. 121

Portanto, diante das restrições do caso concreto, o dever-poder discricionário adensa-se em


dever de boa administração. Tem o administrador o dever de buscar as soluções mais
convenientes às situações oportunas que se lhe apresentam. Há de ter em mente, em suma,
que os poderes discricionários “não são privilégios do administrador, são garantias do
administrado”.122

Semelhante ao princípio da moralidade é o princípio da razoabilidade norte-americano. Este,


como já adiantado no capítulo precedente, a nosso sentir não se confunde exatamente com a
proporcionalidade, que pressupõe sempre uma colisão de princípios. A razoabilidade, por sua
vez, é um complexo de argumentos que, embora incluindo a balance of hardships
(ponderação do ônus, proporcionalidade em sentido estrito), a adequação e a necessidade,
compreende também outros elementos, destacando-se a aferição da consonância do ato com
o padrão de normalidade aceito tradicionalmente. 123 A proporção razoável não é uma
proporção qualquer, mas aquela autorizada pelas regras de experiência que o magistrado
assimila de sua vivência profissional e do conhecimento acerca dos padrões socialmente
consagrados.

Pode-se afirmar que o direito contemporâneo consagrou, definitivamente, o emprego dos


princípios de boa administração, moralidade e razoabilidade. O uso destas noções, contudo,
de acordo com algumas vozes eminentes, oferece o risco de fazer da validade de um ato
administrativo uma questão de subjetivismo dos magistrados. Estas categorias, segundo as
vozes mais reticentes, importariam no esvaziamento da discricionariedade administrativa,
substituindo-se o subjetivismo dos administradores públicos pelo dos juizes.124

De fato, o suposto controle da discricionariedade não pode justificar o império descontrolado


do subjetivismo judicial. Conforme salienta Celso Antônio Bandeira de Mello, “Só o próprio
agente do ato estaria titulado para apreciar aspectos insuscetíveis de redução a um juízo
objetivo”.125 Também nesta direção a lição de José de Ribamar Barreiros Soares:

A sindicabilidade do mérito administrativo deve ocorrer com base em critérios objetivos,


como o princípio da moralidade administrativa, não cabendo ao juiz se pronunciar quanto à
mera conveniência e oportunidade do ato, com base em valoração de cunho subjetivo. Neste
caso, estaríamos apenas substituindo os critérios de conveniência e oportunidade do
administrador pelos do juiz. A possível arbitrariedade do administrador cederia lugar à
arbitrariedade do juiz.126

Cumpre ressaltar que, quando se fala em controle judicial do administrativo, tem-se em


mente a apreciação não da opção discricionária em si, mas sim da mantença deste mérito
dentro dos limites legais. Por definição, o conteúdo do mérito é insindicável; o que se apura é
se, no caso concreto, há ou não espaço para mérito. Neste sentido, a lição de Diogo de
Figueiredo Moreira Neto:

121
Celso Antônio Bandeira de Mello, op. cit., pp. 47-8.
122
José de Ribamar Barreiros Soares, op. cit., p. 73.
123
Nesta direção, o posicionamento de Humberto Bergmann Ávila, “A Distinção entre Princípios e
Regras e a Redefinição do Dever de Proporcionalidade”, in Revista da Pós-Graduação da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, vol. I - 1999.
124
Ernst Forsthoff, Tratado de Derecho Administrativo, apud Suzana de Toledo Barros, O Princípio da
Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas dos Direitos Fundamentais,
Brasília: Brasília Jurídica, 1996, pp. 202 e ss.
125
Op. cit., p. 75.
126
Op. cit., p. 76.

45
O Judiciário não tem, assim, diretamente voltamos a insistir benefício da clareza, a tutela da
legitimidade, pois que esta, no Estado Democrático, é, em última instância, do povo e de
seus representantes eleitos; mas tem-na indiretamente, a partir da definição positivada de
legitimidade que se contém na norma legal, explícita ou implícita (...) Quando a lei faz uma
previsão específica incompleta do interesse público caberá ao Judiciário examinar se a
Administração a completou coerentemente com o sistema, utilizando os princípios
instrumentais da realidade e da razoabilidade. A integração deve ter a mesma natureza
axiológica do ato integrado.127

A solução para o problema da objetivação do controle da discricionariedade reside em exigir-


se que o mesmo seja levado a cabo mediante o emprego de categorias intersubjetivamente
partilhadas pela comunidade jurídica, o que afasta o subjetivismo judicial. Os princípios
acima listados conferem uma margem para apreciação judicial do suposto mérito do ato
administrativo, mas, por outro lado, bitolam o comportamento do juiz, garantindo a ordem
institucional.

Dentre os autores que tentaram sistematizar estas instâncias objetivantes do controle da


discricionariedade, mais uma vez destaca-se Eduardo Garcia de Enterría, que assim sintetizou
sua compreensão:

O controle de discricionariedade não consiste em que o juiz substitua o critério da


administração por seu próprio critério subjetivo Trata-se, entretanto, de penetrar na decisão
tomada até encontrar uma explicação objetiva em que se expresse um princípio geral. 128

Tal magistério afigura-se extremamente valoroso, em primeiro lugar) permitir visualizar a


tensão em que consiste o controle de discricionariedade identificando o subjetivismo como o
grande obstáculo a ser enfrentado; sua sindicação (e não uma apriorística restrição
funcional do Poder Judiciário). A solução que propõe sintoniza-se com a tradição criticista: ao
invés de ser analítico, propõe uma regra de universalização segundo a qual correto é o juízo
passível de subsunção a máximas aceitas genericamente como válidas. Uma opção
discricionária que não for capaz de subsumir-se a uma regra deontológica será, no mínimo,
caprichosa. Sem referência a um parâmetro, a um critério decisório, a integração
discricionária perde seu sentido finalístico e assume a pecha de ilegitimidade.

Adotando, por sua vez, uma postura analítica, identifica Celso Antônio Bandeira de Mello as
seguintes causas de ilegitimidade do ato:

... É o que se passa naqueles: (a) contaminados por intuitos pessoais - pois a lei está a serviço
da coletividade e não do agente; (b) correspondentes à outra regra de competência, distinta
da exercitada -pois à lei não são indiferentes os meios utilizados; (c) que revelam opção
desarrazoada - pois a lei não confere liberdade para providências absurdas; (d) que exprimem
medidas incoerentes: 1. com os fatos sobre os quais o agente deveria exercitar seu juízo; 2.
com as premissas que o ato deu por estabelecidas; 3. com decisões tomadas em casos
idênticos, contemporâneos ou sucessivos - pois a lei não sufraga ilogismos, nem perseguições,
favoritismos, discriminações gratuitas à face da lei, nem soluções aleatórias; (e) que incidem
em desproporcionalidade do ato em relação aos fatos - pois a lei não endossa medidas que
excedem ao necessário para o atingimento de seu fim.

Em todos estes casos, a autoridade haverá desbordado o “mérito” do ato, evadindo-se ao


campo de liberdade que lhe assistia, ou seja, terá ultrapassado a sua esfera discricionária
para invadir setor proibido. O ato será ilegítimo e o Poder Judiciário deverá fulminá-lo, pois

127
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, op. cit., p. 83.
128
Eduardo Garcia de Enterría, apud José de Ribamar Barreiros Soares, op. cit., p. 63.

46
estará colhendo, a talho de foice, conduta ofensiva ao direito, que de modo algum poderá ser
havida como insindicável, pena de considerar-se o direito como a mais inconseqüente das
normações e a mais rúptil e quebradiça das garantias.129

O controle dos atos discricionários através dos conceitos-chave formulados pelo direito
administrativo oferece evidentes limitações. Fechado em si mesmo, ele não consegue
estabelecer um critério nítido de moralidade e de boa administração, que permanecem muito
ligados a considerações de índole subjetivista. Nos Estados Unidos, onde de longa data forjou-
se uma profícua tradição de controle de leis e atos administrativos, tornou-se possível
estabelecer com certa segurança padrões de razoabilidade. No Brasil, onde este controle é
incipiente, as perspectivas mais promissoras ficam a cargo da teoria dos direitos
fundamentais.

SEÇÃO 5: O PRIMADO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO LIMITE DA DISCRICIONARIEDADE


NO CAMPO DOS DIREITOS SOCIAIS: A PRIORIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL

É realmente curioso como, em nosso país, a teoria dos direitos fundamentais, há tanto tempo
presente no debate jurídico alienígena, é poucas vezes aventada como contraponto à
discricionariedade. Embora certas decisões judiciais já se socorram da categoria dos direitos
fundamentais, ou dos direitos humanos, a doutrina publicística (especialmente
administrativista) continua bastante atada aos velhos conceitos. Ao invés de analisar
objetivamente se o ato administrativo é o mais apto a alcançar os fins públicos colimados
parcela dominante da doutrina e da jurisprudência nacionais permanecem perquirindo se
existem vícios subjetivos (notadamente, o dolo do agente público) capaz de caracterizar a
vetusta categoria do desvio de poder. Impõe-se assim aprofundar um pouco, nas linhas abaixo,
a contribuição que as novas reflexões acerca dos direitos fundamentais podem introduzir no
debate sobre a efetivação dos direitos sociais, identificando verdadeiros direitos, imponíveis
por uma questão de princípio, e não meras políticas públicas.

Nos últimos tempos, tem-se buscado no princípio da proporcionalidade a chave para


compreender e melhor compor os litígios - cada vez mais complexos, diante da demanda por
prestações positivas e dos óbices financeiros que passam a ser levados em conta pelos
tribunais - entre a Administração Pública e os administrados. Sem embargo das novas
possibilidades discursivas engendradas pelo seu uso, impõe-se reconhecer que a
proporcionalidade, por si só, não fornece critério hábil à realização das operações de
ponderação entre os interesses em jogo. De certo modo, toda aplicação do direito pressupõe
a consideração dos bens jurídicos envolvidos segundo uma proporção. A teoria desenvolvida
sobretudo por Robert Alexy sobre o emprego da noção de proporcionalidade peca por não
esclarecer qual seria o critério substancial que deve nortear este balanceamento entre
interesses contrapostos. A mera categoria formalista da proporcionalidade é insuficiente.

Em sua já clássica Teoria dos Direitos Fundamentais, Robert Alexy não consegue estabelecer,
com base na simples proporcionalidade, como as ponderações entre normas-princípio em
colisão poderiam ser efetuadas sem resvalar para o subjetivismo. Ao final de sua digressão,
Alexy propõe que os juízos de ponderação sejam pautados por uma ordem branda de valores:

“Ordens brandas podem surgir de duas maneiras: (1) através de preferências prima facie em
favor de determinados valores ou princípios e (2) através de uma rede de decisões concretas
129
Op. cit., pp. 82-3. Do exposto torna-se possível depreender, aliás, a importância que Celso Antônio
Bandeira de Mello confere à motivação, exposição de motivos com que o administrador encima o ato
editado. O dever de motivar aparece na doutrina como a fórmula capaz de solucionar o choque entre a
vetusta e necessária regra da presunção de legitimidade dos atos da Administração e a percepção de
que a discricionariedade apenas se legitima nos espaços em branco deixados pela lei, pelos princípios e
pelas condicionantes fáticas.

