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DOI: 10.52028/RIHJ.v21.i33.ART04.

MG

A discricionariedade judicial na visão


do constitucionalismo garantista de
Luigi Ferrajoli

Flávio Pedron Quinaud


Doutor em Direito pela UFMG. Professor da PUC Minas e do IBMEC. Advogado. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/4259444603254002. Orcid: 0000-0003-4804-2886. E-mail:
qpedron@gmail.com.

Antônio Souza Lemos Júnior


Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu do Centro Universitário
Guanambi (UNIFG). Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Santa
Cruz (2003) e especialização em Pós-Graduação Lato Sensu – Direito Material e
Processual do Trabalho pela IUNI Educacional Unime, Itabuna (2008). Atualmente é Juiz
do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/2660219367817965. Orcid: 003-3697-2776. E-mail: antonio.lemos@trt5.jus.br.

Resumo: A discricionariedade judicial é um tema de grande importância acadêmica para a Teoria do


Direito. Por outro lado, trata-se de um conceito indiscutivelmente plurissignificativo, o que justifica a
necessidade de delimitação teórica. O presente trabalho pretende expor o entendimento de Luigi Ferrajoli
sobre o tema, inclusive demonstrando a existência dos espaços insuprimíveis de discricionariedade
judicial, sob a perceptiva do constitucionalismo garantista. Para tanto, especifica as dimensões do poder
judicial, a saber: o poder de indicação, de interpretação ou verificação jurídica; o poder de comprovação
jurídica ou de verificação fática; o poder de conotação ou de compreensão equitativa e o poder de
disposição ou de valoração ético-política.
Palavras-chave: Discricionariedade judicial. Positivismo jurídico. Constitucionalismo garantista.

Sumário: 1 Introdução – 2 Da discricionariedade de atuação e discricionariedade judicial. O Poder


Judiciário pode “não decidir”? – 3 O positivismo, os princípios como padrão normativo e a discri-
cionariedade judicial – 4 As dimensões do poder judicial: a insuprimível discricionariedade judicial –
5 Conclusão – Referências

1 Introdução
O estudo da discricionariedade judicial é de grande importância acadêmica,
trata-se de um elemento comum na obra de estudiosos do direito, como bem res-
saltado por Lenio Streck (2017, [s.p.]):

[...] da escola do Direito livre, passando pela jurisprudência dos interes-


ses, pelo normativismo kelseniano, pelo positivismo moderado de Hart,

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pelo positivismo pós-hartiano até chegar aos autores argumentativistas,


como Alexy, há um elemento comum: o fato de que, no momento da
decisão, sempre acaba sobrando um espaço ‘não tomado’ pela ‘razão’;
um espaço que, necessariamente, será preenchido pela vontade discri-
cionária do intérprete/juiz (não podemos esquecer que, nesse contexto,
vontade e discricionariedade são faces da mesma moeda).

Hans Kelsen, a partir de um olhar marcante e interno sobre a tradição do po-


sitivismo, pregava claramente a sua inevitabilidade, diante da impossibilidade de
a norma abstratamente prever todos os aspectos importantes para a sua aplica-
ção concreta. Nas suas palavras:

A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções


(sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sem-
pre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação,
de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em re-
lação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o
caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo
uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele
que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer.
(KELSEN, 1998, p. 236)

Muito embora seja possível pensar a discussão proposta a partir de refe-


renciais teóricos diversos, o que resultaria em divergências de abordagens e de
perspectivas, o intuito deste artigo, considerando o referencial teórico elegido, é
demonstrar a existência e os limites da discricionariedade judicial, sob a ótica do
constitucionalismo garantista de Luigi Ferrajoli. Almeja-se tornar mais preciso o re-
ferido conceito teórico que, para Karl Engisch, é o “mais plurissignificativo e mais
difícil da teoria do direito” (ENGISCH, 2001, p. 214), facilitando, assim, a com-
preensão da visão ferrajoliana sobre tão importante tema.
Dessa forma, muito embora, um dos autores explicitamente abrace uma pers-
pectiva de negação da discricionariedade, abraçando para tanto ostensivamente as
pesquisas de Ronald Dworkin, aqui, nos dispomos a fazer o exercício de pensar a
questão a partir de outros olhos, ou seja, do pensamento ferrajoliano.
Pretende-se, portanto, fomentar uma reflexão que possa funcionar como cha-
ve de leitura para o professor italiano.

2 Da discricionariedade de atuação e discricionariedade


judicial. O Poder Judiciário pode “não decidir”?
Com o intuito de delimitação do tema, oportuno se faz diferençar a discricio-
nariedade de atuação e a discricionariedade de juízo.

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A discricionariedade de atuação, relacionada ao juízo de conveniência e de


oportunidade, é própria do Poder Executivo (RAMOS, 2015, p. 128). Trata-se, nes-
se caso, de concessão de poder à autoridade para decidir quando, e por quais
meios, agir.
No caso do magistrado, não lhe é concedida a opção entre diferentes possi-
bilidades de decisão (FERRAJOLI; MANERO, 2012, p. 68),1 tampouco a opção de
deixar de agir (RAMOS, 2015),2 sendo sua discricionariedade limitada ao plano de
compreensão do significado das normas, que se identifica com a discricionarieda-
de de juízo (RAMOS, 2015, p. 128).3
Certo é, contudo, que saindo do campo estritamente jurídico, há importantes
vozes da ciência política que constatam o agir das Cortes Supremas baseado em
critérios de conveniência e de oportunidade, i.e., discricionariedade de atuação.
Movidas não por impulso ou por predileção ideológica – o que seria patológico –,
mas num juízo qualificado pela prudência (MENDES, 2008).4
A condução política, fundada na prudência, poderia se configurar, inclusive
em uma “não decisão”. Isso, para fins de amadurecimento social. Em verdade,
pode-se entender que “esse tempo de espera é valioso para que processos deli-
berativos sejam estimulados na sociedade, antes que se tome uma decisão rígida
de princípio” (MENDES, 2008, p. 111-112).5 Contudo, é de se ressaltar que a Cor-
te precisa ter excessiva “sensibilidade para o exercício dessa tarefa mais sutil de
não decidir, de saber se, quando e quanto decidir, perguntas inadmissíveis para
concepções rígidas da revisão judicial [judicial review]” (MENDES, 2008, p. 111).

