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Angola.

Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973)


Análise de legislação

Miguel Rebordão Amaral

Dissertação para a obtenção do Grau de Mestre em


Engenharia Florestal e dos Recursos Naturais

Orientadoras: Doutora Maria João Prudêncio Rafael Canadas


Doutora Maria Carlos Correia Mendes Radich de Oliveira Baptista

Júri:
Presidente:
Doutora Maria Margarida Branco de Brito Tavares Tomé, Professora Catedrática do Instituto
Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa.
Vogais:
Doutor João Ferreira da Costa Neto, Investigador Auxiliar e Presidente do Instituto Nacional
do Café de Angola;
Doutora Maria Carlos Correia Mendes Radich de Oliveira Baptista, Professora Catedrática
Aposentada do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, orientadora;
Doutor Carlos Manuel de Almeida Cabral, Professor Auxiliar Aposentado do Instituto Superior
de Agronomia da Universidade de Lisboa.

2017
Agradecimentos

Gostaria de agradecer a generosa ajuda e amizade da Professora Doutora Maria Carlos


Radich e da Professora Doutora Maria João Canadas na orientação deste trabalho.

Ao Professor Doutor Fernando Oliveira Baptista pela disponibilidade, amizade e ajuda.

Ao Centrop e ao Instituto Nacional do Café de Angola pela oportunidade de participação no


projecto “Angola. História do café colonial”.

Ao pessoal do Arquivo Histórico Ultramarino, do Arquivo Histórico Diplomático, do Arquivo


Histórico do BNU e do Arquivo Nacional de Imagem em Movimento, pela disponibilidade que
excedeu largamente a obrigação profissional.

Aos meus pais e irmã por um amor e apoio que foi sempre constante e sem o qual não seria
quem sou.

À Inês que me é muito querida, pela infinita paciência e amor e à nossa Ervilhinha que aí vem
para tomar o seu lugar nas nossas vidas.

A toda a restante família.

Aos meus amigos.

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Resumo

A questão da propriedade da terra num território colonial, durante o processo de colonização,


apresenta especificidades sem paralelo nos territórios ocupados continuadamente por
entidades políticas consolidadas. O não reconhecimento da ocupação tradicional levou à
criação de um conjunto de legislação que pretendia regular o acesso dos colonos à terra.

Este trabalho pretendeu fazer uma análise da legislação de concessão de terrenos, no


território angolano, no período que mediou entre 1856 e 1973. O tempo em estudo foi dividido
de acordo com sete marcos legislativos que representam a adopção de um regime geral de
concessões.

Para cada um dos momentos legislativos é feita uma caracterização do regime em questão,
apresenta-se a legislação surgida no período intermédio, dá-se o enquadramento histórico e
comenta-se o diploma.

A análise incide sobre o processo, sobre as competências da administração metropolitana e


a autonomia da administração colonial, sobre as modalidades de concessão e as áreas
atribuíveis e sobre os direitos tradicionais dos povos angolanos e o seu acesso à terra.

Palavras Chave: Angola, legislação, concessões de terras, colonialismo, direitos de


propriedade

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Abstract

The question of land tenure in a colony, during the colonization process, presents itself with
specificities that are unparalleled in territories continually occupied by consolidated political
entities. The non-recognition of the native rights towards land ownership led to the drafting of
a set of laws, focused on regulating the settlers access to land.

This work intends to analyse the land granting legislation in Angola, during the period between
1856 and 1973. The period under study was divided per seven legislative milestones that
represent the adoption of a general regulation of land grants.

A portrayal of the regimes in question was made for the legislative milestones as well as an
overview of the legislation that emerged in the interim period. For each of the key diploma the
historical framework and a commentary were added.

The analysis focused on the formalities, on the jurisdiction of the metropolitan administration
and the autonomy of the colonial administration, on the modalities of land grants and on the
traditional rights of the Angolan people and their access to land.

keywords: Angola, legislation, land grants, colonialism, land tenure

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Índice

1. Introdução ..........................................................................................................................1

2. Carta de Lei de 21 de Agosto de 1856 ...............................................................................3


2.1. O período anterior à Carta de Lei de 21 de Agosto de 1856 ........................................................ 3
2.2. Apresentação da carta de lei ........................................................................................................ 3
2.3. O contexto histórico ..................................................................................................................... 5
2.4. Comentário ao diploma ................................................................................................................ 7

3. Carta de Lei de 9 de Maio de 1901 ....................................................................................9


3.1. Os diplomas legais no período intermédio .................................................................................. 9
3.2. Apresentação da Carta de Lei de 9 de Maio de 1901................................................................. 10
3.3. O contexto histórico ................................................................................................................... 13
3.4. Comentário ao diploma .............................................................................................................. 15

4. Portaria nº 1292 de 1911 ..................................................................................................17


4.1. Os diplomas legais no período intermédio ................................................................................ 17
4.2. Apresentação da Portaria nº 1292 de 1911 ............................................................................... 18
4.3. O contexto histórico ................................................................................................................... 22
4.4. Comentário ao diploma .............................................................................................................. 24

5. Decreto nº 5847-C de 1919 ..............................................................................................25


5.1. Os diplomas legais no período intermédio ................................................................................ 25
5.2. Apresentação do Decreto nº 5847-C de 1919............................................................................ 26
5.3. O contexto histórico ................................................................................................................... 29
5.4. Comentário ao diploma .............................................................................................................. 31

6. Decreto nº 33727 de 1944 ................................................................................................32


6.1. Os diplomas legais no período intermédio ................................................................................ 32
6.2. Apresentação do Decreto nº 33727 de 1944 ............................................................................. 34
6.3. O contexto histórico ................................................................................................................... 38
6.4. Comentário ao diploma .............................................................................................................. 40

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7. Decreto nº 43894 de 1961 ................................................................................................42
7.1. Os diplomas legais no período intermédio ................................................................................ 42
7.2. Apresentação do Decreto nº 43894 de 1961 ............................................................................. 43
7.3. O contexto histórico ................................................................................................................... 47
7.4. Comentário ao diploma .............................................................................................................. 49

8. Lei nº6 de 1973 ................................................................................................................50


8.1. Os diplomas legais no período intermédio ................................................................................ 50
8.2. Apresentação da lei nº 6 de 1973 .............................................................................................. 51
8.3. O contexto histórico ................................................................................................................... 54
8.4. Comentário ao diploma .............................................................................................................. 55

9. Conclusão ........................................................................................................................56

Referências bibliográficas ....................................................................................................60

Anexos

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1. Introdução

O estudo da questão da propriedade da terra num território colonial, durante o processo de


expansão e consolidação da colonização, reveste-se de uma série de dificuldades. Os
registos documentais e históricos tendem a omitir a perspectiva das sociedades tradicionais,
apresentando os territórios como espaços desaproveitados ou esbanjados, nos quais não se
colocavam grandes problemas de legitimação da ocupação europeia. As formas tradicionais
de uso e posse da terra, então incompreensíveis a uma leitura europeia, eram retratadas de
forma redutora ou mesmo caricatural, ajudando a fundamentar um direito à ocupação e
aproveitamento da terra, de acordo com os modelos europeus.

Associada à escassez ou inexistência de registos das sociedades tradicionais, uma parte


considerável da informação fragmentou-se aquando dos processos de descolonização,
criando dificuldades acrescidas ao seu estudo.

Com este trabalho pretendeu-se contribuir para o conhecimento desta questão, partindo do
material recolhido e publicado no relatório de execução, do primeiro ano do projecto “Angola.
História do café colonial”, resultante da parceria entre o Instituto Nacional do Café (Angola) e
o Centro de Estudos Tropicais para o Desenvolvimento (Centrop). A análise centrou-se na
legislação sobre concessões de terras, aplicável ao território angolano, de 1856 a 1973.

Como método procedeu-se numa primeira fase à identificação dos diplomas relativos à
concessão de terras publicados no Boletim Oficial do Governo de Angola ou nos diversos
nomes que tomou o boletim oficial da administração colonial em Angola, nas séries presentes
no Arquivo Histórico Ultramarino. Após a consulta dos diplomas identificados apuraram-se
aqueles que corresponderam à introdução de um regulamento de concessão de terras para o
território de Angola. Foram assinalados sete diplomas que corresponderam a essa introdução
de um novo regulamento geral para a concessão de terras: a Carta de Lei de 21 de Agosto
de 1856; a Carta de Lei de 9 de Maio de 1901; a Portaria nº 1292 de 27 de Novembro de
1911; o Decreto 5847-C de 31 de Maio de 1919; o Decreto nº 33727 de 1944; Lei nº 6 de
1973. Estando identificados os diplomas, e na circunstância da sua redacção ter sido da
responsabilidade das autoridades metropolitanas, procedeu-se à sua pesquisa no Diário do
Governo ou nos diversos nomes que tomou o jornal oficial do governo português, através da
plataforma digital http://www.dre.pt, ou nos casos de legislação monárquica através da
plataforma digital do parlamento http://legislacaoregia.parlamento.pt/. Refira-se que só a
Portaria nº 1292 de 27 de Novembro de 1911 correspondeu a um diploma de iniciativa das
autoridades coloniais. Procedeu-se à selecção da legislação identificada, eliminando aquela

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que incidisse sobre concessões mineiras e concessões urbanas. Procuraram-se
discrepâncias entre os diplomas publicados no jornal oficial da metrópole e o boletim oficial
da então colónia de Angola, não tendo sido encontradas alterações para além de eventuais
gralhas de edição.

A análise foi efectuada considerando os tais sete períodos distintos, assinalados pela
publicação e aplicação dos principais diplomas legislativos, que introduziram ou reformularam
os regimes de concessão de terras. Foram, ainda, acompanhadas as alterações legais que
foram tomando lugar nos diplomas intermédios

Na apreciação dos diplomas tiveram-se em conta: o acesso à terra (evolução dos critérios de
elegibilidade, evolução das áreas concessionáveis, modelos elegíveis de concessão); as
competências da administração local e da administração metropolitana (a evolução da
autonomia local, as competências de atribuição quanto à área e quanto ao modelo de
concessão); os direitos tradicionais (o seu reconhecimento e as garantias de acesso à terra);
as preocupações de soberania e as medidas para a sua consolidação; a estratégia para uma
colonização europeia por via do acesso à terra agrícola.

Para dar uma contextualização histórica, que permitisse uma interpretação das alterações que
foram sendo incluídas ao longo do processo legislativo, foi feita uma consulta bibliográfica de
fontes que incidissem sobre a situação doméstica e colonial, nos períodos assinalados.
Reconhecidos os desafios dominantes na relação entre a metrópole e Angola, procurou-se
encontrar uma correspondência entre essas preocupações e a iniciativa legislativa que foi
tomando lugar.

Seguidamente teceram-se comentários aos diplomas considerando os elementos que se


tiveram em conta assim como o enquadramento histórico.

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2. Carta de Lei de 21 de Agosto de 1856

A Carta de Lei de 21 de Agosto de 1856 foi a primeira tentativa de uniformizar a legislação de


concessão de terras a todo o espaço colonial português.

2.1. O período anterior à Carta de Lei de 21 de Agosto de 1856

No período que antecedeu a Carta de Lei de 21 de Agosto de 1856, de acordo com Santos
(2004), as concessões em terrenos ultramarinos faziam-se, de modo geral, em consonância
com a legislação metropolitana (SANTOS, 2004, p. 23). Não obstante, para cada território
ultramarino poder-se-iam encontrar disposições legais distintas. No caso angolano, a sua
especificidade pode-se encontrar no Regulamento de 12 de Fevereiro de 1676, que mandava
repartir terras sem dono por pessoas beneméritas, com a obrigação de as cultivarem em 5
anos (SANTOS, 2004, p. 31), e na Portaria Régia de 10 de Outubro de 1838, que dava
orientações para que se distribuíssem os terrenos sem domínio particular por aqueles que as
pretendessem cultivar, segundo as leis de Sesmarias.

De forma mais geral, encontramos a Lei de 18 de Novembro de 1844, também aplicável ao


território angolano, que permitiu a venda de bens nacionais situados nas províncias
ultramarinas.

2.2. Apresentação da carta de lei

De entre os principais diplomas legais, a Carta de Lei de 21 de Agosto de 1856 representa o


primeiro grande momento legislativo, no que respeita à concessão de terras. Tratou-se de um
documento cuja jurisdição foi transversal a todos os territórios coloniais, embora com
especificidades para cada um deles. A possibilidade de aquisição dos terrenos baldios,
propriedade do Estado, era atribuída a todo o súbdito português, a sociedades nacionais e,
embora com algumas restrições quanto à área, a cidadãos e sociedades estrangeiras.

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Neste acto legislativo, as modalidades de concessão disponíveis eram o contrato de compra
e venda ou o aforamento, um tipo de contrato no qual a propriedade da terra está desligada
do direito de uso que fica nas mãos do aforador, mas que para ele pode reverter, cumprido o
prazo e as condições estipuladas no aforamento. Em caso de propostas concorrentes ao
mesmo terreno a venda seria preferida. Houve, por parte do poder político, uma consciência
da necessidade de excluir das disponibilidades de concessão, terrenos cuja alienação
pudesse vir a comprometer o interesse nacional. Nos terrenos salvaguardados incluía-se toda
a linha de costa (80 metros a partir da linha de vegetação), terrenos que encerrassem minas,
matas com madeira abundante e de qualidade, terrenos necessários como logradouros de
povos dos concelhos e terrenos que na proximidade da costa, de portos ou de rios navegáveis
revelassem potencial para a exploração florestal. Por fim, atribuía-se alguma
discricionariedade aos governadores das províncias para, em conselho, definirem quais os
terrenos que, dada a sua localização ou atributos, justificassem uma reserva por interesse
público. Mesmo nos terrenos concedidos, o usufruto pleno das existências encontrava-se
subordinado ao interesse público. Assim, o Estado reservava-se o direito de marcar e
inventariar árvores apropriadas para fins de construção civil ou naval e também garantir a
preferência na compra de árvores eventualmente criadas nesses mesmos terrenos.

Quanto às competências nas atribuições de concessões, o governo metropolitano, ouvido o


conselho ultramarino, reservava-se o direito de atribuir áreas de qualquer dimensão, mas
permitia ao governador da província para, em conselho, atribuir, de cada vez, áreas até 500
ha a cada pretendente ou, tratando-se de um cidadão ou sociedade estrangeira, com o
propósito de construção de habitações ou fábricas, até 100 ha.

A pessoa ou sociedade adquirente ficava vinculada a uma série de obrigações, cujo


incumprimento implicaria multas ou até a perda da posse das terras. O aproveitamento
continuado dos terrenos adquiridos era uma condição essencial para a manutenção da posse
dos mesmos e o seu incumprimento implicaria medidas sucessivamente mais gravosas,
culminando no desapossamento do proprietário. Além do aproveitamento dos terrenos,
também eram obrigações dos proprietários a abertura e manutenção de caminhos e a
plantação de árvores quando deliberado pelas autoridades.

Quanto ao processo de alienação dos terrenos, este poderia ser sempre desencadeado por
requerimento na metrópole, ao Ministério dos Negócios da Marinha e do Ultramar ou, caso a
área recaísse nas competências do governador da província, no próprio território. O
requerente indicaria o terreno desejado e o uso destinado. A autoridade administrativa da
subdivisão territorial à qual pertencessem os terrenos em questão seria chamada a informar
por meio de editais, recolher reclamações e alegações dos vizinhos e interessados, dando

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finalmente um parecer sobre a pretensão. Os eventuais conflitos seriam resolvidos pelo
governador da província, em conselho, ou caso a sua opinião divergisse da do procurador da
coroa e da fazenda, pelo governo da metrópole. Tendo havido deliberação favorável,
proceder-se-ia à medição, demarcação e avaliação dos terrenos, operações levadas a cabo
pelos serviços competentes e que seriam publicitadas em anúncio e às quais poderiam assistir
todos os interessados. Findas as operações anteriores, e tendo eventuais oposições sido
anuladas em julgado, passar-se-ia a uma hasta pública na qual interviria a autoridade local
que a publicitaria e lavraria os termos dos lanços propostos, que enviaria à Junta da Fazenda
da Província, onde se abriria uma segunda praça sobre o maior lanço da primeira. Após esta
segunda praça, seriam arrematados os termos com as respectivas formalidades, adjudicando-
se o contrato ao maior lanço e passado o respectivo título. Com esse título poderiam os
proprietários tomar posse das terras.

2.3. O contexto histórico

De acordo com Alexandre (2000b), a consciência da irreversibilidade da independência do


Brasil e por fim a sua consumação, abriu espaço para a formulação e prática de projectos
mais ambiciosos para o império africano português, que tiveram que ficar temporariamente
em suspenso devido ao período de guerra civil em que o país entrou (ALEXANDRE, 2000b,
pp. 126-127).

Já no rescaldo do conflito, surge pela mão de Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo (futuro


Marquês de Sá da Bandeira), durante um governo Setembrista, o Decreto de 10 de Dezembro
de 1836, proibindo o tráfico transatlântico de escravos e que no seu relatório introdutório
consta o seguinte:

“… Em nossas Províncias Africanas existem ricas minas de ouro, cobre,


ferro, e pedras preciosas: ali podemos cultivar tudo o que se cultiva na
América; possuímos terras da maior fertilidade nas Ilhas de Cabo Verde,
em Guiné, Angola, Moçambique: grandes rios navegáveis fertilizam algumas
das nossas Províncias, facilitam o seu comércio; naqueles vastos territórios
poderemos cultivar em grande a cana do açúcar, o arroz, anil, algodão, café,
e cacau; numa palavra, todos os géneros chamados coloniais, e todas as

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plantas das Molucas, e de Ceilão, que produzem as especiarias em
abundância, que não somente bastam ao consumo de Portugal, mas que
possam ser exportadas em muito grandes quantidades para outros
mercados da Europa, e por menores preços que os da América, visto que o
cultivador Africano não será obrigado a buscar, e a comprar trabalhadores,
transportados da outra banda do Atlântico, como acontece ao cultivador
Brasileiro, que paga por alto preço, aumentado ainda pelo risco de
contrabando, os escravos que emprega.

Promovamos na África a colonização dos Europeus, o desenvolvimento da


sua indústria, o emprego de seus capitais; e numa curta série de anos
tiraremos os grandes resultados que outrora obtivemos das nossas
colónias.”

Não se pode deixar de enquadrar a orientação deste diploma no espírito da corrente


Setembrista do qual Sá da Bandeira, um estadista que iniciava uma carreira sobretudo dirigida
para as questões coloniais, era um dos principais apoiantes. Já anteriormente, em Fevereiro
de 1836, num relatório às Cortes, defendia a abolição da exportação de escravos, identificada
como causa para os capitais evitarem a cultura das terras dado terem no tráfico uma
actividade mais lucrativa e para a permanente escassez de mão-de-obra nas possessões
portuguesas (ALEXANDRE, 2000a, pp. 13-14). Este esforço de redireccionar a economia das
possessões ultramarinas estava sintonizado com a necessidade de compensar a perda do
Brasil, reforçando o domínio político e económico de Portugal, até então bastante débil, sobre
os territórios africanos.

