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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ

ADILSON MACHIAVELLI

TERRENOS DE MARINHA E SEUS ACRESCIDOS:

dificuldades práticas e jurídicas

Tijucas

2008
ADILSON MACHIAVELLI

TERRENOS DE MARINHA E SEUS ACRESCIDOS:

dificuldades práticas e jurídicas

Monografia apresentada como requisito parcial para a


obtenção do título de Bacharel em Direito, pela
Universidade do Vale do Itajaí, Centro de Ciências
Sociais e Jurídicas, campus de Tijucas.

Orientador: Prof. MSc. Alexandre Botelho

Tijucas
2008
ADILSON MACHIAVELLI

TERRENOS DE MARINHA E SEUS ACRESCIDOS:

dificuldades práticas e jurídicas

Esta Monografia foi julgada adequada para obtenção do título de Bacharel em Direito e
aprovada pelo Curso de Direito do Centro de Ciências Sociais e Jurídicas, Campus de Tijucas.

Área de Concentração/Linha de Pesquisa: Direito Público/Direito Administrativo

Tijucas, 23 de junho de 2008.

Prof. MSc. Alexandre Botelho

Orientador

Prof. MSc. Marcos Alberto Carvalho de Freitas

Responsável pelo Núcleo de Prática Jurídica


Este trabalho não poderia deixar de ser dedicado a você, Loirí, por
tudo o que representou, e representa, na minha vida.

Também dedico à Aline, motivo de orgulho sincero, à Dona Helita,


pessoa incrível, a frente de seu tempo e à memória de Seu Pópo,
alguns conheciam por Alduino, de quem espero ter herdado um pouco
do caráter.
Expresso sinceros agradecimentos:

À toda a minha família, pelo apoio, pelo carinho, pela compreensão e pela confiança que
depositaram em mim.

Ao Professor Orientador, Prof. MSc. Alexandre Botelho, norte seguro na orientação deste
trabalho.

Aos Professores do Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí, Campus de Tijucas,


que muito contribuíram para a minha formação jurídica.

Aos colegas de classe, tanto do 9º como do 10º períodos, pelos momentos que passamos
juntos, pelas experiências trocadas e pelo apoio.

A todas as pessoas que trabalham na biblioteca e na secretaria do Campus de Tijucas e na


biblioteca do Campus de Balneário Camboriú da UNIVALI, pela presteza e dedicação.

Ao prefeito de Itapema, Prof. Sabino, pela confiança depositada e pelo apoio quando
necessário.

A todo o pessoal da Fundação Ambiental Área Costeira de Itapema – FAACI, pela dedicação,
companheirismo, respeito, compreensão, amizade, colaboração....

A todos, enfim, que de alguma forma colaboraram com críticas e sugestões para a realização
deste trabalho.
Qualquer um que escreve tem o privilégio de julgar os vivos e os
mortos, porém nós próprios somos julgados por outros, que o serão
por sua vez, e de século em século todas as sentenças são reformadas.

Voltaire
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí –
UNIVALI, a Banca Examinadora e o Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca
do mesmo.

Tijucas, 23 de junho de 2008.

Adilson Machiavelli

Graduando
RESUMO

Os Terrenos de Marinha e seus acrescidos são bens da União cuja origem remonta à época do
Brasil colônia. Foram instituídos como garantia de um espaço livre para a defesa e para
serviços públicos e particulares, adquirindo, posteriormente, importância como fonte de
rendas para a União. Atualmente encontram-se regidos, basicamente, pela CRFB/1988, pelo
Decreto-Lei n. 9.760/1946, pela Lei n. 9.636/1988 e o pelo Decreto n. 3.725/2001. O regime
patrimonial a que estão sujeitos é, em regra, o de bens dominicais da União, regidos pelo
instituto da enfiteuse, podendo ainda, constituírem-se em bens de uso comum do povo, ou
bens de uso especial. A delimitação destes terrenos apresenta elevada carga de incerteza, fruto
da necessidade de se estabelecer a Linha de Preamar Média de 1831, atribuindo-se a
Secretaria do Patrimônio da União – SPU a obrigação de identificar, demarcar, cadastrar,
registrar, fiscalizar, regularizar as ocupações e promover a utilização destes bens imóveis da
União. Decisões judiciais têm reconhecido o direito de interessados diretos participarem do
processo administrativo de demarcação destes terrenos, bem como a inocorrência de Terrenos
de Marinha ao longo de Rio Estadual por não recepção, na íntegra, do Decreto-Lei 9.760/1946
pela Constituição de 1946 e subseqüentes. Atualmente, viceja entendimento de que,
excetuados aqueles definidos aos longos dos rios e lagoas, deve-se manter o instituto Terrenos
de Marinha e seus acrescidos como bens da União, atribuindo-lhes não mais função
arrecadadora, mas sim de preservação e/ou recuperação ambiental, compatível com uma
função sócio-ambiental condizente com um bem de expressão constitucional.

Palavras-chave: Terrenos de Marinha Linha de Preamar Média Rio Estadual


ABSTRACT

The tide lands and those added to them are property of the Union whose origin dates back to
the colony Brazil times. Were imposed as a warranty of a free space for the protection to
private and public services, acquiring then importance as a source of income for the Union.
Currently they are ruled, basically, by The Brazil Federal Constitution of 1988, by Decree-law
no. 9.760/1946, by Law no. 9.636/1988 and by the Decree no 3.725/2001. The scheme assets
that are subject is as a rule, the Union of property domain, conducted by the emphyteusis
institute can be, yet, constitute themselves into common use of the people or assets of special
use. The demarcation of these lands presents high burden of uncertainty because of the need
to establish the line big tide average of 1831 year, giving up the Registry of the Patrimony of
the Union - RPU be required to identify, demarcate, register, monitor, regulate the
occupations and promote the use of such property of the Union. Court decisions have
recognized the right of direct interested participation of the concerned administrative
demarcation process these lands. and the not occurrence of tide lands across the state rivers,
because a not receiving, in full, of Decree-law no. 9.760/1946 by the Constitution of 1946 and
subsequent. Currently, shine understanding that defined, exception that defined across the
rivers and lakes, must had the institute of tide lands and those added to them should assets as
of the Union, giving them no longer collection function, but to preserve and/or environmental
recovery, consistent with a socio-environmental function agree with a assets from
constitutional level.

Key-words Tide Lands Line Big Tide Average State River


LISTA DE ABREVIATURAS

A. Autor

abr. Abril

ago. Agosto

ac. Acórdão

art., arts. artigo, artigos

cap., caps. capítulo, capítulos

Des. Desembargador

dez. Dezembro

doc., docs. documento, documentos

Dr., Dra. Doutor, Doutora

ed. Edição

etc. et cetera (e assim por diante)

fev. Fevereiro

fl., fls. folha; folhas

Internet rede mundial de computadores interconectados

j. julgado em

Jan. Janeiro

kms Quilômetros

m Metro

m. mês, meses

mar. Março

Min. Ministro
MSc. Mestre, Mestra

n. Número

N. do A. Nota do Autor

nov. Novembro

obs. Observação

org. Organizador

p., pp. página, páginas

Prof., Profa. Professor, Professora

r. Respeitável

REsp. Recurso Especial

set. Setembro

vol., vols. volume, volumes

% por cento

§ Parágrafo
LISTA DE SIGLAS

ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

CC/2002 Código Civil (2002)

CPC Código de Processo Civil

CRFB/1988 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

DHN Diretoria de Hidrografia e Navegação do Comando da Marinha

DJU Diário da Justiça da União

DOU Diário Oficial da União

DSG Diretoria do Serviço Geográfico do Exército

FAACI Fundação Ambiental Área Costeira de Itapema

GEADE Gerência de Área de Cadastramento e Demarcação

IBGE Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INMETRO Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial

IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

IPTU Imposto sobre propriedade Predial e Territorial Urbana

ITR Imposto sobre propriedade Territorial Rural

LPM/1831 Linha de Preamar Média do ano de 1831

MPOG Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão

OAB Ordem dos Advogados do Brasil

ON Orientação Normativa

PEC Proposta de Emenda à Constituição

SPU Secretaria do Patrimônio da União

STF Supremo Tribunal Federal


STJ Superior Tribunal de Justiça

TRF4 Tribunal Regional Federal da 4ª Região – Porto Alegre/RS

UNIVALI Universidade do Vale do Itajaí


LISTA DE CATEGORIAS E SEUS CONCEITOS OPERACIONAIS

Lista de categorias1 que o Autor considera estratégicas à compreensão do seu trabalho, com
seus respectivos conceitos operacionais2.

Aforamento
Enfiteuse ou Aforamento é o instituto civil que permite ao proprietário atribuir a outrem o
domínio útil do imóvel, pagando a pessoa que o adquire, e assim se constitui enfiteuta, ao
senhorio direto uma pensão ou foro anual, certo e invariável (CC de 1916, art. 678). Consiste,
pois, na transferência do domínio útil do imóvel público para a posse, uso e gozo perpétuos da
pessoa que irá utiliza-lo daí por diante. Cf. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal
Brasileiro. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 325.

Bem Dominical
É o que compõe não só o patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios, bem como o
das pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado a estrutura de direito privado,
como objeto do direito pessoal ou real dessas pessoas de direito público interno. Pode
abranger coisas móveis ou imóveis, como título de dívida pública, estrada de ferro, terra
devoluta, terreno de marinha, mar territorial, oficina e fazenda do Estado, queda d’água,
jazida e minério, arsenal das Forças Armadas etc. Cf. DINIZ, Maria Helena. Dicionário
Jurídico. vol.1, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 470-471.

Carta Régia
Documento que era firmado pelo rei de Portugal e dirigido a algum súdito em importante
missão, dando-lhe instruções, delegando-lhe competência para a prática de certos atos etc. Cf.
DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. vol.1, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 611.

Constituição
Lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do
Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar,
distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos. Cf. MORAES,
Alexandre de. Direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 36.

1
Denomina-se “categoria” a palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou expressão de uma idéia. Cf.
PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica: idéias e ferramentas úteis ao pesquisador do Direito. 8. ed.
Florianópolis: OAB Editora, 2003, p. 31.
2
Denomina-se “Conceito Operacional” a definição ou sentindo estabelecido para uma palavra ou expressão, com
o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias expostas ao longo do presente trabalho. Cf.
PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica: idéias e ferramentas úteis ao pesquisador do Direito, p. 43.
Decreto-Lei
Assim se dizia do ato emanado do Poder Executivo, quando, no seu fundo e na sua forma, se
equiparava às próprias leis, emanadas do Poder Legislativo. Peculiar aos regimes de exceção,
tendo sido empregado entre nós durante o Estado novo e o Movimento de 1964, foi abolido
pela CF/88. Cf. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 419.

Linha de Preamar Média


Linha imaginária que corresponde à altura da preamar média, ou média das marés altas,
definida para uma determinada região litorânea mediante observações levadas a cabo em
período determinado.

Rio Estadual
Corrente de água natural que deságua em outro curso de água, num lago ou no mar, tendo
todo o seu curso, desde a nascente até a foz, em território de um só Estado e sob domínio legal
deste.

Rio Federal
Curso de água natural que deságua em outro curso de água, num lago ou no mar, tendo o seu
curso em terrenos de domínio da União, ou que banhe mais de um Estado, sirva de limites
com outros países, ou se estenda a território estrangeiro ou dele provenha (definição
construída com base na CRFB/1988, art. 20, III).

Terrenos Acrescidos de Marinha


São os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e
lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha. (definição legal – Decreto-Lei 9.760/1946,
art. 3º).

Terrenos Marginais
São os que banhados pelas correntes navegáveis, fora do alcance das marés, vão até a
distância de 15 (quinze) metros, medidos horizontalmente para a parte da terra, contados
dêsde a linha média das enchentes ordinárias (definição legal – Decreto-Lei 9.760/1946, art.
4º).

Terrenos de Marinha
São terrenos situados na costa marítima, e nas margens de rios e lagoas até onde se faça sentir
a influência das marés, bem como os que contornam ilhas situadas em zona sob influência das
marés, em faixas com 33 (trinta e três metros) de largura, medidos horizontalmente, a partir
da Linha de Preamar Média de 1831, em direção a terra. (Conceito elaborado a partir da
definição legal – Decreto-Lei 9.760/1946).
SUMÁRIO

RESUMO................................................................................................................................... 7

ABSTRACT .............................................................................................................................. 8

LISTA DE ABREVIATURAS................................................................................................. 9

LISTA DE SIGLAS................................................................................................................ 11

LISTA DE CATEGORIAS E SEUS CONCEITOS OPERACIONAIS............................ 13

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 17

2 TERRENOS DE MARINHA.............................................................................................. 22
2.1 CONCEITO........................................................................................................................ 22
2.2 INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 22
2.3 DESLOCAMENTO HISTÓRICO ..................................................................................... 23
2.3.1 Situação Atual ................................................................................................................. 31
2.4 TERRENOS ACRESCIDOS DE MARINHA ................................................................... 34
3 UTILIZAÇÃO DOS TERRENOS DE MARINHA.......................................................... 37
3.1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 37
3.2 REGIME PATRIMONIAL ................................................................................................ 37
3.3 FORMAS DE UTILIZAÇÃO ............................................................................................ 40
3.3.1 Tendências do regime de Aforamento............................................................................. 47
4 DOS PROBLEMAS DE ORDEM PRÁTICA .................................................................. 50
4.1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 50
4.2 DEMARCAÇÃO DOS TERRENOS DE MARINHA....................................................... 50
4.3 A LINHA DE PREAMAR MÉDIA ................................................................................... 54
4.4 A DELIMITAÇÃO DE TERRENOS DE MARINHA EM RIOS E LAGOAS ................ 61
4.4.1 Delimitação em lagoas..................................................................................................... 61
4.4.2 Delimitação em rios......................................................................................................... 63
5 DOS PROBLEMAS DE ORDEM JURÍDICA ................................................................. 66
5.1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 66
5.2 DEMARCAÇÃO DOS TERRENOS DE MARINHA....................................................... 66
5.3 EXISTÊNCIA DE TERRENOS DE MARINHA AO LONGO DE RIO ESTADUAL .... 69
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 73

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 79


1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objeto3 os Terrenos de Marinha e seus acrescidos, ou seja,
das faixas de terras específicas ocorrentes ao longo de todo o litoral brasileiro, delimitadas
com base na Linha de Preamar Média de 1831. Devido ao amplo espectro destes institutos, o
trabalho será focado no deslocamento histórico, formas de utilização e, notadamente, com
relação às dificuldades práticas e jurídicas para a delimitação dos mesmos.

A importância do estudo deste tema reside na relevância que tais terrenos apresentam
sob enfoques diversos: são bens que apresentam elevada valoração econômica que lhes atribui
a indústria imobiliária; constituem-se em significativa fonte de recursos para a administração
pública federal; possuem alta significância como instrumentos de preservação ambiental na
orla brasileira; são de difícil delimitação prática. Tais características, normalmente
antagônicas entre si, tornam os Terrenos de Marinha e seus acrescidos objetos principais de
crescente número de ações judiciais.

Ressalte-se que, além de ser requisito imprescindível à conclusão do curso de Direito


na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, o presente relatório monográfico também vem
colaborar para o conhecimento de um tema que, longe de ser novidade no campo jurídico,
apresenta sérias lacunas na doutrina pátria, apesar da enorme dimensão social-prática de que
estão imbuídos, repletos de nuances a serem destacadas pelos intérpretes jurídicos.

O presente tema, na atualidade, encontra-se praticamente restrito aos tribunais e a


artigos publicados em periódicos nacionais ou páginas da internet, com raríssimas obras
consolidadas que os tenham como mote principal. A falta de ampla bibliografia destoa da
relevância atual do tema, que abrange a porção mais densamente povoada do Brasil, seu
litoral, e que carrega elevada carga de incerteza dada às dificuldades de determinação da
Linha de Preamar Média de 1831, condição fundamental para a demarcação dos Terrenos de

3
Nesta Introdução cumpre-se o previsto em PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa Jurídica: idéias e
ferramentas úteis para o pesquisador do Direito, p. 170-181.
18

Marinha e dos Terrenos Acrescidos de Marinha. Tais dificuldades acabam por prejudicar o
correto exercício do direito de propriedade de muitas pessoas junto à faixa litorânea.