1
Não se intenciona com esse argumento defender a teoria dworkiniana acerca da “única resposta correta”.
Aliás, esse é um ponto de conflito entre o pensamento de Luigi Ferrajoli e Ronald Dworkin. Luigi Ferrajoli
relaciona a referida tese ao objetivismo moral.
2
Aqui se pode falar da proibição do non liquet, prevista no art. 140 do Código de Processo Civil brasileiro.
Eis o dispositivo: “art. 140. O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do
ordenamento jurídico” (BRASIL, 2015). Elival Ramos in “Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos” faz um
interessante resgate histórico acerca da proibição do non liquet. Informa que o art. 3º do Capítulo V, do
Título III, da Constituição francesa de 3 de setembro de 1791 trazia a proibição expressa aos Tribunais de
se imiscuir nas atribuições do Poder Legislativo. A Lei 16, de 24 de agosto de 1790 estabelecia, inclusive,
a proibição direcionada ao juiz de decidir “quando a aplicação da lei suscitasse interpretação duvidosa,
cabendo-lhe aguardar a interpretação legislativa”. A proibição do non liquet foi inserida no ordenamento
jurídico francês apenas em 1804, com o Código Civil napoleônico, sendo expressamente estabelecido que
“o juiz que se recusar a julgar sob o pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei, poderá
ser processado como culpável de justiça negada” (RAMOS, 2015, p. 72).
3
Ainda sobre o assunto, cita-se trecho do voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Brito nos
autos do HC 91352-1 SP, ressaltando que a opção de não agir também é concedida ao Poder Legislativo,
mas sempre negada ao Poder Judiciário: “se ao Legislativo não se pode impor a obrigação de legislar, ao
Judiciário se impõe, sim, a obrigação de julgar. É proibido, no âmbito do Judiciário, a formulação daquele juízo
de non liquet, de não resolver a causa. O juiz de qualquer instância, o Tribunal de qualquer natureza tem que
solver a questão, liquidar a questão para corresponder a esse prestígio máximo que a Constituição lhes deu
ao dizer que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL, 2008).
4
Neste sentido, Conrado Hübner Mendes fazendo uso dos ensinamentos de Alexander Bickel.
5
Aqui se pode entender que Conrado Hübner Mendes faz menção às lições de Dworkin, dividindo decisões de
princípios, ligados à atividade judicial, e questões de políticas, próprias dos poderes Legislativo e Executivo.
Sobre o tema, vide: DWORKIN, 2005, p. 26. Ver ainda: PEDRON, OMMATI, 2022.

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3 O positivismo, os princípios como padrão normativo e a


discricionariedade judicial
Autores há que defendem a tese de que o positivismo jurídico,6 ao se descu-
rar da aplicação de princípios, por supostamente entender o direito composto ex-
clusivamente por regras, acaba por fomentar a discricionariedade judicial.
Lenio Streck defende que é “preciso compreender a discricionariedade como
sendo o poder arbitrário ‘delegado’ em favor do juiz para ‘preencher’ os espaços
da ‘zona de penumbra’ do modelo de regras” (STRECK, 2017b, p.70).
Por sua vez, Ronald Dworkin, ao estabelecer os “preceitos chaves” que – em
sua visão, definem o positivismo jurídico –, no 2º preceito, relaciona a suposta defi-
ciência do positivismo na consideração dos princípios à discricionariedade da auto-
ridade pública responsável pela aplicação do direito. Eis o citado “preceito chave”:

(b) O conjunto dessas regras jurídicas é coextensivo com o ‘direito’,


de modo que se o caso de alguma pessoa não estiver claramente co-
berto por uma regra dessas (porque não existe nenhuma que pareça
apropriada ou porque as que parecem apropriadas são vagas ou por
alguma outra razão), então esse caso não pode ser decidido mediante
a ‘a aplicação do direito'. Ele deve ser decidido por alguma autoridade
pública, como um juiz, ‘exercendo o seu discernimento pessoal’, o que
significa ir além do direito na busca por algum outro tipo de padrão que
o oriente na confecção de nova regra jurídica ou na complementação
de uma regra já existente. (DWORKIN, 2002, p. 28)

Fala-se em “suposta deficiência na consideração dos princípios”, visto que


os positivistas, mesmo aqueles considerados hard positivist,7 não acatam pusila-
nimemente essa crítica dworkiniana.8
Em verdade, afirmam que Ronald Dworkin elaborou uma caricatura – quase
como a metáfora do espantalho – na qual retratou de maneira limitada o que seria

6
É importante registrar que Luigi Ferrajoli autodeclara-se filado ao positivismo jurídico. Em verdade, Luigi
Ferrajoli prega o positivismo jurídico crítico em contraponto ao que denomina positivismo dogmático. Combate
o dogma da obrigação do juiz de aplicar as leis vigentes, ainda que inválidas. Como leis inválidas, na sua
lição devem ser entendidas aquelas que se choquem, no aspecto substancial, com os valores morais
positivados nas Cartas Constitucionais. O que significa de fato que uma lei existe ou está em vigor? Significa
apenas que está expressa por um texto legislativo não anulado e pode ser, portanto, aplicada mediante
providências válidas relativamente a ela. Mas isto não tolhe que ela possa ainda não ser aplicada, toda
vez que o juiz a considere inválida. Em tal caso dever-se-ia mesmo dizer que estes devem não aplicá-la,
se não se tratasse de um dever puramente potestativo, isto é, dependente do juízo de invalidade por ele
mesmo operado. Em todo caso, já que os juízes têm o poder de interpretar as leis e de suspender-lhes a
aplicação se as consideram inválidas por contraste à Constituição, não se pode dizer, a rigor, que tenham
a obrigação jurídica de aplicá-las (FERRAJOLI, 2002, p. 701).
7
São os chamados positivistas jurídicos exclusivos ou exclusivistas.
8
Destacamos que a posição de Dworkin não é o objeto de investigação do presente texto, muito embora
seja um autor de enorme relevância para a Teoria do Direito atual.

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o entendimento dos positivistas acerca dos padrões normativos vinculantes, restrin-


gindo-os às regras. Cita-se como exemplo, a posição crítica de Joseph Raz que, se-
gundo argumenta, é baseada nos preceitos definidos por John Austin e Herbert Hart:

Professor Dworkin is primarily concerned to argue that there are legally


binding principles. But this has never been denied by anyone, least of
all by the positivists. Indeed, Austin could not have denied that some
principles are legally binding while remaining true to his theory of law.
The most fundamental tenet of his theory is that the commands of a
sovereign are law, and there is nothing to prevent a sovereign from
commanding that a principle shall be binding. Professor Dworkin’s
mistake lies in assuming that when Austin was talking about
commands he was referring to what Professor Dworkin calls rules. But
this is not the case. Neither does Hart use ‘rules' in the same sense
as Professor Dworkin. By ‘rules’ he means what Professor Dworkin
seems to mean by ‘standards’, namely rules, principles or any other
type of norm (whether legal or social). (RAZ, 1972, p. 845)

Frise-se, por outro lado, que o entendimento acerca da inevitabilidade da dis-


cricionariedade judicial não é exclusivo do positivismo jurídico. Lenio Streck, apon-
tando brevemente a diferença entre a teoria de Robert Alexy e Ronald Dworkin sobre
o tema, leciona que:

Não obstante Dworkin e Alexy serem considerados como não positi-


vistas, os dois possuem percepções diferentes acerca da discricio-
nariedade judicial. Enquanto para o primeiro é algo que pode e deve
ser evitado, para o segundo seria algo inexorável que pode ser ao
menos minorado por intermédio de uma racionalidade do discurso.
Salta aos olhos como concepções tão distintas compõem um mesmo
movimento, o que me faz continuar a indagar: O que é isto – o não
positivismo? Uma continuidade (sofisticada) ou uma ruptura com o
Positivismo Jurídico? (STRECK, 2019, p. 53-54)

É ainda importante pontuar que o positivismo jurídico – ao menos, na concep-


ção dada pelo constitucionalismo garantista – não aposta na discricionariedade ju-
dicial, assim como acidamente aponta Lenio Streck (2013), mas apenas admite a
sua inevitabilidade em certa dimensão. Isso, porque, apesar de admitir a existên-
cia da discricionariedade judicial, a teoria garantista preconiza a redução do Poder
Estatal em todas as esferas, o que gera, consequentemente, a minoração, ao má-
ximo, do referido espaço do poder judicial.
Em verdade, com respaldo em André Karam Trindade, se pode claramente
defender que a premissa do constitucionalismo garantista é a “antítese entre li-
berdade e poder, [...] sobre a qual se constrói o estado de direito, cujo fundamen-
to e finalidade são a tutela das liberdades do cidadão frente às várias formas de
exercício arbitrário do poder” (TRINDADE, 2019, p. 79).