Dadas a importância económica que o tráfico de escravos tinha na economia de Angola,


tratando-se afinal do mais valioso produto de exportação até à década de 40 do século XIX
(FREUDENTHAL, 2005, p. 55), e as orientações manifestas no relatório introdutório, que
apontavam para uma colonização europeia do território, conjugada com uma aposta na
produção de produtos agrícolas coloniais e exploração mineira, este decreto pode ser visto
como catalisador para um novo projecto colonial. Embora a introdução deste decreto não
tenha tido resultados imediatos, visto que o tráfico esclavagista transatlântico continuou com
grande intensidade nas décadas de 30 e 40 desse século (DIAS, 1998, p. 370), exigiu,
contudo, que as fortunas acumuladas com o tráfico escravo tivessem que buscar fontes lícitas
de rendimento, levando a uma forte imbricação de interesses legais e clandestinos (DIAS,
1998, p. 385). Na verdade, estes lucros acumulados no tráfico transatlântico eram agora

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canalizados para um sector agrícola colonial à medida que despontava a procura de produtos
coloniais (FREUDENTHAL, 2005, p. 125) e para um comércio legítimo em Angola (DIAS,
1998, p. 387).

Embora pouco tempo depois o governo setembrista tenha dado lugar ao regime cabralista,
este último não abandonou o projecto colonial, apesar de não ter tido sucesso na tentativa de
relançar a colonização portuguesa em Angola e muito pouco no reforço das relações
mercantis com as colónias. Chegados aos anos cinquenta, com o primeiro governo da
“Regeneração”, Portugal consegue finalmente algum período de estabilidade política. No
Ultramar, fecha-se o mercado de escravos brasileiro que era o principal obstáculo ao
desenvolvimento de uma economia de plantação nos territórios africanos, sobretudo Angola
(ALEXANDRE, 2000a, p. 15).

É neste contexto que surge a Carta de Lei de 21 de Agosto de 1856. Um período onde se
começa a materializar a intenção de levar a cabo uma ocupação compacta dos territórios
ultramarinos, associados a uma política de colonização europeia e com uma economia que
tinha no sector da produção agrícola uma pedra basilar.

Desta forma, esta lei acabou por dar um enquadramento legal à procura de terra, segundo as
normas jurídicas portuguesas, nas áreas onde o domínio colonial havia sido implantado.
Tratou-se de uma fase de transição, em que as unidades de produção assentes na
propriedade privada da terra, em articulação com o capitalismo mercantil, se tornaram
componentes essenciais do processo de mudança da economia colonial (FREUDENTHAL,
2005, pp. 125-126).

2.4. Comentário ao diploma

Tendo sido a Carta de Lei de 21 de Agosto de 1856 o primeiro esforço de regular de forma
geral e uniformizada o processo de concessão de terrenos em territórios ultramarinos, é
possível nela encontrar as primeiras intenções do poder político nesta matéria.

A carta de lei zelava pela salvaguarda de terrenos com interesse público, ou nos quais se
antecipava eventual interesse público, mantendo na posse do Estado terrenos com recursos
valiosos, com importância para as comunicações ou com interesse para as necessidades dos
povos habitantes.

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A preferência para adquirentes nacionais era clara, mas as restrições aplicáveis a
estrangeiros poderiam ser levantadas por autorização do governo da metrópole, ouvido o
conselho ultramarino.

No que respeita à administração local, embora ainda muito débil em comparação com as
competências da administração metropolitana, são dados os primeiros passos para a
atribuição de um poder efectivo. Este poder materializava-se pela possibilidade de reserva de
terrenos com interesse público e pela competência do governador de Angola, em conselho,
dispensar autorização metropolitana para conceder terrenos, embora de áreas diminutas.

Não pode passar despercebida, neste diploma, a intenção evidente de fomentar uma
colonização europeia dos territórios ultramarinos. No seu 24º artigo, estabelecia-se que a área
máxima de 500 ha que poderia ser concedida pelos governadores das províncias poderia ser
excedida, caso o pretendente fizesse transportar para a colónia, no prazo de 5 anos, uma
pessoa branca de cada sexo, do Reino e ilhas adjacentes, por cada 10 ha extra. O pretendente
ficava também obrigado a alimentar estes indivíduos durante 1 ano se não conseguisse
empregá-los de forma a garantir-lhes o sustento, o que deixava bem claro que a prioridade de
povoar com europeus o território se sobrepunha a uma racionalização de recursos no
investimento agrícola.

O empenho em combater qualquer intenção especulativa sobre os terrenos é demonstrado


pela exigência de aproveitamento e arroteamento das terras concedidas dentro de um
determinado prazo. Reveladora desta pressão para o aproveitamento é a prescrição do artigo
7º que disponibiliza, por aforamento e por conta do proprietário, a terra vendida e não
aproveitada. O desenvolvimento económico como objectivo desta lei é sugerido pela isenção
de contribuições para o Estado, pelos terrenos ou pelos produtos neles produzidos, num
período inicial, por parte dos adquirentes de terrenos, sendo o prazo alargado consoante os
melhoramentos introduzidos.

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3. Carta de Lei de 9 de Maio de 1901

A Carta de Lei de 9 de Maio de 1901 surge publicada no Diário do Governo nº 105 de 11 de


Maio de 1901. O seu Regulamento Geral Provisório de 2 de Setembro de 1901 é publicado
no Diário de Governo nº 199 a 6 de Setembro de 1901. As suas Instruções Provisórias são
publicadas a 30 de Outubro de 1902 no Diário do Governo.

3.1. Os diplomas legais no período intermédio

No tempo que mediou entre a aprovação da Carta de Lei de 21 de Agosto de 1856 e o seguinte
grande momento legislativo, que surgiu por via da Carta de Lei de 9 de Maio de 1901, foram
elaborados outros diplomas que, contudo, não alteraram o espírito da lei. Assim, no Decreto
com Força de Lei de 4 de Dezembro de 1861 foi autorizado o governo, ouvido o conselho
ultramarino, a conceder por aforamento, directamente e independentemente de hasta pública,
terrenos baldios para a cultura de algodão ou outros produtos. Foi também reforçada a
competência do governador geral de Angola que, em conselho, poderia conceder por
aforamento, terrenos até 1.000 ha para idêntico destino. Esta faculdade atribuída aos
governadores de Angola passou, no entanto, a exigir a aprovação do governo da metrópole
em virtude do Decreto de 14 de Outubro de 1891, que visou impedir concessões sucessivas
ao mesmo requerente.

Através do Decreto de 10 de Outubro de 1865 surge o regulamento para a execução do 6º


artigo da Lei de 4 de Dezembro de 1861. Neste decreto deliberou-se que as concessões de
terrenos só teriam efeito quando os concessionários se mostrassem habilitados com os meios
necessários para o aproveitamento dos terrenos.

Em 1899, o Decreto Lei de 9 de Novembro determinou que se impedissem as transferências,


vendas ou alienações de concessões sem a expressa autorização do governo da metrópole.
Também na mesma data surge o regulamento do trabalho indígena, que determinou o direito
de africanos ocuparem e usufruírem de baldios não aproveitados, em área não superior a 1
ha.

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3.2. Apresentação da Carta de Lei de 9 de Maio de 1901

A Carta de Lei de 9 de Maio de 1901 estabeleceu que os terrenos do Ultramar, que à data da
publicação do diploma não constituíssem propriedade particular, adquirida nos termos da lei
portuguesa, seriam considerados domínios do Estado.

Aos africanos, quando não tivessem adquirido as suas terras por via da legislação geral, era
reconhecido o direito de propriedade dos terrenos por eles cultivados e nos quais habitassem.
No entanto, a sucessão desses direitos de propriedade estava sujeita aos usos e costumes
locais sendo proibida a transmissão para não indígenas salvo autorização da autoridade
administrativa. Refira-se que a transmissão era a única possibilidade reconhecida de
transferência destes direitos. Quaisquer actos e contratos que não tivessem correspondência
nesta forma eram considerados nulos e os terrenos sobre os quais esses actos versassem
entrariam ipso facto no domínio do Estado. A lei, no seu artigo 4º, refere que os casos de
indígenas aos quais pudessem ser conferidos títulos de propriedade perfeita, por cultivarem
ou terem feito as suas habitações em terras ocupadas por mais de vinte anos, teriam a sua
situação regularizada por legislação especial que não foi possível encontrar. Este não se
tratou do primeiro momento legislativo em que se reconheceu o direito de ocupação e usufruto
aos povos africanos; desde a publicação do Regulamento do trabalho indígena no Diário do
Governo nº 262 de 18 de Novembro de 1899 já haviam sido reconhecidos estes direitos, mas
tratou-se da primeira referência em legislação própria sobre terras.

Quanto à possibilidade do Estado conceder os seus domínios, continuavam a impôr-se as


restrições existentes na Carta de Lei de 21 de Agosto de 1856, acrescidas da impossibilidade
de ceder terrenos marginais de linhas férreas construídas ou projectadas, de ilhas e
mouchões e de pedreiras e fontes de água mineral. O Estado reservava-se o direito de
expropriar, sem direito a indemnização, terrenos para a execução de obras de reconhecida
utilidade pública e as minas, pedreiras e fontes de águas minerais não expressamente
concessionadas e a submeter a exploração matas e florestas. Aos terrenos era agora imposto
um sistema de classificação para determinar preços de licitação, delimitar a competência de
concessão quanto à área e estabelecer o processo da concessão.

O governo era autorizado a fazer o regulamento para a execução desta lei, que surgiu a 2 de
Setembro de 1901. As concessões, à luz deste regulamento, poderiam ser feitas por
aforamento, com áreas máximas de 50.000 ha se fossem feitas pelo governo, ou se fossem
feitas pelo governador da província com aprovação do governo em portaria, por aforamento,
arrendamento ou venda, até 5.000 ha. Quanto aos habilitados a receberem concessões, havia

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 10


agora mais contenção relativamente a 1856: só a cidadãos nacionais com capacidade para
contratar e a estrangeiros naturalizados ou residentes em território português há mais de dois
anos, na condição de declararem expressamente a sujeição às leis e tribunais portugueses.
Só sociedades portuguesas com sede em território nacional poderiam também ser
contempladas com concessões.

Uma das inovações mais determinantes nesta nova legislação de terras foi a introdução da
Comissão das Terras, presente na sede de cada distrito e formada pelo conservador, pelo
delegado do procurador da Coroa e Fazenda, pelo agrónomo (ou substituído por individuo
com curso de regente agrícola) e pelo chefe agrimensor do distrito (sendo a secção de
agrimensura criada para o efeito). Das competências desta comissão constava a de organizar
o cadastro dos bens do Estado, fiscalizar a demarcação de terrenos concedidos, velar pelo
cumprimento dos contratos (incluindo os abusos sobre indígenas), consultar sobre a justiça e
oportunidade de remoção dos indígenas, proceder à demarcação e levantamento dos terrenos
a conceder em cada distrito e informar sobre os pedidos de concessão. Como etapa inicial de
organização do cadastro, a Comissão das Terras avançou com um processo de
reconfirmação de todas as concessões atribuídas anteriormente ao regulamento, retirando os
direitos sobre as terras em situações de ausência de documentação ou de abandono.

Quanto ao processo administrativo de concessão, este dividia-se em cinco etapas: Processo


preparatório; Praça pública; Decreto, Portaria ou Alvará de Concessão; Operações no terreno;
Registo.

O processo preparatório começava com um requerimento ao Rei ou ao governador de


província conforme a área requerida fosse da competência de atribuição do governo ou do
governador de província, respectivamente, no qual constariam a indicação da situação do
terreno requerido, o fim a que se destinava, os encargos a que se submetia o interessado e
uma declaração de haver ou não recebido concessões anteriores. Após a recepção deste
requerimento, a Comissão das Terras mandaria proceder a averiguações sobre a situação do
terreno, o seu ajustamento ao uso pretendido e eventuais impedimentos à sua concessão.
Caso o requerente já fosse titular de outras concessões, proceder-se-ia à averiguação do
devido aproveitamento desses terrenos. Não havendo impedimentos, seriam publicados, pela
mão do governador do distrito, editais convocando os eventuais interessados a apresentarem
por escrito quaisquer reclamações. Na ausência de reclamações, seria o processo
preparatório enviado ao governador da província que, por sua vez, requereria um parecer ao
procurador da Coroa. Havendo concordância, se a área pretendida se enquadrasse nas
competências do governador da província, seriam publicados os anúncios de praça pública,
ou enviado o processo ao governo central, caso fosse deste a competência de atribuição para

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 11


essa área e seria este por sua vez a mandar publicar os anúncios na circunstância de ser
favorável.

Cumprida a etapa do processo preparatório, avançar-se-ia para a etapa da praça pública.


Para os concursos realizados na metrópole seria nomeada uma comissão pelo governo. Os
concursos realizados em Angola tomariam lugar nas capitais de distrito dos terrenos em
questão, perante uma comissão nomeada pelo governador geral. As propostas seriam
apresentadas em carta fechada nas quais constaria a oferta de preço, declaração de
acatamento das obrigações estabelecidas nos anúncios do concurso e documento de prova
do depósito de uma quantia equivalente a um décimo da base de licitação. Após a recepção
e abertura das candidaturas, a comissão deliberaria sobre a exclusão de candidaturas,
recolheria os protestos por escrito e passaria à leitura das propostas de preços. Abrir-se-ia
em seguida a fase de licitação verbal e caso não houvesse lanços, escolher-se-ia a proposta
escrita mais alta ou sortear-se-iam em caso de equivalência. Finda a etapa de licitações lavrar-
se-ia o auto do concurso, que seria enviado para o ministro da Marinha e do Ultramar, caso o
concurso tivesse tido lugar na metrópole, ou para o governador de Angola, caso o concurso
tivesse tido lugar em Angola, que lançariam os despachos de adjudicação. Durante 10 dias
após a publicação do despacho de adjudicação, haveria a possibilidade de apresentação de
reclamações que, não havendo, levaria à etapa seguinte, a publicação do decreto de
concessão.

Com a publicação do decreto de concessão, os concessionários depositariam a sua caução


para receberem o seu alvará de concessão que permitiria ao titular o usufruto do terreno assim
que a etapa das operações no terreno estivesse concluída. As operações no terreno
consistiriam na medição, demarcação e confrontação, que seriam realizadas após o depósito
do custo desses trabalhos e a afixação de anúncios da realização das mesmas. Aquando da
demarcação, o concessionário poderia pronunciar-se sobre se pretendia a deslocação das
habitações dos indígenas para uma área da concessão que seria depois delimitada (com a
garantia de 2 500 m2 de área de terreno por palhota). Se tal pedido fosse satisfeito pela
Comissão de Terras, a cada indígena seria paga uma indemnização de valor a fixar pelo
governador.

Num prazo de dois anos deveria o concessionário proceder ao levantamento de todo o terreno
concedido e proceder ao seu registo na secretaria do governo.

Relativamente ao aforamento como modalidade de concessão, o montante do foro inicial ia


sendo reduzido à medida que se expandisse a área cultivada: assim, o foreiro pagaria metade
do foro quando tivesse cultivado um quinto da área, um terço do foro quando tivesse cultivado

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 12


metade da área e um quinto do foro assim que a área de cultura ultrapassasse a metade do
terreno concedido. O foreiro poderia assumir o domínio directo do terreno (que se tornaria
imprescritível), pagando o equivalente a vinte pensões, ajustadas à área cultivada, e tendo
cultivado no mínimo a quinta parte do terreno concedido. De forma inversa, se após dois anos
não se tivessem iniciado trabalhos de cultura ou após cinco anos não tivesse sido cultivada a
quinta parte do terreno, o contrato de aforamento seria rescindido.

No caso do arrendamento, o prazo máximo para prédios rústicos era de 20 anos e teria
sempre que ser obtido por hasta pública. Nos casos de venda, esta seria sempre realizada,
em hasta pública, em lotes com dimensão máxima de 50 ha quando resolvida pelo governo,
ou até 5 ha quando resolvida pelo governador de Angola, sendo que, no entanto, esta
modalidade de concessão não recaía sobre terrenos incultos.

3.3. O contexto histórico

A nível doméstico, durante o período compreendido entre a aprovação da Carta de Lei de 21


de Agosto de 1856 e a Carta de Lei de 9 de Maio de 1901 assistiu-se, numa primeira etapa,
a uma relativa estabilização da situação política, sobretudo devido a um bipartidismo que
frequentemente se coligava (RIBEIRO, 1993, pp. 124-125), concomitante com um
agravamento da situação económica (SILVA, 1993, pp. 386-390). Contudo, de acordo com
Rosas (2011), os efeitos da crise política do ultimatum britânico, de 1890, puseram
explicitamente em causa, pela primeira vez, a legitimidade do regime monárquico ao abalarem
definitivamente a tranquila rotina do rotativismo oligárquico. Após o ensaio insurreccional de
31 de Janeiro de 1891, no Porto, ganhava força no Partido Republicano uma corrente
crescentemente seduzida pela imprescindibilidade da tomada do poder pela via revolucionária
(ROSAS, 2011, p. 22).

Em Angola, a política colonial adoptada desde o início da Regeneração, sob o impulso de Sá


da Bandeira, pretendia privilegiar o expansionismo e o proteccionismo, visando recuperar, em
terras africanas, a prosperidade atingida no antigo império luso-brasileiro. Juntando-se aos
esforços do governo, comerciantes e industriais acorriam à costa africana em busca de
géneros coloniais, tentando animar a produção destinada ao comércio “lícito”. Autorizava-se
a transferência de terra do sector público para o privado e concediam-se terrenos com vista
ao estabelecimento de culturas de plantação e exploração mineira. A reforma administrativa

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 13


encorajava a autonomia dos governos das províncias ultramarinas, concedia maiores poderes
aos municípios e governadores e aumentava o número de funcionários recrutados localmente
(LUCAS, 1993, p. 301). No esforço de desenvolvimento em Angola destaca-se a criação do
Banco Nacional Ultramarino, em 1864, que instala o seu centro de operações em Luanda e
viria a ter um papel importante, pelo menos até à década de 70 do século XX, especializando-
se em empréstimos em dinheiro aos plantadores e mantendo uma estreita ligação com a rede
mercantil de Lisboa (LUCAS, 1993, p. 303).

Este processo de colonização em Angola não era isento de problemas. De acordo com
Amadeu Homem (1993), para além do endurecimento da política interna, configuravam-se
também, desde os princípios da década de 70, dificuldades de relacionamento com as antigas
e novas potências coloniais. O processo europeu de industrialização sofria os bloqueios
decorrentes da saturação dos mercados. Quando mudou a imagem do continente africano,
outrora julgado inóspito e economicamente desinteressante, ou seja, quando os relatos de
exploradores sertanejos, de geógrafos, cientistas e aventureiros apresentaram a África como
um território cobiçável, os países europeus industrializados abandonaram a sua postura de
alheamento. O continente negro passou a ser visto não só como o fornecedor tradicional de
mão-de-obra escrava e de matérias-primas subalternas, mas sobretudo como um mercado
alternativo futuro, servido por recursos de impensável dimensão (HOMEM, 1993, p. 142). A
necessidade de arbitrar estes redobrados apetites europeus, no continente africano, levou à
conferência de Berlim iniciada em Novembro de 1884, através da qual se iriam definir critérios
de acção a este respeito.