A escolha do tema é fruto do interesse pessoal do pesquisador em conhecer de um


tema de inegável importância para cidades litorâneas, quer por sua dimensão junto a indústria
imobiliária, quer por sua dimensão junto ao meio ambiente, assim como para instigar novas
contribuições na compreensão dos fenômenos jurídicos-políticos, especialmente no âmbito de
atuação do Direito Constitucional, Administrativo e Ambiental.

Em vista do parâmetro delineado, constitui-se como objetivo geral deste trabalho


identificar as principais dificuldades práticas e jurídicas para a delimitação dos Terrenos de
Marinha e dos Terrenos Acrescidos de Marinha ao longo da costa litorânea e, especialmente,
ao longo de Rio Estadual que sofra influência de marés.

O objetivo institucional da presente Monografia é a obtenção do Título de Bacharel


em Direito, pela Universidade do Vale do Itajaí, Centro de Ciências Jurídicas, Políticas e
Sociais, Campus de Tijucas.

Como objetivo específico, pretende-se verificar, do ponto de vista jurídico, se existem


Terrenos de Marinha e seus acrescidos ao longo de Rio Estadual.

A análise do objeto do presente estudo não está acentada sobre diretrizes teóricas
específicas ou artigos pré-selecionados. A reflexão realizada sobre o tema escolhido está
norteada pela dificuldade de se entender como um bem pertencente a um Estado, no caso um
rio que neste tem nascente e foz, pode gerar um bem para a União, caso dos Terrenos de
Marinha e seus acrescidos ao longo deste rio. Sob a luz desta dúvida, pretende-se investigar os
deslocamentos percebidos pelo objeto central da pesquisa, especialmente na literatura jurídica
contemporânea, colmatando seu significado na atualidade.

Não é o propósito deste trabalho adentrar nos procedimentos da União no tocante a


gestão dos Terrenos de Marinha e seus acrescidos ou de como eles são, de fato, utilizados. Por
certo não se estabelecerá um ponto final em referida discussão. Pretende-se, tão-somente,
aclarar o pensamento existente sobre o tema, circunscrevendo-o às dificuldades de ordem
prática e de ordem jurídica que condicionam a demarcação destes bens.

Para o desenvolvimento da presente pesquisa foram formulados os seguintes


questionamentos:
19

a) É possível, no presente, definir-se a Linha de Preamar Média de 1831 com


segurança, tanto ao longo da costa litorânea, como ao longo dos rios e lagoas que sofrem
influência das marés?

b) Há, do ponto de vista estritamente jurídico, Terrenos de Marinha e Terrenos


Acrescidos de Marinha, que são bens da União, ao longo daqueles rios e lagoas que são,
constitucionalmente, definidos como bens dos Estados?

Já as hipóteses consideradas foram as seguintes:

a) Sim, é possível a determinação, com elevado grau de precisão, da Linha de Preamar


Média de 1831 tanto para a costa litorânea, como para rios e lagoas que sofram influência das
marés.

b) Não, não é possível a determinação com o necessário grau de acuidade da Linha de


Preamar Média de 1831.

c) Sim, o ordenamento jurídico pátrio abarca a ocorrência de Terrenos de Marinha e


seus acrescidos ao longo de rios e lagoas definidos como bens estaduais.

d) Não, tal hipótese, não é, constitucional e/ou legalmente, amparada.

Finalmente, buscou-se nortear as hipóteses formuladas com as seguintes variáveis:

a) O Congresso Nacional, através de lei, altere o ano base da Linha de Preamar Média
que define os Terrenos de Marinha e seus acrescidos, trazendo-o para o presente ou para
passado próximo;

b) O Congresso Nacional, através de lei, retire do Decreto-Lei n. 9.760/1946, o


dispositivo que estabelece a existência de Terrenos de Marinha e seus acrescidos aos longos
de rios e lagoas que sofram influência de marés;

c) O Congresso Nacional, através de uma Emenda Constitucional, retire dos rol de


bens da União (art. 20 da CRFB/1988) os Terrenos de Marinha e seus acrescidos.

O relatório final da pesquisa foi estruturado em quatro capítulos, podendo-se,


inclusive, delineá-los como quatro molduras distintas, mas conexas: a primeira, atinente aos
deslocamentos históricos e situação atual dos Terrenos de Marinha e Terrenos Acrescidos de
Marinha; a segundo versa sobre o regime patrimonial e formas de utilização destes terrenos; a
terceira atacou as dificuldades práticas para a demarcação espacial de tais terrenos; e, por
20

derradeiro, a quarta sopesou as dificuldades jurídicas que cercam o instituto dos Terrenos de
Marinha e seus acrescidos, dentro dos limites propostos de atuação da pesquisa.

Quanto à metodologia empregada, registra-se que, na fase de investigação foi


utilizado o método dedutivo, e o relatório dos resultados expresso na presente monografia é
composto na base lógica dedutiva4, já que se parte de uma formulação geral do problema,
buscando-se posições científicas que os sustentem ou neguem, para que, ao final, seja
apontada a prevalência, ou não, das hipóteses elencadas.

Nas diversas fases da pesquisa, foram acionadas as técnicas do referente, da


categoria, do conceito operacional e da pesquisa bibliográfica5.

É conveniente ressaltar, enfim, que, seguindo as diretrizes metodológicas do Curso de


Direito da Universidade do Vale do Itajaí, as categorias fundamentais, são grafadas, sempre,
com a letra inicial maiúscula e seus conceitos operacionais apresentados em Lista de
Categorias e seus Conceitos Operacionais, ao início do trabalho.

Os acordos semânticos que procuram resguardar a linha lógica do relatório da pesquisa


e respectivas categorias, por opção metodológica, estão apresentados na Lista de Categorias
e seus Conceitos Operacionais, conforme sugestão apresentada por Cesar Luiz Pasold, muito
embora algumas delas tenham seus conceitos mais aprofundados no corpo da pesquisa.

Ressalte-se que a estrutura metodológica e as técnicas aplicadas neste relatório estão


em conformidade com as propostas apresentadas no Caderno de Ensino: formação
continuada. Ano 2, número 4, assim como nas obras de Cezar Luiz Pasold, Prática da
pesquisa jurídica: idéias e ferramentas úteis ao pesquisador do Direito e Valdir Francisco
Colzani, Guia para redação do trabalho científico.

O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as Considerações Finais, nas quais


são apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da estimulação à continuidade dos
estudos e das reflexões sobre os Terrenos de Marinha e seus acrescidos, notadamente quanto a
sua utilidade como meio de garantia da preservação ambiental na orla brasileira.

4
Sobre os “Métodos” e “Técnicas” nas diversas fases da pesquisa científica, vide PASOLD, Cesar Luiz. Prática
da Pesquisa Jurídica: idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do Direito, p. 99-125.
5
Quanto às “Técnicas” mencionadas, vide PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa Jurídica: idéias e
ferramentas úteis para o pesquisador do Direito, p. 61-71, 31- 41, 45- 58, e 99-125, nesta ordem.
21

Com este itinerário, espera-se alcançar o intuito que ensejou a preferência por este
estudo: demonstrar que, apesar das dificuldades na sua delimitação, Terrenos de Marinha e
Terrenos Acrescidos de Marinha constituem-se em institutos importante dentro do
ordenamento jurídico pátrio ao longo de uma região do País alvo de intensa cobiça por parte
da indústria imobiliária, a costa.
2 TERRENOS DE MARINHA

2.1 CONCEITO

Na elaboração das categorias básicas e conceitos operacionais assumidos neste


trabalho cunhou-se, a partir da definição legal de Terrenos de Marinha contida no Decreto-Lei
9.760/19466, o seguinte conceito: Terrenos de Marinha: São terrenos situados na costa
marítima, e nas margens de rios e lagoas até onde se faça sentir a influência das marés, bem
como os que contornam ilhas situadas em zona sob influência das marés, em faixas com 33
(trinta e três metros) de largura, medidos horizontalmente, a partir da Linha de Preamar Média
de 1831, em direção a terra.

Com o intuito de trazer um pouco de luz sobre este instituto, apresenta-se, na


seqüência, considerações acerca de seu deslocamento histórico, bem como sobre os Terrenos
Acrescidos de Marinha e a sua situação atual.

2.2 INTRODUÇÃO

Parcela considerável do patrimônio imobiliário da União encontra-se localizada nos


terrenos que, em regra, se limitam com as praias brasileiras. Tais áreas são conhecidas como
Terrenos de Marinha e correspondem à faixa de 33 metros, medidos horizontalmente,
contados da Linha de Preamar Média do ano de 1831 em direção a terra.

A expressão "medidos horizontalmente" visa a evitar que nos locais em que existam
aclives mais acentuados, a faixa destes terrenos, por efeito trigonométrico, ficasse reduzida a
menos de 33 metros em planta, se a medição se efetuasse segundo a inclinação da área.

Trata-se de um instituto peculiar do direito brasileiro que tem sido citado, com alguma
freqüência, na mídia nacional, em razão de inconformismos ou processos judiciais nos quais

6
BRASIL. Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946. Dispõe sôbre os bens imóveis da União e dá outras
providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del9760compilado.htm>.
Acesso em: 20 abr. 2008.
23

são o objeto principal, em razão dos valores atribuídos ao foro anual e taxa de ocupação
devidos pelos detentores de sua posse ou em razão de propostas de alterações normativas em
trâmite no Congresso Nacional, tanto no nível constitucional, como infraconstitucional.

Com relação aos processos judiciais, buscas nas páginas da internet dos tribunais de
justiça tendo Terrenos de Marinha como argumento de pesquisa, indicam que tais processos
versam, basicamente, sobre três assuntos: a) cobrança de foro anual e da taxa de ocupação a
serem pagos pelos detentores do domínio útil destas áreas; b) inocorrência de Terrenos de
Marinha e/ou inconformidades na sua delimitação; e c) demandas ambientais decorrentes da
utilização destas áreas sem o devido licenciamento ambiental.

A par destas questões há, ainda, discussões freqüentes sobre a utilidade de manutenção
desta figura jurídica havendo, inclusive, Proposta de Emenda à Constituição7 (n. 57, de
6/6/2007) de autoria do Senador Almeida Lima que propõe a extinção dos Terrenos de
Marinha e de seus acrescidos do rol de bens da união. Proposta de Emenda à Constituição8 de
igual teor (n. 40, de 5/5/1999) de autoria do Senador Paulo Hartung foi arquivada ao final da
52ª Legislatura (final de 2006).

Trata-se de um instituto com longa história dentro do ordenamento jurídico pátrio,


cuja origem remonta à época do Brasil colônia. Um entendimento minimamente adequado
acerca dos Terrenos de Marinha exige que se faça um pequeno escorço histórico do
surgimento e evolução deste instituto dentro do ordenamento jurídico pátrio.

2.3 DESLOCAMENTO HISTÓRICO

Com o descobrimento do Brasil, o Estado português, respaldado no tratado de


Tordesilhas, incorporou as novas terras ao seu patrimônio. Localmente, a organização política
dos nativos não era suficiente para opor resistência a esta incorporação, ao menos nos

7
BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição nº 53, de 2007. Revoga o inciso VII do art. 20
da Constituição e o § 3º do art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para extinguir o instituto
do terreno de marinha e seus acrescidos e para dispor sobre a propriedade desses imóveis. Senador Almeida
Lima. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=81429>.
Acesso em: 20 abr. 2008.
8
BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição nº 40, de 1999. Revoga o Inciso VII do Artigo
20 da Constituição Federal e o § 3º do Artigo 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
extinguindo os terrenos de marinha e seus acrescidos e dispondo sobre a sua destinação. Senador Paulo Hartung.
Disponível em: <http://www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=40377>. Acesso em:
20 abr. 2008.
24

momentos iniciais da apropriação e colonização. Desta forma, as terras descobertas passaram


ao domínio da Coroa9.

Com a independência, as terras foram naturalmente transferidas ao Estado brasileiro10.


Por evidente, não foram incluídas nesta transferência as terras que haviam sido anteriormente
transferidas pela coroa à família real, à Igreja, e a particulares.

Os Terrenos de Marinha surgem com a idéia original de segurança e serviço, expressa


de maneira bastante clara no primeiro documento conhecido sobre o tema, a Ordem Régia de
21 de outubro de 1710, que já vedava que as terras dadas em sesmarias11 compreendessem as
marinhas, as quais deveriam estar "desimpedidas para qualquer serviço da Coroa e de defesa
da terra". Enfim, é uma área nobre que se reservou ao domínio público12.

Em sua obra de 200313, Paulo Affonso Leme Machado também esclarece, de forma
clara e sucinta, esta concepção inicial, e ressalta a importância atribuída aos Terrenos de
Marinha, desde a época do Brasil colônia, até os dias atuais, nos seguintes termos:

A Carta Régia de 21.10.1710 determinava que “as sesmarias nunca deveriam


compreender a marinha, que sempre deve estar desimpedida para qualquer
incidente do meu serviço e defesa da terra”. A preocupação com a defesa do
litoral e das zonas adjacentes foi uma das preocupações que levou a Coroa
Portuguesa a reservar as “marinhas”. Essa era a idéia mater nos diversos

9
Portugal e Espanha, pioneiros europeus da expansão ultramarina, recorreram à autoridade do Papa para
legitimar a posse de suas descobertas. Uma bula papal de 1493 estabeleceu um meridiano que passava a 100
léguas a oeste de Cabo Verde como divisor dos domínios de Portugal (à leste) e Espanha (à oeste). Neste limite o
Brasil estaria sob domínio espanhol. No ano seguinte, 1494, foi negociada uma nova divisão, dando origem ao
Tratado de Tordesilha, que estabeleceu como divisor do mundo ocidental um meridiano localizado a 370 léguas
a oeste de Cabo Verde, ampliando o domínio português, incluindo, assim, parte do que viria a ser o Brasil. Esta
divisão do mundo foi contestada por potências européias (Holanda, França, Inglaterra) o que forçou Portugal e
Espanha a adotarem uma atitude efetiva em relação às terras descobertas. A colonização, desta forma, viabilizou
a posse efetiva. Fonte: REFORMAS Pombalinas, Primeiras Contestações ao Sistema Colonial e Fixação de
Limites entre Portugal e Espanha. Disponível em: <http://www.culturabrasil.org/contestacoes.htm>. Acesso em:
16 mar. 2008.
10
BRASIL. Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946. Art. 1º - Incluem-se entre os bens imóveis da
União:...j) os que foram do domínio da Coroa.
11
Sesmaria: Terreno inculto ou abandonado que os reis de Portugal concediam a sesmeiros, para que o
cultivassem. Cf. FERREIRA, Aurelio Buarque de Hollanda. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua
Portuguesa. 11. ed. Rio de Janeiro: Nacional, 1987, p. 1108. (1301 p.).
12
MENEZES, Roberto Santana de. Regime patrimonial dos terrenos de marinha. Jus Navigandi, Teresina, ano
9, ano. 9, n. 485, 5 nov. 2004. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5855>. Acesso em:
12 ago. 2007.
13
Em homenagem ao leitor, vale esclarecer que, em edições mais recentes de sua obra (p.ex. 13ª edição, de
2005), Paulo Affonso Leme Machado revisa completamente o Título II, eliminando os capítulos II – Atividades
Relacionadas com o Meio Ambiente e III – Bens Ambientais na Constituição Federal de 1988, substituindo-os
pelo capítulo II – Constituição Federal e Meio Ambiente, não tratando mais dos Terrenos de Marinha.
25

países que instituíam essa limitação ao direito de propriedade. Essa diretriz


permaneceu, mas acrescida da idéia do livre acesso ao mar e da proteção do
meio ambiente litorâneo14.