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4 As dimensões do poder judicial: a insuprimível


discricionariedade judicial
O garantismo ferrajoliano admite a existência de espaços insuprimíveis de dis-
cricionariedade judicial que decorrem não apenas da má formulação das leis. O que,
aliás, no Brasil, é comum. Leis feitas, consoante afirma J. J. Calmon de Passos,
para regular a sociedade, mas sem a efetiva participação do povo (PASSOS, 2012).
E não é só. No Brasil, é comum leis com demasiada atecnia, repletas de
termos vagos ou, pior, que permitem ou até mesmo exigem excessiva valoração
pessoal do intérprete.
Mas, pondo afora a atecnia legislativa, é evidente que a imprecisão e a li-
mitação natural das palavras, a incapacidade das normas em regular todas as si-
tuações suscetíveis de um potencial conflito e, ainda, de normatizarem todas as
hipóteses e circunstâncias fáticas que, de algum modo, são importantes para so-
lução jurídica, torna insuperável certo grau de discricionariedade judicial.
Trata-se da inelutável “evidência de que nenhum legislador humano pode
prever todas as hipóteses e circunstâncias futuras” (ALMEIDA, 2013, p. 57). Em
tal situação fático-jurídica, o magistrado, que não dispõe da discricionariedade de
atuação, assim como já explanado acima, deve necessariamente decidir, sem,
contudo, contar com “terra normativa por debaixo de seus pés” (ALMEIDA, 2012,
p. 57). Eis que aqui surge a inevitável discricionariedade judicial.
Luigi Ferrajoli defende que é impossível se vislumbrar o juiz como uma máquina
que tem como matéria-prima litígios e fatos e, como produto, sentenças. A ideia de
um silogismo perfeito é verdadeiramente uma ilusão metafísica (FERRAJOLI, 2012,
p. 33).9 Em verdade, esta constatação confirma a pregação ferrajoliana no sentido
de que o garantismo, nos parâmetros perfeitos veiculados em sua teoria, tem o de-
feito fundamental de ser um ideal utópico a ser meramente perseguido, posto que
nunca alcançado (FERRAJOLI, 2012).
Luigi Ferrajoli indica quatro dimensões de poder judicial: poder de indicação,
de interpretação ou verificação jurídica; poder de comprovação jurídica ou de verifi-
cação fática; poder de conotação ou de compreensão equitativa e o poder de dis-
posição ou de valoração ético-política.
Fala-se em poder de indicação ou qualificação jurídica na atividade de verifi-
cação dos pressupostos da hipótese legal, que, segundo o autor analisado, nunca
é absolutamente certa e objetiva. Por mais técnico que seja o intérprete em sua

9
Dimitri Dimoulis tem pregação semelhante: “Os positivistas nunca tiveram o irrefreado otimismo de
considerar que as leis resolvem os problemas de forma mecânica, tornando o juiz uma espécie de máquina
de subsunção, que atuaria de forma previsível, guiado pela certeza normativa, tal como ocorre com uma
máquina programada a dar respostas fixas e preestabelecidas” (DIMOULIS, 2018, p. 186).

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atividade, isso sempre desembocará na eleição de um enquadramento dos fatos


às opções previstas na lei. No caso da atividade judicial, essa eleição, com poder
de mando, gerará, por consequência, em certa medida, um inevitável grau de dis-
cricionariedade judicial.
É importante ressaltar, por outro lado, que, por mais técnica que seja a nor-
ma, sempre haverá espaço para certa discricionariedade, justamente em razão da
irresolúvel imprecisão das palavras. Karl Engisch aponta que no direito são muito
raros os conceitos absolutamente determinados (ENGISCH, 2001).
Umberto Eco, por sua vez, apesar de ser um crítico daquilo que intitulou de
“superinterpretação”, aponta como impossível a pretensão de se atribuir sentido
único ao texto. Indica, em verdade, que o texto permite inúmeras interconexões
vindas de seu leitor; que a linguagem não produz significados unívocos; que o in-
divíduo não consegue extrair qualquer significado transcendental da linguagem em
razão das duas conclusões anteriores e, por fim, afirma que um texto que preten-
de revelar algo unívoco vai acabar se contradizendo (ECO, 2005, p. 45). Em suas
palavras, é um “universo abortado” (ECO, 2005, p. 45). Registre-se, por fidelida-
de à obra do autor, que Umberto Eco não admite qualquer interpretação, critican-
do, como afirmado, os excessos por ele denominados de “superinterpretação”.
Por este motivo, afirma-se que o intérprete não concede um significado único,
mas apenas constrói exemplos de usos da linguagem ou versões de significado
(ÁVILA, 2004). É importante registrar, contudo, que não há uma liberdade absolu-
ta, visto que, em verdade, o intérprete reconstrói o sentido não podendo ignorar a
existência de significados incorporados ao uso linguístico inerentes à comunidade
(ÁVILA, 2004). Por este motivo, o aplicador do direito, se deparando com normas
que contenham expressões tais como “provisória” e “ampla”, que efetivamente
detém significações indeterminadas, não pode ignorar o inelutável sentido previa-
mente construído de tais palavras, dando sentido, p. ex., de definitividade à pri-
meira expressão e de restrição à segunda (ECO, 2005).
Outro espaço insuperável de discricionariedade é a parcela da decisão que
emite a declaração de comprovação do fato a ser enquadrado na hipótese legal.
Certo é que o exercício de um contraditório comparticipativo, no qual as partes opi-
nam e também influenciam na formação do plexo probatório, tema brilhantemen-
te exposto por Dierle José Coelho Nunes, em “Processo jurisdicional democrático
– Uma análise crítica das reformas processuais”, mostra efetivamente uma redu-
ção das margens de escolha (NUNES, 2009).10 Em verdade, a efetiva participação

10
Eis a constatação do autor: “a submissão de todos os aspectos potencialmente relevantes da decisão ao
contraditório apresenta-se como uma manifestação da percepção de que o poder do juiz no processo não
é absoluto (incontrolável protagonismo judicial), em face de sua falibilidade e do fato de que a discussão
será muito mais adequada (e legítima) se todos souberem os aspectos mais importantes da demanda”
(NUNES, 2009, p. 231).