47
de preferências (...) como conseqüência da jurisprudência do Tribunal Constitucional
Federal.”130

Parece claro que Alexy não logra êxito em purificar os juízos de proporcionalidade da
necessidade de complementação, através de considerações substantivas. Sua ordem branda
de valores, em última análise, sugere que o intérprete recorra a preferências prima facie,
sem aprofundar o modo como estas preferências intuitivas poderiam ser racionalmente
controladas, ou à jurisprudência do tribunal constitucional, o que engendra uma inaceitável
auto-referência, na medida em que a corte mais preocupada em efetuar tais juízos de
ponderação (entre princípios constitucionais) é, precisamente, o tribunal constitucional.

Imaginar que o postulado de proporcionalidade, com sua pretensa neutralidade científica,


seria a única forma de conferir alguma objetividade à aplicação do direito (sobretudo nos
chamados hard cases, em que a colisão entre princípios contrapostos se evidencia com maior
vigor) acaba gerando a frustante sensação de que esta objetividade é impossível. A teoria dos
direitos fundamentais formulada por Dworkin, Habermas e outros autores, ao reconhecer a
necessidade de tomadas de posição não formalistas para solução das colidências de
princípios, dão margem a um controle intersubjetivo da aplicação do direito que permite à
comunidade jurídica voltar a acreditar, senão na objetividade, ao menos na racionalidade de
suas discussões.

Descabe tratar com profundidade, neste estudo, do evolver histórico que antecedeu a
formulação da moderna teoria dos direitos fundamentais. Seus antecedentes, inegavelmente,
remontam à antiga teoria dos direitos naturais, cujo conteúdo seria ditado por instâncias
externas ao homem - Deus, a Natureza etc. A partir do Iluminismo, duas vertentes passaram a
buscar o fundamento de direitos acima da lei em considerações não-dogmáticas: o gênio de
Kant procurou extrair os direitos fundamentais dos condimentos a que estaria submetida a
razão humana, enquanto uma tradição sociologista, inaugurada pelas reflexões de Rousseau,
veio a se cristalizar o longo do Século XX, sob a forma da corrente comunitarista, cuja
influência no ambiente acadêmico norte-americano foi marcante.

Na atualidade, a temática dos direitos fundamentais, há séculos presente na Filosofia do


Direito e na Sociologia, ganhou novo impulso a partir, principalmente, da experiência
jurisprudencial alemã e norte-americana pós - Segunda Guerra e da edição de diplomas
internacionais que visam a assegurar estas posições jurídicas. A crítica de falta efetividade
universal dos direitos fundamentais de primeira geração começa a ser suplantada por
intervenções militares de cunho humanitário; os meios acadêmicos cada vez mais abrem
espaço às reflexões concernentes aos direitos fundamentais, e a jurisprudência, inicialmente
avessa a tais idéias em virtude da longa tradição normativista, passa a ser um dos principais
impulsionadores do prestígio dos direitos fundamentais. Se, em nosso país, a década de
noventa pode ser caracterizada como a década da constitucionalização do direito, é bem
provável que o início do novo milênio seja caracterizado, no futuro, como a era da filtragem
jusfundamental do direito, em que as assertivas jurídicas tradicionais, dos mais diversos
ramos do saber jurídico, passam a ser reavaliados através da ótica dos direitos fundamentais.

Conforme já asseverado em passagem precedente, as teorias mais atualizadas acerca da


fundamentação destes direitos supra-positivos se assentam em considerações referentes aos
deveres que a comunidade de princípios -esta, por sua vez, cada vez mais globalizada -
considera gravar seus integrantes. Através da atividade legislativa, dos precedentes judiciais
mas, sobretudo, de um difuso sentimento de correção jurídica que com o tempo se densifica
no seio da coletividade, a comunidade de princípios sedimenta as regras basilares da
convivência interpessoal. Valendo-se da capacidade de reflexão -a qual, segundo Karl Popper,
constitui precisamente a faculdade que estrema , os seres humanos dos demais seres que
habitam o planeta -, os indivíduos não apenas são destinatários das normas consagradas pela

130
Robert Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, cit., p. 157,

48
comunidade de princípios, como também seus formuladores. A cada nova intervenção
legislativa ou decisão judicial, as pessoas avaliam e atualizam - no mais das vezes, sem
rupturas traumáticas - os comandos até então consagrados. Afora estes momentos explícitos
de reformulação dos critérios de correção jurídica, pode-se afirmar que cada nova conduta
humana potencialmente tem o condão de influir na manutenção ou superação das normas
vigentes.

A racionalidade das normas e decisões jurídicas não reside no procedimento adotado para sua
gênese mas, mais precisamente, na possibilidade de, a qualquer momento, através das
relações intersubjetivas travadas na sociedade, poder-se criticar o padrão decisório ou
legislativo que vinha sendo adotado. A sociedade aberta é a garantia da racionalidade possível
de discurso jurídico.

A sociedade contemporânea, especialmente aquilo que se acostumem denominar de


“sociedade ocidental”, ao longo de décadas e séculos vem reafirmando a importância
existencial de determinadas faculdades que, avalizadas pelo direito e salvaguardadas por
garantias processuais, institucionais e normativas, vieram a constituir os direitos
fundamentais.

Os limites do presente trabalho não permitem tecer digressões adicionais acerca da


complexa questão filosófica que permeia a discussão dos direitos fundamentais. Cumpre
apenas assinalar que a importância destes direitos para o balizamento da discricionariedade,
conforme será visto adiante , substancial e ainda não tem merecido, da comunidade
acadêmica e dos tribunais, a atenção devida.

MÍNIMO EXISTENCIAL E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O aproveitamento das reflexões ligadas aos direitos fundamentais no balizamento do agir da


Administração na seara dos direitos sociais exige que se adentre à questão, ventilada com
insistência nos meios acadêmicos, acerca da possibilidade de se caracterizar certos direitos
sociais e econômicos como direitos fundamentais tout court. Deve-se ter em vista que,
cuidando-se a categoria dos direitos fundamentais de um topos jurídico-argumentativo
pretensamente superador do direito positivo, a questão não pode ser resolvida pelo simples
recurso à qualificação constitucional de certos direitos como fundamentais. Não se trata de
uma questão de decisão, de escolha do constituinte ou do legislador, mas de preenchimento
concreto, por parte dos direitos sociais pretensamente fundamentais, dos atributos que lhe
permitiriam portar tal qualificação. A Constituição e diplomas internacionais podem, no
máximo, corroborar a pretensão de jusfundamentalidade destes direitos sociais, mas não
fundamentá-la.

No Brasil, Ricardo Lobo Torres veementemente protesta contra a inclusão direitos no rol dos
direitos fundamentais. Direitos fundamentais apenas aqueles ligados à tradição liberal
clássica de respeito à vida e à liberdade individual. O afã de certos doutrinadores em
estender o âmbito dos direitos fundamentais acarretaria, em última análise, uma vulgarização
do conceito prejudicial à efetividade mesmo daquele núcleo tradicionalmente aceito como
fundamental. Posicionando-se especificamente com relação ao pretendido direito
fundamental ao desenvolvimento, afirma Ricardo Lobo Torres que “esse tipo de raciocínio
leva à banalização dos direitos humanos e à confusão com os princípios de justiça social”. 131

Além disto, o reconhecimento de direitos subjetivos a prestações a partir da teoria dos


direitos fundamentais, ou a partir de normas constitucionais (direitos originários a
prestações), teria o condão de arrefecer a participação política dos cidadãos. Na medida em

131
Ricardo Lobo Torres, Os Direitos Humanos e a Tributação, cit., p. 13.

49
que todas estas posições jurídicas já se encontrassem garantidas, independentemente de
qualquer reivindicação política, de nada adiantaria a mobilização popular; retirar-se-ia a
importância da cidadania, na medida em que a contemplação dos direitos não seria mais uma
questão de conquista da sociedade, mas simples outorga de um Estado (e, especificamente,
de um Judiciário) paternalista.132

A Constituição de 1988, em seu art. 1º, II, erige a cidadania à condição de fundamento do
Estado brasileiro.133 Pretendeu com isto consagrar o primado da participação popular, através
não apenas do voto, mas também da participação em órgãos públicos 134 e em organizações
privadas.135 Após duas décadas de regime ditatorial, compreende-se que a definição das
políticas públicas deve competir à sociedade, através do sistema o mais participativo
possível. Uma vez que a cidadania vem justamente contrapor-se ao regime anteriormente
existente, onde não se reconhecia ao povo a prerrogativa de traçar suas prioridades políticas,
não seria o paternalismo judiciário no tocante ao reconhecimento de direitos sociais e
econômicos, uma forma velada de retirar-lhe a autonomia recentemente conquistada?