Esta ordem real, de lavra do Rei D. João V, foi baixada durante a chamada Guerra dos
Mascates, conflagração entre Olinda e Recife, importantes cidades litorâneas, ocorrida entre
1710 e 171115.

Apesar deste evento histórico importante, Diógenes Gasparini ao comentar sobre a


origem do instituto Terrenos de Marinha dentro do ordenamento jurídico pátrio, salienta que
esta se deu na cidade do Rio de Janeiro:

Ao que tudo indica, os terrenos de marinha – ou simplesmente marinhas -,


como instituto do Direito, tiveram sua origem na cidade do Rio de Janeiro.
Realmente, os primeiros atos públicos que deles cuidaram, datados do século
XVII, fazem referências a fatos ocorridos nessa cidade. Por outro lado,
juristas e historiadores, ao se referirem a essa espécie de bem público, ligam-
na à antiga Rio de Janeiro16.

Uma importante obra sobre esse instituto jurídico e sua dimensão, é o livro de Rosita
de Souza Santos17, específico sobre o tema. Para a autora, a expresão “terra de marinha” ou
“terreno de marinha” foi estabelecido quando o País ainda era colônia.

Mariana Almeida Passos de Freitas também destaca que o primeiro documento


brasileiro conhecido que registra o termo “marinha” é a Ordem Régia, de 21 de outubro de
1710. Após essa data, ainda segundo a autora, diversos atos fazem referência a ele, tais como:
a Carta Régia, de 7 de maio de 1725, que mandava o Governador do Rio de Janeiro informar
sobre a conveniência de medir marinha entre o mar e as edificações; o Decreto, de 21 de
janeiro de 1809, que mandava aforar os terrenos das praias da Gamboa e Saco dos Alferes; o
Aviso, de 18 de novembro de 1818 que declarava que “15 braças da linha da água do mar e

14
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p.132-
133.
15
CABRAL, Gabriela. Guerra dos mascates. Disponível em <http://www.brasilescola.com/historiab/guerra-dos-
mascates.htm>. Acesso em: 20 abr. 2008.
16
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 861.
17
SANTOS, Rosita de Souza. Terras de marinha. Rio de Janeiro: Forense, 1985. 324 p.
26

pela sua borda são reservadas para servidão pública, e que tudo que toca a água do mar e
acresce sobre ela é da nação” 18.

A primeira lei que tratou expressamente sobre Terrenos de Marinha, de acordo com
Mariana Freitas, foi a Lei Orçamentária de 15 de novembro de 1831. Até então o assunto
estava reservado apenas à seara administrativa. Desta maneira, até essa data, os aforamentos
dos Terrenos de Marinha eram aproveitados apenas pelos que tinham conhecimento dos
editais publicados que, desde então, já não alcançavam a totalidade da população19. Dizia o
art. 51 da mencionada Lei Orçamentária:

Art. 51 O governo fica autorizado a arrecadar no anno financeiro de 1º de


julho de 1832 ao ultimo de junho de 1833, as rendas que fôrem decretadas
para o anno de 1831-1832, com as seguintes alterações:

14ª Serão postos à disposição das Câmaras Municipaes os terrenos de


Marinha, que estas reclamarem do Ministro da Fazenda, ou dos Presidentes
das Provincias, para logradouros publicos; e o mesmo Ministro da Côrte, e
nas Provincias os Presidentes em Conselho, poderão aforar a particulares
aquelles de tais terrenos que julgarem conveniente, e segundo o maior
interesse da Fazenda, estipulando também, segundo fôr justo, o fôro
daquelles dos mesmos terrenos, onde já se tenham edificado sem concessão,
ou que, tendo já sido concedidos condicionalmente, são obrigados a elle
desde a época da concessão, no que se procederá à arrecadação. O Ministro
da Fazenda no seu relatorio da sessão de 1832, mencionará tudo o que
ocorrer sobre este objecto20.

A observação do texto transcrito revela uma característica que parece própria dos atos
normativos da época em que foi editado. Em um mesmo tópico a lei contém diversas
decisões, conforme ficou bem explicado por Rosita de Souza Santos:

Deste momento em diante, como parece ter sido usual na época, quando em
uma mesma lei, e em um mesmo inciso, se tomavam variadas medidas e se
faziam diversas determinações, os terrenos de marinha alcançaram espaço
em um corpo de lei; passaram ao controle do Ministério da Fazenda, porque
sua renda foi incluída na receita pública; foram postos à disposição das
Câmaras Municipais para logradouros públicos; foi permitido ao Ministro da
Corte, e aos Presidentes nas Províncias, proceder o aforamento deles a

18
FREITAS, Mariana Almeida de Passos. Zona Costeira e Meio Ambiente: aspectos jurídicos. Curitiba:
Juruá, 2005. p. 166-167.
19
FREITAS, Mariana Almeida de Passos. Zona Costeira e Meio Ambiente: aspectos jurídicos. p. 167.
20
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4904, de 2005. Dispõe sobre a linha da preamar na fixação
dos terrenos de marinha e dá outras providências. Deputado Alceu Collares. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/sileg/integras/285125.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2008.
27

particulares; foi deixado a essas autoridades o julgamento do que fosse o ser


mais conveniente segundo o maior interesse da fazenda, a determinação do
foro segundo for justo, controle, fiscalização e regularização das situações
que fossem encontradas em tais terras, e afinal, a arrecadação dos foros21.

A destacar que ainda hoje os Terrenos de Marinha são medidos tendo como parâmetro
a Linha de Preamar Média de 1831, por força do disposto no Decreto-Lei n. 9.760/194622. A
causa provável do estabelecimento do ano de 1831 seria a Lei Orçamentária acima citada.

A partir desta lei orçamentária, os Terrenos de Marinha passaram figurar nas leis
orçamentárias como elemento gerador de renda através de foros e laudêmios. Ao que parece,
a importância adquirida como fonte de renda para o Estado tornou-se mais importante que sua
utilidade como área reservada para a defesa e para serviços públicos.

Percebe-se ainda da leitura da lei que, embora fosse permitido aos Presidentes das
Províncias aforar Terrenos de Marinha a particulares, bem como estabelecer o foro, “segundo
for justo”, a titularidade permanecia com o Império (poder central) e as rendas, estabelecidas
pelas Províncias, também permaneciam sobre controle do poder central, sob incumbência do
Ministério da Fazenda.

A primeira definição legal de “Terreno de Marinha” e, portanto, sua demarcação, está


contida na instrução do Ministério da Fazenda de 14 de novembro de 1832, baixada para dar
cumprimento a Lei Orçamentária de 1831, que em seu art. 4o previa:

Art. 4º Hão de considerar-se terrenos de marinha todos os que, banhados


pela águas do mar, ou rios navegáveis, vão até à distancia de 15 braças
craveiras da parte da terra, contadas estas desde os pontos a que chega o
preamar médio23.

A Instrução também detalha os procedimentos para demarcação dos terrenos


prevendo, inclusive a participação de representantes das Províncias e dos municípios, além de
outros interessados, como posseiros e concessionários24.

21
SANTOS, Rosita de Souza. Terras de marinha. p.12.
22
BRASIL. Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946. Art. 2º São terrenos de marinha, em uma
profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do
preamar-médio de 1831.
23
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4904, de 2005.
24
FREITAS, Mariana Almeida de Passos. Zona Costeira e Meio Ambiente: aspectos jurídicos. p. 168.
28

A razão para o estabelecimento da faixa reservada em 15 braças nunca foi plenamente


justificada. Tal situação permitiu que fossem elaboradas explicações as mais diversas,
algumas mesmo folclóricas, tais como atribuí-la ao alcance de balas de canhão. Obéde Pereira
de Lima e Roberval Felippe Pereira de Lima, em nota de rodapé na primeira página de um
trabalho apresentado no XXI Congresso Brasileiro de Cartografia (2003), fornecem aquela
que, talvez, seja a razão mais plausível para este valor. Segundo estes autores, a extensão seria
“... suficiente para que um contingente militar com o efetivo de uma companhia, disposta com
a testada de nove (9) soldados pudesse deslocar-se livremente na faixa litorânea
estabelecida”25.

As informações que se seguem, ainda a respeito ao deslocamento histórico do instituto


Terrenos de Marinha, quando não devidamente referenciadas, devem ser atribuídas a Mariana
Freitas26. Opta-se por tal procedimento para não tornar o texto enfadonho com a repetição
constante da fonte.

O Decreto n. 4.105, de 22 de fevereiro de 1868, promoveu a primeira consolidação dos


ordenamentos existentes sobre Terrenos de Marinha e os definiu, em caráter de lei, nos
mesmos termos da mencionada instrução n. 348. A diferença fundamental é que a partir deste
momento a extensão lateral da área passou a ser definida na unidade métrica (33 metros),
como correspondente às 15 braças originais27.

A Lei n. 25, de 30 de dezembro de 1891, também lei orçamentária, registrou no


exercício de 1892 a receita de alta quantia oriunda de diversas arrecadações, dentre as quais
os foros de Terrenos de Marinha, bem como os laudêmios decorrentes de sua venda. Tornado
assim evidente o valor desses terrenos como fontes de receita, os mesmos passaram a ser
objeto de disputa. Houve, inclusive, tentativas de se transferir para as Províncias, e depois
para os Estados, o domínio sobre os Terrenos de Marinha.

25
LIMA, Obéde Pereira de; LIMA, Roberval Felippe Pereira de. Localização geodésica da linha da preamar
média de 1831 - LPM/1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos.
Disponível em: <http://www.cartografia.org.br/xxi_cbc/024-G05.pdf>. Acesso em: 19 jan. 2008.
26
FREITAS, Mariana Almeida de Passos. Zona Costeira e Meio Ambiente: aspectos jurídicos. pp. 168-171.
27
A criação do sistema métrico decimal surge em plena Revolução Francesa. O depósito do metro-padrão nos
Arquivos da República (Paris), em 22 de junho de 1799, marca esta criação. A definição foi estabelecida como a
décima-milionésima (1/10.000.000) parte da distância entre o Pólo Norte e o Equador pelo meridiano que passa
por Paris. Hoje o metro é definido como a distância percorrida pela luz no vácuo durante o intervalo de tempo de
1/299.792.458 de segundo. (BRASIL. Inmetro. Sistema Internacional de Unidades - SI. 8. ed. Rio de Janeiro,
2003. 116 p). No Brasil, o sistema métrico francês foi oficialmente implantado pela Lei 1.157 de 26 de junho de
1862. Uma braça craveira equivalia a 2,2 metros.
29

Reivindicando a propriedade dos Terrenos de Marinha, os Estados do Espírito Santo e


Bahia ingressaram com ação no Supremo Tribunal Federal, denominada Ação Originária n. 8.
Tal ação tinha como objeto definir a marinha como terra devoluta vez que o art. 64 da
Constituição de 1891 definia as terras devolutas como pertencentes aos Estados. O principal
objetivo desses Estados era, em verdade, estabelecer o domínio pleno dessas terras em favor
próprio. Todavia, esse não foi o entendimento da Corte Suprema que, favorável ao domínio da
União, prolatou decisão em 31 de janeiro de 1905 deixando claro que os Terrenos de Marinha
não se confundem com terras devolutas.

Nas contra razões apresentadas à Ação Ordinária supra, Epitácio Pessoa, segundo
Roberto Menezes, assim destacou a importância que a República atribuía aos Terrenos de
Marinha:

A República, revelem-nos a insistência, precisa imprescindivelmente dos


terrenos de marinha, para dar cumprimento às extraordinárias
responsabilidades que lhe incumbem quanto à defesa e polícia costeira, à
segurança do país, à regularização do comércio e da navegação, aos ajustes e
convênios daí decorrentes, à conservação, melhoramento e fiscalização
sanitária dos portos, à construção de alfândegas, entrepostos, faróis e obras
de defesa contra possíveis agressões estrangeiras, à higiene internacional, à
polícia sanitária, etc, etc28.

Já no século XX tem-se o Decreto 5.390, de 10 de dezembro de 1904, que determinou


a anulação de aforamentos ou arrendamentos feitos pelos Municípios e o Decreto n. 6.617, de
29 de agosto de 1907, que proibiu construção, aterro e qualquer outra obra sobre os Terrenos
de Marinha, exigindo também o Aforamento prévio. Apesar das tais restrições, a
Administração Pública dos Estados e Municípios situados junto à orla não tomou as devidas
providências no sentido de prover efetividade ao que prescreviam as normas federais.

Em 31 de dezembro de 1915 entrou em vigor a nova Lei Orçamentária, n. 3.070,


relevante no histórico dos Terrenos de Marinha, pois confirmou a competência da diretoria do
Patrimônio da União e das Delegacias Fiscais dos Estados para delimitação das zonas urbanas
e rurais. Adicionalmente, determinou que a Diretoria do Patrimônio compelisse os ocupantes
dos Terrenos de Marinha e acrescidos a legitimarem sua posse no prazo de três meses. Em
1916 foi promulgado o Código Civil que, nos artigos 65 a 68, dispunha acerca dos bens
públicos sem, contudo mencionar explicitamente os Terrenos de Marinha.

28
MENEZES, Roberto Santana de. Regime patrimonial dos terrenos de marinha. Jus Navigandi. p. 1.
30

Durante as décadas de 20 e 30 do século XX, as normas mais relevantes elaboradas


acerca do tema foram: o Decreto n. 14.595, de 31 de dezembro de 1920, que estabeleceu a
cobrança da taxa de ocupação dos Terrenos de Marinha nos valores de 6% e 4% sobre o valor
venal da área ocupada; o Decreto n. 6.871, de 15 de setembro de 1934, que converteu a
Diretoria do Patrimônio no Serviço de Patrimônio da União (SPU); e o Decreto-Lei n. 710, de
17 de setembro de 1938, que, entre outras determinações, reconhecia como bens de domínio
da Nação os Terrenos de Marinha. Ademais, transferia à União a arrecadação dos foros e
laudêmios relativos aos Terrenos de Marinha existentes no então Distrito Federal. Também
estabelecia a forma de cobrança de laudêmio e obrigava os ocupantes de imóveis da União a
apresentar títulos e documentos comprovando seu direito de propriedade.

A década de 40 de século XX foi, seguramente, a mais profícua no estabelecimento de


normas sobre Terrenos de Marinha e Terrenos Marginais a rios navegáveis, destacando-se: o
Decreto-Lei n. 2.490, de 16.8.1940, que aperfeiçoou e organizou as situações previstas no
Decreto-Lei anterior (710/1938), regulando o processo para a concessão do Aforamento e o
do Decreto-Lei n. 4.120, de 21 de fevereiro de 1942, através do qual o tema Aforamento foi,
novamente, objeto de alteração da legislação, trazendo o seguinte texto:

Art. 1º - A concessão de novos aforamentos de terrenos de marinha e de seus


acrescidos só será feita a critério do Governo, para fins úteis, restritos e
determinados, expressamente declarados pelo requerente.
Parágrafo único – Se, no fim de três anos, o enfiteuta não tiver realizado o
aproveitamento do terreno, conforme se obrigara, o aforamento concedido
ficará automaticamente extinto;

Este mesmo decreto trouxe ainda uma alteração bastante significativa no tocante à
demarcação da Linha de Preamar Média. Pela primeira vez um texto legal estabelece que deve
ser levado em consideração o preamar máximo atual. Diz seu artigo 3º:

Art. 3º A origem da faixa de 33 metros dos terrenos de marinha será a linha


do preamar máximo atual, determinada, normalmente pela análise harmônica
de longo período. Na falta de observações de longo período, a demarcação
dessa linha será feita pela análise de curto período.
§ 1º Para os efeitos deste artigo, a análise de longo período deve basear-se
em observações contínuas durante 370 dias. Para a análise de curto período,
o tempo de observação, será no mínimo, de 30 dias consecutivos29.