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das partes na construção do material probatório, não apenas cumprindo o ônus de


comprovar aquilo que foi indicado pelo Juízo, mas influindo na eleição do plexo fáti-
co que é importante para solução do litígio, sem dúvida alguma, reduz a discriciona-
riedade judicial. E mais, quanto mais estimulada a participação das partes, “mais
justa será a solução encontrada ao caso concreto, de modo que a participação não
somente vem a ser indicativa da justa possibilidade de manifestação, mas configura
também uma contribuição para a solução justa” (ESPINDOLA; SANTOS, 2011, p. 163).
Sobre a dimensão de poder relativa à declaração de comprovação do fato a
ser enquadrado na hipótese legal, um assunto de grande importância é a análise
da existência ou não do “livre convencimento motivado” do juiz. Esse tema é obje-
to de interessante debate teórico. Especialmente, após a promulgação do Código
de Processo Civil brasileiro de 2015.
Crítico voraz do “livre convencimento motivado”, o professor Lenio Streck,
em diversos discursos, assume-se como autor de sugestões importantes na ela-
boração do Código de Processo Civil de 2015, que acabariam por suprimir o ter-
mo “livremente” do projeto de lei.11 Eis o trecho das sugestões dadas por Lenio
Streck e acatadas in totum pelo deputado federal Paulo Teixeira, relator do projeto
de criação do atual Código de Processo Civil brasileiro:

[...] embora historicamente os Códigos Processuais estejam basea-


dos no livre convencimento e na livre apreciação judicial, não é mais
possível, em plena democracia, continuar transferindo a resolução
dos casos complexos em favor da apreciação subjetiva dos juízes
e tribunais. Na medida em que o Projeto passou a adotar o policen-
trismo e coparticipação no processo, fica evidente que a abordagem
da estrutura do Projeto passou a poder ser lida como um sistema
não mais centrado na figura do juiz. As partes assumem especial
relevância. Eis o casamento perfeito chamado ‘coparticipação’, com
pitadas fortes do policentrismo. E o corolário disso é a retirada do
‘livre convencimento’. O livre convencimento se justificava em face
da necessidade de superação da prova tarifada. Filosoficamente, o
abandono da fórmula do livre convencimento ou da livre apreciação
da prova é corolário do paradigma da intersubjetividade, cuja compre-
ensão é indispensável em tempos de democracia e de autonomia do
direito. Dessa forma, a invocação do livre convencimento por parte de

11
O referido termo constava dos arts. 379 (“O juiz apreciará livremente a prova constante dos autos,
independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de
seu convencimento”), art. 401 (“A confissão extrajudicial será livremente apreciada pelo juiz”) e 490 (“A
segunda perícia não substitui a primeira, cabendo ao juiz apreciar livremente o valor de uma e outra”).
Com a sugestão dada por Lenio Streck e acatada pelo relator do projeto de lei, Deputado Federal Paulo
Teixeira, o termo “livremente” foi retirado do texto legal (STRECK, 2015, p. 33-34). Flávio Quinaud Pedron
apresenta-se também como um importante crítico ao livre convencimento do magistrado, veiculando
argumentos contrários à tese da existência de tal princípio com substrato na teoria dworkiniana do direito
como integridade (PEDRON, 2017).

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juízes e tribunais acarretará, a toda evidência, a nulidade da decisão.


(STRECK, 2015, p. 35)

São extremamente louváveis as supostas intervenções de Lenio Streck que


acabaram por modificar o texto do projeto de lei em comento. As mesmas foram
importantes, inclusive, para fins de inserção no texto legal de termos mais demo-
cráticos, o que tem um efeito muito importante na compreensão sistêmica do or-
denamento jurídico. Aliás, o expurgo de termos vagos do texto legal, ou que de
alguma forma transpareça a concessão de um poder sem limites ao Estado, vai
ao encontro da tese garantista, consoante já demonstrado.
Contudo, mesmo sendo aplicado o contraditório comparticipativo e mesmo
considerando a exclusão do termo “livremente” do texto legal, certo grau de dis-
cricionariedade sempre existirá na atividade jurisdicional de declarar provado ou
não determinado fato.
A prova dos fatos relevantes não é uma realidade meramente de cognição,
constitui, em verdade, sempre a conclusão mais ou menos provável de um proces-
so indutivo (FERRAJOLI, 2012). Tem-se, assim, indiscutivelmente um ato prático
de escolha das hipóteses explicativas expostas pelas partes (FERRAJOLI, 2012)
ou cognoscíveis ex officio.
André Nicolitt e Lilian Castro de Oliveira fazem um contraponto teórico impor-
tante em relação ao tema do livre convencimento motivado, afirmando que haveria
nas críticas já expostas – e os argumentos de Lenio Streck são expressamente ana-
lisados no artigo científico confeccionado pelos citados autores – certo erro metodo-
lógico (NICOLITT; OLIVEIRA, 2018, p. 115). Entendem que os críticos à existência
do livre convencimento do magistrado enquadram tal princípio dentro da dimen-
são denominada por Luigi Ferrajoli de poder de indicação ou de verificação jurídica
quando, em verdade, deveria ser enquadrado dentro da dimensão denominada de
poder de comprovação ou verificação fática. Explicam que existem dois momen-
tos no processo decisório. Um, de interpretação do direito ou verificação jurídica
e, outro, de verificação fática, com a declaração da comprovação respectiva. De-
fendem que o princípio do livre convencimento do magistrado está historicamente
relacionado ao momento de verificação fática (NICOLITT; OLIVEIRA, 2018). Assim,
na construção teórica para interpretação do direito (verificação jurídica), não have-
ria lugar para o livre convencimento. Cita-se trecho esclarecedor:

[...] as censuras que se embasam em teorias da decisão se apoiam


em um equívoco de não diferenciar os dois momentos da decisão
judicial, a verificação fática e a verificação jurídica. Em sua obra Di-
reito e Razão, Ferrajoli afirma existir quatro aspectos ou dimensões
do poder do juiz sendo eles o poder de denotação ou de verificação
jurídica, o poder de comprovação probatória ou de verificação fática,

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FLÁVIO PEDRON QUINAUD, ANTôNIO SOUZA LEMOS JúNIOR

o poder de conotação ou de discernimento equitativo e o poder de


disposição ou de valoração ético-política. A questão afeta ao livre
convencimento está ligada à verificação fática, que não decorre de
uma técnica legislativa, e sim de uma técnica judicial, como tam-
bém não depende da semântica da linguagem legal, mas da judicial.
(NICOLITT; OLIVEIRA, p. 115)

Afirmam, outrossim, analisando o Código de Processo Civil, que ainda perma-


nece uma insuprimível parcela de discricionariedade judicial relacionada ao poder
de verificação fática, o que não teria sido expurgado pela retirada do termo “livre-
mente” do texto legal. Citam, como exemplo, os artigos 371, 372 e 480, §3º do
mesmo diploma (NICOLITT; OLIVEIRA, p. 117). Eis os dispositivos:

Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independen-


temente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as
razões da formação de seu convencimento.
Art. 372. O juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro
processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado
o contraditório.