Reconhecer um direito social, dependente de prestação estatal positiva, implica reduzir os


recursos com os quais seriam contemplados os interesses consagrados, nos fóruns
especificamente destinados a isto (sobretudo no Poder Legislativo, quando da elaboração do
orçamento), pela escolha dos cidadãos:

... As concessões legislativas e administrativas de direitos econômicos e sociais dependem de


“escolhas trágicas” entre valores morais e humanos. Derivam de um programa de “boa
política” (guter Politik) do exercício da “good citizenship” ou “das reivindicações da
cidadania local, não sendo direitos humanos fundamentais”.136

A recusa em admitir direitos fundamentais sociais assenta-se, em última análise, no


argumento democrático-majoritário. É este o óbice jurídico que em última análise se
contrapõe ao reconhecimento de caráter jusfundamental aos direitos sociais e prestacionais
em geral. Conforme já sublinhado, autores como Böckenförde têm compreendido estas
posições jurídicas como meros direitos relativos, restringíveis de acordo com a conjuntura
econômica, mesmo considerados lex imperfectae, leis desprovidas de efeitos jurídicos ou
instituidoras de meros mandados jurídico-objetivos. Mesmo os juristas que se filiam
claramente ao reconhecimento - em maior ou menor escala - destes direitos admitem os
132
Ricardo Lobo Torres, “A Cidadania Multidisciplinar na Era dos Direitos”, in Teoria dos Direitos
Fundamentais, cit, pp. 290-4.
133
Assim como as noções de justiça, a eqüidade, a moralidade e os direitos humanos, a cidadania
esteve ausente do discurso jurídico durante quase todo o século XX, sendo considerada um tópico
reservado às reflexões dos sociólogos. Nos últimos anos, o interesse da comunidade jurídica e da
sociedade em recuperar a referência do ordenamento positivo a conceitos transcendentes possibilitou a
formulação de concepções propriamente jurídicas da cidadania. A doutrina acompanha este interesse
crescente; v. Jürgen Habermas, Direito e Democracia, e, entre nós. Ricardo Lobo Torres, “A Cidadania
Multidimensional na Era dos Direitos”
134
Nesta direção, sublinhe-se a composição paritária (com membros da sociedade civil organizada) dos
Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e dos Conselhos Tutelares; dos Conselhos de
Contribuintes e de órgãos semelhantes.
135
Atualmente, é inegável a importância econômica, social e política das organizações não-
governamentais. Elas integram o terceiro setor responsável pela realização de políticas públicas, ao
lado do Estado (primeiro setor) e das empresas privadas (segundo setor). O agigantamento das ONGs,
muitas das quais hoje possuem estrutura tão complexa quanto a de grandes empresas, faz com que se
cogite de um quarto setor, composto das organizações de voluntariado. Na Itália, : existe regulação
exaustiva destas organizações, cujo critério de distinção, relativamente às ONGs, é o limite da renda
auferida que pode reverter ao pagamento de despesas com pessoal (apenas dez por cento). Garante-
se, assim, o verdadeiro caráter voluntário do trabalho realizado.
136
Ricardo Lobo Torres, “A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos”, in Teoria dos.
Fundamentais, cit., pp. 291-2.

50
“problemas específicos” relacionados à respectiva justiciabilidade.137

Relacionam-se aos argumentos acima mencionados um óbice adicional, de caráter negativo,


segundo o qual, para solução de problemas de maior magnitude política, o magistrado não
conta com balizamentos jurídicos e técnicos suficientes. Ainda que se reconhecessem todos os
vícios inerentes à representação no Estado contemporâneo e se descresse da participação
cidadã, como imaginar que o juiz pudesse decidir, em pautas racionais, este tipo de questão?

O tema da fundamentalidade dos direitos sociais, portanto, é o tópico- chave para o qual
convergem todos estes questionamentos. Equacionando-o, talvez seja possível desvelar este
complexo emaranhado argumentativo, de forma que permita responder como e até que ponto
é possível ao Judiciário reconhecer e implementar direitos prestacionais.

Para Alexy e outros doutrinadores, o caráter jusfundamental dos direitos sociais se evidencia
na medida em que tais direitos condicionem a fruição efetiva dos direitos fundamentais de
ordem liberal. Não se poderia falar em verdadeira fundamentalidade - por exemplo - do
direito à vida sem que prestações basilares de saúde fossem garantidas, ou do direito à
incolumidade física sem o aparelhamento da polícia. A fundamentalidade e conseqüente
caráter vinculativo não significariam, porém, que estas posições jurídicas estariam infensas à
ponderação. Como normas principiológicas, as normas definidoras de direitos fundamentais
(e, neste passo, Alexy não distingue entre os direitos prestacionais fundamentais e os direitos
de liberdade) são princípios e, portanto, passíveis de restrições, aferíveis em cada caso
concreto. As normas definidoras de direitos econômicos e sociais (que, no caso do direito
constitucional federal alemão, são normas implícitas, já que a Lei Fundamental Alemã limita-
se a consagrar direitos fundamentais tout court) são vinculantes, verdadeiros mandados
jurídico-objetivos, porém somente prima facie. É natural que circunstâncias concretas e
conflitos de princípios evidenciados casuisticamente limitem sua aplicabilidade.

Em linhas gerais, a solução aventada por Alexy parece corresponder à melhor solução para o
problema dos direitos prestacionais. Contudo, impende tecer algumas considerações à luz de
tudo o que se afirmou ao longo deste Capítulo, esclarecendo alguns pontos que sua exposição
havia deixado obscurecidos.

A exposição de Alexy adjetiva como fundamentais todas as posições jurídicas que aparecem
contempladas na Lei Fundamental alemã. O nome do documento (que deveria ser provisório,
aguardando a unificação das duas Alemanhas, quando então todo o povo germânico produziria
a sua verdadeira Constituição nacional) já causa uma evidente confusão, na medida em que
sugere uma hegeliana epifania do fundamental (transcendental, racional) no documento
positivo. É natural que isto gere perplexidades; afinal, direito fundamental é o direito da Lei
Fundamental, ou o direito transcendental, que pode ou não estar nesta Lei? É apenas o direito
transcendental enquanto declarado nesta Lei, ou tanto o direito transcendental quanto o
direito previsto na Lei?

Teoricamente, e atentando para o pressuposto de sua preexistência, é claro que os direitos


fundamentais não são apenas os que aparecem consagrados na Constituição e, vice-versa, que
os direitos que a Constituição alinha como fundamentais não o serão necessariamente. 138

Falar em caráter jusfundamental dos direitos econômicos e sociais não deve ser entendido
137
V. Ingo Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., pp. 263-4.
138
Diverso o entendimento de Cruz Villalon, para quem “onde não existir constituição não haverá
direitos fundamentais” (apud J. J. Gomes Canotilho, op. cit., p. 353).
Parece acertada a posição de Ingo Sarlet, segundo a qual “muita em favor dos direitos fundamentais na
Constituição uma presunção de constitucionalidade (fundamentalidade) em sentido material”,
presunção esta suscetível de ser elidida, já que “esta fundamentalidade material pode, de fato, não
existir” (A Eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 115).

51
como algo que necessite de uma resposta unicista. Nada a priori a exige, e é intuitivo que
certos direitos econômicos e sociais gozem de um status superior, efetivamente
jusfundamental. Refere-se a doutrina a estes direitos como mínimo existencial.

Consiste o mínimo existencial de um complexo de interesses ligados à preservação da vida, à


fruição concreta da liberdade e à dignidade da pessoa humana. Tais direitos assumem,
intuitivamente, um status axiológico superior, e isto por serem essenciais à fruição dos
direitos de liberdade. Sem direitos sociais mínimos, os direitos de liberdade permanecem um
mero esquema formal.

Os direitos sociais mínimos acham-se amparados nas diversas declarações internacionais de


direitos. Nesta direção, vale observar que a Declaração Universal de Direitos Humanos cuida
expressamente destas posições jurídicas:

Artigo XXII. Todo homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à
realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a
organização e os recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais
indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.

Artigo XXIV. Todo homem tem direito a repouso e lazer (...)

Artigo XXV. 1. Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua
família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os
serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença,
invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em
circunstâncias fora de seu controle.

2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as


crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.

Artigo XXVI. 1. Todo homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos
graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução
técnico-profissional será acessível a todos (...).

Artigo XXVII. 1. Todo homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da
comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios.

Artigo XXIX. (...) 2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo homem estará sujeito
apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido
reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas
exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.

Importante salientar que mesmo autores refratários à idéia de que direitos sociais possam ser
direitos fundamentais compartilham do entendimento de que o mínimo existencial é um
direito fundamental. Ricardo Lobo Torres, no trecho anteriormente citado em que critica a
banalização dos direitos humanos, ressalva que

Há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de
intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas.139

Linhas adiante, o eminente professor esclarece que a defesa do caráter fundamental do


mínimo existencial não importa, em seu entendimento, na admissão de direitos sociais
fundamentais. Tais posições jurídicas são fundamentais não em si mesmas, em virtude de sua
vinculação com as aspirações de justiça social, mas porque asseguram, em última análise, a
fruição efetiva dos direitos liberais:
139
Ricardo Lobo Torres, Os Direitos Humanos e a Tributação, cít., p. 124

52
Carece o mínimo existencial de conteúdo específico. Abrange qualquer direito, ainda que
originariamente não-fundamental (direito à saúde, à alimentação etc.), considerado em sua
dimensão essencial e inalienável. Não é mensurável, por envolver mais os aspectos de
qualidade que de quantidade, o que torna difícil estremá-lo, em sua região periférica, do
máximo de utilidade (maximum welfare, Nutzenmaximierung), que é princípio ligado à idéia
de justiça e de redistribuição da riqueza social.

A proteção do mínimo existencial (...) se fundamenta na liberdade, ou melhor, nas condições


iniciais para o exercício da liberdade, na idéia de felicidade, nos direitos humanos e no
princípio da igualdade. Não e totalmente infensa à idéia de justiça e ao princípio da
capacidade contributiva. Mas se estrema dos direitos econômicos e sociais.140

Embora intuitivamente se associe o mínimo existencial aos direito sociais, e embora os


direitos suscetíveis de compô-lo integrem, se analisado abstratamente (fora do contexto
existencial), o âmbito de preocupação da doutrina da justiça social, a doutrina liberal clássica
neles também enxerga um foco de atenção precípua, nos casos em que sua insuficiência
representa perigo à digna fruição da vida:

Essas prestações, todavia, têm caráter nitidamente subsidiário, eis que o Estado só estará
obrigado a entregá-las quando o sistema previdenciário, público ou privado, falhar em sua
missão e o indivíduo não possuir os meios indispensáveis à sobrevivência. (...) A entrega de
bens públicos (roupas, remédios, alimentos etc.), especialmente em casos de calamidade
pública ou dentro de programas de assistência à população carente (merenda escolar, leite
etc.), independentemente de qualquer pagamento, é outra modalidade de tutela do mínimo
existencial. (...) Mas, em todos esses casos, insista-se, a ação estatal deve se circunscrever à
entrega de um mínimo de bens públicos ou de “bens primários”. adequados às necessidades
de sobrevivência dos pobres, posto que ao Estado não compete conceder bens e serviços a
toda a população, que a livre das necessidades materiais.

A proteção estatal, repita-se, visa a garantir as condições da liberdade, a segurança do


mínimo existencial e a personalidade do cidadão (...).141

Ressalte-se: os direitos componentes do mínimo existencial, em linha de princípio, são


efetivamente direitos sociais e econômicos, não nos parecendo, destarte, equivocada a
designação direitos sociais fundamentais, preferida por certos autores dentre os quais Robert
Alexy. O uso desta expressão, entretanto, apresenta a potencial impropriedade de fazer crer
que a fundamentalidade destes direitos baseia-se simplesmente em seu caráter social ou
econômico. Para a doutrina clássica - e isto é o que têm em mente as vozes contrárias aos
direitos sociais fundamentais -, tais direitos somente serão fundamentais, perfazendo o
conceito de mínimo existencial, se estiverem sendo postulados num contexto de carência, de
essencialidade. A pretensão ao fornecimento de medicamentos, por exemplo, apenas poderá
ser qualificada como ligada ao mínimo existencial na medida em que os remédios postulados
forem de fato essenciais para a preservação da vida, ou de sua fruição digna, inexistindo
outra forma de se preservar o bem jurídico tutelado.