A conferência de Berlim acabou por não ser uma vitória para os interesses coloniais
portugueses, pois segundo Amadeu Homem (1993), o Acto Geral da Conferência revogou o
critério de apropriação colonialista no qual assentava a tranquilidade portuguesa, dispondo
que, doravante, a legitimidade de soberania deveria firmar-se na existência de uma ocupação
palpável. Esta exigência, acarretando a transferência de importantes meios humanos e
materiais para regiões africanas teoricamente sujeitas à nossa esfera de influência, viria a
manifestar-se incompatível com as forças e possibilidades do país (HOMEM, 1993, p. 143).
Porque, de acordo com o documento de Berlim, toda a nação europeia que tomasse posse
de uma zona costeira africana ou nela estabelecesse um protectorado teria de comunicar
esse facto aos restantes signatários para a ratificação das suas pretensões. O ocupante das
áreas costeiras deveria ainda provar que dispunha de autoridade suficiente para fazer cumprir
os direitos vigentes e, se fosse o caso, a liberdade de comércio e de trânsito nas condições
já estipuladas. O tratado anglo-alemão celebrado em 1886 introduzia ainda a noção de
«esferas de influência», à qual se acrescentaria a de «hinterland», que permitiam a ocupação

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 14


de áreas interiores ilimitadas às nações na posse da correspondente zona costeira (LUCAS,
1993, p. 306).

Ficava assim definitivamente para trás a ambivalente opinião colonial quanto às políticas a
adoptar, que durou até 1880, e que alternava grosso modo, entre duas posições: ou ocupar
militarmente os postos mais avançados de comércio europeu no interior, ou abandoná-los
(DIAS, 1998, p. 409). A partir desse momento, só a ocupação efectiva do território colonial
poderia dar uma garantia mínima de soberania sobre territórios africanos.

Tornava-se evidente a inevitabilidade do conflito entre as sociedades africanas e os interesses


coloniais no que respeitava à posse da terra. O que à primeira vista poderiam parecer ser
extensas áreas desocupadas, na verdade desempenhavam um importante papel nos
equilíbrios ecológicos e produtivos das sociedades camponesas africanas. Segundo Aida
Freudenthal (2005), os sistemas agrícolas “tradicionais” requerem vastas áreas de pousio,
uma vez que para a reconstituição do seu potencial produtivo são necessários 20 a 25 anos,
enquanto a 3 ha de terra cultivada correspondiam cerca de 25 ha de terra em pousio
(FREUDENTHAL, 2005, p. 58). Já Jill Dias (1998) refere que na sequência do Decreto de 4
de Dezembro de 1861, que regulamentou a concessão de «terrenos baldios» nas colónias de
Africa, verificou-se uma corrida por parte de especuladores portugueses para adquirir terrenos
em Angola. Entre eles, foram concedidas, como parcelas de «terreno baldios», terras de
pousio integradas no sistema rotativo de agricultura africana, cuja existência era ignorada
pelos funcionários coloniais (DIAS, 1998, p. 469).

3.4. Comentário ao diploma

O período durante o qual foi redigida a Carta de Lei de 9 de Maio de 1901 foi marcado pela
necessidade de afirmação da soberania portuguesa sobre o território angolano, daí que esta
reclamasse para a posse do Estado todos os terrenos que não constituíssem propriedade
particular adquirida nos termos da lei portuguesa. É no seguimento dessas preocupações com
a soberania portuguesa, que se limita o acesso de estrangeiros à terra, através de novas
restrições, nomeadamente a declaração expressa de sujeição às leis e tribunais nacionais e
só após 2 anos de residência em território português.

Reforçava-se a salvaguarda do interesse público, através do alargamento das restrições de


concessão, a terrenos marginais a vias férreas e onde estivessem presentes recursos

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 15


naturais. A existência de um processo de licitações em praça pública seria também uma forma
de garantir mais receitas para o Estado, embora comprometendo a agilidade do processo.

É no contexto da exigência surgida na conferência de Berlim, de ocupação efectiva do


território para ratificação da soberania da potência colonial, que se podem encarar todas as
medidas que visavam garantir o pleno aproveitamento da terra. Assim se explica que só os
cidadãos com capacidade para contratar pudessem aceder a concessões de terras. No
mesmo sentido se podem enquadrar as medidas que levavam a uma redução do valor do foro
à medida que se expandia a área de aproveitamento.

Quanto à modalidade de concessão para terrenos rústicos, abandona-se a preferência pela


venda, deixando de estar disponível para terrenos incultos, exigindo o loteamento.

A administração em Angola acabava por ver reforçada a sua autonomia no processo de


concessões, por via do reforço das áreas máximas que pode conceder dispensando a
participação do governo metropolitano.

No que respeita aos direitos indígenas, não havia uma equiparação de direitos, estando-lhes
impedida a posse plena de terras. Desta forma, mantendo-se um direito de ocupação, sempre
na medida que essa ocupação fosse ao encontro dos interesses coloniais, deixava-se sempre
aberta a possibilidade de expansão das áreas sujeitas à colonização europeia e
simultaneamente garantia-se uma disponibilidade próxima de mão-de-obra.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 16


4. Portaria nº 1292 de 1911

A Portaria nº 1292 foi publicada a 27 de Novembro de 1911, no suplemento ao nº46 do Boletim


Oficial do Governo Geral da Província de Angola, e estabeleceu o regime provisório para a
concessão de terrenos do Estado na província de Angola.

4.1. Os diplomas legais no período intermédio

Após a publicação do Decreto de 9 de Maio de 1901, surgiram, publicados no Boletim Oficial


do Governo Geral da Província de Angola (BOGGPA), outros diplomas que não
comprometeram o espírito da lei nem impuseram alterações significativas. Até ao seguinte
grande momento legislativo, que se concretizou na Portaria nº 1292 de 1911, contam-se 17
actos legislativos que introduziram sobretudo disposições transitórias sobre processos,
pequenas alterações processuais, alterações de prazos ou quantias envolvidas, ou
orientações para os agentes administrativos.

Em 1902, a Portaria nº 80 estabeleceu algumas directrizes para a comissão de terras,


sobretudo nas situações de ausência de agrimensores e deu orientações na organização do
cadastro; por sua vez a Portaria nº 153, para auxiliar a comissão de terras nessa tarefa,
incumbiu as autoridades administrativas de fornecerem as informações necessárias. Ainda
em Dezembro do mesmo ano, é publicado o Decreto de 30 de Outubro de 1901, que introduz
disposições para concessões de servidões em terrenos marginais a massas de água e altera
algumas disposições processuais nas concessões.

No ano de 1903 é publicado no nº2 do BOGGPA o Decreto de 27 de Novembro de 1902 que


estabelece cláusulas especiais nos contratos de aforamento de terrenos destinados a
construção e, no mesmo número, é publicado também o Ofício nº 677, com o modelo de
anúncio para hasta pública. Ainda no mesmo ano, surge publicado no nº 8, o Ofício nº 33, que
manda intercalar, nos anúncios de hasta pública dos processos de concessão por aforamento,
uma nova condição que referia que a adjudicação referir-se-ia somente à área do terreno
sobre as quais não tivessem sido interpostos impedimentos pelas autoridades ultramarinas.
Através do Ofício nº 493, publicado no nº 38 do BOGGPA, foi proibida a remissão de foros
que não tivessem cumprido as condições impostas nas disposições legais, sem prévia

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 17


consulta do ministro. Surge, também em 1903, uma alteração dos prazos de entrega dos
alvarás a concessionários, através do Decreto de 21 de Outubro.

Em 1904, por via da Portaria nº 554, surgiram alterações processuais com vista a uniformizar
e clarificar os processos de concessão em Angola. O Decreto de 9 de Setembro regularizou
situações de ocupação de terreno sem concessão, mas no qual os ocupantes haviam feito
benfeitorias, dispensando-os de hasta pública. Por sua vez, o Decreto de 6 de Agosto,
introduziu alterações nas disposições dos processos de aforamento, sobretudo relacionadas
com requerentes que não pudessem comparecer ou fazer-se representar na metrópole ou no
ultramar.

No ano seguinte, em 1905, a Portaria de 30 de Novembro dispunha de várias instruções que


visaram reunir as disposições dispersas sobre concessão de terrenos num só diploma e
mandou que se fizessem propostas nas quais também estivessem expostas considerações
sobre propriedade indígena. Surge também o Decreto de 16 de Novembro que clarifica o 18º
artigo do Decreto de 2 de Setembro de 1901.

Em 1907, o Decreto de 23 de Maio uniformizou entre Angola e Moçambique os processos de


concessão a indivíduos que ocuparam terrenos e neles realizaram benfeitorias e equiparou
os valores de foro. No mesmo ano surgiu o Ofício de 29 de Maio, que aplicou a Angola a
doutrina da portaria de 1895, do comissário régio António Ennes, sobre a organização das
terras da coroa de Lourenço Marques (Maputo), que incidia sobretudo sobre cobrança de
impostos e relações com os povos indígenas.

No último ano da monarquia constitucional, em 1910, surgiu aquele que seria o seu último
diploma legislativo sobre a questão de terras em Angola, a Portaria de 6 de Setembro que
alterou a importância dos depósitos a fazer pelos adjudicatários de terrenos no ultramar.

4.2. Apresentação da Portaria nº 1292 de 1911

A Portaria nº 1292 de 25 de Novembro de 1911, publicada a 27 de Novembro de 1911 no


Boletim Oficial do Governo Geral da Província de Angola, que estabeleceu o Regime
Provisório para a concessão de terrenos do Estado na então província de Angola, prosseguiu
a mesma reivindicação, quanto aos terrenos do domínio do Estado presente nos diplomas

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 18


anteriores. Desta forma todos os terrenos cuja propriedade não pertencesse a qualquer
pessoa colectiva ou singular seriam tidos como do domínio do Estado.

Quanto à classificação dos terrenos, foram criadas duas classes: os de 1ª classe seriam os
terrenos pertencentes a povoações classificadas como de carácter europeu e os de 2ª classe
seriam os restantes terrenos.

Na questão dos terrenos do Estado disponíveis para concessão, mantinham-se as restrições


existentes no Decreto de 9 de Maio de 1901, mas introduziam-se novidades ou alterações.
Das novas alterações constava um aumento da área marginal a caminhos de ferro, a
introdução de reserva de terrenos marginais a qualquer tipo de corrente navegável ou de lagos
e lagoas com mais de 1 km na sua maior extensão. Foi também introduzido o conceito de
terrenos reservados pelo governo central ou pelo governador geral, com o voto deliberativo
do conselho de governo.

Relativamente às concessões a indígenas, definidos no documento como “indivíduos de cor,


naturais ou residentes na província e cujo desenvolvimento moral ou intelectual não se afaste
do comum da sua raça”, esta portaria deu ao governo central e ao governador geral com o
voto deliberativo do conselho de governo, a possibilidade de reservarem exclusivamente para
indígenas, determinadas áreas de terreno dentro das quais estes poderiam ocupar quaisquer
parcelas, sem que com isso fossem conferidos direitos de propriedade. Para que essas
ocupações fossem legitimadas, teriam que ser tituladas, conterem a residência e as culturas
ou pastagens e não excederem o limite de 2 ha por adulto do agregado familiar havendo, no
entanto, a possibilidade de a área poder ser aumentada pelos administradores de concelho,
de circunscrição ou capitães-mor. A propriedade plena da área ocupada poderia ser atribuída
ao fim de vinte anos consecutivos de ocupação, a contar da data do título, desde que pelo
menos um terço da área estivesse cultivada. Todos os direitos de ocupação seriam perdidos
se se verificasse a ausência por mais de um ano. Os terrenos ocupados legitimamente por
indígenas, incluídos em pedidos de concessão não gratuita, só poderiam ser incluídos nestas
concessões com a autorização do governador geral e verificando-se o pagamento de
indemnizações pelas benfeitorias feitas. A propriedade plena das terras ocupadas daria aos
indígenas a isenção de trabalho compelido, de serviço obrigatório em corpos policiais ou
militares ou a requisição para serviço de marinheiro ou carregador.

Quanto às modalidades disponíveis de concessão de terrenos, mantinham-se a possibilidade


de venda, de arrendamento e de aforamento. Os solicitadores de concessões poderiam ser
cidadãos ou sociedades, nacionais ou estrangeiros, com capacidade de contratar, sendo
exigível aos agentes estrangeiros a declaração de se sujeitarem à legislação portuguesa. No

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 19


entanto, apesar de estar aberta esta possibilidade de concessões a estrangeiros, estava
expresso nas disposições gerais da portaria que se deveria evitar a ocupação de áreas
extensas por parte de estrangeiros.

Neste diploma, mantiveram-se também reservados os direitos do Estado quanto à exploração


de pedreiras, minas, matas e nascentes minerais. Aos requerentes de concessão, passou a
ser possível requerer e obter mais de uma concessão, ficando ao critério do governador geral
ou do governador do distrito não o autorizar caso não fossem oferecidas garantias de
aproveitamento.

Relativamente às competências de atribuição de concessões, cabia ao governo central


conceder por aforamento terrenos de 2ª classe de área superior a 10.000 ha e até 50.000 ha.
Ao governador geral, com o voto deliberativo do conselho de governo, caberia conceder
terrenos por aforamento até 2 ha em povoações classificadas, 5 ha nos seus subúrbios ou até
10.000 ha em terrenos de 2ª classe, com a possibilidade de nos terrenos de subúrbio ou de
2ª classe também ser concedida a modalidade de arrendamento. A somar a estas
competências tinha a possibilidade de ordenar o loteamento de áreas de até 3.000 ha com o
propósito de vender em hasta pública metade desses lotes. Dispensando o voto do conselho
de governo, o governador geral poderia conceder por aforamento ou arrendamento, a quinta
parte das áreas cujo voto deliberativo permitiria conceder, nas duas modalidades. Aos
governadores de distrito estava aberta a possibilidade de concederem por arrendamento até
5 anos, terrenos de 2ª classe ou de subúrbios até às áreas da competência exclusiva do
governador geral, dependendo da confirmação deste.

O processo de concessão de terrenos não demarcados, de 2ª classe, por aforamento, teria


início através de um pedido do interessado na direcção de agrimensura, para obtenção de
uma licença de demarcação provisória. Após o pagamento e a obtenção da licença, avisado
o administrador do concelho, o interessado marcaria os terrenos e no prazo de 90 dias, com
o conhecimento do administrador do concelho, faria um requerimento ao governador geral. O
requerimento incluiria reconhecimento do depósito no cofre da fazenda, das importâncias
devidas ao título e registo, certificado de identidade, certidão da agrimensura de anteriores
pedidos ou concessões, a descrição do terreno, o número de cubatas, a sua área aproximada
e as culturas indígenas presentes e a declaração de se se pretenderem incluir, ou não, os
indígenas na concessão e sendo estrangeiro a declaração de reconhecimento das leis
portuguesas. Deveria também o requerente informar se pretendia entrar logo na posse da
propriedade. Se a isso fosse autorizado pelo governador geral, poderia o requerente ocupar
desde logo os terrenos.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 20


O governador geral, recebido o requerimento, lavraria despacho notificando a direcção de
agrimensura para publicitar editais e anúncios, chamando todos os que se julgassem com
direito ao terreno a comprová-lo. Terminado o prazo para a apresentação de queixas de
interessados e as respectivas impugnações por parte do requerente, reuniria a comissão de
terras para as apreciar, assim como eventuais pareceres da direcção de agrimensura, acerca
do aproveitamento de anteriores concessões ao requerente e, após apreciação, enviaria o
processo ao governador geral que resolveria as reclamações.

O governador geral mandaria publicar no boletim oficial as suas decisões e dentro de três
dias, não havendo reclamações ou estas julgadas improcedentes, deveria o requerente
depositar na direcção de agrimensura os valores referentes aos trabalhos de reconhecimento,
levantamento da planta e demarcação definitiva, se não tivesse optado por agrimensor
particular.

Cabia à direcção de agrimensura informar o proprietário da data de início dos trabalhos de


campo. Após a sua conclusão, seria elaborado um minucioso relatório que compilasse as
reclamações de proprietários confinantes, de servidões existentes, de vestígios de ocupações
anteriores e da ocupação por indígenas. Aos indígenas com título de ocupação, que
habitassem nos terrenos demarcados seria dada a possibilidade de permanecerem nas terras,
ou serem indemnizados. Caberia ao governador geral resolver reclamações constantes do
termo descritivo dos trabalhos de campo, assim como autorizar, ou não, a expropriação de
parcelas ocupadas por indígenas, fixar as indemnizações caso as autorizasse e fixar a
entrada, base e data da hasta pública.

Lavrado o despacho de hasta pública, a direcção de agrimensura emitiria os editais e anunciá-


la-ia publicamente. A hasta pública tomaria lugar na direcção de agrimensura com a presença
da comissão de terras. A comissão de terras classificaria as propostas recebidas e, em caso
de empate, haveria uma licitação verbal. Até cinco dias após o termo da praça de licitação,
deveria o licitante do maior lanço depositar o valor da oferta de praça e o processo novamente
enviado ao governador geral que, em três dias, proferiria o despacho de adjudicação e fixaria
o prazo da entrega do título definitivo de concessão.

Para os casos de arrendamento de terrenos de 2ª classe, existia o prazo máximo de 20 anos


nos contratos e o valor da renda nunca poderia ser inferior ao valor do foro no aforamento.
Até aos últimos 6 meses do termo do contrato, os contratos de arrendamento poderiam ser
convertidos em contratos de aforamento, se estivesse aproveitada pelo menos a terça parte
dos terrenos. Relativamente ao processo do arrendamento para terrenos de 2ª classe, ele
seria igual ao processo de aforamento com dispensa de hasta pública, sendo que a renda

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 21


seria fixada aquando do deferimento por parte do governador geral ou do conselho de governo
conforme a área em causa.

Neste diploma, ficou definido que a comissão de terras, sediada em Luanda, seria composta
pelo procurador da República que a presidiria, por inspectores da fazenda e agricultura e pelo
director de agrimensura que seria também secretário e escrivão (sem direito de voto nos
processos de concessão). Na sede de cada distrito, haveria uma delegação da comissão de
terras, composta pelos delegados que houvesse dos membros desta em cada sede, e teria
como secretário o funcionário da secção de agrimensura.

Por via desta portaria seria também criada uma direcção de agrimensura, na capital da
província, com secções nas sedes dos distritos administrativos e regulada a sua composição
e competências.

4.3. O contexto histórico

O período final da monarquia seria marcado por uma crescente deterioração da vida política
interna. Recrudesciam as intrigas políticas e acirravam-se os ânimos contra os abusos que se
davam na administração civil. Câmaras municipais em situação de ruptura financeira,
funcionários da Justiça e da Fazenda sobre quem impendiam acusações de peculato, queixas
dos particulares que se sentiam lesados tornavam-se factos correntes nas províncias
metropolitanas (SERRÃO, 1988, p. 93). Os governos, de curta duração, sucediam-se e a
questão dos adiantamentos à casa real, discutidos na câmara dos deputados, servia para
alastrar as simpatias republicanas (SERRÃO, 1988, pp. 122-123). Entrar-se-ia no período da
ditadura de João Franco, que surgiria através da dissolução das cortes, com a concordância
do Rei D. Carlos I. Segundo Serrão (1988), este seria um governo que iria sofrer a oposição
dos dois partidos monárquicos e do republicano. A repressão sobre a imprensa e a dissolução
da Câmara Municipal de Lisboa, seriam combustível que aumentaria o ódio sobre o
franquismo que cobriria também a figura do Rei que seria assassinado, juntamente com o
príncipe herdeiro, a 1 de Fevereiro de 1908 (SERRÃO, 1988, pp. 122-130). Assumiria ainda
o trono D. Manuel II, mas seria incapaz de impedir o estertor da monarquia. Afinal, durante os
últimos 20 anos do regime, houve 21 executivos e alguns sujeitos a remodelação, o que
mostra o grau de instabilidade política em que muitas vezes se viveu (SERRÃO, 1988, p. 161).

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 22


A revolução de 5 de Outubro de 1910 iria dar a machadada final na monarquia constitucional
e implantar o regime republicano.