Art. 480. O juiz determinará, de ofício ou a requerimento da parte, a


realização de nova perícia quando a matéria não estiver suficiente-
mente esclarecida.
§1º A segunda perícia tem por objeto os mesmos fatos sobre os quais
recaiu a primeira e destina-se a corrigir eventual omissão ou inexatidão
dos resultados a que esta conduziu.
§2º A segunda perícia rege-se pelas disposições estabelecidas para
a primeira.
§3º A segunda perícia não substitui a primeira, cabendo ao juiz apre-
ciar o valor de uma e de outra. (BRASIL, 2015)

O princípio em questão não concede liberdade ao magistrado para interpretar


o direito da forma que pretenda, sem a construção de um raciocínio argumentativo
baseado estritamente no ordenamento jurídico, até porque, consoante demonstra-
do, não se relaciona com este momento decisório. Por outro lado, não concede ao
juiz o poder de declarar como comprovado um determinado fato por mera subjeti-
vidade. Por este motivo, caso a decisão seja carente de suficiente fundamentação
“não é ao livre convencimento que se deve esta falha, e sim ao arbítrio do julgador,
que não era autorizado ao tempo do Código de Processo Civil de 1973, tampouco
o será no CPC/2015” (NICOLITT; OLIVEIRA, 2018, p. 116).
Assim, segundo a perspectiva garantista, melhor contribuição haveria para re-
dução da discricionariedade judicial quanto à declaração de comprovação do fato,
caso fossem estabelecidos no ordenamento “standards” de prova mais objetivos
(NICOLITT; OLIVEIRA, p. 117).

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A DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL NA VISãO DO CONSTITUCIONALISMO GARANTISTA DE LUIGI FERRAJOLI

Por outro lado, elencada como terceira dimensão do poder judicial tem-se a
circunstância de que, além de decidir pela comprovação ou não de determinado
fato a ser inserido dentro da hipótese legal, o juiz deve conotar o plexo fático di-
ferindo-o dos demais, mesmo que abstratamente pertencente ao mesmo gênero
jurídico. Isso, porque não há possibilidade de a lei abstratamente prever toda a ri-
queza fática que ocorre no mundo real.
Nesse ponto, e trazendo especificamente para o campo penal, relata Luigi
Ferrajoli que esse poder de conotação pode servir, inclusive, para reduzir a inter-
venção estatal sobre a liberdade individual, atenuando a pena imposta diante da
comprovação de particularidades do caso:

Tais conotações nunca são legal e totalmente predeterminadas, pois


em grande parte vêm remetidas à eqüidade do juiz, que, segundo
mostrarei, é uma função cognitiva, que sem dúvida inclui uma ativida-
de valorativa. No plano axiológico, ademais, o modelo penal garantis-
ta, ao ter a função de delimitar o poder punitivo do Estado mediante
a exclusão das punições extra ou ultra legem, não é em absoluto in-
compatível com a presença de momentos valorativos, quando estes,
em vez de se dirigirem a punir o réu para além dos delitos cometidos,
servem para excluir sua responsabilidade ou para atenuar as penas
segundo as específicas e particulares circunstâncias nas quais os
fatos comprovados se tenham verificado. (FERRAJOLI, 2012a, p. 34)

Em quarto lugar se encontra o poder de disposição que é adjetivado por Luigi


Ferrajoli claramente como patológico. Muitas vezes, fruto do mau exercício das três
anteriores dimensões do poder judicial. Há aqui lugar para valorações, subjetivi-
dades excessivas e ativismo judicial, o que é inaceitável para a teoria garantista.
Essa dimensão de poder surge da atecnia legislativa, em grande medida,
quando há excessivos espaços para o magistrado exercer valorações pessoais, fe-
rindo, pois, a garantia da necessidade de legalidade estrita (STRECK, 2017),12 e
surge também quando o magistrado fere o dever da estrita juridicidade, veiculando

12
Verificar-se-á, mais à frente, que um dos elementos de discordância entre o constitucionalismo garantista e
constitucionalismo principialista é a opinião acerca da vagueza das normas constitucionais, com o constitu-
cionalismo garantista a condenando e o principialismo entendendo que, em certa medida, tal imprecisão é
salutar e recomendável. Afirma Lenio Streck que “Ferrajoli procura garantir o controle da decisão judicial: a
partir de uma linguagem rigorosa” (STRECK, 2017, [s.p.]). No mesmo sentido, André Karam Trindade para
quem “Ferrajoli evidencia a necessidade de se desenvolverem técnicas de formulação legislativa capazes de
garantir uma linguagem mais simples, mais clara e mais precisa” (TRINDADE, 2019, p. 83). A relação entre
maior vagueza legislativa e majoração de discricionariedade judicial também foi feita por Mauro Cappelletti:
“obviamente, nessas áreas abertas à atividade dos juízes haverá, em regra, espaço para mais elevado grau
de discricionariedade e, assim, de criatividade, pela simples razão de que quanto mais vaga a lei e mais
imprecisos os elementos do direito, mais amplo se torna também o espaço deixado à discricionariedade
nas decisões judiciárias. Esta é, portanto, poderosa causa da acentuação que, em nossa época, teve o
ativismo, o dinamismo, e, enfim, a criatividade dos juízes” (CAPPELLETTI, 1993, p. 42).

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FLÁVIO PEDRON QUINAUD, ANTôNIO SOUZA LEMOS JúNIOR

em sua decisão valorações não verificáveis empiricamente,13 extrapolando o po-


der/dever de decidir e agindo como se fosse dado a ele próprio o direito de reali-
zar escolhas de acordo exclusivamente com suas opções meramente subjetivas
(morais, políticas etc.). Luigi Ferrajoli não caracteriza tal dimensão de poder como
uma jurisdição salutar:

Inversamente, o poder de disposição é sempre o produto de carên-


cias ou imperfeições do sistema e como tal é patológico e está em
contradição com a natureza da jurisdição. Seu exercício não pressu-
põe motivação cognitiva, mas apenas opções e/ou juízos de valor
dos quais não é possível qualquer caracterização semântica, mas
apenas caracterizações pragmáticas, ligadas à obrigação da decisão.
Propriamente, aqui não há sequer juris-dictio, isto é, denotação do
que é conotado pela lei, mas simplesmente dictum, não baseado nos
três silogismos nos quais anteriormente havia decomposto o raciocí-
nio judicial, mas unicamente no poder que, por isso, tenho chamado
de ‘disposição’. (FERRAJOLI, 2012a, p. 133)

Verifica-se, pois, que o constitucionalismo garantista considera iníquo não só


o obtuso magistrado que ignora as conotações específicas de cada caso. Conde-
na, na mesma medida, aquele juiz que se utiliza de seus valores morais subjetivos
no julgamento (FERRAJOLI, 2012).
Na obra “Direito e razão: teoria do garantismo penal”, Luigi Ferrajoli discorreu
com mais vagar e profundidade acerca dessas dimensões do poder judicial, porém,
instado por Lenio Streck, em um douto debate veiculado em “Garantismo, herme-
nêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli”, a lição exposta
é de grande valia, inclusive por não se restringir ao direito penal:

O primeiro espaço, aberto à interpretação, depende da semântica da


linguagem legal: será mais ou menos amplo, de acordo com o grau
de vagueza e de imprecisão de tal linguagem; e poderá – e, portanto,
deverá – ser reduzido através de uma formulação mais taxativa das