A maioria dos autores não têm dificuldades em derivar o caráter fundamental do mínimo
existencial de sua imprescindibilidade para a fruição da vida e da liberdade. Sem condições
materiais mínimas, não há autonomia psíquica que permita ao indivíduo fazer escolhas,
exercitar sua cidadania e as oportunidades que formalmente a vida em sociedade lhe oferece.
Como assentou certa feita o Tribunal Constitucional Federal alemão, “o direito de liberdade
não teria nenhum valor sem os pressupostos fáticos para poder-se fazer uso dele”. 142

140
Ibid., pp. 128-9.
141
Ibid., pp. 151 e ss.
142
Apud Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, cit., p. 487.

53
Se o mínimo existencial incorpora-se à noção de direito fundamental, preexistindo à
configuração do Estado, reduzido é o âmbito de sua conformação pelas maiorias
parlamentares. Como salienta Dworkin, os direitos fundamentais (incluindo os direitos
fundamentais a prestações) são trunfos que seus titulares podem invocar, até mesmo, contra
o princípio majoritário.143 São prerrogativas decorrentes de princípios da comunidade, e não
privilégios outorgados por questões de boa política, justiça ou conveniência. Sequer são
imperativos morais - mais do que isso, originam-se de um complexo reconhecimento
deontológico que, conforme Habermas expressa, não é redutível simplesmente à
moralidade.144

A despeito de sua opinião, há quem conteste a possibilidade de reconhecer-se alguma posição


subjetiva até mesmo quando se trata de um direito relacionado ao mínimo existencial. Uma
destas vozes (minoritárias) é a de Böckenförde, para quem,

(s)e os direitos fundamentais de liberdade co-garantissem os pressupostos sociais de sua


possibilidade de ser realizados como pretensões imediatas de direito fundamental, a
liberdade religiosa significa ao mesmo tempo a responsabilização do Estado pela base
econômica existencial das comunidades religiosas; a liberdade de imprensa, a obrigação
estatal de manter os pressupostos econômicos da pluralidade de imprensa (mediante proteção
da competição, subvenções, entre outras coisas); a liberdade de sindicalização, o
financiamento estatal dos sindicatos: a livre eleição dos centros de ensino, a obrigação
estatal de prover suficientes titulações educativas para os desejos profissionais individuais,
sejam ou não necessárias.145

Os exemplos citados por Böckenförde parecem sem dúvida absurdos mas eles remetem à
controvérsia, de fato complexa, acerca da extensão do mínimo existencial. Esta questão é
bastante relevante, tendo em vista que, enquanto os direitos fundamentais tout court
(direito à vida, à integridade física, à liberdade) carecem apenas de abstenções do Estado, a
observância do mínimo existencial demanda fazeres por parte do poder público. Quando o
mínimo existencial é compreendido apenas como um mínimo vital (abrangendo as condições
para a mera sobrevivência: como alimentação mínima, alguns cuidados médicos e abrigo),
certamente o problema é minorado, já que se passa a ter um critério objetivo de fixação de
seu espectro. Entrementes, a teoria dos direitos fundamentais não almeja apenas a
sobrevivência, mas sim a existência condigna. A noção de dignidade da pessoa humana
exsurge, assim, como critério (sem dúvida não tão unívoco quanto o da sobrevivência) de
definição do âmbito de prestações jusfundamentais.

Justamente por esta dificuldade em se precisar seus contornos, nos dias de hoje muito se tem
discutido acerca do postulado de dignidade da pessoa humana, que a Constituição de 1988
veio a consagrar em seu art. 12, III, como fundamento da República. Certos autores a
consideram uma fórmula praticamente vazia, que, segundo sustentam, poderia ser invocada
para justificar teses opostas.146 A dificuldade de reduzir a dignidade da pessoa humana a uma
fórmula abstrata e genérica levou certos autores a optarem por um conceito negativo, como o
fez Dürig que, movido por evidente influência kantiana, definiu a dignidade da pessoa
humana como a situação contraposta àquela em que o homem se vê tratado como objeto,
como um instrumento para fins externos, e não como um fim-em-si, sujeito de direitos e ser
racional.147
143
Ronald Dworkin, A Matter of Principle, cit., p. 68.
144
Jürgen Habermas, op. Cit., p. 290.
145
Böckenförde, “Los Derechos Fundamentales Sociales en la Estructura de la Constitución”, cit pp. 78-
9.
146
Assim, por exemplo, nos Estados Unidos tanto os defensores quanto os opositores do aborto
invocam, em seu favor, o imperativo de dignidade.
147
Apud Ingo Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 107. O mesmo autor lançou,
recentemente, trabalho de leitura obrigatória sobre o tema: Dignidade da Pessoa Humana e Direitos

54
Na realidade, a dignidade da pessoa humana é um feixe semântico que vai se conteudizando
ao longo de séculos. Ingo Sarlet, com bastante minúcia, descreve o evolver desta noção,
assinalando os conteúdos que a ela foram se vinculando no curso da história. Sucintamente,
insta salientar que a noção de que a pessoa humana é dotada de uma dignidade, de uma
autonomia transcendente, encontra seu berço no pensamento clássico - onde achava-se ligada
à noção de cidadania, de status social (dignitas) - e na doutrina cristã que, reconhecendo a
dignidade como dado distintivo de toda a pessoa (aquele que fala por si mesmo, que é
autônomo) em relação às demais criaturas, lançou as bases para a compreensão atual deste
conceito.

A pessoa humana é protagonista de sua própria existência, e sua autonomia imanente serve
de fundamento ao reconhecimento das liberdades. As coisas, diversamente, não possuindo
dignidade, são valorizadas em função de suas utilidades. Ao afirmar que todos os homens são
iguais em dignidade, a doutrina erigida em torno desta noção forneceu, adicionalmente,
esteio para a reflexão acerca da justiça.

Embora não exista uma fórmula apriorística que permita discernir o que se encontra
compreendido na noção de dignidade da pessoa humana, é possível reconhecer certos
postulados que, ao longo da história, a ela se incorporaram:

Assim, não restam dúvidas de que a dignidade da pessoa humana engloba necessariamente o
respeito e a proteção da integridade física e corporal do indivíduo, do que decorrem, por
exemplo, a proibição da pena de morte, da tortura, das penas de natureza corporal, da
utilização da pessoa humana para experiências científicas, limitações aos meios de prova
(utilização de detector de mentiras), regras relativas aos transplantes de órgãos, etc. Neste
sentido, diz-se que, para a preservação da dignidade da pessoa humana, se torna
indispensável não tratar as pessoas de tal modo que se lhes torne impossível representar a
contingência de seu próprio corpo como momento de sua própria, autônoma e responsável
individualidade. Uma outra dimensão intimamente associada ao valor da dignidade da pessoa
humana consiste na garantia de condições justas e adequadas de vida para o indivíduo e sua
família, contexto no qual assumem relevo de modo especial os direitos sociais ao trabalho, a
um sistema efetivo de seguridade social, em última análise, à proteção da pessoa contra as
necessidades de ordem material e à asseguração de uma existência com dignidade. 148

Além de um mínimo vital estrito, a doutrina dos direitos fundamentais autoriza o


reconhecimento de um mínimo digno. Este mínimo, certamente, não abrange as condições
exteriores para exercício de liberdades (a subvenção às igrejas a que aludia Böckenförde, ou
para aquisição de carros ou aviões, objetivando a otimização do direito de ir e vir, por
exemplo), mas as condições necessárias para que o indivíduo possua efetiva autonomia
interior. Acham-se justificadas jusfundamentalmente as prestações materiais que, além da
sobrevida, garantem ao indivíduo as condições psíquicas que o tornem apto a valer-se, de
acordo com suas aptidões e preferências, das oportunidades que a sociedade oferece. Mais do
que isto, estas prestações devem permitir à pessoa o grau de autonomia suficiente para,
inclusive, refletir e reconstruir, com a máxima autonomia possível, o quadro destas aptidões
e preferências,149 sobretudo no espaço público, no âmbito da cidadania, consoante a lição de
Habermas.

Metodologicamente, o reconhecimento da fundamentalidade do mínimo existencial há de se


realizar nos moldes do pensamento construtivo de Dworkin. Inexistindo uma fórmula unívoca

Fundamentais na Constituição Federal de 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.


148
Ingo Sarlet, op. cit., pp. 107-8.
149
Neste passo, parece-nos oportuno enfatizar que a efetiva autonomia permite a reflexão do indivíduo
acerca de sua tábua de preferências, reivindicação fundamental que Jon Elster Justice (Local Justice -
How Institutions Allocate Scarce Goods and Necessary Burdens, New York: Russel Sage, 1992, p. 239)
enfatiza, criticando a omissão de Dworkin a esse respeito.

55
capaz de definir com precisão o âmbito do mínimo existencial amparável judicialmente,
deverá o magistrado construir um encadeamento deontológico, tomando como alicerces a
doutrina, a jurisprudência e mesmo contributos de outros ramos do conhecimento (filosófico,
científico).

Isto, porém, não basta. Conforme já sublinhado, o pensamento construtivo, em sua


formulação dworkiniana, ainda implica uma gama ampla demais de opções ao magistrado,
todas aparentemente bem-fundadas em encadeamentos deontológicos. Mais do que no
esforço individual do Juiz Hércules deve-se confiar no caráter dialógico da decisão jurídica. As
circunstâncias em que ocorre o processo decisório, submetido a uma série de balizamentos
formais e informais, acaba por tolher os eventuais desvios subjetivistas que pudessem
acometer os magistrados menos prudentes. Conquanto seja elevada a possibilidade de uma
sentença equivocada em virtude de excessos subjetivistas do juiz individual, pode-se
constatar que a produção institucional do Poder Judiciário, quando visualizado o conjunto de
suas decisões finais, reverencia uma certa ortodoxia. Decisões extravagantes tendem diluir-se
ao longo das instâncias e em meio à maioria das decisões proferidas em ações similares:

A natureza balizada deste processo (de coordenação de idéias para formulação de novas
doutrinas jurídicas) é inerente à sua dinâmica interna. O processo somente pode começar
quando as crenças envolvidas estiverem largamente sustentadas. Um juiz individual pode
possuir normas idiossincráticas, mas a maioria saberá o suficiente para excluí-las do tribunal;
uns poucos não, mas a não ser que eles estejam na situação incomum de possuírem os votos
decisivos na suprema corte de sua jurisdição, eles serão reformados e ignorados. 150

CARACTERÍSTICAS E PRIORIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Diversos atributos caracterizam os direitos fundamentais, cumprindo assinalar que mesmo a


doutrina especializada parece descurar um tanto da análise destes predicados: a
preexistência à ordem positiva, a inalienabilidade, a possibilidade de auto-aplicação, a
eficácia erga omnes, o caráter absoluto e a imprescritibilidade. Para a presente discussão,
importam sobremodo os três primeiros atributos.