29
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4904, de 2005.
31

Ainda na década de 40 tem-se: o Decreto-Lei n. 5.666, de 15 de julho de 1943, que


determinou que os aforamentos somente poderiam ser concedidos em concorrência pública,
por iniciativa do Governo ou de particulares. Além disso, proibiu a concessão de aforamentos
de áreas de marinha aos particulares para a divisão em lotes e transferência a terceiros. Tal
proibição resistiu pouco mais de 2 anos; o Decreto-Lei n. 7.937, de 5 de setembro de 1945,
permitiu, já no seu artigo 1º, a concessão de Aforamento de quaisquer áreas de Terrenos de
Marinha, para a divisão em lotes e posterior transferência a terceiros, desde que os lotes a
transferir viessem a ser aproveitados com construções.

Finalmente, nesta mesma década, publicou-se o Decreto-Lei n. 9.760, de 5 de


setembro de 1946, em vigor até os dias de hoje, com alterações, evidentemente. Este decreto
dispõe sobre os bens imóveis da União – entre os quais inclui, no artigo 1º, alínea a, os
Terrenos de Marinha e seus acrescidos – e dá outras providências.

Em 1988, os Terrenos de Marinha e seus acrescidos alcançam a condição de preceito


constitucional. As constituições anteriores simplesmente não previam a matéria. O artigo 20,
inciso VII, da CRFB/1988 assim dispõe:

Art. 20. São bens da União:


(...)
VII – os terrenos de marinha e seus acrescidos;

Já sob a nova Constituição, novos dispositivos legais complementaram a legislação


concernente aos Terrenos de Marinha, destacando-se: a) Lei n. 9.636, de 15 de maio de 1998,
que dispôs sobre a regularização, administração, Aforamento e alienação de bens imóveis de
domínio da União; b) Decreto n. 3.725, de 10 de janeiro de 2001, que regulamentou essa lei; e
c) Instrução Normativa da SPU, n. 2, de 12 de março de 2001, que dispôs sobre a demarcação
dos Terrenos de Marinha.

2.3.1 Situação Atual

Apresentado o histórico referente aos Terrenos de Marinha verifica-se que,


atualmente, estes são regidos, basicamente, pelos seguintes instrumentos jurídicos:
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988; Decreto-Lei n. 9.760/1946; Lei n.
9.636/1988 e o Decreto n. 3.725/2001. O Decreto-Lei e a Lei citados sofreram diversas
alterações em seus textos originais. Entre as normas alteradoras recentes, destaque para Lei n.
32

11.481, de 31 de maio de 2007, que prevê medidas de regularização fundiária de interesse


social em imóveis da União30.

O grande número de instrumentos normativos acerca dos Terrenos de Marinha


demonstra sua relevância para o ordenamento jurídico pátrio. O curioso é que, segundo
Mariana Almeida Passos de Freitas31 “... mesmo tendo sido criado pela Coroa portuguesa, o
instituto dos terrenos de marinha não existia no direito português.”.

Vale destacar, para que não restem quaisquer dúvidas, que Terrenos de Marinha não
são terrenos da Marinha. Eles não pertencem à Marinha do Brasil, ou Comando da Marinha,
órgão subordinado ao Ministério da Defesa, mas sim à União, que exerce o controle
patrimonial sobre os mesmos através da Secretaria do Patrimônio da União – SPU, órgão
vinculado ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão - MPOG. Celso Ribeiro
Bastos assim comentou, referindo-se aos Terrenos de Marinha,

[...] estes são bens da União e não do Ministério da Marinha. Consistem


naqueles terrenos debruçados à faixa litorânea. Um exemplo típico são os
lotes que se situam defronte ao mar, os quais não são objeto de propriedade
do particular, mas sim regem-se pelo instituto da enfiteuse.32

Os Terrenos de Marinha também não podem ser confundidos com terras devolutas,
como já aconteceu. A Ação Originária n. 8 intentada pelos Estados do Espírito Santo e da
Bahia, já comentada, serve de exemplo. As terras devolutas são aquelas que não foram
incorporadas a nenhum patrimônio particular ou foram incorporadas ao patrimônio público,
mas sem destinação para uso público. Bandeira de Mello esclarece da seguinte forma a
origem e o que são as ditas terras devolutas.

São as terras públicas não aplicadas ao uso comum nem ao uso especial. Sua
origem é a seguinte. Com a descoberta do País, todo o território passou a
integrar o domínio da Coroa portuguesa. Destas terras, largos tratos foram
trespassados aos colonizadores, mediante as chamadas concessões de

30
BRASIL. Lei nº 11.481, de 31 de maio de 2007. Dá nova redação a dispositivos das Leis nos 9.636, de 15 de
maio de 1998, 8.666, de 21 de junho de 1993, 11.124, de 16 de junho de 2005, 10.406, de 10 de janeiro de 2002 -
Código Civil, 9.514, de 20 de novembro de 1997, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973, e dos Decretos-Leis nos
9.760, de 5 de setembro de 1946, 271, de 28 de fevereiro de 1967, 1.876, de 15 de julho de 1981, e 2.398, de 21
de dezembro de 1987; prevê medidas voltadas à regularização fundiária de interesse social em imóveis da União;
e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2007/Lei/L11481.htm>. Acesso em: 21 abr. 2008.
31
FREITAS, Mariana Almeida Passos de. Zona Costeira e Meio Ambiente: aspectos jurídicos, p.146.
32
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Saraiva 1999. p. 303.
33

sesmarias e cartas de data, com obrigação de medi-las, demarcá-las e cultivá-


las (quando então lhes adviria a confirmação, o que, aliás, raras vezes
sucedeu, sob pena de “comisso”, isto é, de reverso delas à Coroa, caso
fossem descumpridas as sobreditas obrigações. Tanto as terras que jamais
foram trespassadas como as que caíram em comisso, se não ingressaram no
domínio privado por algum título legítimo e não receberam destinação
pública, constituem as terras devolutas. Com a independência do País,
passaram a integrar o domínio imobiliário do Estado brasileiro.
Pode-se definir as terras devolutas como sendo as que, dada a origem pública
da propriedade fundiária no Brasil, pertencem ao Estado – sem estarem
aplicadas a qualquer uso público – porque nem foram trespassadas do Poder
Público aos particulares ou, se o foram, caíram em comisso, nem se
integraram no domínio privado por algum título reconhecido como
legítimo33.

Ainda, pelo histórico feito a partir da legislação apresentada, verifica-se que os


Terrenos de Marinha tinham como funções principais a garantia de um espaço como servidão
pública destinada ao embarque e desembarque de coisas públicas e privadas, a garantia de um
espaço para a defesa da cidade e, finalmente, um meio de obtenção de renda para a Coroa,
para o Império e para a União Federal34.

Entretanto, a condição hoje atribuída a este bem da União, quase que unicamente
como fonte de receita, destoa da sua condição de bem com expressão constitucional. A esse
respeito comenta Paulo Affonso Leme Machado: “Os terrenos de marinha ganharam a
valorização constitucional não para que depois fossem privatizados, esquecendo-se sua
conotação de “bens de uso comum do povo””35, tendo ressaltado:

Atualmente, de um lado, com o avanço das ciências da natureza e, de outro


lado, com o povoamento intenso e desordenado do litoral, as áreas de
“terrenos de marinha” necessitam desempenhar funções públicas de proteção
da natureza. Essas funções constituem dever do Poder Público, máxime na
zona costeira (art. 225, § 1º e 4º, da CF). Portanto, o aforamento que se fazia
desses terrenos, com a intervenção do antigo SPU (Serviço do Patrimônio da
União) deixou de ter justificativa e não tem agasalho da própria Constituição
Federal.36

Consoante a idéia de que os Terrenos de Marinha apresentam hoje importância distinta


daquela que justificou sua origem, Armando Gonçalves Madeira e Ziegler de Souza, segundo

33
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 13 ed. São Paulo: Malheiros, pp. 757-
758.
34
FREITAS, Mariana Almeida de Passos. Zona Costeira e Meio Ambiente: aspectos jurídicos. p. 171.
35
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. p. 133.
36
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. p.133.
34

Mariana Freitas, também destacam a importância presente destas áreas para a preservação
ambiental, dispondo: “[...] hoje, ganha relevo o interesse ecológico, uma vez que a maior
parte desses terrenos constitui área de preservação permanente: Mata Atlântica, mangues,
morros, dunas [...]”37.

2.4 TERRENOS ACRESCIDOS DE MARINHA

Segundo o artigo 20, VII, da CRFB/1988, são bens da União não só os Terrenos de
Marinha, mas também “os seus acrescidos”38. O artigo 3º do Decreto-Lei n. 9.760, de 1946,
traz a definição destes terrenos acrescidos, com a seguinte redação: “São terrenos acrescidos
de marinha os que se tiverem formado natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos
rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha”39.

Os acrescidos são, portanto, extensões naturais ou artificiais dos Terrenos de Marinha,


que em nada os modificam visto que, apesar de deslocarem a Linha de Preamar Média atual,
os acrescidos não alteram a Linha de Preamar Média de 1831.

As primeiras referências a tais terrenos encontram-se no Aviso, de 18 de novembro de


1818, que declarava que “15 braças da linha da água do mar e pela sua borda são reservadas
para servidão pública, e que tudo que toca a água do mar e acresce sobre ela é da nação”. O
Decreto-Lei n. 4.105, de 1868, também já os definia.

Destarte, e em função de seu caráter de “seguimento aos terrenos de marinha”, as


colocações efetuadas a respeito dos Terrenos de Marinha alcançam, quando presentes, os
Terrenos Acrescidos de Marinha, como alcançam, em regra, as disposições sobre os principais
com relação aos seus acessórios.

Apesar desta aparente condição tranqüila de acessórios aos Terrenos de Marinha, a


doutrina nem sempre distingue-os adequadamente. Veja-se a este respeito a definição de
Bandeira de Mello:

37
FREITAS, Mariana Almeida de Passos. Zona Costeira e Meio Ambiente: aspectos jurídicos. p. 166.
38
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 20. São bens da União: (...) VII – os
terrenos de marinha e seus acrescidos Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 21 abr. 2008.
39
BRASIL. Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946.
35

Terrenos acrescidos - são os que, por aluvião ou por avulsão, se incorporam


aos terrenos de marinha ou aos terrenos marginais, aquém do ponto a que
chega o preamar médio ou do ponto médio das enchentes ordinárias,
respectivamente, bem como a parte do álveo que se descobrir por
afastamento das águas (art. 16 do Código de Águas). São bens dominicais se
não estiverem destinados ao uso comum e sua propriedade assiste à entidade
pública titular do terreno a que aderiram, salvo se, por algum título legítimo,
estiverem em propriedade privada (§ 1º do art. 16)40.

Verifica-se nesta definição que o autor trata, inicialmente, de terrenos acrescidos aos
Terrenos de Marinha ou aos Terrenos Marginais. Ao final, refere-se a ambos como bens
dominicais e sua propriedade pode ser tanto de entidade pública (não se restringe a União),
como constituir propriedade privada, muito embora o texto legal, Decreto-Lei n. 9.760/1946,
assim não preveja.

Ao tratar dos terrenos acrescidos, Maria Sylvia Zanella di Pietro, mesmo


transcrevendo o disposto no artigo 3º do Decreto-Lei n. 9.760/1946 (transcrito alhures)
informa que eles se formam tanto para o lado do mar, em acréscimo aos Terrenos de Marinha,
como também se formam para o lado do rio, em acréscimo aos “terrenos reservados”41. A
autora vai mais além, afirmando:

Os segundos podem pertencer ao particular ou constituir patrimônio público.


Pelo artigo 538 do Código Civil de 1916, “os acréscimos formados por
depósitos e aterros naturais ou pelo desvio das águas, ainda que estes sejam
navegáveis, pertencem aos donos dos terrenos marginais”. O artigo 1.250 do
novo Código Civil altera um pouco a redação, ao estabelecer que “os
acréscimos formados, sucessivamente e ininterruptamente, por depósitos e
aterros naturais ao longo das margens das correntes, ou pelo desvio das
águas destas, pertencem aos donos dos terrenos marginais, sem
indenização”42.

Os segundos, a que se refere a autora, são os terrenos acrescidos aos terrenos


reservados. Percebe-se que ela admite claramente a possibilidade destes pertencerem ao
particular. Entretanto, o artigo 3º do Decreto-Lei 9.760/1946, transcrito pela autora, refere-se
aos Terrenos Acrescidos de Marinha, bens pertencentes à União. Ao que parece a autora
entende que o Código Civil, de alguma forma, altera a disposição expressa no Decreto-Lei
9.760/1946 ou, ainda, o que é mais provável, que ela está se referindo a terrenos acrescidos

40
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. p. 761.
41
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 678.
42
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. p. 678.
36

que não em seguimento a Terrenos de Marinha. Qualquer uma das possibilidades não está
devidamente aclarada no texto.

As citações colhidas dos autores supramencionados, servem para demonstrar que há


certa confusão entre Terrenos Acrescidos de Marinha, quando ao longo de rios e lagoas, e
Terrenos Marginais. Aqueles se formam em seguimento aos Terrenos de Marinha, já estes,
“são os que banhados pelas correntes navegáveis, fora do alcance das marés, vão até a
distância de 15 (quinze) metros, medidos horizontalmente para a parte da terra, contados
dêsde a linha média das enchentes ordinárias”43. Ambos, de acordo com o Decreto-Lei nº
9.760/1946, são bens da União.

Destarte, terrenos acrescidos, quer por aluvião ou por avulsão, em margens de rios e
lagoas que sofram a influência de mares ou em margens de rios navegáveis, somente não
pertencem a União se houver o entendimento que, por alguma razão de ordem jurídica, as
disposições expressas no Decreto-Lei nº 9.760/1946 sobre a presença de Terrenos de Marinha
e/ou Terrenos Marginais ao longo de rios e lagoas não mais se sustentam, total ou
parcialmente.

A quase que total ausência dos Terrenos Acrescidos de Marinha em literatura


especializada, e a pouca clareza no trato de tais terrenos em doutrinadores do porte de Celso
Mello e Maria di Pietro, fornecem uma pequena amostra das dificuldades no estabelecimento
dos Terrenos de Marinha e seus acrescidos ao longo de rios e lagoas, assunto que voltará a ser
tratado mais adiante.

Concluída esta breve explanação sobre o deslocamento histórico dos Terrenos de


Marinha e sua situação atual, bem como sobre os Terrenos Acrescidos de Marinha, expõe-se,
na seqüência, algumas considerações sobre a utilização destes bens.

43
BRASIL. Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946. Art. 4º.
3 UTILIZAÇÃO DOS TERRENOS DE MARINHA

3.1 INTRODUÇÃO

Os Terrenos de Marinha e seus acrescidos se prestam a fins bastante diversificados.


Podem constituir bens de uso comum do povo ou ser utilizados pelo poder público,
diretamente pela União, sua proprietária, ou pelos Estados ou Municípios, mediante cessão
daquela. Podem, ainda, ser utilizados por particulares, mediante cessão ou aforamento.

O regime patrimonial a que estão sujeitos tais terrenos é, em regra, o de bens


dominicais da União, aplicando-se aos mesmos o instituto da enfiteuse, conforme previsão do
§ 3º do art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CRFB/198844.

3.2 REGIME PATRIMONIAL

O Código Civil Brasileiro de 2002 (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002), ao tratar


dos bens públicos, artigos 98 e seguintes (Livro II –DOS BENS-; Título Único –DAS
DIFERENTES CLASSES DE BENS-; Capítulo III –DOS BENS PÚBLICOS-), classifica-os
em bens de uso comum do povo, tais como os rios, as ruas e as praças (art. 99, I); bens de uso
especial, tais como os prédios públicos (art. 99, II); e os bens dominicais (art. 99, III), que são
propriedades públicas sem destinação específica.45

44
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. ADCT, Art. 49. (...) § 3º - A enfiteuse
continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da
orla marítima. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso
em: 21 abr. 2008.
45
BRASIL. Lei nº 10.406, de 20 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Art. 99. São bens públicos: I - os de
uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; II - os de uso especial, tais como edifícios ou
terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal,
inclusive os de suas autarquias; III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito
público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 20 abr. 2008
38

Por expressa determinação dos arts. 100 e 101 do CC/2002, apenas quando dominicais
os bens públicos são passíveis de alienação46.