13
Aqui se observa a relação entre os ensinamentos sobre a discricionariedade e a tese do não cognitivismo
moral. O constitucionalismo garantista, ao negar a tese semântica do objetivismo moral, entende que uma
suposta moral objetiva não pode ser utilizável como critério de validade das normas, justamente porque a
mesma não pode ser verificável ou falseável. Eis a lição de Luigi Ferrajoli sobre o assunto: “La diferencia de
los juicios de valor respecto de las tesis de la ciencia no consiste por ello en el hecho de que los primeros
sean, como en la objeción que tú rechazas, «altamente controvertibles y controvertidos», a diferencia de las
tesis de la ciencia, que no lo son. Consiste, a mi parecer, en la circunstancia exactamente opuesta: en el
hecho de que los juicios de valor no son ni verificables ni refutables empíricamente, es decir, con referencia
a lo que existe o sucede, a diferencia de las tesis de la ciencia que, por el contrario, sí lo son. Y esto se
debe simplemente a que los juicios de valor no son ni verdaderos ni falsos, dado que no consisten en
aserciones, sino en prescripciones, como tales argumentables con principios y juicios a su vez de valor, ni
verdaderos ni falsos. Por esto, si, por el contrario, juzgamos que las tesis éticas son verdaderas o falsas,
y evidentemente pensamos que son verdaderas las que sostenemos nosotros, no podemos tolerar, por
falsas, las tesis opuestas que no compartimo” FERRAJOLI, MANERO, 2012, p. 66).

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A DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL NA VISãO DO CONSTITUCIONALISMO GARANTISTA DE LUIGI FERRAJOLI

fattispecie normativas em atuação daquele que chamei ‘princípio da


estrita legalidade’ [...]. Mas alguma margem de discussão das inter-
pretações é insuprimível, sendo a linguagem legal uma linguagem
comum, e não uma linguagem formalizada.
O segundo espaço, aberto à valoração das provas, depende do caráter
indutivo do raciocínio probatório e do caráter probabilístico, e não abso-
luto, de qualquer verdade empírica; e poderá – e, portanto, deverá – ser
reduzido mediante as garantias processuais, que outra coisa não são
que a tradução em normas jurídicas das ementares regras epistêmicas
que presidem todo e qualquer raciocínio indutivo: o ônus acusatório
da prova, o contraditório, a não autoincriminação, a publicidade e a
oralidade do juízo e a independência dos juízes. Mas uma certeza
objetiva é impossível e, por isto, exige-se sempre, na valoração das
provas, aquele mesmo que fraco substituto da certeza objetiva que
é o livre convencimento do juiz ‘para além de toda dúvida razoável’.
O terceiro espaço, aberto à compreensão equitativa, está ligado ao
diferente estatuto – um universal, outro singular – das fattispecie nor-
mativas abstratas e das fattispecie normativas concretas; e, portanto,
é igualmente irredutível, eis que o juiz não julga os fatos em abstrato,
mas sim em concreto; não tem, diante de si, um tipo ou uma figura,
por exemplo, de crime, mas um determinado fato delituoso, irrepetível
e irredutivelmente diverso de qualquer outro, mesmo se subsumível
na mesma fattispecie normativa. (FERRAJOLI, 2012a, p. 248)

Como exposto, as três primeiras dimensões do poder judicial (poder de indi-


cação, de interpretação ou verificação jurídica; poder de comprovação jurídica ou
de verificação fática; e poder de conotação ou de compreensão equitativa), são
efetivamente insupríveis, apesar de reduzíveis. Aliás, essas dimensões do poder
judicial, que Luigi Ferrajoli denomina poder de cognição, são, até certa medida,
aceitáveis e não tóxicas ao sistema garantista.
O poder de disposição ou de valoração ético-política, contudo, consoante
afirmado, é patológico, posto que surge justamente do mau exercício das demais
dimensões de poder, e deve sempre ser evitado (FERRAJOLI, 2002, p. 34). Luigi
Ferrajoli deixa claro que o poder de disposição surge, inclusive, quando as três pri-
meiras dimensões deixam o limiar do aceitável ou não evitável.
Contudo, um ponto ainda merece ser problematizado. O constitucionalismo
garantista não ignora a incorporação de valores morais nas Constituições contem-
porâneas, o que ocorre pela positivação de princípios. Em verdade, tem por salutar
tal circunstância. Por outro lado, uma vez incorporados no ordenamento jurídico,
entende que tais valores devem, contingencialmente, servir como critério de vali-
dade das normas, constituindo verdadeiramente um sistema de limites e vínculos
para produção/controle das normas infraconstitucionais.
Nesse cenário, uma indagação emerge: como analisar a validade de normas
infraconstitucionais, fazendo uso de indiscutíveis valores morais, mesmo que in-
corporados/positivados?

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FLÁVIO PEDRON QUINAUD, ANTôNIO SOUZA LEMOS JúNIOR

Essa indagação talvez seja a grande questão a ser enfrentada no presente


tópico, posto que, consoante ensina Ronald Dworkin, o conceito de discricionarie-
dade é sempre relativo (DWORKIN, 2002). Reconhecido pela frequente utilização
de metáforas, Ronald Dworkin compara a discricionariedade ao espaço vazio de
uma rosca, defendendo que só se pode definir que espaço é esse – e se existe –
estabelecendo quais seriam os limites da rosca. Cita-se:

O conceito de poder discricionário só está perfeitamente à vontade


em apenas um tipo de contexto: quando alguém é em geral encarre-
gado de tomar decisões de acordo com padrões estabelecidos por
uma determinada autoridade. Faz sentido falar do poder discricionário
de um sargento que deve submeter-se às ordens de seus superiores
ou do poder discricionário de uma autoridade esportiva ou de um juiz
de competição que são governados por um regulamento ou pelos ter-
mos da competição. Tal como o espaço vazio no centro de uma ros-
ca, o poder discricionário não existe a não ser como um espaço vazio,
circundado por uma faixa de restrições. Trata-se, portanto, de um
conceito relativo. Sempre faz sentido perguntar: ‘poder discricionário
de acordo com que padrões?' ou ‘poder discricionário com relação a
qual autoridade?'. (DWORKIN, 2002, p. 50-51)

Assim, para a divagação retornar ao trilho do raciocínio exposto no presente


artigo, é necessário indagar quais seriam os padrões normativos a limitar o poder
judicial e, portanto, para estabelecer os limites de discricionariedade.
Conforme já relatado, os críticos do positivismo defendem que tal corrente
teórica é concebida e deve ser entendida como um sistema composto exclusiva-
mente de regras (DWORKIN, 2002, p. 35-36). Ronald Dworkin, em importante ar-
tigo no qual expressamente indaga se “é o direito um modelo de regras”, afirma
que o positivismo “é um modelo de e para um sistema de regras, e sua noção
central de um teste fundamental único para o direito conduz-nos a perder a impor-
tante função destes padrões (princípios e diretrizes políticas) que não são regras”.
Por outro lado, também como demonstrado, alegam os críticos do positivismo que,
uma vez inexistindo regras, a discricionariedade do magistrado saltaria aos olhos.
Porém, consoante já explanado, ao menos analisando os preceitos já expos-
tos do constitucionalismo garantista, essa caracterização do positivismo como um
modelo exclusivo de regras, não pode ser acatada.
Ao abordar genericamente sobre o positivismo jurídico, Dimitri Dimoulis afirma
que tal construção teórica trata-se de uma “imagem caricatural de seu adversário
teórico”, qual seja, do pós-positivismo (DIMOULIS, 2016, p. 186).
Assim, retomando-se a indagação: como o constitucionalismo garantista, que
prega a redução do poder estatal, inclusive do judiciário, e que condena a utiliza-
ção do chamado poder de disposição, deve analisar normas constitucionais que
indiscutivelmente incorporaram valores morais?