Dizer que os direitos fundamentais preexistem à ordem positiva significa que a lei não os cria,
mas antes os reconhece. Os direitos fundamentais são declarados pelo legislador; esta
declaração não cria o direito, apenas o certifica, de tal modo que, mesmo não estando
positivados, estes direitos devem ser observados e, se necessário, judicialmente
concretizados.

Deve-se enfatizar que a preexistência em questão é lógico-normativa, e não cronológica.


Desta forma, pode ocorrer de um certo direito passar a ser considerado fundamental quando
antes não o era. O fato de novos direitos fundamentais poderem ser reconhecidos no curso da
história de uma determinada sociedade não obsta que estes direitos sejam considerados
fundamentais ab ovo: os direitos já eram fundamentais em origem, apenas a compreensão
disto tardou. Embora a efetividade ou eficácia social de um direito fundamental muitas vezes
dependa de sua positivação, a existência, validade e eficácia formal destas posições jurídicas
remontará sempre, sob o enfoque lógico-normativo, ao instante ideal de surgimento da
sociedade e do ordenamento jurídico.

Se a lei não cria os direitos fundamentais, mas apenas os reconhece, então deve-se admitir a
possibilidade de a lei ter-se equivocado, para mais como para menos. A doutrina dos direitos
fundamentais propõe a existência de um critério jurídico-cognitivo, e não político, para a
detecção de situações jurídicas fundamentais. Desta forma, a última palavra acerca da

150
Feeley e Rubin, op. cit., p. 354.

56
existência de um direito fundamental cabe ao Judiciário, e não aos órgãos investidos
politicamente.

Nem mesmo o constituinte, derivado ou originário, poderia afastar, implícita ou


explicitamente, o caráter fundamental de um determinado direito. Nesta direção, bastante
valiosa a orientação manifestada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIn nº
939-7.151

A inalienabilidade é um dos atributos mais comumente associados à noção de direitos


fundamentais. Já a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu preâmbulo,
reconhece a todos os membros da família humana direitos “iguais e inalienáveis”.

O predicado da inalienabilidade deve ser compreendido como abarcando, também, eventuais


formas indiretas de disposição dos direitos mentais. Mesmo afirmando seu respeito a um
determinado direito fundamental, pode certo Estado obstá-lo na prática através, por
exemplo, da imposição de tributos.152 A carência de instrumentos processuais que permitam
garantir a implementação destes direitos (inefetividade do processo) também pode, por via
transversa, implicar a destruição do direito. É neste sentido que a idéia de inalienabilidade
mais interessa ao presente estudo.

Os direitos fundamentais gozam de auto-aplicação, predicado que se relaciona intimamente


com o pressuposto de preexistência das normas jusfundamentais. A própria Constituição
declara a auto-aplicabilidade dos direitos fundamentais, no § 1º de seu art. 5º (“As normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”).

Se preexistem ao pacto constitucional e portanto, sob uma perspectiva extrema, prescindem


até da interposição do constituinte, com muito mais razão os direitos fundamentais inexigem
o acolhimento por parte do legislador ordinário. Mais uma vez, porém, o atributo pode tornar-
se mera enunciação vazia, bastando que não estejam disponíveis instrumentos processuais
aptos a concretizá-lo.

A auto-aplicabilidade apresenta uma importante implicação na discussão acerca do caráter


jusfundamental dos direitos prestacionais. Um dos argumentos suscitados contrariamente à
tese de que há verdadeiros direitos prestacionais (incluindo o direito à medicação) alega que
o fato de os direitos prestacionais nem sempre comportarem a auto-aplicação (em virtude da
suposta necessidade de normas regulamentares, ou de recursos financeiros) afasta seu caráter
jusfundamental. Ora, neste passo, impende invocar um atributo adicional, decorrente da
necessidade de compatibilização da auto-aplicabilidade, da preexistência e da
inalienabilidade dos direitos fundamentais com o inegável contraponto que os eventuais
contingenciamentos econômicos representarão. A ponderação entre estes vetores resolve-se
num atributo do qual a doutrina jusfundamentalista cuida apenas tangencialmente: a
prioridade.

Impossibilidades fáticas absolutas, há de se admitir, são intransponíveis por categorias


deontológicas; sequer o detalhamento exaustivo destas posições jurídicas, por parte do
legislador ordinário, poderá deixá-las a salvo do condicionamento econômico. Desta forma, se
recursos realmente inexistem, o direito prestacional, por mais importante que seja, não
poderá ser implementado.
151
Neste processo, discutia-se a constitucionalidade do art. 2º, § 2º, da Emenda Constitucional nº
3/93, o qual criava um tributo - o IPMF - que não se submeteria quer ao princípio da anterioridade (art.
150, III, b), quer às imunidades tributárias previstas no art. 153, § 5º, do Texto Maior. A anterioridade e
as imunidades tributárias, formalmente, não integram o catálogo de direitos fundamentais (art. 5º);
isto, contudo, não impediu o Supremo Tribunal Federal de considera-las garantias fundamentais do
contribuinte, insuscetíveis de revogação pelo constituinte derivado.
152
A este respeito discorre com excelência Ricardo Lobo Torres, Os Direitos Humanos e a Tributação,
cit., em especial pp. 36-7.

57
Diversamente do que alguns autores sustentam, contudo, o condicionamento de sua auto-
aplicabilidade a circunstâncias econômicas não serve de justificativa para que se deixe de
reconhecer certa posição jusfundamental. É inegável que a comunidade jurídica e o legislador
político levam em conta, ainda que nem sempre de modo declarado, as possibilidades
econômicas da sociedade no momento em que reconhecem a uma determinada aspiração o
caráter jusfundamental. Este fator, entretanto, não é o único tomado em conta; existem
envolvidos aspectos morais (normalmente preponderantes), históricos, lógicos, psicológicos;
em suma, uma infinitude de variáveis que levam ao reconhecimento de um determinado
princípio jusfundamental. Se após o sopesamento de todos estes fatores reconhece-se um
direito fundamental, não será mais a impossibilidade circunstancial de sua implementação
que o despirá deste predicado, já que a auto-aplicabilidade (e os demais atributos
mencionados acima) são conseqüências e pressupostos hipotéticos (como a pré-estatalidade),
e não condições para reconhecimento de direitos fundamentais.

Portanto, o que resta da auto-aplicabilidade, quando cotejada com o condicionamento


representado pela reserva do possível, é o predicado de prioridade. Assim, quando a
Administração deixa de realizar determinado direito mas efetua outras prestações torna-se
possível cotejar estas alocações de recursos, de modo a aferir se há título de prioridade em
favor da prestação que se deixou de realizar:

... Uma vez que os direitos que são construídos sobre edifícios filosóficos têm a habilidade de
resistir às oscilações no pêndulo político, disto decorre que escolhas orçamentárias são
balizadas pela estrutura dos direitos.153

Afigura-se assim ilegítima a conduta administrativa que, deixando de ter em conta a


prioridade dos direitos fundamentais (dentre os quais ora se destaca o direito aos
medicamentos), prefira prover projetos sujeitos a exame de conveniência e oportunidade. A
alocação de recursos nestes projetos. inclusive, serve de evidência para que o magistrado
possa refutar exceção. fundada no argumento da reserva do possível, que viesse a ser
suscitada pelo Estado em ação envolvendo direito a prestações ligadas ao mínimo existencial.
Não seria absurdo, outrossim, que o magistrado, com prudência, declarasse a nulidade dos
atos administrativos que não houvessem observado a necessária prevalência dos direitos
fundamentais, de modo a que os recursos recuperados pelo Erário, em virtude da nulificação
do ato administrativo ilegítimo, pudessem ser canalizados para a produção da prestação
amparada em imperativo jusfundamental, inicialmente negligenciada.

O escopo da presente digressão é o de demonstrar o potencial do manejo dos conceitos


ligados à teoria dos direitos fundamentais como bitolas para exercício da discricionariedade,
num contexto de reavaliação das antigas estruturas jurídicas a partir destes postulados e
princípios. Em outros trabalhos, procurou-se tratar com maior acuidade dos instrumentos
processuais que confeririam coercibilidade às decisões neste campo, temática com a qual o
Poder Judiciário brasileiro tem-se defrontado em seu dia-a-dia. Reproduzir e aprofundar o
estudo destas ferramentas processuais ultrapassaria os limites de investigação propostos para
esta obra, mas impende reconhecer que a questão do controle da discricionariedade através
do manejo do conceito de mínimo existencial encontra-se inextricavelmente atada ao estudo
dos mecanismos processuais de imposição de tutela.

SEÇÃO 6: DISCRICIONARIEDADE E DIREITOS SOCIAIS NAS CORTES BRASILEIRAS

O sistema jurídico brasileiro, calcado no direito legislado, não favorece a que, em nosso país,
haja um estudo aprofundado acerca da produção pretoriana - algo basilar nos países ligados à
common law. Recentes mudanças legislativas e propostas de emenda constitucionais,

153
Jeffrey Straussman, op. cit., p. 113.

58
objetivando aumentar a importância dos julgados proferidos pelos tribunais superiores como
balizamento para a aplicação do direito por juízes e tribunais locais, bem como a
admissibilidade dos recursos constitucionais, tendem a estimular o estudo da jurisprudência -
algo que, a nosso sentir, apresenta inegável importância mesmo em países que seguem um
sistema clássico de statute law.

Conforme já salientado, as decisões referentes à implementação de direitos sociais,


dependentes de prestações positivas, proferidas pelos tribunais superiores brasileiros
concentram-se em dois focos precípuos: o do direito à saúde e o da proteção a crianças e
adolescentes. Em nossos estudos anteriores, tivemos ocasião de demonstrar como, enquanto
as ações envolvendo o fornecimento de medicamentos e custeio de tratamentos têm sido bem
sucedidas (ao menos até que as execuções se iniciem...), os processos ajuizados com o intuito
de tornar efetivas as garantias da Lei nº 8.069/90 encontram forte resistência nos tribunais.
Ao longo dos últimos cinco anos, verifica-se o aumento do número das ações relacionadas à
implementação de direitos prestacionais sociais, ao qual correspondeu uma perceptível
sofisticação na abordagem com que os aplicadores do direito analisam essas novas demandas.
Se até bem pouco tempo um ou outro julgado referia-se, de modo relativamente atécnico, a
idéias-chave tais como a proporcionalidade, a ponderação, a diferenciação entre normas-
regra e normas-princípio, direitos fundamentais e o mínimo existencial, hoje em dia percebe-
se uma gradual valorização destas novas categorias, que acompanha a penetração das
reflexões sobre direitos fundamentais no meio acadêmico e na produção doutrinária.