Mário Masagão assim esclarece o que são bens dominicais:

Os bens dominicais constituem propriedade das pessoas jurídicas a que


pertencem, e em cujo patrimônio se acham. Tal propriedade só encontra,
quanto ao seu exercício, as restrições estabelecidas pelo direito público em
razão da natureza das pessoas que são titulares dela47.

As restrições a que o autor se refere obedecerão, evidentemente, ao destino que o


poder público pretende ao bem. Por exemplo: se a intenção é a alienação, deverão ser
observadas as exigências da lei (art. 101, CC/2002), tais como: existência de lei autorizadora,
processo de licitação e avaliação do bem.

Ao tratar também do assunto, Diógenes Gasparini cita vários sinônimos para bens
dominicais, tais como: bens disponíveis; bens do patrimônio disponível; bens patrimoniais
disponíveis; bens do patrimônio fiscal; bens patrimoniais do Estado e bens do domínio
privado do Estado48. Este autor define-os da seguinte forma:

Os bens dominicais são os destituídos de qualquer destinação, prontos para


ser utilizados ou alienados ou, ainda, ter seu uso trespassado a quem por eles
se interesse. Pertencem à União, aos Estados-Membros, aos Municípios, ao
Distrito Federal, às autarquias e fundações públicas. Tais entidades exercem
sobre esses bens poderes de dono, de proprietário. Apesar disso, a alienação
e o trespasse do uso podem exigir o cumprimento, previamente, de certos
requisitos, como avaliação, concorrência e licitação [...]49.

A despeito das restrições, ou requisitos, estabelecidos aos bens dominicais, estes têm
diferenças jurídicas claras em relação aos de uso comum do povo e aos especiais,
principalmente por serem regidos pelo direito privado, conforme esclarece Diogo de
Figueiredo Moreira Neto:

46
BRASIL. Lei nº 10.406, de 20 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Art. 100. Os bens públicos de uso
comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a
lei determinar. Art. 101. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 20 abr. 2008.
47
MASAGÃO, Mário. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974. p.133.
48
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. p. 811.
49
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. p. 811.
39

Este terceiro tipo, dos dominicais, enseja ao Estado uma possibilidade legal
de disposição mais ampla que em relação aos anteriores, quase semelhante à
aberta pelo regime privado. Na verdade, os poderes do Estado sobre tais
bens são estabelecidos pelo Direito Público, através de prescrições
constitucionais e administrativas, apropriadas para cada nível federativo,
somente se valendo da normatividade civil em caráter complementar ou
suplementar, no que compatível50.

Perceba-se que o autor deixa claro que é “quase semelhante” ao regime do direito
privado, esclarecendo que este atua de forma complementar ou suplementar as prescrições
constitucionais e administrativas.

Ao tratar do tema bens dominicais, Maria Sylvia Zanella di Pietro aponta quais seriam,
tradicionalmente, as principais características dessa classe de bens, na qual estariam incluídos
os Terrenos de Marinha.

1. comportam uma função patrimonial ou financeira, porque se destinam a


assegurar rendas ao Estado, em oposição aos demais bens públicos, que são
afetados a uma destinação de interesse geral; a conseqüência disso é que a
gestão dos bens dominicais não era considerada serviço público, mas uma
atividade privada da Administração;
2. submetem-se a um regime jurídico de direito privado, pois a
administração Pública age, em relação a eles, como um proprietário
privado51.

Aqui a autora retoma uma situação específica aos Terrenos de Marinha, já comentada
no tópico anterior, qual seja a de que os bens dominicais são utilizados pelo Estado
principalmente como fonte de rendas.

Com pequenas variações nos pormenores, mas concorde na essência, a doutrina,


tradicionalmente, trata os Terrenos de Marinha e os seus acrescidos como bens dominicais.

Entretanto, na faixa de 33 metros a partir da Linha de Preamar Média de 1831 podem


ser encontradas áreas livres, ocupadas por particulares, praias ou mesmo edificações públicas,
tais como um farol ou um forte.

50
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2002. p. 233.
51
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. p. 642.
40

Destarte, os Terrenos de Marinha podem ser incluídos em cada uma das três espécies
de bens públicos: a) quando vagos ou ocupados por particulares, constituem-se em bens
dominicais; b) quando apresentam praias, esta porção da área classifica-se como bem de uso
comum do povo, por determinação expressa de lei, artigo 10 da Lei 7.661, de 16 de maio de
198852; c) finalmente, se estes terrenos estão ocupados por alguma edificação pública,
qualquer que seja, constituirão bens de uso especial. A regra, entretanto, é que constituam
bens dominicais.

Algo que distingue os Terrenos de Marinha dos demais bens imóveis da União quanto
ao regime patrimonial aplicado é que, quando situados na orla, na faixa de segurança, eles não
são suscetíveis de alienação total. Esta vedação aplica-se ainda que não estejam afetados ao
serviço público, nem constituam bem de uso comum do povo. Quando for conveniente que
deles terceiros façam uso, existe a obrigatoriedade, por expressa disposição constitucional, de
fazê-lo sob o regime da enfiteuse53 (ou Aforamento).

3.3 FORMAS DE UTILIZAÇÃO

As formas de uso dos Terrenos de Marinha e seus acrescidos estão vinculadas à sua
classificação patrimonial. Eles podem estar afetados ao serviço público, constituírem bens de
uso comum do povo ou fazer parte do patrimônio disponível da União como bens dominicais.
Nesta condição, e somente nesta, o domínio útil dos Terrenos de Marinha pode ser
trespassado ao particular, mediante Aforamento.

Atualmente, em função de disposição expressa no § 3º do art. 49 do Ato das


Disposições Constitucionais Transitórias da CRFB/1988, é possível apenas a transferência

52
BRASIL. Lei nº 7.661, de 16 de maio de 1988. Institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro e dá
outras providências. Art. 10. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre,
livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de
interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Leis/L7661.htm>. Acesso em: 20 abr. 2008.
53
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. ADCT, Art. 49. A lei disporá sobre o
instituto da enfiteuse em imóveis urbanos, sendo facultada aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos
aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do que dispuserem os respectivos contratos.
(...) § 3º - A enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de
segurança, a partir da orla marítima. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 21 abr. 2008.
41

para terceiros da fração “domínio útil” também denominada “direito real de uso”, por meio da
enfiteuse, pela qual permanece com a União o “domínio direto”, ou seja, fica a União na
condição de “nu proprietário”54.

O regime de Aforamento, regrado pela enfiteuse, aplicado aos Terrenos de Marinha,


está previsto pela CRFB/1988, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 49, §
3º que determinou: “A Enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus
acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima”.

Embora não exista uma definição precisa do que vem a ser esta faixa de segurança,
Roberto Menezes entende que se trata de uma faixa de cem metros, na costa, por interpretação
do art. 100 do Decreto-Lei nº 9.760/194655. É o que diz este artigo:

Art. 100. A aplicação do regime de aforamento a terras da União, quando


autorizada na forma dêste Decreto-lei, compete ao S. P. U., sujeita, porém, a
prévia audiência:
a) dos Ministérios da Guerra, por intermédio dos Comandos das Regiões
Militares; da Marinha, por intermédio das Capitanias dos Portos; da
Aeronáutica, por intermédio dos Comandos das Zonas Aéreas, quando se
tratar de terrenos situados dentro da faixa de fronteiras, da faixa de 100
(cem) metros ao longo da costa marítima ou de uma circunferência de 1.320
(mil trezentos e vinte) metros de raio em tôrno das fortificações e
estabelecimentos militares56;

Anteriormente à regra constitucional, os Terrenos de Marinha, como os demais bens


da União, submetiam-se a quaisquer dos regimes (locação, Aforamento ou cessão) previstos
no Decreto-Lei 9.760/1946, que em seu artigo 64 dispõe:

Art. 64. Os bens imóveis da União não utilizados em serviço público


poderão, qualquer que seja a sua natureza, ser alugados, aforados ou cedidos.
§ 1º A locação se fará quando houver conveniência em tornar o imóvel
produtivo, conservando porém, a União, sua plena propriedade, considerada
arrendamento mediante condições especiais, quando objetivada a exploração
de frutos ou prestação de serviços.
§ 2º O aforamento se dará quando coexistirem a conveniência de radicar-se o
indivíduo ao solo e a de manter-se o vínculo da propriedade pública.
§ 3º A cessão se fará quando interessar à União concretizar, com a permissão

54
MENEZES, Roberto Santana de. Regime patrimonial dos terrenos de marinha. Jus Navigandi. p. 5.
55
MENEZES, Roberto Santana de. Regime patrimonial dos terrenos de marinha. Jus Navigandi. p. 7.
56
BRASIL. Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946.
42

da utilização gratuita de imóvel seu, auxílio ou colaboração que entenda


prestar.

Pelo atual regramento constitucional cabe aos Terrenos de Marinha, na faixa de


segurança, somente a enfiteuse, instituto disciplinado pelo Decreto-Lei n. 9.760/1946, e suas
alterações posteriores, especificadamente nos artigos 99 a 124. Com respeito a este instituto
esclarece Mariana Almeida Passos de Freitas:

O regime dos terrenos de marinha pauta-se pelas normas da enfiteuse, que na


verdade tem significado semelhante a “aforamento”, com a diferença de que
esse último é instituto de direito administrativo (quando trata dos bens
públicos) e aquele, de direito civil (tratando mais especificamente de bens
privados)57.

Verifica-se que enfiteuse é o instituto originado do direito privado que disciplina a


utilização dos Terrenos de Marinha conforme prescrito no art. 49, § 3º do ADCT da
CRFB/1988. Desta forma, quando o Aforamento (ou enfiteuse) diz respeito a estas terras da
União, rege-se pelas normas do Decreto-Lei n. 9.760 de 5 de setembro de 1946.

No caso concreto, as duas áreas do direito (público e privado) coexistem, conforme


manifestação de Rosita de Souza Santos:

[...] assim, quando a União defere a proposta de se constituir um aforamento,


ela está praticando um ato administrativo, mas quando ela contrata a
negociação do domínio útil com o pretendente ao aforamento,
transformando-o em foreiro, ela é parte em um contrato regido pelo Código
Civil58.

Portanto, naquilo que se refere a Terrenos de Marinha, por serem bens públicos, a
concessão do Aforamento resulta de ato administrativo.

O significado etimológico da palavra “enfiteuse” é “plantio da terra”59. No início era


uma maneira de conceder uma fonte de renda a pessoa que desejasse trabalhar a terra. Isto se

57
FREITAS, Mariana Almeida de Passos. Zona Costeira e Meio Ambiente: aspectos jurídicos. p. 154.
58
SANTOS, Rosita de Souza. Terras de marinha. p. 66.
59
FREITAS, Mariana Almeida de Passos. Zona Costeira e Meio Ambiente: aspectos jurídicos. p. 155.
43

comprova por preceito do Código Civil de 1916 que, no seu artigo 680 limitava seu alcance às
terras não cultivadas e a terrenos urbanos não edificados60.

Na verdade, essa concessão de terra servia, na época, como estímulo à agricultura, o


que certamente não ocorre hoje em dia. É interessante notar que a enfiteuse existe apenas no
direito brasileiro, português e italiano61.

Na seara do direito privado, o conceito de enfiteuse era dado pelo próprio Código
Civil de 1916, no seu artigo 678. Entretanto, tal artigo não encontra correspondência no
Código Civil de 2002, que excluiu todo o capítulo dedicado à enfiteuse existente no Código
Civil pretérito. A causa mais provável para essa exclusão é o pouco uso de tal instituto.
Entretanto, ela ainda vigora no tratamento jurídico dos Terrenos de Marinha, conforme
previsto no artigo 2.038, § 2º, do atual Código Civil:

Art. 2.038. Fica proibida a constituição de enfiteuse e subenfiteuse,


subordinado-se as existentes, até sua extinção, às disposições do Código
Civil anterior, Lei n.º 3.071, de 1.º de janeiro de 1916, e leis posteriores.
(...)
§ 2.º A enfiteuse dos terrenos de marinha e acrescidos regula-se por lei
especial.62

A lei especial a que se refere o § 2.º na verdade são duas: o Decreto-Lei n. 9.760/1946
e a Lei n. 9.636/1998.

A propósito da definição de enfiteuse, cabe mostrar a visão de Whashington de Barros


Monteiro, para quem “enfiteuse é a relação jurídica por via da qual o senhorio direto (o
proprietário), autoriza outra pessoa (o enfiteuta) a usar, gozar, e dispor da coisa, com certas
restrições, inclusive pagamento de retribuição anual, chamada pensão”63.

Assim, a utilização de Terreno de Marinha por particular se faz sob o regime de


Aforamento ou enfiteuse, pelo qual fica a União com o domínio direto e transfere ao enfiteuta

60
BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil. Art. 680. Só podem ser objeto de enfiteuse
terras não cultivadas ou terrenos que se destinem a edificação. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L3071.htm>. Acesso em: 18 jun. 2008.
61
FREITAS, Mariana Almeida de Passos. Zona Costeira e Meio Ambiente: aspectos jurídicos. p. 155.
62
BRASIL. Lei nº 10.406, de 20 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Art. 2.038. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 20 abr. 2008.
63
MONTEIRO, Whashington de Barros. Curso de direito civil. . 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 200.
44

o domínio útil mediante pagamento de importância anual, denominada foro ou pensão. Por aí
se verifica que sobre o mesmo bem incidem dois tipos de domínio, conforme esclarece Hely
Lopes Meirelles:

Domínio útil consiste no direito de usufruir o imóvel do modo mais


completo possível e de transmiti-lo a outrem, por ato entre vivos ou de
última vontade (testamento).
Domínio direto, também chamado domínio eminente, é o direito à substância
mesma do imóvel, sem as suas utilidades64.

Na enfiteuse, o proprietário do bem denomina-se senhorio e o beneficiário, enfiteuta


ou foreiro. O primeiro tem o domínio direto. O segundo, o domínio útil. Celso Mello ressalta
que “O enfeiteuta dispõe dos mais amplos poderes sobre o bem: pode usá-lo, gozá-lo e dispor
dos frutos, produtos e rendas, mas não pode mudar-lhe a substância ou deteriorá-lo”65.

Ainda segundo Celso Mello66, enfiteuse e Aforamento são expressões equivalentes e


que somente se confere sobre imóveis, acrescentando que trata-se de um direito real
transferível, onerosa ou gratuitamente.

Esclarece Meirelles: “Foro, cânon ou pensão é a contribuição anual e fixa que o


foreiro ou enfiteuta paga ao senhorio direto, em caráter perpétuo, para o exercício de seus
direitos sobre o domínio útil do imóvel”67.

No caso dos Terrenos de Marinha, o foro é estabelecido pelo artigo 101 do Decreto-
Lei n. 9.760/1946, que assim dispõe: “Os terrenos aforados pela União ficam sujeitos ao foro
de 0,6% (seis décimos por cento) do valor do respectivo domínio pleno, que será anualmente
atualizado”.

Além do foro, outra taxa a que está sujeito o enfiteuta é o laudêmio. Esta taxa incide
quando o particular aliena os seus direitos sobre os imóveis da União. No caso dos Terrenos
de Marinha, a União tem direito de opção ou preferência na aquisição do domínio útil pelo
prazo de trinta dias. O foreiro que pretenda a alienação deve requerer certidão autorizativa de

64
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 503.
65
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. p. 770.
66
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. p. 769.
67
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. p. 503.
45

transferência junto a Gerência Regional da SPU em seu Estado, Se não for exercido o direito
de preferência, e as taxas de foro estiverem em dia, será emitida a certidão e incidirá laudêmio
quando o imóvel for alienado, “correspondente a importância equivalente a 5% do valor do
terreno e das benfeitorias existentes.”68.