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A DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL NA VISãO DO CONSTITUCIONALISMO GARANTISTA DE LUIGI FERRAJOLI

Na visão de Luigi Ferrajoli, trata-se confessadamente de uma aporia do siste-


ma garantista, qual seja: a aceitação da positivação de valores morais utilizáveis
como critério de validade das normas e o irresolúvel espaço de discricionariedade
na interpretação de tais critérios. Defende Lugi Ferrajoli que não teria sentido “ne-
gar que, en el ejercicio de la discrecionalidad interpretativa generada por la inde-
terminación del lenguaje legal, el intérprete es a menudo guiado por opciones de
carácter moral” (FERRAJOLI, 2012b, [s.p.]). Mesmo que se considerem exclusiva-
mente os valores morais que foram expressamente positivados no ordenamento,
ainda assim, a verificabilidade da decisão com base em tais critérios não seria
perfeita. Isso, se comparada às verificações meramente empíricas (FERRAJOLI,
2002, p. 701). Eis as palavras de Luigi Ferrajoli, inclusive citando Norberto Bobbio:

Disto resulta que enquanto a verdade (ou a falsidade) dos juízos sobre
vigor é predicável com base em simples verificações empíricas ou de
fato, o mesmo não se pode dizer dos juízos sobre a validade, os quais,
quando consistem na valoração da conformidade ou da deformação
das normas dos valores expressos pelas suas normas superiores,
não são, como escreve Bobbio, juízos de fato, mas juízos de valor, e,
como tais, nem verdadeiros nem falsos. [...] Obviamente, os juízos de
validade ou de invalidade das normas com base nos valores incorpo-
rados pelas normas superiores podem ser mais ou menos opináveis.
Seria dificilmente opinável, no nosso ordenamento, a invalidade de
uma lei penal anti-racial, claramente em contraste com o princípio
constitucional da igualdade dos cidadãos ‘sem distinções de raça’.
Na maior parte dos casos, contudo, os juízos de valor requeridos para
sufragar a validade ou invalidade substancial das normas não são
assim tão óbvios. Demonstram-no a permanente invalidação de leis
precedentemente declaradas válidas e, inversamente, a resistência
oposta, vez ou outra, por decênios, antes de sua anulação, pelas leis
sucessivamente declaradas inválidas. (FERRAJOLI, 2002, p. 701)

A verificação do critério de validade das leis de acordo com sua legitimação


constitucional substancial não pode, mesmo se considerando o constitucionalismo
garantista, “satisfazer a regra semântica com a qual caracterizamos [...] o princí-
pio de estrita legalidade das motivações judiciais e que destas requer a possibili-
dade de verificação jurídica e a valoração” (FERRAJOLI, 2002, p. 702), o que pode
ensejar o condenável poder de disposição.
Contudo, ainda segundo a leitura do garantismo, o pior cenário seria a inexis-
tência da positivação de tais critérios de validade, retornando-se à época do controle
das leis aos aspectos meramente formais. Isso, porque inexistindo a positivação
de princípios, o vazio normativo criado pela ausência de regras aplicáveis ao caso,
geraria a inelutável necessidade de o magistrado solucionar litígios segundo os
valores morais que, na sua visão subjetiva, seriam corretos e não aqueles que fo-
ram inseridos no ordenamento via convenção social. Luigi Ferrajolli, analisando a

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FLÁVIO PEDRON QUINAUD, ANTôNIO SOUZA LEMOS JúNIOR

utilização de valores morais positivados como critério de validade de normas penais,


expõe a referida aporia:

Mas o juízo de validade substancial das leis, se tem dito, é um juízo


de valor, confinado à valoração operativa do juiz, além daquela dou-
trinal do jurista. Disto decorre uma outra e mais grave aporia que
investe em particular no princípio de estrita legalidade. Este princípio
foi definido anteriormente como uma regra semântica de linguagem
legal que requer a possibilidade de verificação das teses judiciárias e
exclui que o juiz tenha, além de um poder de denotação e conotação,
também um poder de disposição. Quando, porém, ilegitimamente tal
poder do juiz é suscitado por causa de leis penais que derrogam o
princípio constitucional de estrita legalidade ou taxatividade, a ilegi-
timidade pode ser removida somente graças à atribuição, ao mes-
mo juiz, de um poder de reprovação sobre leis, que, por sua vez,
exprimindo-se em juízos de valor, é um poder de disposição: e por
isto, quanto menos um juiz é vinculado pela lei à simples denotação
e conotação dos fatos por ela previstos como crimes, tanto menos
ele é vinculado à Constituição para sua aplicação, e tanto mais é au-
torizado a censurar nelas a invalidade. Esta aporia reveste, de forma
geral, toda a estrutura garantista do Estado constitucional de direito.
Sabemos mesmo que a técnica garantista consiste na inclusão de
valores, sob a forma de limites ou deveres, nos níveis mais altos
do ordenamento, donde excluí-los na forma de poderes nos níveis
mais baixos. Mas, uma vez incorporados nos níveis mais altos, os
valores tornam valoráveis os juízos de validade sobre as normas de
nível mais baixo, que são afetas aos órgãos judiciários de nível, por
sua vez, mais baixo, respectivamente às normas que são chamados
a aplicar. Se nos níveis mais altos não fossem incorporados valores,
mas apenas o princípio formal que é válido além de vigente ‘quod
principi placuit’, o juízo de validade se reduziria a uma asserção em-
pírica, verificável e certa sobre a fonte e os procedimentos previstos
para o vigor da lei; e a valoração, em tal caso, teria livre ingresso,
seja na linguagem das leis, não vinculada à estrita legalidade, como
naquele dos juízos, não vinculados à estrita submissão à jurisdição e
validamente investidos de poder de disposição na qualificação legal
dos fatos mas não também na censura das leis. Mas, visto que o Es-
tado de direito vincula o legislador penal à enumeração exaustiva das
previsões legais, excluindo os juízos de valor dos níveis mais baixos
para incorporá-los exclusivamente nos níveis mais altos, deve admitir
paradoxalmente um poder de disposição do juiz, se não na qualifica-
ção dos fatos como crimes, ao menos na qualificação como inválidas
das leis que consentem a qualificação dispositiva dos fatos como
crimes. Em suma, o poder de disposição mediante valorações livres,
que no Estado absoluto é excluído para cima (as leis) e é admitido
para baixo (os fatos), no Estado de direito está em via de princípio
excluído para baixo, mas tanto quanto esta exclusão se torna não
efetiva pela semântica da linguagem legal, deve ser admitida para o

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A DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL NA VISãO DO CONSTITUCIONALISMO GARANTISTA DE LUIGI FERRAJOLI

alto. Em cada caso, os valores não são exorcizáveis: expulsos pela


porta, entram novamente pela janela. E, no fundo, é bom que assim
seja. (FERRAJOLI, 2002, p. 703)