A par da convulsão que se sentia na metrópole, as mudanças fundamentais operadas na


colónia de Angola entre 1890 e 1930 foram em grande medida induzidas pela sucessiva
ampliação do território controlado pela administração colonial portuguesa, em resultado do
processo de conquista e domínio efectivo sobre populações mais numerosas e heterogéneas
(FREUDENTHAL, 2001, p. 263). Relembre-se que a Conferência de Berlim só garantiria o
reconhecimento da posse de territórios coloniais que estivessem sob uma efectiva autoridade
e exploração. A pressão era, evidentemente, enorme. Segundo Armando de Castro, citado
por Freudenthal (2001), em 1900, Portugal exercia domínio directo apenas sobre 10% do
território convencionalmente demarcado nos anos 90 do século XIX (FREUDENTHAL, 2001,
p. 291). Não é de estranhar que neste período continuasse um permanente assédio às
pretensões coloniais portuguesas por parte das potências coloniais vizinhas. Afinal bastaria o
encorajamento de revoltas ou a instalação de colonos para deslegitimar as aspirações
portuguesas. Após o rescaldo do Ultimato, surgiria em 1898 e de novo em 1913, no ambiente
que antecedeu a I Guerra, o plano secreto de partilha das colónias portuguesas entre a
Inglaterra e a Alemanha. No momento em que era reaberta a questão do domínio português
em África, tanto as pretensões alemãs como as rebeliões internas aceleraram a ocupação de
territórios pertencentes a entidades políticas mais resistentes, que até então tinham
conseguido preservar a sua autonomia (FREUDENTHAL, 2001, p. 265).

Questões essenciais como a “pacificação”, a descentralização administrativa e o


desenvolvimento da colonização europeia eram considerados os pilares da actuação
portuguesa em África, com o objectivo de edificar um Terceiro Império, próspero e forte.

No início do século, Paiva Couceiro ensaiava em Angola a redefinição do domínio colonial,


fundamentado na exploração directa dos recursos e no intercâmbio comercial que Angola
estabeleceria no quadro concorrencial com economias vizinhas mais desenvolvidas. Apesar
das reformas iniciadas entre 1907-1909, o seu projecto intervencionista foi prejudicado pela
grave situação militar resultante de sublevações locais, que inviabilizou a reestruturação
administrativa de fundo. Desse modo, só a mudança de regime na Metrópole possibilitaria a
sua concretização parcial, num novo contexto político. De facto, a promulgação da nova
Constituição em 1911 evidenciou uma continuidade em relação aos anteriores programas de
governo de Eduardo Costa e Paiva Couceiro, no que respeitava à ocupação e às grandes
linhas de exploração económica. Os republicanos reafirmaram a valorização do património
colonial, sendo as colónias consideradas como o prolongamento de Portugal, como territórios
sagrados da Mãe-Pátria, ao mesmo tempo que defendiam a nacionalização através de

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 23


projectos de desenvolvimento económico sustentados por capitais e colonos portugueses.
(FREUDENTHAL, 2001, pp. 293-296)

4.4. Comentário ao diploma

Quanto às alterações mais significativas deste diploma, por comparação com o anterior
grande momento legislativo, destaca-se um cuidado acrescido quanto às concessões
atribuídas a estrangeiros, que não é de estranhar dadas as inseguranças ainda existentes
quanto à soberania portuguesa, por via das insurreições locais, pelos apetites de potências
colonizadoras rivais ou por via da ainda incipiente presença administrativa em vastas
extensões territoriais.

A Portaria nº 1292 de 1911 é o primeiro diploma onde surge a possibilidade de


reconhecimento da posse plena da terra por parte de populações nativas, embora ainda com
enormes limitações quanto à área e à via de aquisição das terras. Refira-se que para a
obtenção do direito de ocupação a indispensabilidade de licença de ocupação implicava, pela
primeira vez, a necessidade absoluta de um contacto directo com a administração colonial.

É também notório o esforço de transferir a burocracia para as autoridades administrativas


locais e não pode deixar de se vislumbrar, no facto de metade do valor da licença para a
demarcação provisória ser distribuída pelos funcionários da repartição onde fosse passada,
como um incentivo à instalação de um corpo administrativo. Tudo indica que estas medidas
eram um estímulo à tão necessária implantação da máquina administrativa e à sua
mobilização em prol da colonização efectiva do território. A par do reforço das competências
da administração colonial estava também a possibilidade de concessões por parte dos
governadores de distrito, o que representava uma autonomização das administrações locais.

Quanto às modalidades preferenciais de concessão de terrenos rústicos, mantem-se a


preferência pelo aforamento e pelo arrendamento, sendo a venda restrita a áreas mais
reduzidas e implicando um loteamento cuja iniciativa partiria sempre das autoridades.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 24


5. Decreto nº 5847-C de 1919

O Decreto 5847-C foi publicado a 31 de Maio de 1919, no 1º suplemento do Diário do Governo


nº105/1919 e a 23 de Julho do mesmo ano no nº 29 do Boletim Oficial do Governo Geral da
Província de Angola.

5.1. Os diplomas legais no período intermédio

No período que mediou entre a publicação da Portaria nº 1292 de 1911 e a publicação do


Decreto nº 5847-C de 1919, a actividade legislativa relativa às concessões de terras no
território angolano não cessou.

Em 1911, após a publicação da Portaria nº 1292, surge o Decreto de 11 de Novembro, que


pretendia facilitar os processos de concessão a colonos portugueses que pretendessem
dedicar-se à agricultura. Já no ano seguinte surge o Decreto com Força de Lei de 7 de
Setembro que baixa o valor do juro dos depósitos de caução de concessionários de terrenos
em Angola.

Em 1913 surge a Portaria nº 1479-A, publicada no Boletim Oficial de Angola (BOA) de 4 de


Janeiro, que manda empregar esforços para garantir aos indígenas a ocupação dos terrenos,
nos termos do regime de concessão de terrenos em vigor.

No ano de 1914, surge no BOA, a Portaria nº89, publicada a 24 de Janeiro, com o propósito
de introduzir um regulamento de cobrança de foros e rendas por concessão de terrenos e a
Portaria nº 1047, publicada a 26 de Setembro, que autorizava o director da agrimensura a
lançar despachos interlocutórios, nos processos de concessão de terrenos.

No ano seguinte, é publicado no BOA a 2 de Janeiro, o Decreto com Força de Lei nº 1145 que
redefinia as áreas máximas concessionáveis, da competência de cada órgão, estabelecia o
principio da concessão condicional e fixava novos valores de foro, por classes de acordo com
condições de acesso a vias de comunicação e de existência de hasta pública. No nº 38 do
BOA é publicado o Decreto nº 1834 que introduzia disposições transitórias para processos de
concessão já em curso, aquando da introdução do Decreto com Força de Lei nº1145.

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A Portaria Provincial nº 8, publicada a 13 de Janeiro de 1917, estabeleceria instruções para o
processo de concessões, mas que seriam de curta duração visto que seria suspensa no ano
seguinte pela Portaria Provincial nº 125 publicada a 25 de Maio.

O ano de 1918 seria, por sua vez, marcado pelo Decreto nº 4581-A, publicado no BOA nº 35,
a 31 de Agosto que inseriria disposições sobre o resgate de concessões.

5.2. Apresentação do Decreto nº 5847-C de 1919

O Decreto 5847-C, publicado a 31 de Maio de 1919, no 1º suplemento do Diário do Governo


nº105/1919, foi o primeiro diploma da República, de carácter permanente, a legislar sobre os
terrenos nos territórios ultramarinos. No território angolano, este decreto viria a substituir a
Portaria nº1292 de 25 de Novembro de 1911, de carácter provisório.

Estabelecia-se, no documento, que seriam terrenos da então província todos os bens


imobiliários existentes no território, cuja propriedade não pertencesse a outra pessoa colectiva
ou singular, à data da promulgação.

Quanto à classificação dos terrenos atribuíram-se três classes. A 1ª classe seriam terrenos
de povoações classificadas e seus subúrbios, a 2ª classe seriam terrenos não pertencentes à
1ª nem à 3ª classe e, por fim e como novidade, a 3ª classe que seriam terrenos reservados
para uso exclusivo da população indígena.

Relativamente aos terrenos não concedíveis ou carentes de licença especial, as alterações


introduzidas, relativamente à Portaria nº 1292/1911, foram a inclusão nos terrenos carentes
de autorização especial, daqueles reservados para estações, apeadeiros e desvios dos
caminhos de ferros. Incluídos na categoria de terrenos não concedíveis foram aqueles
destinados a serviços públicos, os reservados pelo governo central ou pelo governador geral,
ouvida a comissão de terras, as servidões indispensáveis à utilização de quaisquer bens do
Estado e os terrenos reservados para o uso da população indígena.

Como modalidades de concessão, mantinham-se a venda, o aforamento ou o arrendamento.


A venda ficava restrita a metade dos lotes que fossem mandados cadastrar pelo governador
geral, nunca excedendo os 5.000 ha de área cada, com a particularidade de ficarem na posse
do Estado lote alternado com lote vendido.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 26


Ao Estado ficariam sempre reservados os direitos às minas e nascentes. A exploração e corte
de matas, ou de pedreiras, só poderia ser feita conforme os regulamentos especiais.

Manteve-se a possibilidade de obtenção de mais do que uma concessão, nos termos da


Portaria nº 1292 de 1911. Surge uma política de agravamento gradual da contribuição predial,
enquanto os terrenos não estivessem aproveitados, culminando na perda da concessão se
passados 10 anos não tivesse sido obtido o aproveitamento dos terrenos. Consideravam-se
os terrenos devidamente aproveitados quando neles tivesse sido gasta a importância de vinte
vezes o valor do foro, em acções de desbravamento, drenagem e cultura, ou no gado
permanentemente apascentado.

No que respeitava às competências de atribuição de concessões por aforamento, o governo


central viu a sua competência de atribuição de terrenos de 2ª classe reforçada, aumentando
o intervalo de áreas da sua competência para terrenos maiores que 5.000 ha até um máximo
de 50.000 ha. Quanto às competências do governador geral, desapareceu a necessidade do
voto deliberativo do conselho de governo e o limite máximo de terrenos de 2ª classe
concedíveis baixou para os 5.000 ha. No que respeita a quem poderia receber concessões,
mantinham-se os mesmos termos da Portaria nº 1292 de 1911, acrescidos da possibilidade
de colonos portugueses que desejassem dedicar-se à agricultura e apresentassem garantias
de poderem utilizar os terrenos, receberem concessões de terrenos de 2ª classe, por
aforamento, sem necessidade de hasta pública.

Relativamente ao processo de concessões, por aforamento, em terrenos de 2ª classe, ainda


não demarcados, o processo era idêntico ao da Portaria nº 1292 de 1911, havendo algumas
alterações no que respeitava às indemnizações a indígenas, surgindo a possibilidade de
terrenos ocupados por indígenas em concessões nelas poderem ser integrados, se ficassem
vagos por mais de um ano. Surgiu também a alteração da hasta pública anunciada pelo
director da agrimensura em lugar do governador geral.

A novidade que surge através deste decreto é a da possibilidade da concessão condicional,


associada à ocupação de terrenos provisoriamente demarcados, para terrenos cuja área
máxima excedesse a da competência do governador geral. Nessas situações, o pretendente,
que teria que apresentar garantias bancárias de possuir o capital para investir e realizar um
depósito de entrada, faria um requerimento ao ministro das colónias. Os governadores de
distrito informariam sobre a conveniência e a disponibilidade de terreno para a concessão, e
o governador geral emitiria também o seu parecer. O ministro das colónias, ouvido o Conselho
Colonial, caso não visse qualquer inconveniente, daria a concessão e o direito de escolha e
demarcação na região seleccionada, mandando lavrar e publicar no Diário do Governo a

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 27


respectiva portaria. Para prosseguir o processo, o pretendente à concessão teria 5 anos para
escolher e demarcar o terreno, seguindo os procedimentos das concessões de terrenos de 2ª
classe. Finda a demarcação, poderia o concessionário requerer, na direcção de agrimensura,
a autorização para a ocupação e exploração imediata do terreno. O director de agrimensura
publicaria editais e anúncios a chamar a pronunciar-se quem se julgasse com direito ao
terreno. Esgotado o prazo de reclamações, não as havendo, seria o processo presente ao
governador geral que o remeteria ao ministro das colónias, para que este autorizasse a
ocupação e o expressasse em portaria. Passado o primeiro ano de ocupação, o
concessionário teria que provar uma despesa na utilização do terreno (desbravamento,
drenagens, culturas, …), de valor não inferior a dez vezes o foro, o que prorrogaria por mais
um ano a licença de ocupação e assim sucessivamente até ao quinto ano. Passados os 5
anos de aproveitamento comprovado, a concessão do terreno tornar-se-ia definitiva depois
do despacho de adjudicação do ministro das colónias e da atribuição do título de concessão
pelos serviços de agrimensura.

Outra novidade, é a que resultava da possibilidade de se fazerem concessões a colonos


portugueses que tivessem a intenção de se dedicarem à agricultura. Nesta via de concessão,
o processo seguia os mesmos trâmites que o processo de aforamento, com a diferença de
que após a ocupação provisória do terreno por 2 anos, com o colono a nele residir e a fazer
trabalhos de cultura, este poderia obter a sua concessão, independentemente de hasta
pública. A demarcação definitiva deveria ser feita pelos serviços de agrimensura, a expensas
do colono.

Para os povos angolanos, o acesso à terra teve um retrocesso relativamente ao regulamento


provisório da Portaria nº 1292 de 1911. Deixou de haver a possibilidade da posse plena da
terra, após a ocupação prolongada. As autoridades poderiam dar o estatuto de reserva para
indígenas (terrenos de 3ª classe), a áreas de terrenos que assim estariam vedadas ao
concessionamento, nas quais os indígenas poderiam ocupar parcelas sem que isso lhes
desse direito de propriedade. Fora das reservas, estaria permitida aos indígenas, a ocupação
de terrenos incultos e devolutos, se fosse para fins agrícolas e de residência. Caso os terrenos
ocupados tivessem culturas de carácter permanente que os valorizassem, essa ocupação
poderia ser titulada, o que permitiria aos seus ocupantes não serem deslocados para outras
áreas de um terreno concessionado, caso não fossem indemnizados. O título de ocupação
não permitiria ao seu titular a alienação, hipoteca, arrendamento ou troca. Qualquer ausência
prolongada injustificada levaria à perda dos direitos de ocupação.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 28


5.3. O contexto histórico

A implantação da República não trouxe uma visão distinta dos territórios ultramarinos. De
acordo com a Constituição, as colónias continuavam a ser parte da Nação, tal como antes.
Contudo, a República veio introduzir mudanças essenciais na administração do Ultramar.
Durante cerca de uma década, princípios novos de governo, que assentavam numa
descentralização ampla, tentaram dar forma a uma África portuguesa mais progressiva e
suscitar o seu desenvolvimento ininterrupto (MARQUES, 2001, pp. 21-22). Conscientes da
força do império na formação da unidade e identidade nacionais, os republicanos
incorporaram desde cedo, no seu discurso cultural e político, a defesa da salvaguarda,
manutenção e desenvolvimento dos territórios ultramarinos como um dos vectores
fundamentais da sua propaganda política. Profundamente patriotas e colonialistas, ao
alcançarem o poder, os republicanos ver-se-iam confrontados com a dura realidade dos factos
e tomariam consciência das enormes dificuldades em concretizar os seus projectos de
engrandecimento do império, e consequentemente do país, de forma a realizar o sonho
sempre presente da criação de novos «brasis» em Africa. A República herdara da Monarquia
um império vasto, mas pouco desenvolvido, com uma diminuta percentagem de população
branca, uma incipiente rede de transportes e onde perduravam formas ancestrais de trabalho
(PROENÇA, 2011, pp. 205-206).

A questão da definição das fronteiras, e a submissão do território à autoridade portuguesa,


ainda foram elementos marcantes do período que decorreu entre a implantação da República
e 1919 como constata Freudenthal (FREUDENTHAL, 2001, pp. 273-278). Afinal tratava-se de
um momento em que Portugal participava, não só na disputa territorial com outras potências
coloniais, envolvidas na Grande Guerra (SERRA, 2011, pp. 114-115), como também nas
campanhas de pacificação dos povos africanos, tanto da zona do Congo, como no território
dos cuanhamas e cuamatas, que mantiveram viva e permanente a contestação até 1918
(PROENÇA, 2011, pp. 205-206).

Se a questão militar era um foco de profunda preocupação, o projecto político republicano


para Angola também não era inspirador de tranquilidade, pois em territórios ainda não
completamente pacificados, com características muito diferenciadas, uma notória falta de
quadros administrativos e com uma população nativa que se mantinha afastada dos modelos
de civilização europeia, tornava-se difícil aplicar um sistema administrativo e financeiro
baseado nos princípios da autonomia e da descentralização defendidos pelos republicanos
(PROENÇA, 2011, p. 206). Acabaria por ser a administração com Norton de Matos como

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 29


governador de Angola, que promulgou, em Abril de 1913, um novo regulamento das
circunscrições desta província ultramarina. De uma forma coerente e articulada, não se
limitava a definir uma nova divisão administrativa, mas regulamentava também as
competências dos diferentes órgãos locais e incluía normas de administração financeira
(PROENÇA, 2011, p. 207). As opções políticas de Norton de Matos foram claras: aumentar a
produção de géneros ricos para exportação e de géneros alimentares para europeus e
africanos, concedendo por um lado apoio à propriedade rural africana, através do registo e
atribuição do título de posse de terras a fim de incentivar os produtores independentes,
protegendo-os da expropriação; e, por outro lado, promovendo a colonização europeia e a
distribuição de terras em áreas mais ricas e cobiçadas pelos colonos, em particular no centro
e no sul da colónia. Quanto ao problema fundamental da mão-de-obra, alguma liberalização
preconizada no Regulamento Geral do Trabalho dos Indígenas (1914) deparou com a forte
oposição dos colonos que fizeram abortar a lei (FREUDENTHAL, 2001, p. 285).

Se por um lado, segundo Proença (2011), o grande desiderato do Governo seria que se
pudesse efectivar a colonização livre, individual ou colectiva por meio de empresas e
companhias que, dispondo de capitais, pudessem valorizar as terras incultas, por outro a
situação financeira não era favorável a esse investimento. Um dos mais gravosos factores
para a debilidade da situação financeira das colónias residia no modelo de regime bancário
assente no monopólio do Banco Nacional Ultramarino, como banco emissor e tesoureiro do
Estado. O regime de monopólio de que o BNU gozava era causa de grandes desvantagens,
porque o banco cobrava juros exorbitantes nas letras e nas hipotecas, tornando ruinosas para
as colónias as transacções económicas com recurso ao crédito (PROENÇA, 2011, pp. 213-
214). Esta foi uma das dificuldades que acabaram por comprometer as propostas para o
fomento dos territórios ultramarinos, com base em quatro pontos, considerados
indispensáveis ao desenvolvimento e consolidação de Portugal como grande potência
colonial: a implantação de uma rede ferroviária nas colónias, que ligasse o litoral ao interior e
permitisse o escoamento dos produtos autóctones; o desenvolvimento da agricultura e da
pecuária; a progressiva libertação dos entraves mercantilistas que impossibilitavam a criação
de riqueza; e a fixação de colonos europeus que promovessem o efectivo desenvolvimento
económico e civilizacional. Associavam-se as dificuldades dos graves problemas financeiros,
com sucessivos e crescentes défices coloniais, agravados pela desorganização das contas
públicas, situação que também se verificava no Governo central, impossibilitando qualquer
política consequente de investimento nos territórios ultramarinos. Por outro lado, a influência
de uma burguesia, sedeada na metrópole, que, apesar das declarações ousadas, continuava
arreigada aos mecanismos proteccionistas dos quais arrecadava lucros chorudos. Tudo isto
contribuía para que, também neste campo, os factos estivessem em contradição com os

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 30


ideais dos discursos políticos (PROENÇA, 2011, pp. 216-217). Foi no seio destas profundas
dificuldades que surgiu o Decreto nº 5847-C de 1919.