O DIREITO À SAÚDE NOS TRIBUNAIS

A maior parte dos julgados relacionados à implementação de direitos sociais de cunho


prestacional diz respeito a prestações ligadas à saúde - fornecimento de remédios e
equipamentos, custeio de viagens para tratamentos no exterior, aparelhamento de hospitais
etc. Desde os processos pioneiros, ajuizados na década de noventa, a tendência das cortes
brasileiras tem sido francamente favorável aos postulantes. Embora a nosso sentir as decisões
mais recentes procurem esmiuçar com maior esmero as circunstâncias específicas de cada
caso, ao invés de afirmarem um direito irrestrito a tais prestações, impende reconhecer que,
já na década passada, a jurisprudência mostrava-se conscienciosa ao definir a extensão do
direito positivo a prestações na área de saúde. De um modo geral, apenas aqueles remédios,
equipamentos e tratamentos indispensáveis à vida condigna foram contemplados, nas
decisões coligidas:

... apesar de haver outros direitos assegurados no art. 5º, caput, da CF/88 - direito à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade - há uma notória preponderância de valor
a ser salvaguardado: o direito à vida.

(...)

CONCLUSÕES:

1ª) A vida é considerada o mais precioso dos bens e atributos do ser humano. Sem ela, os
demais valores socialmente reconhecidos não têm o menor significado ou proveito.

(...)

Tendo em vista as particularidades de casos como o analisado, faz-se imprescindível


interpretar a lei de forma mais humana, teleológica, em que princípios de ordem ético-

59
jurídica conduzam ao único desfecho justo: decidir pela preservação da vida.154

O voto vencedor neste acórdão procura fundamentar a prevalência axiológica da vida - e, por
conseqüência, das prestações ligadas à saúde que a promoverem -, transcrevendo os diversos
dispositivos que, na Constituição brasileira, remetem ao direito à vida e à saúde, assim como
citando trechos de trabalhos jurídicos que repisam a primazia valorativa destes bens.

Outros arestos enfatizam o valor nodal da vida como fundamento para a condenação do poder
público, ou para o deferimento de certos provimentos aparentemente incabíveis:

É vedada a concessão de liminar contra atos do poder público no procedimento cautelar que
esgote, no todo ou em parte, o objeto de ação. Entretanto, tratando-se da aquisição de
medicamento (ceridase) indispensável à sobrevivência da parte, o que estaria sendo negado
pelo poder público seria o direito à vida.

Recurso improvido.155

Entendo não assistir razão ao Estado do Rio Grande do Sul, pois o eventual acolhimento de sua
pretensão recursal certamente conduziria um resultado trágico. É que esta postulação -
considerada a irreversibilidade, no momento presente, dos efeitos gerados pela patologia que
afeta os ora recorridos (que são portadores da síndrome da imunodeficiência adquirida) -
impediria, se aceita, que os pacientes, pessoas destituídas de qualquer capacidade
financeira, merecessem o tratamento inadiável a que têm direito e que se revela essencial à
preservação de sua própria vida.156

Os acórdãos coligidos demonstram que o Poder Judiciário brasileiro tem sido sabiamente
comedido no provimento dos pedidos de medicamento.Atenta-se, assim, à noção de mínimo
existencial, tão cara ao direito germânico e que, especialmente através da obra de Ricardo
Lobo Torres, tem transcendido, em nosso país, os lindes originários do direito tributário para
converter-se na pedra de toque das reflexões sobre direitos fundamentais. Ao invés de
simplesmente arrogar-se o papel de amigo da sociedade, de provedor irresponsável
contraposto à mesquinhez dos demais Poderes, o Judiciário - e a comunidade jurídica em
geral, já que poucos advogados também requerem medicamentos que não sejam essenciais -
tem filtrado possíveis excessos, e concedido apenas os remédios indispensáveis à preservação
da vida e à manutenção da qualidade de vida do doente.

Análise detida permite entrever, nas decisões judiciais, uma série de balizamentos que
legitimam a atuação das cortes brasileiras.

Os acórdãos compulsados sempre vinculam suas considerações axiológicas a regramentos


positivos, sejam eles normas constitucionais (como o art. 196 que, embora não seja
totalmente denso, é mais preciso do que qualquer das muitas disposições atributivas de
direitos promanadas do legislador ordinário) ou legais, federais e estaduais:

Quanto ao tema de fundo propriamente dito, além de ter-se o apoio na assistência do Estado
prevista na Lei Maior, consideradas a vida, a saúde e o bem-estar da criança e do adolescente,
constata-se que o acórdão proferido está lastrado, também, em interpretação de normas
locais.157

Decisão que teve por fundamento central dispositivo e lei (art. 1º da Lei na 9.908/93) por
meio da qual o próprio Estado do Rio Grande do Sul, regulamentando a norma do art. 196 da
154
STJ, ROMS 11.183/PR.
155
RESP 97.912/RS, Rel. Min. Garcia Vieira, 1ª T., unânime, julg. em 27/11/97.
156
RE 267.612/RS, Rel. Min. Celso de Mello.
157
RE 195.192-3, Rel. Min. Marco Aurélio.

60
Constituição Federal, vinculou-se a um programa de distribuição de medicamentos a pessoas
carentes.158

Também o posicionamento do próprio ente réu, consubstanciado em procedimentos médicos


previamente adotados ou em convênios firmados, é invocado como evidência da existência do
seu dever:

... Ademais, como enfatiza nas contra-razões, quando “o Município de Porto Alegre reconhece
e enfatiza a responsabilidade do Estado, acaba por reconhecer a sua própria responsabilidade
solidária, devido aos convênios firmados”.159

... Distribuição de medicamentos especiais ou excepcionais a pessoas carentes. Lei nº


9.908/93, do Estado do Rio Grande do Sul, e acordo firmado na Comissão Intergestores
Bipartite - CIB.160

Vê-se, de plano, não haver qualquer laivo de ilegalidade ou abusividade do ato judicial,
requisito essencial à impetração da segurança, considerando-se que a requerente da cautelar,
litisconsorte passiva neste mandado de segurança, esteve cadastrada junto à Secretaria de
Saúde Estadual, que conhecia sua moléstia, atestando-a, prescrevendo, inclusive, a dosagem
do medicamento e o vinha fornecendo, embora de modo precário, desde 1992, fornecimento
interrompido em junho de 1994, com grave risco para a integridade física da paciente que
passou a utilizar-se de subdoses do remédio, valendo-se da comiseração da comunidade
devido à sua hipossuficiência econômica.161

Diversos acórdãos avalizam suas posições através da menção a outros arestos. A jurisprudência
dos tribunais superiores não é a única lembrada: com freqüência os acórdãos do STF e do STJ
invocam, em favor de suas compreensões sobre a fundamentalidade das posições jurídicas
deduzidas, as razões de decidir expendidas pelo juiz de primeiro grau e pelo tribunal
estadual, além dos pareceres do Ministério Público e da doutrina especializada. 162 De certa
forma, através destes personagens processuais as posições perfilhadas pela comunidade de
princípios são assimiladas ao processo decisório.

O uso destas instâncias balizadoras permite asseverar, portanto, que a despeito do uso de
considerações valorativas, os tribunais brasileiros não estão reclamando para si o poder de
dispor livremente da ordem jurídica, como se esta fosse um quadro geral de bens atraentes,
em menosprezo ao papel dos demais poderes na integração do texto constitucional. Subjaz
aos arestos estudados uma concepção verdadeiramente deontológica do direito preocupada
com a correção jurídica da adjudicação dos direitos prestacionais e não, simplesmente, em
tornar o Judiciário um poder simpático aos olhos do povo, um aliado da sociedade contra a
Administração. A proclamação da superioridade da vida e do direito à saúde surge como
complemento das argumentações expendidas, e não como fundamento autônomo.

A posição do Judiciário, reconhecendo-se e conformando-se ao papel de adjudicador de bens


devidos em função de decisões do legislador e da comunidade de princípios transparece,
claramente, no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 271.286/RS, onde o Min. Celso
de Mello proclama que

... o reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de


medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, deu
efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República ....
158
RE 242.859/RS, Rel. Min. Ilmar Galvão.
159
AGA nº 246.642/RS, Rel. Min. Garcia Vieira.
160
RE 257.109/RS, Rel. Min. Maurício Corrêa.
161
ROMS 6.371/RS, Rel. Min. Peçanha Martins.
162
Assim, no STJ, ROMS 11.183/PR e ROMS 6.371/RS; no STF, ARAI 238.328-0/RS.

61
Longe, portanto, da postura adotada pela jurisprudência dos valores tedesca, o Judiciário
brasileiro reafirma seu papel de reconhecer a validade dos programas sociais e princípios
fundamentais da ordem social, e não de criá-los.

Ao longo dos cinco últimos anos, as demandas judiciais envolver prestações positivas ligadas à
saúde deixaram de ser acontecimentos isolados.Em todo o país, os juízos de fazenda pública e
os tribunais passaram a travar contato diário com a matéria. Conseqüência disto foi a
sedimentação, no âmbito dos tribunais estaduais e superiores, de entendimentos pacificados
relativamente ao cabimento de tutela antecipada nesta seara, a despeito das normas federais
que restringem os provimentos de urgência em face do poder público (Lei nº 8.437/92); 163 à
existência de solidariedade passiva entre os entes de direito público, sem embargo das
normas legais e regulamentares que gravam os Municípios - e excepcionalmente os Estados -
com o dever de fornecer, em caráter principal, medicamentos e tratamento médico,164 etc.

Há acórdão do STJ reconhecendo que também o tratamento para drogadição, tanto em


virtude da prioridade absoluta conferida à proteção de crianças e adolescentes quanto pela
prevalência do direito à saúde, é encargo que grava o poder público municipal.165

Recentemente, foi julgado pelo Superior Tribunal de Justiça o Mandado de Segurança nº


8.895/DF (Rel. Min. Eliana Calmon, 1ª Seção, publ. DJ 7.6.04, p. 151), que denegando-se a
ordem para compelir o Ministério da Saúde a financiar certo tratamento de saúde, em decisão
que despertou fundadas dúvidas quanto à manutenção da orientação que o STJ vinha
adotando:

ADMINISTRATIVO - SERVIÇO DE SAÚDE - TRATAMENTO NO EXTERIOR RETINOSE PIGMENTAR

1. Parecer técnico do Conselho Brasileiro de Oftalmologia desaconselha o tratamento da


“retinose pigmentar” no Centro Internacional de Retinoses Pigmentária em Cuba, o que levou
o Ministro da Saúde a baixar a Portaria 763, proibindo o financiamento do tratamento no
exterior pelo SUS.