Sobre o tema esclarece Hely Lopes Meirelles:

Laudêmio é a importância que o foreiro ou enfiteuta paga ao senhorio direto


quando ele, senhorio, renuncia seu direito de reaver esse domínio útil, nas
mesmas condições em que o terceiro o adquire. Sempre que houver
pretendente à aquisição do domínio útil, o foreiro é obrigado a comunicar a
existência desse pretendente e as condições da alienação, para que o
senhorio direto – no caso, o Estado – exerça seu direito de opção dentro de
trinta dias, ou renuncie a ele, concordando com a transferência a outrem,
caso em que terá direito ao laudêmio (CC de 1916, art. 683) na base legal ou
contratual (CC de 1916, art. 686)69.

O foro e o laudêmio são créditos fiscais cujo não pagamento pode gerar ação executiva
por parte da União (execução fiscal), conforme estabelecido no artigo 201 do Decreto-Lei n.
9.760/1946: "São consideradas dívida ativa da União, para efeito de cobrança executiva, as
provenientes de aluguéis, taxas, foros, laudêmios e outras contribuições concernentes de
utilização de bens imóveis da União”.

É de se esclarecer que tanto o foro, como o laudêmio, são taxas e, embora tributos, de
natureza distinta dos impostos com os quais não se confundem. Desta maneira, se o Terreno
de Marinha estiver localizado em perímetro urbano, além das taxas citadas o imóvel está
sujeito ao imposto predial e territorial urbano – IPTU.

A Lei n. 9.636, de 15 de maio de 1998, veda expressamente a ocupação de imóvel da


União a partir de 27 de abril de 200670. Os ocupantes de Terrenos de Marinha que não estão

68
BRASIL. MPOG. Os Terrenos de Marinha e as atividades imobiliárias da SPU - Informações de interesse
do cidadão. Disponível em: <http://www.spu.planejamento.gov.br/conteudo/apresentacao/terrenos.htm>. Acesso
em 11 fev. 2008.
69
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. p. 503.
70
BRASIL. Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a regularização, administração, aforamento e
alienação de bens imóveis de domínio da União, altera dispositivos dos Decretos-Leis nos 9.760, de 5 de
setembro de 1946, e 2.398, de 21 de dezembro de 1987, regulamenta o § 2o do art. 49 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, e dá outras providências. Art. 9o É vedada a inscrição de ocupações que: I -
ocorreram após 27 de abril de 2006; (...). Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9636.htm>. Acesso em: 21 abr. 2008.
46

devidamente regularizados como foreiros, sujeitam-se ao pagamento de taxa de ocupação


equivalente a 2% ou 5% do valor do terreno ao ano. Corresponde a 2% do valor de avaliação
atualizada do imóvel, para as ocupações já inscritas e para aquelas cuja inscrição tenha sido
requerida até 30/9/1988. Corresponde a 5% do valor de avaliação atualizada do imóvel e das
benfeitorias para as ocupações requeridas ou promovidas a partir de 1º/10/1988.71

A administração dos Terrenos de Marinha é de competência da Secretaria do


Patrimônio da União - SPU, a quem cabe administrar o patrimônio imobiliário da União, e
que exerce suas atividades em âmbito regional através das Delegacias Regionais em cada
Estado72.

Atualmente a SPU está vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e


Gestão, mas já esteve subordinado ao Ministério da Fazenda. Espera-se que esta alteração
reflita também em uma alteração na função atribuída aos Terrenos de Marinha, que de fonte
de receita passem a exercer um papel mais importante de ordenamento do território,
notadamente como espaços de preservação ambiental.

A esperança desta mudança, onde a noção da função social e ambiental da propriedade


também se faça presente na propriedade pública, adquire maior relevância quando o Governo
Federal assim se manifesta:

A SPU superou o mito que opõe a função arrecadadora à função sócio-


ambiental do patrimônio, acreditando na possibilidade de harmonia entre
ambas, uma vez que decorrentes do mesmo propósito: a identificação da
melhor vocação de cada imóvel, seja de regularização fundiária, moradia
popular, instalação de empreendimentos turísticos, portuários, culturais,
etc73.

Cabe, ainda, ressaltar a intenção do legislador moderno em promover a extinção do


instituto da enfiteuse. Esta intenção se manifesta de maneira indireta, pela exclusão completa,

71
BRASIL. MPOG-SPU. Manual de regularização fundiária em terras da união. São Paulo: Instituto Polis,
2006. p. B:49.
72
BRASIL. MPOG. Os Terrenos de Marinha e as atividades imobiliárias da SPU - Informações de interesse
do cidadão. Disponível em: <http://www.spu.planejamento.gov.br/conteudo/apresentacao/terrenos.htm>. Acesso
em 11 fev. 2008.
73
BRASIL. MPOG-SPU. Manual de regularização fundiária em terras da união. São Paulo: Instituto Polis,
2006. p. E:77.
47

no Código Civil de 2002, do existente capítulo sobre o tema no Código Civil de 1916, ou de
maneira direta, pela expressão clara disposta do artigo 2.038, caput, do CC/200274. Contudo,
como observado no parágrafo 2.º deste artigo, a enfiteuse é mantida para os Terrenos de
Marinha. Ou seja, extinta na seara do direito privado, a enfiteuse continuará existindo para ser
utilizada pelo poder público. É essa também a interpretação de Sílvio de Salvo Venosa:

[...] o legislador utiliza-se apenas dos princípios fundamentais do instituto de


direito civil, tanto que, se extinta a enfiteuse no campo privado, a instituição
pública subsistirá por sua própria legislação. Subsidiariamente, é verdade,
chamam-se à colação os princípios do direito privado75.

Por fim, cabe dizer que enfiteuse sempre foi entendida como direito real sobre coisa
imóvel alheia e é perpétua. No caso dos Terrenos de Marinha, por serem bens públicos, no
regime de Aforamento, o direito real sobre coisa alheia é constitutivo. Assim, depende de
prévia inscrição no Registro de Imóveis76.

3.3.1 Tendências do regime de Aforamento

Como brevemente comentado acima, o instituto da enfiteuse no direito civil está


fadado ao desaparecimento. Tanto a CRFB/1988, como o CC/2002, encaminham para esta
extinção. Tal afirmação comprova-se, primeiramente, pelo disposto no artigo 49 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, que reza:

Art. 49. A lei disporá sobre o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos,


sendo facultada aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos
aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do que
dispuserem os respectivos contratos.

No mesmo sentido, na leitura do artigo 2.038 do CC/2002, já transcrito alhures,


verifica-se a proibição de novas enfiteuses ou subenfiteuses. Ressalva o artigo que as

74
BRASIL. Lei nº 10.406, de 20 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Art. 2.038. Fica proibida a
constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as existentes, até sua extinção, às disposições do
Código Civil anterior, Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916, e leis posteriores. (...) § 2o A enfiteuse dos terrenos
de marinha e acrescidos regula-se por lei especial. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 20 abr. 2008.
75
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: vol. 1:parte geral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 390.
76
FREITAS, Mariana Almeida de Passos. Zona Costeira e Meio Ambiente: aspectos jurídicos. p. 157.
48

existentes, até sua extinção, regem-se pelas disposições do Código Civil de 1916 e leis
posteriores. Sobre isso se manifesta Maria Helena Diniz: “[...] a animosidade contra a
enfiteuse não é recente e muitos Códigos a aboliram, por não se coadunar com o princípio da
função social da propriedade.”77

Ademais, concorde com a orientação de expurgar do ordenamento jurídico pátrio o


instituto da enfiteuse, o Código Civil de 2002, quando trata dos direitos reais, artigo 1.225,
não mais a relaciona entre estes direitos, apesar de parte da doutrina pátria ainda assim se
referir.

No entanto, o regime de Aforamento dos Terrenos de Marinha permanece. O


parágrafo 3º do artigo 49 do ADCT da CRFB/1988 prevê: “a enfiteuse continuará sendo
aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da
orla marítima”. Ademais, o parágrafo 2º do artigo 2.038 do CC/2002, estabelece que a
enfiteuse dos Terrenos de Marinha e acrescidos será regulada por lei especial. Esta lei
especial, na verdade são duas: o Decreto-Lei n. 9.760/1946 e a Lei n. 9.636/1998.

O Decreto-Lei 9.760/1946, trata do Aforamento em seu Capítulo IV, Do Aforamento,


do Título II, Da Utilização dos Bens Imóveis da União, artigos 99 a 124, estando subdividido
em 5 seções. As últimas alterações de texto desta lei, que alcançam o instituto do Aforamento,
devem-se à lei 11.481/200778. Com respeito à Lei 9.636/1998, o Aforamento é tratado na
Seção IV, Do Aforamento, do Capítulo I, Da Regularização e Utilização Ordenada, artigos 12
a 16.

A extinção do instituto da enfiteuse do ordenamento civil pátrio traz à baila a


conveniência do Aforamento nos Terrenos de Marinha. Neste sentido, tramita no Congresso
Nacional proposta de emenda à Constituição (PEC-603/1998) que propõe a extinção do

77
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 350.
78
BRASIL. Lei nº 11.481, de 31 de maio de 2007. Dá nova redação a dispositivos das Leis nos 9.636, de 15 de
maio de 1998, 8.666, de 21 de junho de 1993, 11.124, de 16 de junho de 2005, 10.406, de 10 de janeiro de 2002 -
Código Civil, 9.514, de 20 de novembro de 1997, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973, e dos Decretos-Leis nos
9.760, de 5 de setembro de 1946, 271, de 28 de fevereiro de 1967, 1.876, de 15 de julho de 1981, e 2.398, de 21
de dezembro de 1987; prevê medidas voltadas à regularização fundiária de interesse social em imóveis da União;
e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2007/Lei/L11481.htm>. Acesso em: 21 abr. 2008.
49

regime enfitêutico dos Terrenos de Marinha, com a supressão do parágrafo 3º do art. 49 do


Ato das Disposições Constitucionais Transitórias79.

O último ato atinente a PEC-603/1998 registrado pela Câmara dos Deputados está
datado de 20/12/06 e informa que o parecer da relatora, Deputada Telma de Souza, foi
aprovado com substituto. Pela proposta aprovada, não haveria a extinção do instituto da
enfiteuse, mas sim, a possibilidade deste continuar a ser aplicado aos Terrenos de Marinha e
seus acrescidos, sendo também admitidas outras formas de concessão de direitos sobre os
mesmos, nos termos da lei80.

As mudanças apontadas pela SPU no sentido de que o patrimônio da União deve ser
utilizado com estrita observância de sua função sócio-ambiental são indicativos importantes
quando avaliam-se as mudanças pretendidas na legislação. Se a intenção é de fato dar a estes
bens, notadamente aos Terrenos de Marinha, importância ambiental elevada, as mudanças
propostas devem ser sempre analisadas no sentido de garantir a propriedade da União sobre
tais terrenos como fator facilitador das ações de preservação e/ou recuperação ambiental.

Tecidas estas breves considerações sobre o regime patrimonial e as formas de


utilização dos Terrenos de Marinha, bem como sobre as tendências do regime do Aforamento,
serão discutidos, na seqüência, problemas de ordem prática relacionados a tais bens.

79
BRASIL. Câmara dos Deputados. PEC-603/1998. Revoga o § 3º do art. 49 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias. (Excluindo a aplicação da enfiteuse/aforamento aos terrenos de marinha situados na
faixa de segurança, na orla marítima, alterando a Constituição Federal de 1988). Deputada Laura Carneiro.
Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/proposicoes>. Acesso em: 21 abr. 2008.
80
BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição nº 603, de 1998. Parecer. Relatora:
Deputada Telma de Souza. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/431993.pdf>. Acesso em:
21 de abr. 2008.
4 DOS PROBLEMAS DE ORDEM PRÁTICA

4.1 INTRODUÇÃO

Tratando-se de um instituto bastante antigo no ordenamento jurídico pátrio, seria


normal crer na existência de certa harmonia no seu entendimento. Entretanto, os Terrenos de
Marinha e seus acrescidos apresentam sérias dificuldades para sua delimitação, tanto de
ordem prática como de ordem jurídica.

Em algumas situações, o texto legal é claro, de fácil entendimento e perfeitamente


inserido dentro do ordenamento jurídico. Entretanto, ao se aplicar a norma ao caso concreto,
surgem dificuldades quase que intransponíveis, quando não totalmente. É o caso típico da
demarcação dos Terrenos de Marinha limítrofes ao mar.

Noutras situações, também a par de um ordenamento aparentemente claro, a aplicação


da norma revela que muitas situações não foram devidamente previstas, tornando a missão,
que se mostrava tranqüila, extremamente espinhosa. É o caso do estabelecimento dos
Terrenos de Marinha ao longo de rios ou lagoas que sofrem a influência de marés.

Tratar-se-á, neste capítulo das dificuldades práticas na demarcação dos Terrenos de


Marinha e seus acrescidos, deixando para o seguinte os problemas de ordem jurídica. Talvez
esta não seja a ordem adequada, mas alguma haveria de ter.

4.2 DEMARCAÇÃO DOS TERRENOS DE MARINHA

A demarcação dos Terrenos de Marinha e seus acrescidos é questão de extrema


complexidade e encontra sua principal norma disciplinadora no Decreto-Lei n. 9.760/194681.
Este diploma legal atribuiu ao então Serviço de Patrimônio da União, hoje Secretaria do
Patrimônio da União - SPU, competência para determinar a posição da Linha de Preamar

81
BRASIL. Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946. Dispõe sôbre os bens imóveis da União e dá outras
providências.
51

Média do ano de 1831, condição necessária, e fundamental, para os trabalhos de demarcação


de tais terrenos.

Admite o próprio texto legal, possivelmente antevendo as dificuldades de execução da


tarefa, aproximações razoáveis na fixação da Linha de Preamar Média de 1831, bem como a
participação dos interessados. É o que se entende pelo disposto nos artigos 9º, 10 e 11 do
Decreto-Lei n. 9.760/1946:

Art. 9º - É da competência do Serviço do Patrimônio da União (SPU) a


determinação da posição das linhas do preamar médio do ano de 1831 e da
média das enchentes ordinárias.
Art. 10 - A determinação será feita à vista de documentos e plantas de
autenticidade irrecusável, relativos àquele ano, ou quando não obtidos, à
época que do mesmo se aproxime.
Art. 11 - Para a realização do trabalho, o SPU convidará os interessados
certos e incertos, pessoalmente ou por edital, para que no prazo de 60
(sessenta) dias ofereçam a estudo, se assim lhes convier, plantas,
documentos e outros esclarecimentos concernentes aos terrenos
compreendidos no trecho demarcado82.

Segundo essa norma, a SPU demarcaria a Linha de Preamar Média de 1831 com base
em documentos da época ou de período próximo a ela, de autenticidade irrecusável. Este
cuidado mostra que, até então, os Terrenos de Marinha não se encontravam devidamente
demarcados. Tal trabalho ainda está por ser finalizado, conforme admite a própria Secretaria:

Parte da linha de preamar média do ano de 1831 ainda não se encontra


demarcada no litoral brasileiro, resultando dessa circunstância muitas
ocorrências de títulos outorgados por terceiros com superposição de áreas,
atingindo eventualmente área de domínio da União83.

Assim, a partir de 1946, a SPU deveria ter iniciado os trabalhos objetivando descobrir
e demarcar a posição da Linha de Preamar Média de 1831 – certamente, tarefa nada simples,
pois se tratava do levantamento topográfico de todo o litoral brasileiro, o qual “compreende
uma faixa de 8.698 km de extensão e largura variável, contemplando um conjunto de
ecossistemas contíguos [...]”84.