5.4. Comentário ao diploma

Através deste diploma, continuaram a manter-se as tendências que já tinham sido observadas
na anterior legislação. O agravamento da contribuição predial com o não aproveitamento de
concessões insere-se nas anteriores tentativas de combater a especulação imobiliária e
impedir a expansão de territórios expectantes.

A preferência legislativa pelos processos de arrendamento e de aforamento mantem-se


evidente, não só pelas áreas disponíveis para cada tipo de concessão, mas por
exclusivamente através dessas modalidades poder aceder a iniciativa civil.

A possibilidade de colonos receberem terras sem terem capacidade de contratarem, abria


assim caminho a que se pudesse levar a cabo uma colonização branca e europeia, que se
estendesse pelo território. Aliás, a intenção do fomento da colonização torna-se evidente
através das disposições que facilitam a atribuição das concessões, quando nelas passassem
a cultivar e residir.

É também notório o propósito de agilizar todos os processos de concessão, de forma a


efectivar a ocupação. É nesse espírito que se enquadra a dispensa de hasta pública para
quem vá demonstrando aproveitamento através das concessões condicionais.
Sucessivamente, tentavam-se eliminar os obstáculos a quem dispusesse de capital e
interesse real na exploração.

Relativamente aos direitos tradicionais assistia-se a um retrocesso ao ser retirada a


possibilidade da posse plena das terras, que tinha surgido por via do regulamento provisório
publicado na Portaria nº 1292 de 1911. Voltava-se à situação do mero direito de ocupação,
desprovido da posse plena e sempre sujeito a condições para o seu usufruto. Com a
possibilidade de terrenos ocupados no interior de concessões, nelas virem a ser integrados
em caso de “abandono” por mais de um ano, abria-se a porta a coacções, a vias tortuosas
para o trabalho forçado poder ser usado para o esbulho de terras e outras estratégias.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 31


6. Decreto nº 33727 de 1944

O Decreto nº 33727, foi publicado no Diário do Governo a 22 de Junho de 1944, e no Boletim


Oficial da Colónia de Angola (BOCA) a 31 de Agosto de 1944.

6.1. Os diplomas legais no período intermédio

Desde o anterior grande momento legislativo, que surgiu na forma do Decreto nº 5847-C de
1919, até ao seguinte, que se expressou no Decreto nº 33727 de 1944, a actividade legislativa
foi constante.

Em 1920, surge a Portaria Provincial nº 265, publicada a 14 de Agosto que, dada a escassez
de funcionários da direcção de agrimensura, cancelou, provisoriamente, a recepção de mais
pedidos de concessão, que pretendessem que o levantamento topográfico fosse executado
por pessoal dessa direcção. No mesmo ano é publicado, a 29 de Outubro, o Decreto nº 7078,
que determinou que os processos de concessões especiais (minas, reservas, sistemas de
viação, aproveitamento hidráulico, etc.) tivessem início na colónia respectiva.

No ano seguinte, a Portaria Provincial nº 6 de 7 de Maio estendeu a aplicação da Portaria


Provincial nº 265 de 1920, aos processos anteriores a essa portaria. A 3 de Setembro é
publicada a Portaria Provincial nº 78 que aprova as instruções para a demarcação provisória
e definitiva dos terrenos.

No ano de 1922, é publicada a Portaria Provincial nº 64, datada de 29 de Março, que estende
a todos os processos de concessão de 2ª classe, que tivessem sido requeridos ao abrigo do
regime provisório de concessões de terrenos do Estado de 11 de Novembro de 1911, a
doutrina do artigo nº 115 do Decreto nº 5847-C de 1919. Esta doutrina impunha que, após 15
dias passados desde o prazo de reclamações para a demarcação de terrenos, o processo
fosse enviado ao ministro das colónias, para autorizar a ocupação e exploração do terreno
escolhido. A 16 de Maio, surge o Decreto nº 147, que regulou a natureza e publicação, no
boletim oficial, de diplomas sobre concessão de terrenos, de acordo com as competências de
atribuição. A 3 de Junho, as taxas de foro das concessões sofrem um aumento, através do
Decreto nº 162. A 10 de Junho, o prazo para o levantamento do depósito dos pedidos de
concessão indeferidos é reduzido, por deliberação da Portaria Provincial nº 108. Ainda no

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 32


mesmo ano, a 15 de Julho, surge o Decreto nº 195, que alterou algumas disposições do
Decreto nº 5847-C de 1919. As mais significativas foram a introdução da possibilidade de
legalização das ocupações sem título legal, dentro de povoações, e a equiparação das
concessões de terrenos dos subúrbios, de povoações classificadas, a terrenos de 2ª classe.

Em 1923 é publicado, a 15 de Setembro, o Decreto nº 360 que, entre outras, introduziu


alterações quanto às competências de atribuição de concessões, reduzindo a área
concessionável pelo governo local. Estabeleceu, também, o princípio de qualquer concessão,
de mais de 5.000 ha, passar por um período provisório e definiu as etapas dos processos de
concessão por aforamento e arrendamento.

Em 1925, a Portaria Provincial nº 40, de 18 de Abril, uniformizou os modelos das demarcações


definitivas. O Diploma Legislativo do Alto Comissariado nº 412, de 7 de Novembro,
estabeleceu que a frente dos terrenos a conceder, que fizessem fronteira a vias de
comunicação ou massas de água navegáveis, não poderiam ter mais de metade do fundo do
terreno.

A 30 de Abril de 1927 é publicada a Portaria Provincial nº 88, que introduziu normas para a
identificação das áreas ocupadas por indígenas titulados, nas demarcações definitivas, e
estabeleceu normas a seguir para a conservação dos títulos de ocupação.

A 24 de Março de 1928 é publicado o Diploma Legislativo nº 740, que introduziu normas para
o processo de transferências ou associações de direitos de concessão, dificultando o
processo em caso de não aproveitamento, e aumentando o valor do foro e das licenças para
demarcação. No mesmo dia, é publicada a Portaria nº 52, que obrigou os demarcadores de
terrenos, onde o Estado fez benfeitorias, a pagar as despesas feitas. Ainda no mesmo ano, a
19 de Maio, surge a Portaria nº 94 que introduziu clarificações sobre que repartição é
competente para avaliar o aproveitamento dos terrenos concedidos.

A 14 de Dezembro de 1929, é publicado o Diploma Legislativo nº 220, que determinou que na


ocupação e exploração de terrenos florestais, do tipo Amboim, Cazengo, Dembos e Encoge,
não fosse permitido o corte total das florestas. No mesmo dia é publicado o Diploma
Legislativo nº 221, que fixou normas para a transmissão ou associação de direitos, sobre
concessões ou pedidos de concessão de terrenos.

Em 1930, são estabelecidas normas sobre a colocação dos marcos perimetrais, aquando da
demarcação definitiva, através do Diploma Legislativo nº 261 datado de 19 de Fevereiro. No
mesmo ano, a 8 de Novembro, é publicado o Diploma Legislativo nº 152, que permite
transitoriamente, a detentores de terrenos sem título legal, requerer a sua concessão por
aforamento, sem dependência de hasta pública.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 33


Em 1932, é publicado a 18 de Junho, o Decreto nº 21260, que permitiu que terrenos de 2ª
classe, pudessem ter um uso industrial. Alterou, também, as competências de atribuição de
concessões de acordo com a área, recuperando competências para o governo local. Foram
introduzidas algumas disposições quanto à exploração florestal.

Em 1936, a 30 de Maio, surge o Diploma Legislativo nº 822, que estabeleceu alterações, entre
outras, às condições de aproveitamento, suavizou os encargos das transmissões, exigiu a
existência de uma habitação de materiais permanentes para a remissão do foro. A 12 de
Setembro desse ano, é publicado o Decreto nº 26886, que fixou as condições em que as
sociedades e as empresas comerciais podiam usufruir e aproveitar a concessão de terrenos
no Ultramar.

A 16 de Maio de 1944, é publicada, no Diário do Governo, a Lei nº 2001, que estabeleceu as


competências de atribuição de concessões de acordo com a área, e introduziu normas ao tipo
de concessão para exploração florestal.

6.2. Apresentação do Decreto nº 33727 de 1944

O Decreto nº 33727, publicado no Diário do Governo, a 22 de Junho de 1944, e no Boletim


Oficial da Colónia de Angola (BOCA) a 31 de Agosto de 1944, estabeleceu um regulamento
para a concessão de terrenos do Estado nas colónias continentais de África. Tratou-se, assim,
de um regulamento não específico para o território angolano, embora, logo no seu texto
introdutório, se faça referência a um projecto de regulamento enviado em 1937 por Angola
para o Ministério das Colónias, como ponto de partida do trabalho que resultou no decreto em
análise.

Este diploma reclamou para o domínio do Estado todos os bens imobiliários que não
pertencessem, por título legítimo, a pessoa singular ou colectiva. Relativamente à
classificação dos terrenos, mantinha a mesma fórmula do Decreto nº 5847-C de 1919: a 1ª
classe seriam terrenos de povoações classificadas, de carácter europeu, e seus subúrbios, a
2ª classe seriam terrenos não pertencentes à 1ª nem à 3ª classe e a 3ª classe seriam terrenos
reservados para uso exclusivo da população indígena. No que respeita às possibilidades de
concessão, consideravam-se concedíveis os terrenos de 1ª e 2ª classe, a europeus ou a
pessoas de cultura europeia não de raça branca, e os de 3ª classe, a indígenas, dentro dos
limites de áreas estabelecidos. Como terrenos não concedíveis constavam: os destinados a

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 34


serviços públicos, reservados pelo governo central ou pelos governadores coloniais, as
servidões indispensáveis à utilização de bens do Estado, e os prédios urbanos e seus anexos
indispensáveis aos serviços públicos. Terrenos ocupáveis, mediante licença especial, seriam
os mesmos que foram identificados no Decreto nº 5847-C de 1919, com ligeiras alterações,
quanto às distâncias e larguras das faixas de reserva, a margens de água e linhas férreas. A
esses, somavam-se agora terrenos livres de 2ª classe, que fossem julgados indispensáveis à
instalação de industria, de reconhecida utilidade para a economia da colónia.

No tocante a reservas, este decreto constituiu um complexo sistema de reservas. Assim,


existiam reservas para colonização, que se dividiam em: reservas para povoações, reservas
para colonização europeia nacional, reservas para colonização europeia, reservas indígenas,
reservas para estações de cura e, por fim, reservas para fins filantrópicos. Restava a categoria
de reservas especiais, que incluíam: as reservas florestais, as reservas de fronteira, as
reservas de parques de protecção de fauna e flora, as reservas de aproveitamento hidráulico,
as reservas dos terrenos destinados a serviços públicos, e as dos terrenos marginais a
massas de água ou a vias de férreas.

De acordo com as disposições gerais deste diploma, o aforamento e o arrendamento eram as


modalidades permitidas de transferência de terrenos. Embora a transferência de terrenos
pudesse ser definitiva, todas as concessões atribuídas sê-lo-iam sempre a título provisório,
até prova do aproveitamento, dentro do prazo estipulado. O Estado reservava-se todos os
direitos sobre jazigos, nascentes minerais e outras riquezas que fossem objecto de regime
legal especial. Nos terrenos de 2ª classe, destinados a fins de exploração pecuária,
estabelecia-se, como princípio, o arrendamento como forma de concessão. No caso de
exploração de florestas espontâneas, a modalidade de concessão seria o arrendamento. Se
a exploração florestal envolvesse o amanho e cultivo da terra, então a modalidade seria o
aforamento.

Os terrenos ocupados por indígenas, quando no interior do perímetro de uma concessão,


seriam sempre dela excluídos, e a respectiva área subtraída da área concessionada. Contudo,
a área máxima reconhecida como ocupada variaria consoante o uso fosse o de culturas, de
pascigo de gado ou ocupado por palmares. Se a área ocupada por indígenas excedesse os
40% da área pretendida, não seria atribuída a concessão.

A área máxima de uma concessão seriam os 5.000 ha ou, nos casos de exploração pecuária,
50.000 ha por arrendamento. Nos casos de exploração de floresta espontânea, a área
arrendada máxima seria de 50.000 ha, por um prazo não superior a 25 anos, prorrogáveis por
períodos sucessivos, não superiores a 10 anos. De acordo com este decreto, nenhuma

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 35


pessoa, singular ou colectiva, poderia obter mais de 15.000 ha em concessões ou, caso se
tratasse de terrenos para exploração florestal ou produção pecuária, 75.000 ha.

No que respeitava às competências na atribuição de concessões, nas áreas fora das


povoações, que não servissem exclusivamente a população indígena, o método de concessão
era o aforamento. Competiria ao ministro das colónias conceder áreas superiores a 5.000 ha,
enquanto ao governador competiriam as áreas que não excedessem esse valor. Nesse caso,
o governador consultaria o conselho do governo de Angola, para áreas superiores a 2.000 ha,
sendo dispensado da consulta para áreas inferiores. Dado o facto de Angola ser uma colónia
de governo geral, existia a possibilidade de os governadores de província concederem, a título
provisório, ouvida a junta provincial, terrenos nas mesmas condições, até 400 ha. Na
modalidade de arrendamento, para terrenos destinados a exploração de florestas
espontâneas, ou criação de gado, competiria ao ministro das colónias conceder terrenos com
áreas superiores a 25.000 ha e ao governador, ouvido o conselho de governo, áreas inferiores
a esta. Ao governador geral competiria sempre, em todos os processos de concessão, dar o
despacho de concessão definitiva.

Relativamente a quem poderia receber concessões, mantinha-se o expresso no Decreto


5847-C de 1919, com a introdução da possibilidade de indígenas poderem receber,
gratuitamente, concessões, conforme legislação especial. Igualmente as missões católicas
nacionais passariam a estar habilitadas a receber concessões gratuitas. Com este decreto
desapareceu a exigência de garantias bancárias, a indivíduos ou sociedades, que
pretendessem terrenos de 2ª classe, em áreas que excedessem a dimensão da competência
do governador.

Quanto à comissão de terras, sediada em Luanda, era composta por: o procurador da


República (que a presidia), o chefe dos serviços de agrimensura, o chefe dos serviços de
agricultura, o chefe dos serviços de veterinária e pecuária, o curador geral dos indígenas e o
escrivão dos processos (secretário sem direito de voto). Nas sedes das secções provinciais
de agrimensura, funcionavam as comissões de terras provinciais, compostas pelos delegados
provinciais dos serviços presentes na comissão de terras.

O processo de concessão, por aforamento, de terrenos de 2ª classe não cadastrados, iniciava-


se com um requerimento para uma licença de demarcação provisória, dirigido ao governador
geral, se a área pretendida excedesse os 500 ha, ao governador de província, se a área
pretendida fosse menor, ou ainda ao ministro das colónias, para as áreas da sua competência.
Os serviços de agrimensura passariam a licença de demarcação provisória, mediante
despacho do governador de colónia ou de província. Com a apresentação da licença ao

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 36


administrador da circunscrição dos terrenos pretendidos, o pretendente entregaria uma
declaração com a data, local e situação dos terrenos. Se os terrenos indicados não
contivessem nenhum elemento que impossibilitasse a sua concessão (carecerem de licenças
especiais de ocupação, ocupação por terceiros, etc.), a autoridade passaria a informação aos
serviços de agrimensura. Proceder-se-ia à demarcação provisória dos terrenos, através de
agrimensor ajuramentado, ou pelos serviços de agrimensura. O governador geral poderia
autorizar o pretendente aos terrenos provisoriamente demarcados, a entrar logo na sua posse,
se o fim destinado fosse a agricultura. Após a demarcação provisória, o pretendente
entregaria às autoridades administrativas a sua licença, com a descrição perimetral do terreno
demarcado, a natureza da vegetação, a informação sobre a presença de habitações e
população indígenas, e cursos de água. No prazo de 90 dias, deveria o pretendente entregar,
na direcção de agrimensura da província, um requerimento de concessão, e as autoridades
administrativas, por sua vez, enviariam à secção provincial de agrimensura, a informação
sobre a conveniência da concessão. Juntamente com o requerimento de concessão, deveria
ser entregue: a licença de demarcação provisória, uma declaração a indicar se pretendia
demarcação definitiva oficial por particular, indicação das áreas e população aproximada de
indígenas, declaração se pretendia entrar logo na posse dos terrenos e ocupá-los
provisoriamente, conhecimento do depósito das importâncias devidas ao preparo e às
publicações no Boletim oficial, certificado de identidade, declaração das concessões já
recebidas e, por fim, documento comprovativo de que poderia receber concessões. Recebido
o requerimento na secção de agrimensura, e juntas as informações e o parecer sobre a
conveniência da concessão, seria o processo concluso ao governador competente, que
aprovando o assinaria. Os serviços de agrimensura mandariam publicar editais e anúncios
(com prazo de entre 30 a 90 dias), chamando a fazer prova quem se julgasse com direito aos
terrenos. Após o prazo fixado para as reclamações e para as suas impugnações, o processo
seria enviado ao governador, que mandá-las-ia apreciar pela comissão de terras e resolvê-
las-ia. Não havendo impedimentos, após publicação da decisão do governador no boletim
oficial, seria o processo presente ao governador para dar despacho da concessão provisória,
ou enviado ao ministro das colónias, caso a área requerida excedesse as competências do
governador. Seria a decisão publicada no boletim oficial.

Dentro do prazo de 5 anos após a concessão provisória, deveria o concessionário requerer


aos serviços de agrimensura a vistoria do terreno para comprovar o seu aproveitamento, sob
risco de ser considerado desaproveitado e caducar a concessão. A vistoria seria levada a
cabo por um perito da escolha do concessionário, um perito da escolha dos serviços de
agrimensura e um perito mutuamente escolhido. Seria lavrado um auto de vistoria, e enviado
à sede dos serviços de agrimensura, para prosseguimento do processo. Uma vez aprovado

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 37


o auto de vistoria pelo governador geral, verificando-se o aproveitamento mínimo, seria dado
o despacho de demarcação definitiva e feito o aviso. Proceder-se-iam, então, aos trabalhos
de demarcação definitiva. Finalizada a demarcação definitiva, lavar-se-ia o devido termo e
seria resolvida, pelo governador geral, qualquer eventual reclamação. O título de concessão
seria depois passado pelo chefe dos serviços de agrimensura, mediante prova do pagamento
do título.

No caso de a área pedida se destinar à exploração agro-pecuária ou exploração florestal, no


requerimento de concessão, seriam ainda apresentadas as seguintes informações: descrição
da indústria pretendida, sua organização, área total a demarcar, provas da posse do capital
inicial, prova dos recursos financeiros para assegurar a marcha da empresa, e ainda
informações dos serviços de agricultura e florestas ou veterinários, sobre as vantagens ou
prejuízos da actividade.