2. Legalidade da proibição, pautada em critérios técnicos e científicos.

3. A Medicina social não pode desperdiçar recursos com tratamentos alternativos, sem
constatação quanto ao sucesso nos resultados.

4. Mandado de segurança denegado.

163
STJ: 2ª Turma, ROMS nº 6.371/RS, Rel. Min. Peçanha Martins, j. 1.4.96, e ROMS 6.6063/RS, Rel. Min.
Ari Pargendler, j. 1.12.97;1ª Turma, REsp nº 97.912/RS, Rel. Min. Garcia Vieira, j. 9.3.98. Mais
recentemente: TJPR, AI nº 163858800, 3ª C. Cív., Rel. Des. Ruy Fernando de Oliveira, j. 21.12.04;
TJMG, AI nº 1.0024.04.460584-8/001(1), Rel. Des. Gouvêa Rios, publ. 18.2.05.
164
Recentemente, nesta direção, TJRJ, Ap. nº 2001.001.27649, decisão do Des. Ademir Pimentel. De
tão pacificada a matéria, torna-se cada vez mais difícil encontrar julgados que a enfrentem, diante da
escassez de recursos interpostos; a apelação ora mencionada, inclusive, sequer chegou a ser admitida
pelo Relator que, invocando a Súmula 253 do STJ, também confirmou a sentença em sede de reexame
necessário: “I - A egrégia Corte Especial do STJ editou a Súmula 253 prescrevendo que ‘o artigo 557 do
código de Processo Civil que autoriza o relatar a decidir o recurso, alcança o reexame necessário’,
preceituando o mesmo Tribunal que a responsabilidade no fornecimento de medicamentos é entre
Estado e Município, podendo o relatar negar seguimento a recurso manifestamente improcedente; II -
Não discrepa do venerando entendimento o Supremo Tribunal Federal quanto à matéria ao consagrar
que incumbe ao Estado (gênero) proporcionar meios visando alcançar a saúde, especialmente quando
envolvida criança e adolescente. O Sistema único de saúde torna a responsabilidade linear alcançando
a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, razão porque descabe o chamamento do Estado
do Rio de Janeiro ou da União ao processo”.
165
MC 6515/RS, 1ª T, Rel. Min. José Delgado, DJ 20.10.2003, p. 174. Também referente a tratamento
anti-drogas, TJSP, Ap. Cív. nº 78.360-0 - Santos - Câmara Especial, Rel. Des. Luiz Tâmbara, 1.11.01. un.

62
O acórdão, submetido a uma leitura mais atenta, revela apenas aquilo que já se sabia: que os
tribunais brasileiros não aderiram, de modo ativista à tese de que qualquer pretensão, no
campo da saúde, deva ser acolhida. De modo responsável, tendo como balizamento estudos
do conselho brasileiro dedicado à especialização em foco, proferiu o Tribunal a decisão que se
mostrava a mais razoável, levando em conta, como não poderia deixar de ser, as limitações
financeiras do Estado brasileiro.

Já em 2005, o Presidente do STJ, Min. Edson Vidigal, concedeu medida suspensiva de liminar
para que a União não fosse compelida a custear tratamento de jovem, portador de linfoma de
Hodgkin, nos Estados Unidos da América. Após fazer tratamento no Hospital do Câncer de São
Paulo por mais de um ano, inclusive submetendo-se a um transplante autólogo de medula
óssea, os pais do menor propuseram ação visando a que a União financiasse o tratamento,
avaliado em quase trezentos mil dólares. Em sua assentou o Ministro que

além de o Sistema Único de Saúde oferecer condições seguras para a realização do


transplante, com equipes médicas e instalações hospitalares adequadas, haja vista encontrar-
se o Brasil em posição de destaque mundial no tocante aos procedimentos de transplantes de
órgãos, a Lei 8.080/90 restringe a utilização de serviços de saúde conveniados e contratados
ao território nacional.166

A bem da verdade, embora sem desconsiderar a imensa dificuldade de se acolher a pretensão


do menor quando se tem ciência da diferença que trezentos mil dólares fariam para os
usuários comuns do SUS, a fundamentação utilizada é inconsistente com os demais julgados
do STJ, que não se intimidam pelas restrições opostas pela Lei na 8.080/90 quando encontra-
se em jogo a vida humana. Ademais, segundo noticiaram os jornais, quando da prolação da
decisão, o índice de sucesso destes transplantes, quando realizados no Brasil, é de zero por
cento. Infelizmente para o doente, de todo o modo, também no exterior cirurgias como esta
não costumam ser sucedidas (segundo informavam os próprios jornais). Na realidade, melhor
andou o eminente Ministro quando, prosseguindo em seu raciocínio, admitiu que

A quantia extremamente vultosa necessária para a realização do transplante do autor da ação


no exterior, US$ 300.000,00 (trezentos mil dólares), poderia beneficiar um sem-número de
pacientes também necessitados de tratamento ... Tenho por configurada a potencialidade
lesiva à própria saúde pública e presente o efeito multiplicador, mormente porque aqui já
aportaram ações iguais, circunstância que pode acarretar irreversível lesão ao Erário”.

De fato, como tivemos ocasião de sustentar em trabalho anterior, certas restrições fáticas não
são superáveis pelo dever ser jurídico, ainda quando o bem jurídico em jogo possui status
fundamental. Contemplar a pretensão autoral, nesta hipótese, seria fechar os olhos,
insensivelmente, aos direitos fundamentais de milhares de outros brasileiros que,
necessitando de prestações na área da saúde, vêm diariamente tolhido seu acesso aos
remédios e tratamentos mais básicos.

No Estado do Rio de Janeiro, a proliferação de feitos relativos ao fornecimento de


medicamentos têm levado - como, de resto, em outras Unidades da Federação - a uma
reflexão mais aprofundada, por parte dos operadores do direito, com vistas à obtenção de
maior efetividade nas ações e coerência nos julgamentos. Neste sentido, vale mencionar as
iniciativas do Ministério Público que firmou, com Estado e Município, termo de ajustamento
de conduta (já no curso de ação civil pública) no qual restaram reafirmados os deveres de
cada ente, no tocante ao fornecimento de medicamentos. Desta forma, evita-se o
desnecessário entulhamento do Judiciário com causas virtualmente idênticas - muito embora
o cumprimento das obrigações definidas no termo, como também ocorre com os comandos
das decisões judiciais proferidas em ações individuais, revele uma dificuldade por vezes
desalentadora.

166
Fonte: site do Conselho Nacional de Justiça, 23.2.05; Suspensão de Liminar nº 90.

63
O Judiciário, que inicialmente via com desconfiança estas ações e, posteriormente, passou a
acolher seus pedidos sem perquirições mais aprofundadas, atualmente busca encontrar um
meio-termo que garanta a contemplação, precisamente, daquelas prestações vinculadas à
saúde dotadas de efetiva essencialidade. De acordo com esta orientação, algumas decisões
mais recentes, proferidas em primeira instância, têm deixado de acolher pedidos de
fornecimento de medicamentos para tratamento de acne 167 e fornecimento de complementos
dietéticos de eficácia cientificamente controvertida.

A superação do clássico obstáculo da discricionariedade exige análise da adequação do


tratamento requerido, à luz do conhecimento científico disponível; certificação acerca da
necessidade do mesmo, tendo em vista as circunstâncias concretas do autor das ações, e a
ponderação destes interesses com outros, de igual envergadura. Nesta linha, decisão
proferida pelo Tribunal paranaense julgou procedente ação de improbidade ajuizada contra
prefeito que custeou internação médica particular em hipótese para o qual encontrava-se
aparelhado o SUS. Causou especial má-impressão aos eminentes desembargadores o fato de
que o beneficiário deste tratamento, aparentemente financiado por razões humanitárias e
considerações de índole jusfundamental, ser irmão do prefeito e secretário municipal:

Constitui-se ato de improbidade administrativa o pagamento, com dinheiro público, de


internação médica particular (e não pelo SUS) daquele que, sendo irmão do prefeito e
secretário municipal, não era considerado pessoa carente, sendo clara a imoralidade dos atos
praticados.168

A despeito do maior cuidado que tem pautado as decisões em que o direito à saúde e a
discricionariedade administrativa se defrontam, o entendimento dos tribunais permanece,
indubitavelmente, tendendo ao acolhimento dos pedidos. 169

OUTROS JULGADOS

Fora do campo do direito à saúde, os tribunais brasileiros permanecem aderindo a um


conceito ampliado de discricionariedade, que pouca margem confere à implementação de
direitos sociais. Enquanto as prestações ligadas ao direito à saúde por vezes são acolhidas
com acórdãos fundados em considerações metapositivas ou em dispositivos constitucionais de
reduzida densidade normativa, na esfera da proteção a crianças e adolescentes os Tribunais,
em diversas ocasiões, deixam de acolher as pretensões deduzidas a despeito da existência de
normas legais, de regulamentos minuciosos e da consagração constitucional da absoluta
prioridade dos direitos em questão.

Emblemático é o seguinte aresto, proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que,
denegando pedido do Ministério Público para aparelhamento de creches e escolas, avalizou a
decisão de primeira instância, asseverando que

... as normas elencadas pelo Ministério Público Autor (artigos 30, V e VI, 205, 206, 208, I, III,
IV, VI e VII e parágrafos, 210, 211, 212, 213, 214, 227, parágrafos I e III, 244, todos da
167
No caso da acne - afecção dermatológica que pode provocar lesões bastante desagradáveis, mas que
não acarreta a morte do portador -, os dois acórdãos coligidos junto ao Tribunal de Justiça fluminense
filiaram-se ao entendimento de que o poder público deveria fornecer os medicamentos requeridos. No
agravo de instrumento nº 2003.002.09711, a 11ª Câmara Cível deu provimento ao recurso interposto
diante do indeferimento da liminar; já no julgamento da apelação cível nº 2003.001.07782, a 14ª
Câmara Cível negou provimento a apelo do Estado sucumbente.
168
TJPR, 1ª C.Cív., Apelação nº 128754300, Rel. Des. Péricles Bellusci de Batista Pereira, julg. em
2.9.03.
169
Recentemente, nesta direção: STJ, MS 8740/DF, Rel. Min. João Otávio de Noronha, 1ª Seção, julg.
em 26.2.03, DJ 9.2.04.