82
BRASIL. Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946.
83
BRASIL. MPOG. Os Terrenos de Marinha e as atividades imobiliárias da SPU - Informações de interesse
do cidadão. Disponível em: <http://www.spu.planejamento.gov.br/conteudo/apresentacao/terrenos.htm>. Acesso
em 11 fev. 2008.
84
PROJETO ORLA: fundamentos para a gestão integrada / Ministério do Meio Ambiente, Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão. Brasília: MMA, 2006. p. 24.
52

Os procedimentos adotados pela SPU estão detalhados em Orientação Normativa


(ON-GEADE n. 002 de 12 de março de 2001) daquela Secretaria. Nela foram estabelecidos os
critérios técnicos para o trabalho, inclusive prevendo a utilização de dados oriundos de fontes
diversas: do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); da Diretoria de
Hidrografia e Navegação do Comando da Marinha (DHN - que dispõe de um banco de dados
oceanográficos); mapoteca do Itamarati; IBGE; museus; Diretoria do Serviço Geográfico do
Exército (DSG); Ministério da Defesa; empresas de aerolevantamentos; Biblioteca Nacional;
bibliotecas regionais e locais; associações culturais; câmaras de vereadores; prefeituras;
igrejas; cartórios, bem como depoimentos de moradores e/ou pescadores antigos,
perfeitamente identificados, colhidos no local e analisados85.

Para Obéde Lima e Roberval Lima, os critérios utilizados pela SPU na demarcação
dos Terrenos de Marinha estão baseados em conceitos que levam ao estabelecimento de uma
Linha de Preamar Média de 1831 presumida, porque aquele órgão não teria conhecimentos
sobre como localizar nos dias atuais a linha real de 1831. Tal situação, estabelecimento de
linha presumida, feriria frontalmente, segundo os autores, a definição contida na legislação
em vigor86.

Com o propósito de dar celeridade aos trabalhos de demarcação, a Lei 9.636/1998,


previu a possibilidade de formação de convênios e contratos com a participação do
conveniado ou contratado nas receitas decorrentes do cadastramento. Tal possibilidade vem
expressa já no art. 1º da citada Lei que informa que a União, através da SPU, para cumprir sua
função poderá “firmar convênios com os Estados e Municípios em cujos territórios se
localizem e, observados os procedimentos licitatórios previstos em lei, celebrar contratos com
a iniciativa privada.”87

85
BRASIL. MPOG-SPU. ON-GEADE-002 Orientação normativa que disciplina a demarcação de terrenos
de marinha e seus acrescidos. 12/03/01. Disponível em: <
http://www.spu.planejamento.gov.br/arquivos_down/spu/orientacao_normativa/ON_geade_002.PDF>. Acesso
em: 21 abr. 2008. p. 13.
86
LIMA, Obéde Pereira de; LIMA, Roberval Felippe Pereira de. Localização geodésica da linha da preamar
média de 1831 - LPM/1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos.
Disponível em: <http://www.cartografia.org.br/xxi_cbc/024-G05.pdf>. Acesso em: 19 jan. 2008. 2ª p. (obs. O
texto não é paginado no original).
87
BRASIL. Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a regularização, administração, aforamento e
alienação de bens imóveis de domínio da União, altera dispositivos dos Decretos-Leis nos 9.760, de 5 de
setembro de 1946, e 2.398, de 21 de dezembro de 1987, regulamenta o § 2o do art. 49 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, e dá outras providências. Art. 1o É o Poder Executivo autorizado, por intermédio da
Secretaria do Patrimônio da União do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, a executar ações de
53

Com o fito de cumprir com sua obrigação, a SPU, entre outras ações, editou uma
cartilha em linguagem apropriada ao grande público sobre o processo de cadastramento,
demarcação e regularização dos Terrenos de Marinha, com o evidente propósito de esclarecer
e, conseqüentemente, reduzir apreensões que a aceleração dos trabalhos poderia trazer aos
possuidores antes tranqüilos, em posse mansa e pacífica88.

O Decreto-Lei n. 9.760/1946, em seu artigo 11, citado alhures, já indicava a


possibilidade de controvérsias envolvendo pessoas que habitavam terrenos passíveis de serem
identificados como de marinha. Esta identificação acabaria por gerar nova situação jurídica
para esses moradores, que até então se consideravam plenos proprietários do imóvel, gerando
demandas judiciais. O capítulo seguinte desta monografia demonstrará que tal possibilidade
realmente se concretizou.

Também orientada no sentido de permitir a correta identificação e demarcação dos


Terrenos de Marinha, a Lei n. 9.636/1998, estabeleceu em seu artigo 2.º e parágrafo único
que:

Art. 2o Concluído, na forma da legislação vigente, o processo de


identificação e demarcação das terras de domínio da União, a SPU lavrará,
em livro próprio, com força de escritura pública, o termo competente,
incorporando a área ao patrimônio da União.
Parágrafo único. O termo a que se refere este artigo, mediante certidão de
inteiro teor, acompanhado de plantas e outros documentos técnicos que
permitam a correta caracterização do imóvel, será registrado no Cartório de
Registro de Imóveis competente89.

Cabe, portanto, a SPU “identificar, demarcar, cadastrar, registrar, fiscalizar,


regularizar as ocupações e promover a utilização ordenada dos bens imóveis de domínio da
União.”90. Por fim, concluído o processo de identificação e demarcação dessas terras, a SPU

identificação, demarcação, cadastramento, registro e fiscalização dos bens imóveis da União, bem como a
regularização das ocupações nesses imóveis, inclusive de assentamentos informais de baixa renda, podendo, para
tanto, firmar convênios com os Estados, Distrito Federal e Municípios em cujos territórios se localizem e,
observados os procedimentos licitatórios previstos em lei, celebrar contratos com a iniciativa privada. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9636.htm>. Acesso em: 21 abr. 2008.
88
BRASIL. MPOG-SPU. Cartilha SPU: Tudo o que você precisa saber sobre laudêmio, taxa de ocupação e
foro. Disponível em: <http://www.spu.planejamento.gov.br/publicacoes/cartilha_laudemio.htm>. Acesso em: 21
abr. 2008.
89
BRASIL. Lei 9.636 de 15 de maio de 1998
90
BRASIL. Lei 9.636 de 15 de maio de 1998. Art. 1.º.
54

lavrará em livro próprio, com força de escritura pública, o termo competente, incorporando a
área ao patrimônio da União91.

Somente depois de cumpridas essas determinações é que, em tese, poderia ser


regularizada a situação dos habitantes de tais terrenos. Cumpridas as condições para
regularização, notadamente o pagamente das taxas devidas, o habitante pode permanecer no
local como ocupante ou, então, ser constituída a enfiteuse (ou Aforamento), caso em que
haverá a possibilidade legal da exigência de taxa de ocupação ou foro e laudêmio por parte da
União. Nesse momento a União passa a ser senhorio e o habitante no terreno, foreiro.

4.3 A LINHA DE PREAMAR MÉDIA

Para que uma área seja considerada Terreno de Marinha ou Terreno Acrescido de
Marinha, bem público dominical da União, deve haver, primeiramente, a delimitação da
Linha de Preamar Média de 1831. Em seguida, a demarcação do terreno pela SPU, atendendo
a todas as exigências mencionadas no Decreto-Lei 9.760/1946, após será o imóvel inscrito no
Registro de Imóveis.

Considerando que a raiz de todo o problema de demarcação dos Terrenos de Marinha


reside na delimitação da Linha de Preamar Média de 1831, faz-se necessário, primeiramente,
que se tenha clara ciência do que é, afinal, essa linha. Para sua definição recorre-se a De
Plácido e Silva:

PREAMAR: derivado do castelhano pleamar, contração de plena mar (pleno


mar ou mar cheio), entende-se o fim da enchente de maré ou do crescimento
do mar, bem assim o tempo de duração da maré cheia. É, portanto, indicativo
do auge da maré cheia ou enchente do mar, cujo limite é dito de linha da
preamar.
Conforme as águas atinjam ponto mais ou menos elevado da praia, cobrindo-
a, a preamar diz-se máxima, média ou mínima.
A máxima é aquela em que as águas se elevam ou sobem ao ponto mais alto,
quando no auge da maré cheia.
A preamar máxima, pois, é a que se anota nas grandes e maiores cheias, em
que as águas alcançam o ponto de maior elevação.
A preamar mínima, ao contrário da máxima, é assinalada pela menor
elevação das águas, verificada nas pequenas marés.

91
BRASIL. Lei 9.636 de 15 de maio de 1998. Art. 2.º.
55

A preamar média indica-se a evidência do ponto médio entre as marés cheias


máximas (preamar máxima) e as marés cheias mínimas (preamar mínima)92.

Para que o entendimento seja mais completo, também se faz necessário que o conceito
de marés esteja claro. Argeo Magliocca apresenta o seguinte conceito para maré:

Oscilações verticais periódicas das massas líquidas, existentes na superfície


da Terra, e da atmosfera. É resultante das forças de atração da Lua e do Sol
(ambos em movimento) sobre a Terra em rotação e translação.
O termo maré usa-se para indicar as marés oceânicas; no caso da atmosfera
diz-se marés atmosféricas. Costuma-se chamar de maré o conseqüente
movimento horizontal da água ao longo da costa, porém, é preferível dizer-
se corrente de maré, reservando-se o termo maré para os movimentos
verticais.93

Ressalte-se, ainda, que linha de costa não se confunde com Linha de Preamar Média.
Carlos Roberto Soares e Rodolfo José Ângulo esclarecem o que é linha de costa,
diferenciando-a da Linha de Preamar Média, nos seguintes termos:

A linha de costa é o limite entre a costa e o litoral, cuja materialização


espacial se dá através da presença de falésias (popularmente barrancos ou
combros), no limite entre as dunas vegetadas e a praia, no limite máximo
atingido pelas ondas nos costões rochosos, ou em qualquer outra feição
geomorfológica que indique o limite máximo atingido pela ação do mar ou
outro corpo d’água, que separe a costa do litoral. Essa linha não coincide
com a linha de preamar-médio de 183194.

Devidamente conceituada a Linha de Preamar Média, surge a dificuldade, quase que


instransponível, de delimitá-la em relação ao ano de 1831. A delimitação nos dias atuais é
trabalhosa, mas factível, bastando para tanto que se tenham os equipamentos e meios
adequados, notadamente marégrafos. Entretanto, a legislação exige que se delimite aquela que
ocorria em 1831. E é justamente da solução desse complexo desafio que depende a correta
delimitação dos Terrenos de Marinha, ou seja, dos 33 metros contados da posição da linha do
preamar-médio de 1831.

O problema é tão complexo que, mesmo transcorridos mais de 60 anos de vigência do


Decreto-Lei 9.760/1946, a Linha de Preamar Média de 1831 ainda não está claramente

92
SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Atualizadores: Nagib Slaib Filho e Gláucia Carvalho. 26. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 1072.
93
MAGLIOCCA, Argeo. Glossário de oceanografia. São Paulo: Nova Stella-EDUSP, 1987. p. 190.
94
SOARES, Carlos Roberto e ANGULO, Rodolfo José. Sobre a delimitação da linha de preamar-médio de
1831, que define os terrenos de marinha. Revista do Direito Ambiental, São Paulo, nº. 20, 2002. p. 263.
56

demarcada em todo o litoral brasileiro. Esta situação, segundo Diógenes Gasparini95, levou o
Judiciário, os particulares e os órgãos públicos, mesmo a SPU, a aceitar critérios outros para
sua determinação, como é o caso da linha do jundu, vegetação existente nas proximidades das
praias, como marco substituto da Linha de Preamar Média de 1831. Sobre o assunto comenta
ainda Gasparini:

O critério, a nosso ver, embora resolva na prática os problemas decorrentes


da falta da demarcação oficial da faixa dos trinta e três metros, ressente-se de
legalidade. A aceitação, pelo Judiciário e pela SPU, não o torna legal. Por
ele, não se atende ao prescrito no art. 2º do Decreto-Lei n. 9.760/46, que
exige sejam os trinta e três metros contados da linha da preamar média de
1831, e desconhece-se, por conseguinte, que os requisitos legais para a sua
determinação são os registrados no art. 10. Estes são os únicos válidos.96

Acrescente-se, a par da ilegalidade apontada para a utilização de linha do jundu, que


tal expediente conduz a uma demarcação que somente ao acaso pode corresponder ao preceito
legal. Como esclareceram Soares e Ângulo acima, a linha de costa não coincide com a Linha
de Preamar Média. O que a linha de jundu pode identificar é, exatamente, a linha de costa. E
mais, a linha de costa atual, que pode ser, e geralmente é, destoante da linha de costa de 1831.
Portanto, a utilização da linha do jundu implica em: a) ilegalidade, segundo a avaliação
abalizada de Diógenes Gasparini, acima exposta e b) mera estimativa da Linha de Preamar
Média de 1831.

Nos termos do Decreto-Lei n. 9.760/1946, devem ser usadas como base “plantas de
autenticidade irrecusável relativas àquele ano ou, quando não obtidas, à época que do mesmo
se aproxime”97. É evidente a enorme dificuldade de localização de tais plantas, se é que
existam ou existiram, tendo em vista o longo tempo decorrido. A dificuldade em obter-se tais
plantas de autenticidade irrecusável, datadas desse ano, é comentada por Carlos Roberto
Soares e Rodolfo José Angulo:

No caso da Baía de Paranaguá (Estado do Paraná), mapas antigos com datas


mais próximas de 1831 podem ser encontrados em Soares & Lana (1994).
Entretanto, mesmo que nesses mapas estivesse delimitada a linha de preamar
a pequena escala, geralmente em torno de 1:250.000, não permite marcar os
33 metros mencionados no decreto-lei, o que corresponderia na prática, em

95
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. p. 865.
96
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. p. 865.
97
BRASIL. Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946. Art. 10.
57

termos cartográficos, a aproximadamente 0,13 mm (aproximadamente ¼ da


largura de uma linha de lápis fino)98.

Associado a este fator tem-se outro, que é a falta de equipamentos adequados para a
aferição atual da Linha de Preamar Média. Ora, se é difícil estabelecer a linha de preamar
média atual, imagine-se estabelecer aquela de 1831. Sobre tais dificuldades também
comentam Carlos Roberto Soares e Rodolfo José Angulo:

Considerando-se a extensão da costa brasileira e a rede geodésica existente,


pode-se afirmar que na maior parte da costa não há possibilidade de
delimitar a linha de preamar-média atual. Fora este aspecto, a dinâmica dos
ambientes costeiros, especialmente as praias, faz com que a linha de preamar
possa mudar, até mesmo diariamente. Cabe ressaltar que a linha de preamar-
média geralmente não coincide com nenhuma feição física da costa, que
possa ser facilmente identificada, tal como a linha da costa.
Para conhecer o nível da preamar-média do ano de 1831 deveria ser
encontrado um registro maregráfico desse ano, além da necessidade deste
estar referenciado a um marco ou nível de referência. Este registro parece
não existir para a costa brasileira. Uma possibilidade, para se obter um dado
aproximado seria, da mesma forma que se faz uma previsão astronômica de
maré para qualquer local situado na costa, calcular a altura da preamar-
médio astronômica de 1831. Porém, permaneceria o problema da
localização, pois não há menção no decreto-lei a um local ou a um nível
qualquer de referência99.

Percebe-se, pela exposição dos autores que, mesmo utilizando-se de previsão


astronômica, o que se pode obter é um valor aproximado da Linha de Preamar Média de 1831.
Por mais próximo ao real que fosse este valor, ainda assim, restaria o problema de fixá-lo
adequadamente ao terreno em razão da falta de um local ou nível de referência. Resumindo:
obtido o valor para a altura da Linha de Preamar Média de 1831 ainda restaria o grande
problema de espacializar esta linha, de fixá-la no terreno em sua posição correta.