Quanto às concessões a indígenas, era permitida a sua ocupação de terrenos incultos e


devolutos, fora de povoações, onde não recaíssem direitos exclusivos de propriedade. A
ocupação seria demonstrada pela presença das habitações familiares, das culturas e do
pascigo do gado. Estas ocupações poderiam ser tituladas, sendo para tal necessário requerê-
las, mesmo que verbalmente, e competentes para os passar os administradores do concelho
ou circunscrição. Se o ocupante usasse de alfaias próprias para cultivar o terreno,
valorizando-o com um carácter permanente, seria considerado um proprietário agrícola. Se o
proprietário agrícola usasse de tracção animal, adubações e afolhamentos, seria concedido o
domínio útil de 10 ha, abrangendo as terras por ele cultivadas, o que lhe proporcionaria um
diploma especial e um título de modelo distinto. Não haveria, no entanto, qualquer
possibilidade de transaccionar esses títulos de ocupação. Ocorreria a perda de direitos de
ocupação se houvesse por mais de 1 ano abandono injustificado ou cessação do cultivo.

6.3. O contexto histórico

Os 25 anos, que mediaram entre o Decreto nº 5847-C de 1919, e o Decreto nº 33727 de 1944,
apresentaram grandes convulsões políticas, que tiveram implicações nos desenvolvimentos
coloniais. Poderemos considerar este intervalo, dividido em duas etapas, sendo a primeira, o
período que procedeu o pós-guerra (1ª Guerra Mundial) e a segunda, o pós-golpe de 1926,
que deu origem ao Estado Novo.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 38


Após o assassinato de Sidónio Pais, avançou-se com o processo de revisão constitucional
que, relativamente à administração colonial, tinha como princípios fundamentais: a
descentralização administrativa e a especificidade das leis coloniais. Refira-se que o império
português sofria de graves problemas económicos e financeiros, um pouco à semelhança dos
outros países, que tentavam relançar a sua economia. Portugal tinha, contudo, dificuldades
acrescidas, por ter mais dificuldade em aceder ao crédito, uma inflação galopante e a balança
de pagamentos severamente afectada pelo decréscimo das remessas de emigrantes no
Brasil. (PROENÇA, 2011, pp. 503-507)

Quanto à questão colonial, a conferência de paz da grande guerra, alterou a visão europeia
dos seus territórios ultramarinos. Da lógica de ocupação efectiva, expressa pela conferência
de Berlim, avançou-se para uma lógica de promoção do desenvolvimento e educação das
populações, com o propósito da sua progressiva autonomia. É nesse contexto que é criado o
Alto-Comissariado para Angola e que, no início de 1921, Norton de Matos parte para o
território para assumir a função, depois de, no parlamento, ter apresentado vários projectos,
que tiveram o apoio dos deputados, visando uma política de fomento da colónia. Do plano de
Norton de Matos constava uma política expansionista de obras públicas (sobretudo vias de
comunicação), um incremento da colonização branca e a exploração das riquezas naturais,
sobretudo da produção agrícola, com um abandono do trabalho compulsivo. (PROENÇA,
2011, pp. 507-508)

Para financiar esta política de fomento foi negociado um empréstimo interno, com o BNU, por
dificuldades de acesso ao crédito externo. O descalabro financeiro acabou por ser o resultado
deste empréstimo que, na sua negociação, incluía a possibilidade de o BNU, como banco
emissor, elevar a circulação fiduciária em Angola. A consequência foi a desvalorização do
escudo angolano, o fim da paridade com a moeda metropolitana, e enormes dificuldades nas
transferências para a metrópole. Da parte do BNU, houve um incumprimento dos termos
acordados, concedendo apenas parte do empréstimo, alegando alterações cambiais, dado o
empréstimo ter sido negociado em ouro. Norton de Matos, por sua vez, tentou negociar um
empréstimo em Londres, mas a interferência ilegal do governo central, naquilo que seria uma
competência do governo de Angola, levou ao seu abandono do cargo. (PROENÇA, 2011, pp.
509-511)

A crise financeira foi temporariamente suavizada, durante o mandato do alto-comissário


Vicente Ferreira (1925-1928), através da criação do Banco de Angola e do angolar convertível.
Não teria, no entanto, um efeito duradouro na acalmia social, visto que a desvalorização do
angolar levaria a uma onda de protestos, que também abriu caminho ao Estado-Novo e às
teses autoritárias e centralizadoras. (FREUDENTHAL, 2001, pp. 289-290)

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 39


Com a instauração da ditadura militar (1926-1933) e pouco depois do Estado Novo, a partir
de 1933, surge uma nova política nacionalista e centralizadora, em relação às colónias. São
adoptadas as novas Bases Orgânicas da Administração Colonial, as cartas orgânicas de cada
colónia, e quando Salazar assume interinamente a pasta das colónias, em 1930, é publicado
o Acto Colonial. Este documento foi ponto de alteração da estratégia colonial, entrando-se
numa fase imperialista, onde se proclamava que o país tinha “uma função histórica e essencial
de possuir, civilizar e colonizar domínios ultramarinos”. A nível político, administrativo e
económico, propunha-se: a restrição de concessões a estrangeiros; que as futuras
concessões do Estado ficassem subordinadas à nacionalização e desenvolvimento
económico das colónias; que a relação entre metrópole e colónias assentasse na visão de
uma “comunidade e solidariedade natural”; a extinção dos Alto-Comissariados e a sua
substituição por governadores-gerais, com poderes drasticamente reduzidos e os poderes
concentrados no ministro das colónias; o fim da autonomia financeira das colónias, com a
aprovação do seu orçamento dependente do ministro das colónias e a proibição da sua
capacidade de contrair, autonomamente, empréstimos a países estrangeiros. (ROSAS, 1994,
pp. 283-285)

No campo económico, manifestavam-se dois interesses contraditórios. No campo dos


industriais metropolitanos, a solidariedade económica expressava-se na reserva dos
mercados ultramarinos à exportação metropolitana, ao passo que para os exportadores
coloniais a subordinação era inaceitável. A intervenção arbitral do Estado será largamente
benéfica para os interesses metropolitanos chegando até, em 1936, através do Decreto nº
26509, a proibir a instalação nos territórios coloniais, de indústrias que já existissem na
metrópole. Por sua vez, numa tentativa de contrabalançar, os interesses das colónias
garantiam uma bonificação à entrada da metrópole, havendo um regime de protecção
específico para uma série de produtos colonias (algodão, café, açúcar, …). (ROSAS, 1994,
pp. 287-289)

6.4. Comentário ao diploma

O Decreto nº 33727 surge já no contexto de uma política colonial, que reforça o centralismo
metropolitano e aposta na colonização dos territórios ultramarinos. É no âmbito do estímulo à
colonização de Angola, por parte de portugueses europeus, que surgem uma série de
medidas, como por exemplo: as facilidades de pagamento, a remissão do foro ocorrer só com

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 40


construção de habitação de carácter permanente, a dispensa de hasta pública no aforamento
de terrenos de 2ª classe ou ainda a possibilidade de manutenção das áreas aproveitadas, em
concessões de área claramente excessiva. Foi também sintomático, desse esforço
colonizador, os cuidados com a classificação e criação de povoações de carácter europeu,
que passaram a ter normas reforçadas, indiciando um esforço na criação de centros urbanos
europeizados.

No que respeita às modalidades de concessão, a venda de terrenos rústicos deixou de ser


uma modalidade disponível.

Aprofundou-se a exigência de aproveitamento dos terrenos, através da caducidade das


concessões definitivas não aproveitadas. As limitações nos tectos máximos a conceder
indiciavam já, pelo menos nalgumas regiões, a escassez de terra ou a tentativa de alargar os
terrenos coloniais a um número mais vasto de pretendentes.

A nível administrativo fez-se um esforço de simplificar e sistematizar os processos e trâmites.


Disso são exemplo as simplificações nas classificações dos terrenos e os esforços no
parcelamento das propriedades.

Ao nível dos direitos indígenas, vê-se claramente um retrocesso, sendo este o primeiro
decreto onde é abertamente introduzida uma definição racial, que vai para além do conceito
de assimilado ou civilizado. Aos indígenas voltaria a ser retirada a possibilidade de posse
plena da terra. No entanto, surge o conceito de proprietário agrícola que permitiria, àqueles
que assumissem uma agricultura de modelo europeu, um direito de ocupação de áreas mais
alargadas, visando com isso estimular a adopção desses modelos.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 41


7. Decreto nº 43894 de 1961

O Decreto nº 43894, de 6 de Setembro de 1961, surge publicado no Diário de Governo nº 207


na metrópole e no nº 37, de 13 de Setembro, no Boletim Oficial de Angola.

7.1. Os diplomas legais no período intermédio

Em 1945, a 27 de Junho, é publicado no nº 26 do Boletim Oficial de Angola, o Decreto nº


34597 que suspendeu, em Angola, a aplicação do Decreto nº 33727 de 1944.

Em 1952 surge a Portaria nº 8051, publicada no nº 52 do Boletim Oficial de Angola, de 24 de


Dezembro, que define áreas de exploração florestal para europeus em Cabinda e áreas de
exploração de palmares para indígenas.

Dois anos depois, em 1954, é publicado o Decreto nº 39649, de 13 de Maio, no Diário do


Governo nº 104 e no Boletim do Oficial de Angola nº 21, autorizando, durante 1 ano, a
concessão de terrenos, até 20 ha, a nacionais, que os estivessem a ocupar e a aproveitar,
continuamente, nos 5 anos anteriores ao diploma.

O esforço de legalizar ocupações sem título legal prosseguiu dois anos depois no Decreto
Legislativo nº 2733, publicado a 15 de Fevereiro de 1956, no nº 7 do Boletim Oficial de Angola.
Neste diploma estabeleceu-se a obrigação dos serviços geográficos e cadastrais verificarem
as infracções, mas simultaneamente abriu-se um período de um ano para a legalização de
ocupações de terrenos aproveitados.

Em virtude de, passados dois anos desde a publicação do Decreto Legislativo nº 2733 de
1956, ainda se verificarem muitos casos de não legalização de terrenos ilicitamente ocupados,
avançou-se com novo esforço legislativo nesse sentido. Assim sendo, a 26 de Novembro de
1958, através da publicação do Diploma Legislativo nº 2942, acrescentaram-se disposições
para a regularização dessas situações, anteriores a 1956, durante um período limitado.

Com a Portaria nº 11200 de 6 de Abril de 1960, prosseguiu-se o esforço de colonizar o


território angolano, através da isenção de vários encargos, aos cidadãos que pretendessem
dedicar-se à agricultura ou agro-pecuária, em terrenos até 100 ha.

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7.2. Apresentação do Decreto nº 43894 de 1961

O Decreto nº 43894, de 1961, passou a diferenciar terrenos do domínio do Estado e do


património da província. Dos terrenos do domínio do Estado constavam: os leitos e álveos de
águas marítimas ou interiores, a plataforma submarina, os terrenos de ilha e mouchões
formados junto à costa ou em correntes navegáveis, terrenos até 80 metros junto à costa
contados a partir da linha máxima da preia-mar, terrenos numa faixa de 100 metros das linhas
férreas de interesse público. Dos terrenos considerados património da província constavam
os terrenos vagos (terrenos que ainda não tivessem definitivamente entrado no regime de
propriedade privada, ou do domínio público) e os terrenos, já entrados no regime de
propriedade privada, adquiridos pela província.

Quanto à existência de reservas, este diploma reconhecia-as de dois tipos: as totais, onde
qualquer uso, ou ocupação, por entidades públicas ou privadas era proibido (os parques
nacionais e reservas naturais integrais) e as parciais, aquelas em que só era permitido o seu
uso ou ocupação para os fins visados na sua constituição (as reservas: de povoamento;
florestais; para fins de saúde pública; para a instalação de serviços públicos; de fronteira; para
aproveitamento hidroeléctrico ou hidroagrícola; para exploração pecuária).

No que respeita à classificação dos terrenos, estes dividiam-se em três classes. Pertenciam
à 1ª classe, terrenos de povoações e seus subúrbios. Da 2ª classe faziam parte os terrenos
demarcados, para atribuição conjunta a populações, para, por elas, serem usados de acordo
com os seus usos e costumes. Classificados como pertencentes à 3ª classe, seriam os
terrenos vagos, não pertencentes à 1ª nem à 2º classe.

Terrenos de 1ª e 3ª classe estavam disponíveis para particulares, através de concessão por


aforamento, para fins agrícolas, agro-pecuários, industriais ou silvícolas. Para fins de
exploração de florestas espontâneas e criação de gado e indústrias dela derivadas, estavam
disponíveis, por arrendamento, terrenos de 3ª classe.

Ao ministro do Ultramar competia conceder terrenos de 3ª classe, por aforamento, com área
superior a 5.000 ha. Conceder por contrato terrenos de 3ª classe, para áreas superiores a
5.000 ha até um máximo de 100.000 ha. Ultrapassados os 100.000 ha e até um máximo de
250.000 ha, seria possível conceder por contrato, mediante autorização do conselho de
ministros. Caber-lhe-iam, ainda, as concessões por arrendamento, de terrenos de 3ª classe,
destinados à criação de gado e indústrias dela derivadas, e destinados à exploração de
floresta espontânea, quando a área concedida excedesse os 25.000 ha.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 43


Ao governador competiria conceder terrenos vagos, de 1ª classe e os de 3ª classe, cuja área
não correspondesse à competência do ministro do Ultramar. O governador, para terrenos
vagos ou mediante parecer do conselho de governo, quando não estivessem vagos, poderia
autorizar o uso e ocupação de terrenos a título precário, conceder foral às autarquias locais e
sancionar a demarcação de terrenos de 2ª classe. Quando o governador concedesse, por
aforamento, terrenos de 3ª classe, de área superior a 2.000 ha ou terrenos de 3ª classe,
mediante arrendamento, de área superior a 5.000 ha, para fins de exploração de florestas
espontâneas ou criação de gado e indústrias dela derivadas, seria obrigatório um parecer do
conselho de governo.

Os governadores de distrito poderiam conceder, por aforamento, terrenos de 3ª classe, de


área não superior a 1.000 ha.

Todas as concessões, quando definitivas, careciam de autorização do governador, excepto


nos casos em que a competência para atribuição recaísse sobre o ministro do Ultramar.

Poderiam adquirir direitos, sobre os terrenos de 1ª e 3ª classe, cidadãos portugueses e


estrangeiros (com limitações legais), sociedades comerciais portuguesas e estrangeiras (de
acordo com o Decreto de 23 de Dezembro de 1889), entidades portuguesas e de direito
público e estrangeiras, quando houvesse reciprocidade nos seus países de origem. Poderiam
ser atribuídas concessões gratuitas a colonos estabelecidos em zonas atribuídas pela Junta
de Povoamento Agrário, a corporações administrativas, a instituições (de beneficência, de
desporto, de instrução ou com fins científicos), a missões católicas nacionais e a organismos
corporativos de trabalhadores.

Cada concessão atribuída não poderia exceder os 50.000 ha, quando tivesse como destino a
exploração de florestas espontâneas ou criação de gado e indústrias dela derivadas, e não
poderia exceder os 5.000 ha nos outros casos. Quando se provasse o aproveitamento da
concessão, atribuída a pessoa singular ou colectiva, esta poderia requerer outra, até um
máximo de 15.000 ha de áreas somadas ou 75.000 ha para fins de exploração de florestas
espontâneas ou criação de gado e indústrias dela derivadas.

O processo de concessão era composto pelas seguintes etapas: requerimento de licença de


demarcação provisória; licença de demarcação provisória; requerimento de concessão;
informação da autoridade administrativa ou da brigada de vistorias; publicação e afixação de
editais anunciando o pedido de concessão e fixando um prazo para apresentação de
reclamações; hasta pública; informação e parecer do serviço de agrimensura; despacho do
governador; publicação do despacho por aviso no boletim oficial; prova de aproveitamento
apresentada pelo concessionário; demarcação definitiva do terreno e aprovação do processo

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 44


técnico; despacho do governador sobre a concessão definitiva; publicação do despacho por
aviso no boletim oficial; título de concessão.

Aquele que pretendesse uma concessão deveria começar por fazer um requerimento de
licença de demarcação provisória, acompanhado de prova de capacidade financeira, caso a
área requerida tivesse dimensão superior a 100 ha, e se se destinasse a fins agrícolas ou
agro-pecuários, um plano pormenorizado do aproveitamento do terreno. Seriam competentes,
para outorgar a licença de demarcação provisória, os directores dos serviços de agrimensura,
para áreas até 250 ha e o governador que, caso a área em questão não excedesse os 2.000
ha, poderia delegar nos directores de serviços de agrimensura. Em regiões onde a densidade
de ocupação e o risco de conflito fosse alto, a demarcação provisória seria determinada pelo
governador, em portaria.

Com a licença passada, com a validade de 1 ano, o requerente procederia à demarcação,


que poderia ser feita por brigada oficial (com aviso publicado no Boletim Oficial, para que
eventuais interessados pudessem acompanhar) ou por demarcação particular. A demarcação
consistiria na abertura de picadas perimetrais e implantação de tabuletas, com o nome do
demarcante, e o número e data da licença. Realizada a demarcação, seria entregue nos
serviços de agrimensura um esboço topográfico e uma memória descritiva.

Com a demarcação provisória feita, elaborar-se-ia um requerimento de concessão, no prazo


de 60 dias, apresentando a identificação do interessado, a licença de demarcação provisória
e prova do depósito dos valores para publicitações e preparos. Junto com o requerimento de
concessão seria incluída informação sobre o terreno pretendido, declaração de interesses ou
direitos de terceiros, informação sobre a finalidade da concessão e a pretensão de a
demarcação definitiva ser feita por via oficial ou particular. Nos casos em que o propósito da
concessão fosse exploração agrícola, o governador poderia autorizar o demarcante a ocupá-
la e explorá-la, antes da concessão provisória.

Os serviços de agrimensura juntariam ao requerimento de concessão o esboço topográfico e


a memória descritiva da demarcação provisória. Caso a demarcação provisória não tivesse
sido feita por via oficial, promoveriam a vistoria do terreno. Aprovada a demarcação provisória,
seria dada publicidade ao pedido no boletim oficial, fixando um prazo para reclamações. Findo
o prazo dado para reclamações, os serviços de agrimensura prestariam a sua informação e
submeteriam o processo a despacho do governador.

O governador daria despacho, que seria publicitado por meio de aviso no Boletim Oficial. Os
despachos de venda ou concessão provisória, por aforamento, de terrenos de 3ª classe já

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 45


cadastrados seriam precedidos de hasta pública. A hasta pública seria dispensada nas
regiões cujo povoamento se pretendesse fomentar.

A hasta pública seria realizada nos serviços de agrimensura, na data assinalada nos editais
para o efeito.

Nenhuma concessão seria outorgada sem que no processo se mostrassem acautelados os


interesses das populações locais, no que se refere a direitos de propriedade e ocupação de
terreno com culturas e de pastagem para rebanhos.

Decorrido o prazo da concessão provisória (com a duração máxima de 5 anos), o


concessionário deveria solicitar aos serviços de agrimensura uma vistoria, para apurar o
aproveitamento dos terrenos, de acordo com o plano de exploração aprovado, ou na sua
inexistência, de acordo com o estipulado para o tipo de concessão. Garantido o
aproveitamento, proceder-se-ia à demarcação definitiva, que consistiria na materialização do
contorno perimetral da parcela concedida, por meio de marcos de cimento. A prova de
aproveitamento seria adicionada ao processo, que seria enviado ao governador.

O governador daria despacho sobre a concessão definitiva, que seria publicado por aviso no
Boletim Oficial.