Essa constatação de aporia do sistema garantista pode ser identificada, em


certa medida, com aquilo que Ronald Dworkin define como sendo a discricionarie-
dade em sentido forte. Observe-se, retomando a comparação da rosca na forma
descrita anteriomente, que Ronald Dworkin entende que não há falar em discricio-
nariedade sem dispor sobre as restrições que são impostas à autoridade respon-
sável pela decisão. O que difere os graus de discricionariedade em sentido forte e
fraco é o padrão de controle e sua consequente verificabilidade. Neste sentido, a
possibilidade de controle de uma decisão tomada sob as rédeas de uma discricio-
nariedade forte não seria facilmente realizável (DWORKIN, 2002, p. 58).14 A deci-
são respectiva seria até criticável, contudo, dificilmente a autoridade responsável
poderia ser taxada como descumpridora da norma que aplica. Eis os ensinamen-
tos de Ronald Dworkin:

O sentido forte de poder discricionário não é equivalente à licenciosi-


dade e não exclui a crítica. Quase todas as situações nas quais uma
pessoa age (inclusive aquelas nas quais não trata de decidir com
base em uma autoridade especial e, portanto, sem poder discricio-
nário) tornam relevantes certos padrões de racionalidade, eqüidade
e eficácia. Criticamos mutuamente nossos atos nos termos desses
padrões e não há razão para não fazê-lo quando os atos encontram-se
dentro do perímetro da rosca de autoridade especial, em vez de além
dele. Assim, podemos dizer do sargento ao qual se atribuiu o poder
discricionário (no sentido forte) para selecionar uma patrulha, que ele
o usou de maneira estúpida, mal-intencionada ou negligente. Ou que o
juiz que detinha o poder discricionário para decidir a sequência em que
seriam examinados os cães cometeu um erro, porque deu prioridade
aos boxers, embora houvesse apenas três airedales e um número
muito maior de boxers. O poder discricionário de um funcionário não
significa que ele esteja livre para decidir sem recorrer a padrões de
bom senso e eqüidade, mas apenas que sua decisão não é contro-
lada por um padrão formulado pela autoridade particular que temos
em mente quando colocamos a questão do poder discricionário. Sem
dúvida, esse último tipo de liberdade é importante; é por isso que fala-
mos de um sentido forte de poder discricionário. Alguém que possua
poder discricionário nesse terceiro sentido pode ser criticado, mas
não por ser desobediente, como no caso do soldado. Podemos dizer
que ele cometeu um erro, mas não que tenha privado um participante

14
São as palavras de Dworkin demonstrando a mesma dificuldade de verificabilidade da decisão baseada
em princípios: “É verdade que, em geral, não podemos demonstrar a autoridade ou o peso de um princípio
particular, da mesma maneira que às vezes podemos demonstrar a validade de uma regra reportando-a a
um ato do Congresso ou ao voto de um tribunal autorizado” (DWORKIN, 2002, p. 58).

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FLÁVIO PEDRON QUINAUD, ANTôNIO SOUZA LEMOS JúNIOR

de uma decisão que lhe era devida por direito, como no caso de um
árbitro esportivo ou de um juiz de uma exposição. (DWORKIN, 2002,
p. 54-55)

Assim, fica demonstrado que o grande problema teórico a ser enfrentado é


a aplicação dos princípios na atividade judicial, inclusive como critérios de verifica-
ção da validade das normas infraconstitucionais.

5 Conclusão
Este trabalho procurou demonstrar que, na visão esposada por Ferrajoli, há
a existência de espaços insuprimíveis de discricionariedade judicial. Apontou, in-
clusive, que tais espaços são inelutáveis e, em certa medida, aceitáveis, ainda
que no sistema garantista.
A eleição do referencial teórico teve a intenção de demonstrar que, mesmo
pregando-se a redução do poder estatal, é inevitável certa parcela de discriciona-
riedade judicial. Contudo, o ideal concentra-se na busca pela redução, ao menor
patamar possível, desse espaço de discricionariedade, uma vez que ela não pode
ser enleada com arbítrio judicial baseado em meras subjetividades. Quando há de-
cisões judiciais eivadas com tal vício, há sempre o descumprimento da garantia
da legalidade estrita e/ou descumprimento do dever judicial da juridicidade estrita.
A intenção deste estudo foi expor o entendimento de Luigi Ferrajoli acerca da
discricionariedade judicial. Constatou-se a existência da discricionariedade judicial
com o fito de um melhor aprofundamento teórico quanto à forma de limitação dos
espaços de poder demonstrados. Isso, considerando que os juízes nunca poderão
ser “bocas da lei”, como queriam os iluministas, tampouco se conseguirá a entrega
da prestação da entrega judicial baseada em verdades absolutas. Aliás, conforme
defende Luigi Ferrajoli, a constatação deste defeito institucional, da impossibilidade
efetiva de se expurgar a discricionariedade judicial é um fato de saúde institucional
(FERRAJOLI, 2012a, p. 254). Alimenta-se, com tal aporia, o saudável hábito da dú-
vida, a consciência do erro sempre possível, a disponibilidade para escutar todas
as razões opostas, a prudência como modo correto da prática jurídica (FERRAJOLI,
2012a, p. 254).

Judicial discretion according to Luigi Ferrajoli’s guarantee constitutionalism


Abstract: Judicial discretion is a topic of great academic importance for Legal Theory. On the other hand, it
is an indisputably pluri-significant concept, which justifies the need for theoretical delimitation. The present
work intends to expose Luigi Ferrajolli understanding on the subject, including demonstrating the existence
of inescapable spaces of judicial discretion, under the perceptive of Guaranteeism constitutionalism. To
this end, it specifies the dimensions of the judiciary, namely: the power of indication, interpretation, or
legal verification; the power of legal proof or factual verification; the power of connotation or equitable
understanding and the power of disposition or ethical-political valuation.

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A DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL NA VISãO DO CONSTITUCIONALISMO GARANTISTA DE LUIGI FERRAJOLI

Keywords: Judicial discretion. Legal positivism. Guaranteeism constitutionalism.

La discreción judicial en la visión del constitucionalismo garantizador de Luigi Ferrajoli

Resumen: La discreción judicial es un tema de gran importancia académica para la Teoría del Derecho.
Por otra parte, se trata de un concepto indiscutiblemente plurisignificante, lo que justifica la necesidad
de una delimitación teórica. El presente trabajo pretende exponer la comprensión de Luigi Ferrajoli
sobre el tema, incluso demostrando la existencia de espacios incontenibles de discreción judicial, bajo
la perspicacia del constitucionalismo garantizador. Para eso, especifica las dimensiones del poder
judicial, a saber: el poder de indicación, interpretación o verificación jurídica; el poder de prueba legal
o verificación de hecho; el poder de connotación o comprensión equitativa y el poder de disposición o
valoración ético-política.

Palabras clave: Discreción judicial. Positivismo jurídico. Constitucionalismo garantizador.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

QUINAUD, Flávio Pedron; LEMOS JúNIOR, Antônio Souza. A discricionariedade


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p. 73-93, jan./jun. 2023. DOI: 10.52028/RIHJ.v21.i33.ART04.MG.

Recebido em: 23.11.2022


Aprovado em: 27.06.2023

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