64
Constituição Federal e artigos lº a 5º, 53, 59, 70, 73, 88, 100, 101, I, I [síc], IV, VI e VII, 112,
VII, 148, IV, 259, parágrafo único, todos do Estatuto da Criança e do Adolescente,
embasadores de sua tese de intervenção do Estado-Juiz para coibir o Estado-Administrador
são, em verdade, normas programáticas, portanto, normas de aplicação diferida e não de
aplicação ou execução imediata como quer o Ministério Público-Autor. Mais do que comandos
valores, têm como destinatário primacial o Legislador (a quem cabe a ponderação do tempo e
dos meios em que venham a ser revestidas de plena eficácia, e nisto consiste a
discricionariedade).170

Como resta evidenciado, o v. acórdão parcialmente transcrito exigia que o Legislador


regulamentasse dispositivos meramente programáticos (...) da lei na 8.069/90 (Estatuto da
Criança e do Adolescente), que é precisamente uma norma legal, infraconstitucional, que
detalha com minúcias o que em detalhes já é tratado pelo texto constitucional. Evidencia-se
que o verdadeiro obstáculo à implementação destes direitos não se encontra no ordenamento
positivo, em alegadas dúvidas acerca da auto-aplicabilidade de seus comandos, mas em
considerações que extrapolam o texto da norma. Conforme frisamos em outra ocasião, o
acórdão em testilha deixa claro que

os verdadeiros óbices a efetividade dos direitos originários nada têm a ver, essencialmente,
com a originalidade do direito em questão, com o fato de aparecer previsto na Constituição e
não em normas infra-constitucionais. Diante de dispositivos legais vagos, ou que adentram a
matérias tradicionalmente afetas à discricionariedade do administrador (como ocorre com o
Estatuto), ou que implicam o aporte de somas consideráveis para a consecução de prestações
positivas estatais, a clássica objeção da falta de plena eficácia ressurge. Impende abandonar
o fetichismo anticonstitucional e encarar de frente estes obstáculos, que hoje em dia não são
apreciados com a profundidade devida dada a simplicidade existente em, meramente,
reiterar o já tantas vezes proclamado, rechaçado e reaproveitado mote da ineficácia
constitucional.171

Ainda na década de noventa, certos acórdãos, proferidos de forma pioneira pelo Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, já reconheciam a improcedência destes supostos
obstáculos normativos, em decisões que reconheceram a força normativa dos dispositivos
constitucionais e legais concernentes à proteção a crianças e adolescentes:

Ainda, descabe o argumento de que a norma do artigo 227 da CF/88 é de eficácia limitada ou
reduzida por falta de normatividade ulterior que lhe desenvolva a eficácia.

Como acertadamente aduziu o nobre agente ministerial, o Estatuto Menorista, ao longo de


vários dispositivos, disciplinou a matéria, não havendo necessidade de qualquer outro diploma
legal para lhe imprimir eficácia (artigos 7º, 11, 208, inciso VII e 213, parágrafos 1º e 2º). 172

No Superior Tribunal de Justiça, contudo, mantinha-se firme o entendimento restritivo no


tocante à implementação destes direitos:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FAZER IMPOSTA AO MUNICÍPIO. (...) há carência de ação,
pela impossibilidade jurídica de pedido, se esta visa obrigá-lo a realizar determinada obra. Ao
170
TJRJ, Ap. Cív. nº 12.495, 13ª C .Cív., Rel. Des. Maurício Gonçalves de Oliveira, julg. em 11.5.2000.
171
O Controle Judicial das Omissões Administrativas, cit., p. 360.
172
TJRS, 7ª C. Cív., Ap. Cív. nº 596.255.417; na mesma direção, Ap. Cív. nº 596.017.897, também da 7ª
C.Cív., Rel. Des. Sérgio Gischkow Pereira, acórdão no qual utilizou-se o próprio exemplo do Judiciário-
Administrador contra o argumento de que o Poder Executivo dispunha de recursos limitados para fazer
face à implementação e aparelhamento de programa de internação e sermi-liberdade para
adolescentes infratores: “apesar das notórias dificuldades orçamentárias, o Judiciário Gaúcho - sempre
às voltas com carências de juizes (...) providenciou a instalação desses juízos especializados, dotando-
os de juízes e funcionários, provendo cargos, cumprindo a. prioridade absoluta preconizada pela Magna
Carta”.

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Poder Executivo Municipal, na sua atuação constitucional discricionária, cumpre eleger,
segundo sua exclusiva conveniência e oportunidade, quais as obras que deve executar,
segundo prévia dotação orçamentária Remessa e apelo conhecidos e improvidos.173

Ao longo dos cinco últimos anos, o que se tem percebido, no tocante às ações relacionadas à
implementação de direitos de segunda e terceira geração, é um cuidado maior dos tribunais
na fundamentação dos julgados, quer acolham, quer rejeitem os pedidos. Aos poucos, o
singelo apelo à discricionariedade administrativa, com a amplitude clássica que não mais se
coaduna com as instâncias positivas e metapositivas de balizamento, vem deixando de figurar
nos acórdãos como óbice fatal para o reconhecimento destes direitos.

Nesta trilha, o Tribunal de Justiça gaúcho manteve sua orientação, majoritariamente


favorável à possibilidade de implementação de direitos prestacionais no campo menorista. 174

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, inicialmente refratário, aos poucos vem se tornando
mais receptivo às ações envolvendo direitos prestacionais na área de infância e juventude:

Ação civil pública. Legitimidade do Ministério Público, nos termos do art. 201, inciso V, da Lei
nº 8.069/90 para ajuizar ação civil pública em defesa dos interesses individuais, difusos ou
coletivos relativos à infância e à adolescência. Determinação do Estatuto da Criança e do
Adolescente para que a União, Estados ou Município adaptem seus órgãos para a efetiva
prestação assistencial à infância e juventude. Em conformidade a tal determinação está a
sentença, que impõe o fornecimento dos meios necessários ao Conselho Tutelar para o
exercício de suas tarefas, instalando-se e equipando-se dois abrigos para crianças totalmente
desassistidas e que se encontram em risco pessoal e social, por seu abandono na rua.
Obrigação de fazer, sob pena de multa diária, que há de incidir após o término do prazo, que
se inicia após o trânsito em julgado.175

O Judiciário paulista também tem perfilhado, na maioria de seus julgados mais recentes,
entendimento favorável à possibilidade de implementação judicial destes direitos:

ECA. Ação civil pública. Obrigação de fazer. Atendimento de crianças e adolescentes em


situação de risco em “casa Abrigo”. Decisão que indefere chamamento à lide do Estado e da
União. Direito fundamental a ser usufruído. Atendimento aos direitos fundamentais da criança
e do adolescente (CF, art. 227, e ECA, arts. 4º e 81, I). A norma do art. 227 da CF, de eficácia
limitada, foi integrada pela norma dos arts. 4º e 81,I, do ECA, e assim é aplicável. Obrigação
do Município prover o atendimento dos direitos fundamentais da criança e do adolescente.
Chamamento da União e do Estado de São Paulo. Inadmissibilidade. Recurso não provido. 176

Também na seara do direito ambiental o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo chegou a
pronunciar-se favoravelmente à pretensão, deduzida pelo Ministério Público, de que fosse
construído sistema de tratamento de efluentes, reconhecendo na prestação requerida medida
necessária à preservação da saúde da coletividade. Embora manifestando sua deferência para
173
ARAI 138.901/GO, 1ª Turma, Rel. Min. José Delgado, un., julg. em 15.9.97.
174
Reexames necessários nº 70008128829, 2ª C.Cív., Rel. Des. Dall'Agnol Júnior, julg. em 11.8.04, e nº
70006702112, 21ª C.Cív., Rel. Des. Baroni Borges, julg. em 19.5.04. No acórdão nº 70005893276,
proferido em sede de apelação e reexame necessário, a 22ª C.Cív., em decisão relatada pela eminente
Des. Maria Isabel de Azevedo Souza (julg. em 13.4.04), rechaçou pretensão, deduzida mediante ação
civil pública, para que fossem criados abrigos pelo Município de Porto Alegre, por entender que a
implementação postulada exigiria do Judiciário formular uma política de planejamento global,
atribuição que, por excelência, incumbe ao Poder Executivo.
175
148. Ap. Cív. nº 2000.001.09459, 1ª C. Cív., Des. Maria Augusta Vaz, julg. em 14.11.2000.
176
AI nº 83.523-0/4-00, C. Especial, Rel. Des. Álvaro Lazzarini, un., julg. 27.12.01. Na mesma direção,
AI nº 95.670-0/7-00, Rel. Des. Luís de Macedo, julg. em 21.10.02.

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com as prerrogativas discricionárias do Município, o Tribunal observou que a própria legislação
municipal havia eleito aquelas obras como prioritárias, permitindo ao Judiciário exercer o
controle da omissão administrativa.177

O Superior Tribunal de Justiça, no entanto, ainda não tem sido permeável, de maneira geral,
à possibilidade de implementação judicial de direitos prestacionais sociais, fora da matéria de
saúde. Com relação à construção de abrigos por Município do Estado do Paraná, teve aquele
tribunal superior a oportunidade de firmar que,

com fulcro no princípio da discricionariedade, a Municipalidade tem liberdade para, com a


finalidade de assegurar o interesse público, escolher onde devem ser aplicadas as verbas
orçamentárias e em quais obras deve investir. Não cabe, assim, ao Poder Judiciário interferir
nas prioridades orçamentárias do Município e determinar a construção de obra especificada.
Ainda que assim não fosse, entendeu a Corte de origem que o Município recorrido
“demonstrou não ter, no momento, condições para efetivar a obra pretendida, sem prejudicar
as demais atividades do Município”. No mesmo sentido, o r. Juízo de primeiro grau asseverou
que “a Prefeitura já destina parte considerável de sua verba orçamentária aos menores
carentes, não tendo condições de ampliar essa ajuda que, diga-se de passagem, é sua
atribuição e está sendo cumprida”.178

A matéria, portanto, ainda se encontra efervescente nos tribunais brasileiros. Também no que
tange à implementação dos direitos ligados à saúde assistiu-se, inicialmente, à remoção dos
óbices tradicionais pelas cortes locais, num primeiro momento, para só então verificar-se o
abrandamento da postura reticente do Superior Tribunal de Justiça. É provável que, a curto
prazo, novas decisões do STJ venham a reconhecer os limites que não apenas a legalidade,
mas também a moralidade, a razoabilidade e o respeito ao mínimo existencial impõem à
discricionariedade administrativa, na esfera dos direitos sociais de conteúdo positivo.

177
Ap. Cív. nº 185.158-5/0, 7º C. Dir. Públ., Rel. Des. Walter Swensson, julg. em 20.5.02, por maioria.
178
REsp nº 208893/PR, 2a Turma, Min. Franciulli Netto, publ. DJ 22.3.04, p. 263.

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