Tendo sido publicado o aviso de concessão definitiva, poderia o concessionário requerer a


entrega do título. O título seria composto de quatro partes: a primeira destinada ao contrato
de concessão, a segunda à planta do terreno e diagrama numérico, a terceira seria dedicada
à inscrição dos actos jurídicos que recaíssem sobre a propriedade, e a quarta aos endossos.
Antes da entrega do título ao concessionário, este seria sempre enviado aos conservadores
do registo predial, para que fosse feita a nota do registo de direitos na terceira parte. Mesmo
com carácter definitivo, uma concessão poderia ser declarada caduca, caso os serviços de
agrimensura, ou as autoridades civis, verificassem que se tinha deixado de aproveitar.

Nas situações de concessão por aforamento, o foro seria calculado de acordo com tabelas
publicadas em legislação complementar. O foro só poderia ser remido verificando-se o
aproveitamento total do terreno e havendo no terreno todas as construções indispensáveis à
exploração.

Nos casos de concessão por arrendamento, a renda seria calculada segundo tabelas
publicadas em regulamentação complementar, com a renda a ser actualizada no fim de cada
período de 10 anos, de acordo com coeficientes que estabeleceriam um tecto máximo. Nos
casos dos arrendamentos para fins pecuários, estes seriam feitos por um período de 20 anos,
renovável automaticamente por um período de 5 anos, até um máximo de 50 anos.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 46


No que respeita aos direitos de propriedade dos povos locais, o Decreto 43894 de 1961
introduziu alterações significativas. Por um lado, reconheceu aos africanos nativos o direito a
adquirirem terrenos vagos nos termos gerais da lei, por outro manteve as situações especiais
para o direito de ocupação. Por norma, nos terrenos de 2ª classe não haveria um direito
individual à terra, no entanto, quando o governador do distrito autorizasse, a requerimento do
regedor, com o voto concordante dos seus conselheiros, poderiam ser concedidos
individualmente terrenos, desde que neles estivessem instaladas, com carácter permanente,
povoações e culturas.

Na questão dos direitos de ocupação, qualquer “vizinho das regedorias”, termo que substituiu
o anterior “indígena”, poderia ocupar terrenos incultos, vagos ou devolutos, a fim de neles
instalar a sua habitação e culturas ou apascentar gado. Poderiam ainda os vizinhos das
regedorias, ser foreiros ou arrendatários de terrenos de 1ª e 3ª classe.

7.3. O contexto histórico

Entre o anterior grande momento legislativo, que tomou forma em 1944, através do Decreto
nº 33727, e este novo esforço, que surgiu por via do Decreto nº 43894 de 1961, ocorreram
importantes alterações políticas e económicas. Se é certo que os territórios africanos do
império português foram poupados à segunda guerra mundial, não foram alheias as
repercussões que se fizeram sentir, por todo o globo, e em particular nos territórios imperiais.

Segundo Alexandre (2000b), ocorreu uma reorientação global dos fluxos mercantis e, no caso
português, fortaleceram-se as ligações entre a metrópole e as colónias. Este fortalecimento
foi em parte fruto de mecanismos proteccionistas e de uma intervenção administrativa, que
redefiniu as actividades produtivas, sobretudo através do trabalho forçado e das culturas
obrigatórias. A alta dos preços e o aumento da procura de produtos coloniais, no pós-guerra,
levou a uma expansão económica, da qual o crescimento da produção do café em Angola foi
um exemplo. Esta situação de melhoria económica de Angola, juntamente com a alteração da
percepção dos territórios africanos, fruto da propaganda do Estado Novo, podem ser
apontadas como a causa para um enorme aumento do fluxo de emigração portuguesa. Este
incremento de população portuguesa em Angola fomentou as trocas comerciais entre a
metrópole e a colónia, levando a um aumento do investimento, nomeadamente em
plantações. A disponibilidade de investimento teve a capacidade de pressionar as autoridades

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 47


no sentido de abrir a Angola a possibilidade de instalação de indústrias, embora de forma
restrita e limitada (ALEXANDRE, 2000b, pp. 191-193).

De acordo com Rosas (1994), este fluxo de investimento do pós-guerra teve também
continuidade no I Plano do Fomento, que destinava uma fatia do seu orçamento aos territórios
ultramarinos. Este investimento público materializou-se, sobretudo, no investimento em infra-
estruturas de comunicação e transporte, mas também teve expressão em investimentos ao
nível da urbanização, da electrificação e do saneamento. Esta política de matizes
keynesianas, teve o condão de levar a um período de crescimento económico, que se
começou a manifestar no começo da década de 60 (ROSAS, 1994, pp. 485-495).

No campo político, o período do pós-guerra trouxe o fortalecimento dos princípios de


autodeterminação dos povos coloniais e o refluxo das noções da suposta missão tutelar das
nações europeias sobre os povos colonizados. Embora entre as potências imperiais a reacção
a este novo cenário tenha sido a de tentar modernizar o seu sistema imperial, eliminando as
formas mais abusivas de exploração, e dando alguma representatividade política aos povos
coloniais, Portugal acabou por fazer esforços muito ténues nesse sentido. Assim, de uma
lógica clássica de imperialismo, plasmada no Acto Colonial de 1930, avançou-se, em 1953,
para a Lei Orgânica do Ultramar Português, na qual as colónias passavam a províncias
ultramarinas, integradas numa suposta nação pluricontinental. No entanto, apesar da
cosmética, à generalidade da população africana mantinha-se a recusa da condição de
cidadania, à qual só acediam os 0,8% de assimilados em 1961. Com o início do processo de
descolonização do continente africano, a partir da segunda metade da década de 50, as
pressões sobre Portugal aumentaram (ALEXANDRE, 2000b, pp. 194-195).

Quando, no início de 1961, se inicia a insurreição angolana, e como resposta à pressão


internacional, surgem novos esforços jurídicos, no sentido de apaziguar reacções e tentar
pacificar a rebelião. O então ministro do Ultramar, Adriano Moreira, anunciou reformas que
incidiam sobre o Estatuto dos Indígenas, o Código do Trabalho Rural, e outros assuntos que
interferiam, directamente, na relação entre colonos e naturais. Nesse conjunto de alterações,
constava o Decreto nº 43894 de 1961, sobre concessões de terras, que pretendia evitar
conflitos entre a população indígena e os colonos com pretensões de expansão. Apesar da
crispação em torno da questão das terras, foi criada a Junta Provincial de Povoamento, para
acelerar o estabelecimento de camponeses portugueses em Angola. A política assim seguida
não deixou de sofrer fortes críticas dos sectores independentistas angolanos, que
denunciavam o objectivo de desequilibrar em favor dos europeus a composição social de
Angola. (PÉLISSIER, 2009, pp. 276-283)

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 48


7.4. Comentário ao diploma

No que respeita às alterações de fundo, que se fizeram sentir com o Decreto nº 43894 de
1961, é importante enquadrá-las na situação política, espoletada pelo início das sublevações
nacionalistas.

É evidente que o elemento de ruptura mais evidente, que este decreto trouxe, foi a questão
dos direitos de propriedade da terra, que passaram, formalmente, a poder ser usufruídos
plenamente pelos africanos nativos. As alterações legislativas que visavam um
apaziguamento da situação social levaram à eliminação de qualquer nomenclatura com uma
evidente carga racial. Assim, nomenclaturas como indígena ou não assimilados, anteriores
fórmulas de designar os povos nativos, foram substituídos por vizinhos das regedorias.
Tornaram-se mais difíceis os processos de remoção das populações locais do interior de
concessões e alargaram-se as áreas reservadas às regedorias. No mesmo sentido, surgiram
mecanismos para impedir concessões, sempre que a paz social das regiões estivesse em
perigo.

A par da melhoria de direitos para os povos naturais, reforçaram-se os mecanismos de


exigência de aproveitamento da terra concedida, possivelmente já não como mecanismo para
legitimar a reivindicação sobre os territórios coloniais, mas como forma de gerir a pressão da
procura. Passou a ser exigido um plano de exploração a quem pretendesse uma concessão
acima de determinada área. Aumentou a área mínima aproveitada, exigida, para se
comprovar o aproveitamento das concessões.

Aprofundaram-se, também, os esforços de agilização do processo de concessão, com o


encurtamento dos prazos na atribuição de concessões, e supressão de competências de
entidades como a Comissão de Terras.

No caminho para um alargamento da autonomia política, que também surge como resposta
às pressões políticas, pode ser encarada a alteração de estatuto dos terrenos vagos, como
sendo do domínio da província. Este fortalecimento de competências locais também se
expressou na possibilidade de o governo provincial determinar a execução de demarcações.

Apesar do período de guerra, este foi o momento mais dinâmico na atribuição de concessões,
tanto em termos de área como em valor absoluto e com uma primazia notória das concessões
por aforamento, tal como se pode observar no anexo II.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 49


8. Lei nº 6 de 1973

A Lei nº 6 de 13 de Agosto de 1973 surge publicada no Diário do Governo nº 189 de 13 de


Agosto de 1973 e, a 14 de Setembro de 1973, no nº 217 do Boletim Oficial do Governo de
Angola.

8.1. Os diplomas legais no período intermédio

No período entre a publicação do Decreto nº 43894 de 1961 e a publicação da Lei nº 6 de


1973, continuou a actividade legislativa no âmbito da concessão de terrenos em Angola.

A 18 de Julho 1962, surge publicado no Boletim Oficial do Governo de Angola (BOGA) o


Diploma Legislativo nº 3280 que regulamentou a aplicação do Decreto nº 43894 de 1961.

No ano de 1965, surgiu publicado no BOGA nº 7, o Despacho de 6 de Janeiro que esclareceu


as competências para a concessão de terrenos de 1ª classe. No mesmo ano, a 27 de
Novembro, é publicada no nº 48 do BOGA a Portaria nº 14023, que delibera que no processo
preparatório de concessões de terrenos, que incluam áreas de reservas ou parques, seja o
processo submetido a apreciação pelo Conselho de Protecção da Natureza.

No ano seguinte, no BOGA nº 37 de 1966, é publicado o Decreto nº 47167, que alterou


algumas disposições do Decreto nº 44239 de 1962 (que reorganizava os serviços geográficos
cadastrais e os serviços de agrimensura) e do Decreto nº 43894 de 1961, no que respeitava
a demarcações de terrenos urbanos. No nº 48 do BOGA do mesmo ano, é lançada a Portaria
nº 14671 que, devido à invulgar afluência de pedidos de concessão de terrenos para fins
pecuários, nos distritos do Uíge e Cuanza-Norte, deliberou que as demarcações passassem
a ser feitas oficialmente por brigadas de demarcação e vistorias e os distritos em questão
tivessem prioridade nas demarcações.

Em 1967, é publicado o Decreto nº 47486, no nº 5 do BOGA, que introduziu um prazo


transitório de 1 ano para que aqueles que ocupassem ilegalmente terrenos os pudessem
legalizar. No mesmo ano, surge a Portaria nº 14835, publicada no BOGA nº 6, a 11 de
Fevereiro, que determinou que as demarcações de terrenos na Huíla e em Moçâmedes
fossem feitas por brigadas de demarcações e vistorias.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 50


8.2. Apresentação da lei nº 6 de 1973

A Lei nº 6 de 1973, Lei de Terras do Ultramar, foi promulgada a 13 de Agosto de 1973, no


Diário de Governo nº 189 e tratava-se de uma lei aplicável a todas as, então, províncias
ultramarinas. Segundo esta lei, eram considerados terrenos vagos aqueles que ainda não
tivessem entrado definitivamente no regime de propriedade privada ou do domínio público,
excluindo os terrenos nessas condições que estivessem a ser ocupados por indígenas, agora
referidos como vizinhos das regedorias. Consideravam-se os terrenos vagos, como parte
integrante do património das províncias ultramarinas, só podendo ser concedidos pelo
governo metropolitano ou pelos governos das províncias.

Os terrenos vagos poderiam ser considerados terrenos urbanos quando se incluíssem em


áreas atribuídas a povoações ou seus subúrbios, ou considerados rústicos nas restantes
situações.

De acordo com a lei, existiam as reservas parciais, que só permitiam um uso que não colidisse
com o fim a que se destinassem, e as reservas totais, nas quais não era permitido qualquer
uso, salvo o necessário à sua preservação ou exploração para fins científicos. As
propriedades privadas que fossem incluídas numa reserva seriam alvo de uma expropriação.

Relativamente aos terrenos vagos, poderiam as províncias ultramarinas dispor deles nos
termos da legislação, utilizar os necessários aos seus serviços, reservando-os, e aproveitar
os seus produtos, no respeito dos regulamentos que disciplinassem essas actividades.

Os terrenos vagos poderiam ser concedidos por aforamento ou arrendamento. Estavam


excluídos de possibilidade de concessão, terrenos que fossem do domínio público (neste caso
careciam de licença especial, a título precário), pertencessem a reservas totais, estivessem
afectos à ocupação tradicional ou que interessassem ao prestígio do Estado. Na modalidade
de concessão por aforamento, estavam disponíveis os terrenos rústicos, quando destinados
a fins agrícolas ou pecuários, em regime intensivo ou semi-intensivo, silvícolas, industriais e
comerciais. Na modalidade de concessão por arrendamento, estavam disponíveis os terrenos
rústicos destinados à exploração pecuária, florestal e à exploração económica de animais
bravios.

Nos casos de concessão por aforamento, havendo ocupação e exploração da área concedida,
poderiam os foreiros adquirir a propriedade através da remissão do foro. Nas situações de
arrendamento de terrenos, para fins de exploração pecuária, em áreas até aos 15.000 ha,

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poder-se-ia converter em aforamento nas situações em que essa fosse a forma
economicamente mais aconselhável.

Para promover o aproveitamento das concessões, facilitando o recurso ao crédito, passou a


ser possível, quando os mutuários faltassem às obrigações assumidas, o subarrendamento a
instituições de crédito.

No caso de exploração de florestas espontâneas, as concessões seriam feitas por


arrendamento, em prazo máximo de 25 anos, prorrogáveis por períodos sucessivos não
superiores a 10 anos, em harmonia com o regime florestal e em áreas não superiores a 75.000
ha. Nos casos em que a exploração da floresta espontânea, em áreas até aos 5.000 ha,
pudesse ser convertida em cultivo agro-silvo-pecuário, as concessões poderiam ser
transformadas em concessões provisórias por aforamento, por períodos não superiores a 10
anos, podendo ser renovadas por um período de 5 anos e passar a definitivas após inquérito
ao aproveitamento.

Poderiam obter concessões ou licenças especiais de uso, pessoas singulares ou colectivas,


portuguesas ou estrangeiras. Poderiam ainda receber concessões gratuitas, povoadores nos
termos da legislação especial.

O valor máximo de área concedível, a pessoa singular ou colectiva, para terrenos rústicos,
era de 15.000 ha por aforamento (em parcelas que não excedessem os 5.000 ha) e de 75.000
por arrendamento (em parcelas que não excedessem os 25.000 ha). A concessão sucessiva
de parcelas só seria possível mediante prova de aproveitamento das concessões definitivas
anteriores.

No que se refere às competências para atribuição de concessões, cabia ao conselho de


ministros, por proposta do ministro do Ultramar, conceder por contrato especial, terrenos
rústicos com áreas superiores a 100.000 ha, até um máximo de 250.000 ha.

O ministro do ultramar tinha competência para conceder terrenos rústicos, por aforamento, ou
autorizar a venda, a quem detivesse mais do que 7.500 ha, e a conceder terrenos rústicos por
arrendamento, a quem detivesse mais de 37.500 ha (até ao tecto fixado para concessões a
pessoa singular ou colectiva). Era ainda função do ministro do ultramar conceder por
aforamento, provisória ou definitivamente, e por arrendamento, mediante contrato especial,
terrenos rústicos de áreas superiores ao limite máximo, até ao limite absoluto de 100.000 ha.
Poderia o ministro do ultramar estabelecer, levantar ou modificar reservas de terrenos, nos
casos de alto interesse nacional.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 52


Era função do governador de Angola: estabelecer, levantar ou modificar reservas de terrenos;
conceder terrenos rústicos, por aforamento, ou autorizar a venda, a quem não totalizasse na
sua posse mais do que 7.500 ha nesse regime; conceder terrenos rústicos, por arrendamento,
a quem não totalizasse na sua posse mais do que 37.500 ha nesse regime (respeitando os
limites máximos fixados para cada pessoa singular ou colectiva); autorizar a passagem de
licenças de demarcação provisórias para áreas entre os 2.500 ha e o limite máximo da sua
competência; autorizar a ocupação antecipada de terrenos para aforamento ou arrendamento
até ao limite de 4.000 ha.

Aos governadores de distrito competia conceder provisoriamente terrenos rústicos até 2.500
ha, por aforamento.

As concessões por aforamento eram atribuídas inicialmente a título provisório, por um prazo
até 5 anos, e poderiam converter-se em definitivas se cumprissem as cláusulas de
aproveitamento mínimo e se o terreno estivesse definitivamente demarcado. A lei determinava
que a remissão do foro das concessões seria permitida, mediante condições a regulamentar.
As concessões por arrendamento, para fins de exploração pecuária, eram atribuídas por um
período inicial de 20 anos, renovável por períodos consecutivos de 5 a 10 anos.

Os terrenos ocupados pelos vizinhos das regedorias e aqueles necessários à sua economia
tradicional, eram considerados integrados no património da província de Angola. Os terrenos
nessas circunstâncias não poderiam ser concedidos ou vendidos enquanto se mantivesse a
ocupação. A lei estabelecia que ao Estado cabia acelerar a promoção do desenvolvimento
económico e social dos vizinhos das regedorias e fomentar o seu acesso à propriedade da
terra, nos termos gerais de direito. Nesta tarefa do acesso dos vizinhos das regedorias à
propriedade da terra, a lei anunciava futura regulamentação especial.

As concessões provisórias seriam declaradas caducas no caso de desaproveitamento ou de


uso diferente do autorizado, ou no caso de incumprimento das obrigações impostas pelo
regime florestal, no caso de concessões para exploração florestal.

No caso de as concessões já serem definitivas, seriam declaradas caducas se houvesse


desaproveitamento por mais de 3 anos consecutivos, ou no caso de incumprimento das
obrigações impostas pelo regime florestal, no caso de concessões para exploração florestal.

Considerava-se aproveitamento mínimo a execução integral do plano de exploração aprovado


ou, na sua falta, a utilização exigida por lei.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 53


8.3. O contexto histórico

Desde 1961, ano de publicação do Decreto nº 43894, até 1973, ano da publicação da Lei nº
6, Angola teve na guerra colonial o acontecimento mais determinante.

Respondendo às pressões externas e no sentido de apaziguar a tensão social, o governo


português levou a cabo uma série de reformas, destinadas a eliminar as formas arcaicas de
exploração colonial, ainda presentes. No seguimento dessas políticas, foi eliminado o trabalho
forçado, as culturas obrigatórias, e foi aberto o mercado angolano a capitais estrangeiros. No
entanto, a reacção política, mesmo através da revisão constitucional de 1971, nunca foi
suficiente para dotar de representatividade a maioria da população africana (ALEXANDRE,
2000b, pp. 191-197). Continuava a imperar uma lógica de defesa da população branca,
guiando-se pelo princípio da “autonomia progressiva”, expressa na revisão constitucional de
1971 e na nova lei orgânica do Ultramar de 1972. Mantinha-se um carácter centralizador,
embora fosse atribuído a Angola o “título honorífico” de Estado e dotada de tribunais próprios,
assembleia legislativa e governo. Provavelmente o propósito era de garantir uma perpetuação
da supremacia da população branca, na eventualidade de uma autonomia ou independência
(ROSAS, 1994, p. 548).

Economicamente, a presença de um importante contingente militar e as despesas públicas


associadas, serviram como dinamizador do mercado interno. No entanto, e apesar do plano
de criar um espaço único de circulação de pessoas, mercadorias e capitais, os fluxos
mercantis entre metrópole e colónias enfraqueceram. As importações oriundas de Portugal
caíram, e as exportações para a metrópole acompanharam a tendência. (ALEXANDRE,
2000b, pp. 191-197)

Quanto aos efeitos da guerra, Pélissier descreve uma fuga em massa das populações nos
territórios do Norte de Angola, logo no começo das hostilidades, e embora tenha havido um
retorno gradual, não compensou o êxodo inicial. Sobre a questão da terra, o mesmo autor
salienta o esforço legislativo de evitar conflitos entre a população indígena e os colonos,
através da atribuição às regedorias, de uma reserva de cinco vezes a área explorada pelos
africanos. No que respeita ao trabalho rural, os Decretos nº 44309 e 44310 de 1962,
decretaram o fim da obrigação de trabalhar e das sanções penais no caso de incumprimento
dos contratos, o que levou a um aumento significativo do salário mensal dos trabalhadores
rurais. Associadas a estas alterações, foram criados os mercados rurais, que diminuíram os
abusos praticados pelos comerciantes portugueses, sobre os pequenos produtores africanos.
No entanto, apesar dos esforços de apaziguamento, criava-se simultaneamente a Junta

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Provincial de Povoamento para acelerar o estabelecimento de camponeses portugueses em
Angola que não teve, contudo, grande sucesso. (PÉLISSIER, 2009, pp. 276-283)

8.4. Comentário ao diploma

O momento histórico no qual foi publicada a Lei nº 6 de 1973 é marcado pelo conflito militar
nos territórios coloniais portugueses. O período de aplicação desta lei acabou por ser
insignificante dada a proximidade da revolução de 25 de Abril de 1974 e a posterior
independência de Angola a 11 de Novembro de 1975, mas as tendências nela expressas
representam o último esforço do regime colonial no que respeita a lei de concessões de terras.

Um dos elementos mais inovadores desta lei de concessões foi a tentativa de generalizar o
acesso às concessões de terras, libertando os potenciais concessionários do espartilho
económico que eventualmente sofreriam, facilitando o acesso ao crédito. Com esta lei, surgiu
a possibilidade de subarrendamento de parte das concessões às instituições de crédito, em
caso de incumprimento das obrigações assumidas (Base XII).

Manteve-se a tendência de transferir competências para as autoridades administrativas locais,


com um aumento das áreas da competência de atribuição do governador geral.

No sentido do apaziguamento das relações entre colonos e povos africanos, e no seguimento


da tendência surgida no decreto nº 43894 de 1961, alargaram-se as condições de acesso à
terra por parte dos vizinhos das regedorias, estando impossibilitada a concessão de terras por
eles ocupadas. A possibilidade de africanos adquirirem terras nos moldes gerais da lei
também passa a estar formalmente assegurada.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 55


9. Conclusão

A iniciativa legislativa no campo da propriedade agrária, durante um processo de colonização


e na sua consolidação, resulta da conjugação de visões políticas, de objectivos económicos,
de condições materiais e sociais, do direito do colonizador que é transposto para o território e
da correlação de forças com o colonizado ou com potenciais competidores.

A missão central da produção legislativa assentava sobretudo na tarefa de regular o acesso


à terra, por parte dos colonizadores europeus, sem preocupações de maior com as
sociedades tradicionais. Na prossecução desse objectivo, a legislação teve de dar resposta a
preocupações transversais que iam surgindo. No território angolano, os principais desafios
tomavam a forma de ameaças à soberania portuguesa, oriundas de potências coloniais rivais,
e da pressão para tornar a colónia economicamente próspera, visando garantir a sua própria
viabilidade. Concomitantemente, as mudanças de regime que Portugal foi experimentando,
ao longo do século XIX e do século XX, foram introduzindo novas concepções que se
reflectiam no relacionamento entra a administração metropolitana e a administração colonial,
com influência no seu grau de autonomia e nas suas competências.

Em toda a legislação produzida, durante o período em estudo, esteve sempre presente a


opção de reservar terrenos tidos como de interesse público, ou cujos recursos fossem do
interesse estratégico. Massas de água, florestas e recursos minerais mantiveram-se na posse
do Estado e a sua exploração seria subordinada ao interesse público.

A preocupação de combater a especulação fundiária foi, também, transversal a todo o período


de estudo. O aproveitamento dos terrenos foi sempre uma das condições de atribuição de
concessões, variando os mecanismos disponíveis para a sua aplicação, que se foram
tornando sucessivamente mais severos. Sobretudo a partir da conferência de Berlim (1884),
quando se estabeleceu uma relação directa entre reconhecimento da soberania e a ocupação
efectiva, a necessidade de aproveitamento foi-se tornando cada vez mais urgente reflectindo-
se na lei de terras.

Quanto às modalidades de concessão, a preferência inicial pela venda, que só se manifestou


na Carta de Lei de 21 de Agosto de 1856, foi sendo substituída pela preferência pelo
aforamento para os casos de exploração agrícola, e pelo arrendamento, quando o uso se
destinasse à exploração de florestas ou à produção animal. A partir de 1911 deixou de ser
possível tomar a iniciativa de requerer a compra de terrenos, ficando restrita às autoridades a
capacidade de lotear e disponibilizar os terrenos para venda. Refira-se que o arrendamento
sempre foi a modalidade de concessão através do qual se poderiam obter as maiores áreas.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 56


Uma hipótese forte para a razão da opção pelo arrendamento e pelo aforamento, é a
possibilidade que davam ao Estado, de exercer mecanismos de obrigação do aproveitamento
e o incentivo ao investimento continuado, tendo como meta a posse plena da propriedade
através da remissão do foro, no caso do aforamento. O receio que vastas extensões na posse
de privados comprometessem a soberania pode ter sido a causa para nos casos de
exploração florestal e produção pecuária se optasse pela modalidade de arrendamento.

Os critérios de elegibilidade para o acesso a concessões não foram constantes durante o


período em estudo. Os indícios apontam para que a causa da variabilidade desses critérios
estivesse sobretudo relacionada com a conjugação entre objectivos de colonização e a
necessidade de garantir aproveitamento e eliminar ameaças à jurisdição portuguesa. Se por
um lado se pretendia fomentar a instalação de colonos no território, por outro pretendia-se
garantir que tivessem condições de investimento que garantissem a permanência e
aproveitamento. Se inicialmente qualquer súbdito português poderia requerer concessões, a
partir do século XX começaram a ser exigidas condições económicas, tais como a capacidade
de contratar ou garantias bancárias. Aos cidadãos ou sociedades estrangeiras era exigida a
submissão à lei portuguesa, e impostas limitações quanto à área máxima atribuída, exigências
evidentemente motivadas pela preocupação com a soberania. Grosso modo as opções nos
critérios de elegibilidade iam dando uma resposta directa à natureza das ameaças ao poder
político português.

A autonomia de que a administração colonial dispunha relativamente à administração


metropolitana foi oscilando, conforme os momentos políticos e o contexto histórico. No século
XIX a possibilidade de atribuição de concessões por parte da administração colonial era
diminuta, por oposição à administração central que não tinha qualquer limite de áreas
atribuíveis. A atribuição de alguma autonomia efectiva começa com a Carta de Lei de 9 de
Maio de 1901, que atribuía ao governador a possibilidade de conceder áreas extensas e, pela
primeira vez, estabelecia um tecto para as áreas concedíveis centralmente. O passo seguinte
surge com o advento da República, através da definição clara de áreas de competência
exclusiva da administração colonial, mas simultaneamente evitando a concentração de
poderes na figura do governador, exigindo o voto deliberativo do conselho de governo. O
espírito de descentralização patente nos primórdios do governo republicano, que concedeu à
administração colonial as competências mais alargadas que alguma vez teve, foi sendo
gradualmente suprimido, levando a uma redução das áreas de competência de atribuição da
administração colonial e perda da sua autonomia. Esta redefinição tomou lugar através de
legislação produzida em 1914, com continuidade em 1919 e posteriormente com uma forte
redução em 1923. Em 1932, já durante a Ditadura Nacional e em sintonia com as tendências

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 57


vividas na metrópole, dá-se uma nova redefinição das competências de atribuição de
concessões, nas quais a administração colonial recupera alguma autonomia, mas
personaliza-a na figura do seu governador que, dentro de certos limites, teria de ver as suas
decisões aprovadas centralmente. Em 1944 são estabelecidos novos limites de competência,
que se manterão em 1961, e que recuperam a partilha de responsabilidade do governador
com o seu conselho de governo. Nesta legislação surge a atribuição de poderes à
administração colonial local, reflexo da sua consolidação, e o tecto dos limites das concessões
centrais, através da possibilidade de contratos, cresce significativamente. A lei de 1973
aumenta as competências de atribuição de concessões da administração colonial, mas os
tectos de concessão são calculados com base na área acumulada de concessões anteriores
atribuídas ao requerente.

Os direitos tradicionais dos povos sempre tiveram uma posição secundária na legislação
colonial. O direito à terra, por parte das sociedades tradicionais, foi sempre subordinado ao
interesse colonial e sobretudo enquadrado nas necessidades económicas da potência
colonial, ou encarado como um compromisso para assegurar a pacificação e sustento da mão-
de-obra que se desejava disponível. Na primeira legislação de terras não existe qualquer
referência ao direito à terra pelos povos locais e a primeira tentativa de regular esses direitos
surge, sintomaticamente, no Regulamento do Trabalho Indígena de 1899. A regulamentação
do acesso à terra, por parte das populações africanas, assentou sobretudo num direito de
ocupação condicionado quanto ao uso e quanto às áreas, impondo um modelo agrícola e a
adopção de um modo de vida. Se, por um lado, para o usufruto do direito de ocupação era
imposto um modelo europeizado que à primeira vista levaria a uma assimilação de ordem
cultural e jurídica, por outro era removida qualquer possibilidade de dispor dos terrenos da
mesma forma que um colono europeu.

A evolução do reconhecimento dos direitos tradicionais não foi um processo linear. Sofreu
avanços e retrocessos. Se na primeira referência à propriedade indígena em legislação de
terras, que surgiu no regulamento para a execução da Carta de Lei de 9 de Maio de 1901, se
reconhecia o direito de propriedade sobre terrenos por eles cultivados e nos quais tivessem a
sua habitação construída, sem referência a áreas máximas, já na legislação de 1911 surgem
limitações à área. No entanto, se a Portaria nº 1292 de 1911 introduzia limitações de área,
também atribuía a posse plena à ocupação por mais de 20 anos (que isentaria do trabalho
forçado), embora condicionada à residência na propriedade. É neste momento legislativo que
surge a possibilidade de criação de reservas para os povos de Angola. Outro elemento
introduzido pela legislação de 1911 foi a necessidade de interacção com a administração

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 58


local, para titular o direito de ocupação, o que de certa forma representava uma submissão
ao poder colonial e a sua legitimação.

Seguidamente, pela legislação de 1919, fora das reservas poderia haver ocupação de
terrenos vagos, e em caso de concessão desses terrenos, poderiam os seus habitantes optar
entre a permanência ou por indemnizações. Nesse momento legislativo retrocedeu-se no
direito à posse plena da qual deixou de haver menção, passando a ser referida a titulação da
ocupação.

O espoletar da luta da independência de Angola (1961) e a crescente pressão internacional


levaram Portugal a amenizar a sua política colonial visando o apaziguamento da situação. Foi
assim, já na fase final da presença portuguesa em Angola, que pela primeira vez os povos
africanos puderam adquirir terra no regime geral sem exigências de assimilação, e se
alargaram as áreas reservadas.

A legislação de concessão de terras no território da Angola colonial acabou por ser marcada
pela tentativa de atingir equilíbrios e pelas alterações da natureza de regime de Portugal.
Tinha por missão regulamentar o acesso à terra, por colonizadores, num processo que se
desejava ambicioso e sedutor, mas simultaneamente pretendia impedir a especulação e o
desaproveitamento. Dotava-se de uma burocracia processual para neutralizar as ameaças à
soberania e ao aproveitamento dos terrenos, e posteriormente tentava agilizar os processos
para fomentar a chegada do investimento e da população. Pretendia o desenvolvimento da
autonomia administrativa colonial, mas desconfiava dessa autonomia e centralizava na
metrópole o poder de decisão (no anexo I encontra-se sintetizada num quadro a evolução das
competências nas atribuições de concessões). No que respeita ao acesso dos povos de
Angola à terra, nunca houve uma paridade de direitos. Foram sobretudo reconhecidos direitos
de ocupação sintonizados com os interesses económicos e as necessidades de pacificação.
Quando surgiram as reservas de terrenos para as populações naturais, estas não tinham parte
activa na sua definição nem localização.

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 59


Referências bibliográficas

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Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | 61


ANEXOS

Anexo I – Quadro com as competências de atribuição de concessões


Anexo II – Dados estatísticos das concessões atribuídas
Anexo I – Competências de atribuição de concessões

Quadro 1 – Síntese. Competências da atribuição de concessões por modalidade, área e


diploma legislativo (1856-1973)

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | Anexo I | 1


Quadro 1: COMPETÊNCIAS DE CONCESSÃO DE TERRENOS EM ANGOLA (1856-1973)
MODALIDADE DE
ANO DIPLOMA COMPETÊNCIA ÁREA
CONCESSÃO

governo metropolitano qualquer área qualquer forma


1856 Carta de Lei de 21 de Agosto de 1856
governador de Província em Conselho até 500 ha qualquer forma
governo metropolitano até 50000 ha aforamento
aforamento
1901 Carta de Lei de 9 de Maio de 1901
governador em conselho até 5000 ha arrendamento
venda
governo metropolitano de 10000 ha até 50000 ha aforamento
aforamento
governador com o voto deliberativo do até 10000 ha
arrendamento
conselho de governo
1911 Portaria nº 1292 de 1911 lotes até 3000 ha venda
aforamento
até 2000 ha
governador arrendamento
até 100 ha concessão a colonos
governo metropolitano de 5000 ha até 50000 ha aforamento
1914 Decreto nº 1145 de 1914
governador até 5000 ha aforamento
governo metropolitano de 5000 ha até 50000 ha aforamento
1919 Decreto nº 5847-C de 1919 até 5000 ha aforamento
governador
lotes até 5000 ha venda
governador até 1000 ha aforamento
mediante contrato especial com a
superior a 1000 ha aforamento
aprovação do conselho executivo
mediante contrato especial com voto
superior a 10000 ha aforamento
de aprovação do conselho legislativo
1923 Decreto nº 360 do Alto Comissariado mediante aprovação do poder
superior a 5000 ha aforamento
executivo
mediante contrato especial com a
superior a 1000 ha arrendamento
aprovação do conselho executivo
até 300 ha aforamento
governador de distrito
até 1000 ha arrendamento
governo metropolitano de 5000 ha até 50000 ha aforamento
governador até 5000 ha aforamento
1932 Decreto nº 21260
governador mediante condições
de 5000 ha até 10000 ha aforamento
fixadas pelo conselho de governo
superior a 5000 ha até
15000 ha (cada concessão aforamento
ministro das colónias só pode ter até 5000 ha)
de a 25000 ha até 50000
arrendamento
ha
Lei nº 2001 e reafirmado no Decreto nº governador ouvido o conselho de
1944 de 2000 ha a 5000 ha aforamento
33727 governo
governador até 2000 ha aforamento
governador ouvido o conselho de
até 25000 ha arrendamento
governo
governadores de província ouvida a
até 400 ha aforamento
junta provincial e provisóriamente
superior a 5000 ha aforamento
superior a 25000 ha arrendamento
ministro do Ultramar
mediante contrato
até 100000 ha
especial
ministro do Ultramar, mediante de 100000 ha até 250000 mediante contrato
autorização do conselho de ministros ha especial
1961 Decreto nº 43894
até 2000 ha aforamento
governador
até 5000 ha arrendamento
governador com parecer do conselho de 2000 ha a 5000 ha aforamento
de governo
de 5000 ha até 25000 ha arrendamento
governadores de distrito até 1000 ha aforamento
aforamentos em que o
requerente tenha mais
aforamento
7500 ha de área somada
em concessões
arrendamentos em que o
ministro do Ultramar
requerente tenha mais
arrendamento
37500 ha de área somada
em concessões
mediante contrato
até 100000 ha
1973 Lei nº 6 especial
ministro do Ultramar,ouvido o conselho de 100000 ha até 250000 mediante contrato
de ministros ha especial
até que requerente tenha
7500 ha de área somada aforamento
em concessões
governador
até que requerente tenha
37500 ha de área somada arrendamento
em concessões
governadores de distrito até 2500 ha aforamento

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | Anexo I | 2


Anexo II – Estatística das concessões em Angola

Quadro 2 – Concessões em Angola atribuídas por tipo, área e ano

Fonte: Anuário Estatístico de Angola

Gráfico 1: Número de concessões por ano

Gráfico 2: Área de concessões por ano

Gráfico 3: Número de concessões atribuídas por tipo

Gráfico 4: Área de concessões atribuídas por tipo

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | Anexo II | 1


Quadro 2: CONCESSÕES EM ANGOLA
Por Aforamento
Gratuitas e títulos de
TOTAL Por Arrendamento
Ano Provisórias Definitivas propriedade

Nº Área (ha) Nº Área (ha) Nº Área (ha) Nº Área (ha) Nº Área (ha)
1955 75 61 110,0800 60 46 449,0000 13 13 461,0000 2 1 200,0800
1956 147 94 111,7450 103 59 220,6140 41 22 639,9950 3 12 251,1360
1957 91 59 867,7966 76 50 644,4000 15 9 223,3966
1958 156 80 752,4065 125 65 048,7884 30 13 703,6181 1 2 000,0000
1959 254 104 641,3139 197 73 028,4039 50 31 002,3069 5 80,1240 2 530,4791
1960 392 125 580,0330 324 74 420,5814 62 39 371,6154 5 11 588,8362 1 199,0000
1961 384 106 423,5361 321 68 422,2665 55 27 545,6102 4 3 510,0840 4 6 945,5754
1962 927 333 752,8322 666 140 031,2051 252 179 185,8201 8 11 300,0000 1 3 235,8070
1963 739 175 643,5296 522 40 581,6614 210 96 698,2720 7 38 363,5962
1964 729 102 775,6781 614 74 508,5784 105 25 196,3923 1 700,0000 9 2 370,7074
1965 382 45 021,9606 355 386,4336 13 18,8205 12 43 696,7065 2 920,0000
1966 680 109 266,8340 578 60 023,3026 90 16 845,0289 7 27 902,6839 5 4 495,8186
1967 618 169 964,8807 528 80 091,5766 70 25 419,5218 12 60 653,1000 8 3 800,6823
1968 350 124 016,9523 255 33 956,1115 58 15 959,6975 37 74 101,1433
1969 338 145 055,6205 201 50 813,4653 78 18 698,4406 11 73 686,1690 48 1 857,5456
1972 401 309 574,7000 197 67 774,0000 114 61 102,0000 37 175 604,0000 53 5 094,7000

Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | Anexo II | 2


Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | Anexo II | 3
Angola. Concessões de terras e direitos tradicionais (1856-1973). Análise de legislação | Anexo II | 4

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