Na busca de auxiliar na resolução de problema de tal magnitude, Obéde Pereira de


Lima e Roberval Felippe Pereira de Lima, utilizando-se de instrumentos da Hidrologia,
Geodésia, Informática, Topografia e Cartografia, realizaram estudos para delimitar a atual
Linha de Preamar Média em dois setores distintos da cidade de São Francisco do Sul/SC.
Após, processaram os dados, efetuando análise harmônica e a retrovisão da Linha de Preamar
Média para o ano de 1831. Para que pudessem fazer esta retrovisão ao ano de 1831, os autores

98
SOARES, Carlos Roberto e ANGULO, Rodolfo José. Sobre a delimitação da linha de preamar-médio de
1831, que define os terrenos de marinha. p. 265.
99
SOARES, Carlos Roberto e ANGULO, Rodolfo José. Sobre a delimitação da linha de preamar-médio de
1831, que define os terrenos de marinha. p. 264.
58

consideram que o nível médio do mar vem subindo a uma taxa da ordem de 38 cm por século
na área em estudo100.

Dispostos em base cartográfica, os resultados da pesquisa dos autores supra-citados,


mostraram que a Linha de Preamar Média de 1831 “real” está localizada a uma distância
lateral da ordem de cem (100) metros, mar adentro, com relação a Linha de Preamar Media de
1831 presumida pela SPU. Ou seja, pela linha estabelecida pelos autores citados, todos os
Terrenos de Marinha, nos dois locais estudados em São Francisco do Sul, estariam submersos,
não havendo, por óbvio, nenhuma ocupação sobre eles101. Já para a SPU, que posiciona a
linha junto à costa, todos os Terrenos de Marinha, nos mesmos locais, encontram-se em
espaço subaéreo, com ocupações.

Obéde Lima e Roberval Lima ressaltam que:

A exatidão e a precisão na medida da localização geodésica da LPM/1831 e


das demais linhas que servem de limites na definição dos elementos da
terminologia de praias estão intimamente associadas com o ângulo de
declividade da costa, do estirâncio102 e da zona frontal. Desse modo, a altura
da preamar média e o ângulo de inclinação do plano onde esta altura toca no
continente são os elementos fundamentais para a localização planimétrica da
isoípsa103 resultante104.

100
LIMA, Obéde Pereira de e LIMA, Roberval Felippe Pereira de. Localização geodésica da linha da preamar
média de 1831 - LPM/1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos.
Disponível em: <http://www.cartografia.org.br/xxi_cbc/024-G05.pdf>. Acesso em: 19 jan. 2008.
101
LIMA, Obéde Pereira de e LIMA, Roberval Felippe Pereira de. Localização geodésica da linha da preamar
média de 1831 - LPM/1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos. pp. 8-10.
(não numeradas no original).
102
Estirâncio ou estrão: Faixa do litoral entre a mais alta e a mais baixa maré, sendo, por conseguinte, a zona
lavada do litoral. Cf. GUERRA, Antônio Teixeira e GUERRA, Antonio José Teixeira. Novo dicionário
geológico-geomorfológico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 249. Definição não constante no texto
original.
103
Isoípsa: Linha que liga os pontos de igual altitude, situados acima do nível do mar. O mesmo que curva de
nível. Cf. GUERRA, Antônio Teixeira e GUERRA, Antonio José Teixeira. Novo dicionário geológico-
geomorfológico. p. 358. Definição não constante no texto original.
104
LIMA, Obéde Pereira de e LIMA, Roberval Felippe Pereira de. Localização geodésica da linha da preamar
média de 1831 - LPM/1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos. p. 6 (não
numeradas no original).
59

Vale recordar aqui que Carlos Soares e Rodolfo Angulo salientaram o fato de que a
costa brasileira é extremamente dinâmica, especialmente as praias, o que faz com que a linha
de preamar possa mudar, até mesmo diariamente105.

Um exemplo bastante significativo desta dinâmica da costa brasileira está presente no


Estudo de Impacto Ambiental realizado pela Ambiens Consultoria e Projetos Ambientais por
solicitação do Município de Itapema/SC com vistas à implantação da Avenida Beira Mar na
praia de Meia Praia106.

Tal estudo identifica a praia de Meia Praia como disposta em uma baía bem protegida
com relação ao regime sul-brasileiro de ondas oceânicas. Esta proteção deriva de sua
orientação e da dimensão de seus costões rochosos. A combinação destes fatores determina
que as ondas que tem maior acesso à baía são aquelas provenientes de nordeste, com
características de alturas pequenas e baixos períodos. As ondas de maior energia da costa
catarinense, oriundas de sul-sudeste, são quase que totalmente bloqueadas pela configuração
geográfica local.107

Mesmo com toda esta proteção que a praia de Meia Praia possui ela é extremamente
dinâmica. A Figura 1, mostrada adiante, registra dois perfis topográficos com diferenças
marcantes entre eles, levantados no mesmo local, na porção central da praia. O primeiro
efetuado na data de 4/8/2006 e o segundo, em 29/8/2006.

No curto intervalo de tempo de 25 dias identificou-se o acréscimo de 1,98 m3/m de


sedimentos na parte subaérea do perfil, enquanto que na parte submersa foi identificada uma
acresção natural de 9,58 m3/m. Este volume expressivo de material, acumulado naturalmente
ao local, promoveu uma incrível mudança na linha de praia de 8,28m (oito metros e vinte e
oito centímetros) positivos. Isto é, a linha da praia avançou 8,28 metros em direção ao mar em
apenas 25 dias. A declividade da face praial que era de 2°07’ (dois graus e sete minutos), em
4/8/2006, reduziu-se para 2° (dois graus) em 29/8/2006108.

105
SOARES, Carlos Roberto e ANGULO, Rodolfo José. Sobre a delimitação da linha de preamar-médio de
1831, que define os terrenos de marinha. p. 264.
106
AMBIENS CONSULTORIA E PROJETOS AMBIENTAIS (Itapema). Estudo de Impacto Ambiental -
EIA Implantação da Avenida Beira-Mar: Município de Itapema/SC. Florianópolis, 2006. pp. 318.
107
A AMBIENS CONSULTORIA E PROJETOS AMBIENTAIS (Itapema). Estudo de Impacto Ambiental -
EIA Implantação da Avenida Beira-Mar. pp. 170-177.
108
AMBIENS CONSULTORIA E PROJETOS AMBIENTAIS (Itapema). Estudo de Impacto Ambiental -
EIA Implantação da Avenida Beira-Mar. pp. 90-94.
60

Figura 1. Perfis em datas diferentes da porção central da praia de Meia Praia (Itapema/SC)
mostrando variação de volume de sedimentos, aumento tanto na porção subaérea, como na porção
submersa, e avanço em direção ao mar da linha de costa (fora de escala). Fonte: AMBIENS
CONSULTORIA E PROJETOS AMBIENTAIS (Itapema). Estudo de Impacto Ambiental -
EIA Implantação da Avenida Beira-Mar: Município de Itapema. Florianópolis, 2006. p. 92.

Evidentemente que alterações tão significativas na face praial fatalmente conduzirão a


alterações na Linha de Preamar Média, pela razão simples de que a configuração da face
praial condiciona o alcance da maré cheia. Se o perfil é menos inclinado, a preamar avança
mais em direção ao continente. Se a linha de praia avança em direção ao mar, a Linha de
Preamar Média tende a recuar em relação ao continente.

Tal grau de variabilidade depõe contra o esforço elaborado por Obéde Lima e
Roberval Lima para a definição da Linha de Preamar Média de 1831. Verifica-se que, por
melhor que tenha sido o programa computacional utilizado, o grande potencial de variação
dos ângulos de declividade da costa, do estirâncio e da zona frontal, dificilmente é avaliado
adequadamente. Ademais, o resultado alcançado por estes autores para retrovisão a 1831 está
61

fundado na premissa de que houve uma variação positiva do nível do mar da ordem de 38 cm
por século, algo ainda a ser cabalmente demonstrado. Desta maneira, a localização da Linha
de Preamar Média de 1831 obtida pelos autores ainda não pode ser afirmada como real.

4.4 A DELIMITAÇÃO DE TERRENOS DE MARINHA EM RIOS E LAGOAS

Durante a pesquisa bibliográfica para elaboração da presente monografia não


encontrou-se nenhuma obra, artigo ou jurisprudência que tratasse das dificuldades práticas
para a delimitação dos Terrenos de Marinha e seus acrescidos em rios e lagoas que sofram
influência de mares. As poucas considerações a respeito deste tema, notadamente
jurisprudências e artigos publicados em revistas e na internet, somente tecem considerações a
respeito da existência legal dos mesmos, a ser discutida no capítulo seguinte.

Evidentemente que todas as dificuldades apresentadas para a delimitação da Linha de


Preamar Média de 1831 ao longo da costa alcançam a delimitação dos Terrenos de Marinha
ao longo dos rios e lagoas. Entretanto, existem algumas peculariedades que são próprias
destes ambientes, e que serão aqui desenvolvidas, sem a menor pretensão de esgotá-las.

4.4.1 Delimitação em lagoas

A primeira questão que merece ser colocada é que a utilização do termo lagoa no
Decreto-Lei n. 9.760/1946, fez-se de maneira equivocada. O que pretendia o legislador era
referir-se a lagunas, já que estas, e não aquelas, sofrem com a influência das marés. A razão
para tal equívoco é que a confusão na utilização dos termos lagoas e lagunas é extremamente
comum no Brasil, a tal ponto que as lagunas mais conhecidas no País recebem o nome de
lagoa, citando-se como exemplos: Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul; Lagoa Rodrigo de
Freitas e Lagoa de Araruama, no Rio de Janeiro e Lagoa do Imaruí e Lagoa da Conceição em
Santa Catarina. Para ajudar a esclarecer a questão vejamos como alguns autores conceituam
lagunas e, a seguir, conceitos para lagoas e lagos:

Laguna: Águas rasas, relativamente quietas, separadas do mar por uma


barreira (restinga, etc.). Recebe, ao mesmo tempo, as águas doces e
sedimentos dos rios e águas salgadas do mar, quando das ingressões de
marés. Pode haver também solução de continuidade na barreira que a separa
62

do mar109.
Laguna: são corpos de água rasa e salobra ou salgada, separadas do mar
aberto por bancos arenosos ou ilhas-barreiras, porém mantendo comunicação
através de barras (canais de comunicação)110.
Laguna: Depressão contendo água salobra ou salgada, localizada na borda
litorânea. A separação das águas da laguna das do mar pode-se fazer por um
obstáculo mais ou menos efetivo, mas não é rara a existência de canais,
pondo em comunicação as duas águas. Na maioria das vezes, usa-se o termo
lagoa (vide) ao invés de laguna111.
Lagoa: Depressão de formas variadas – principalmente tendendo a
circulares – de profundidades pequenas e cheia de água doce ou salgada.
As lagoas podem ser definidas como lagos de pequena extensão e
profundidade112.
Lago: são corpos de água parada constituídos em geral de água doce,
embora existam lagos de água salgada, como acontece nas regiões de baixa
pluviosidade. Embora a distinção não seja muito clara, o termo “lagoa” tem
sido mais comumente utilizado no Brasil para designar corpos de água
parada de dimensões menores que os lagos113.

O elemento comum nas definições de laguna é a interação entre as águas destas com a
água do mar. Há uma comunicação entre laguna e mar. Já com relação aos lagos (e lagoas),
não há esta interação. Não há a comunicação. Eis, pois, a diferença fundamental entre eles.

As lagunas caracterizam ambientes de sedimentação de transição entre o ambiente


continental e o ambiente marinho114. Por esta razão apresentam dinâmicas evolutivas bastante
distintas e dependentes das bacias hidrográficas que atuam sobre elas. Lagunas como a da
Conceição, na Ilha de Santa Catarina, por não ser receptáculo de nenhuma bacia hidrográfica
importante, tendem a ser mais estáveis e, portanto, seus contornos não apresentariam
diferenças significativas em relação àqueles de 1831. A determinação dos Terrenos de
Marinha e seus acrescidos, neste caso, abstraindo questões de ordem jurídica, ficaria adstrito à
problemática da definição da Linha de Preamar Média de 1831.

109
LEIZ, Viktor e LEONARDOS, Othon Henry. Glossário geológico. 3. ed. São Paulo: Nacional, 1982, p. 114.
110
SUGUIO, Kenitiro. Rochas sedimentares: propriedades, gênese, importância econômica. São Paulo:
Edgard Blücher, 1980. p. 359.
111
GUERRA, Antônio Teixeira e GUERRA, Antonio José Teixeira. Novo dicionário geológico-
geomorfológico. p. 381.
112
GUERRA, Antônio Teixeira e GUERRA, Antonio José Teixeira. Novo dicionário geológico-
geomorfológico. p. 373.
113
SUGUIO, Kenitiro. Rochas sedimentares: propriedades, gênese, importância econômica. p. 344.
114
MENDES, Josué Camargo. Elementos de estratigrafia. São Paulo: T.A.Queiroz – EDUSP, 1984. pp.138 e
243-256; SUGUIO, Kenitiro. Rochas sedimentares: propriedades, gênese, importância econômica. pp. 307 e
359-362.
63

De outro lado, existem lagunas que recebem grande influência de bacias hidrográficas,
como é o caso da Lagoa (laguna) dos Patos, no Rio Grande do Sul. Na porção noroeste desta
laguna ocorre o estuário do Guaíba, onde deságuam os rios Jacuí, Gravataí, Caí e dos Sinos.
Outro importante rio que chega à laguna é o Camaquã, além de rios menores115.

Este afluxo elevado de drenagens traz uma elevada carga de sedimentos e como as
lagunas, por definição, são ambientes rasos, tal carga, promove alterações aceleradas nas suas
margens, notadamente nas áreas de deságüe. Nestes casos, a par da dificuldade do
estabelecimento da Linha de Preamar Média de 1831, há, ainda, a dificuldade de
determinação da configuração original da laguna no ano de 1831.

4.4.2 Delimitação em rios

Com relação à ocorrência de Terrenos de Marinha ao longo dos rios que sofrem
influência das marés, a situação assemelha-se àquela descrita para as lagunas. Ou seja:
existem rios que, em virtude do substrato geológico, estão encaixados em leitos que raramente
sofrem variações. Nestes casos a grande dificuldade prática reside unicamente no
estabelecimento da Linha de Preamar Média de 1831.

Porém, assim como para as lagunas, existem aqueles rios, que devido a características
próprias, notadamente do substrato geológico, apresentam grandes variações nas disposições
de seus leitos.

O Rio Perequê, na divisa entre os municípios de Itapema e Porto Belo, Estado de


Santa Catarina, é caso exemplar. Apesar de sua pequena extensão, não superior a 15 km, tem
sua porção final, a que sofre influência das marés, em uma planície de sedimentação que lhe
empresta características meandrantes. Ter características meandrantes, ou seja, com alta
sinuosidade, significa uma taxa de migração lateral relativamente elevada116.

Esta alta taxa de migração lateral fica bastante evidenciada quando se observa a carta-
imagem do Rio Perequê mostrada na Figura 2, elaborada a partir da Carta Náutica da Enseada
de Porto Belo de 1945, na escala 1:27.000, sobre a qual foi disposta a configuração do Rio
Perequê constante na Folha Camboriú do IBGE, na escala 1:50.000, do ano de 1986. A

115
MENDES, Josué Camargo. Elementos de estratigrafia. p. 248.
116
MENDES, Josué Camargo. Elementos de estratigrafia. p. 141.
64

imagem é bastante clara ao mostrar que a posição do rio em 1986 (delimitado em azul e
acompanhado de linhas diagonais em vermelho), é bastante diferente da posição do rio em
1945 (azul acinzentado), notadamente em relação à sua foz. A desembocadura do Rio
Perequê, em 1945, encontrava-se a cerca de 700 metros em direção sudeste com relação a sua
posição em 1986 (posição atual).

Na carta-imagem da Figura 2, o Rio Perequê atual (1986) está marcado com linhas
diagonais em vermelho, que delimitam uma faixa de 33 metros ao longo de suas margens.
Para uma representação mais próxima àquela prescrita pela legislação (Decreto-Lei nº
9.760/1946) o Rio Perequê da Carta Náutica (azul acinzentado) é que deveria estar
acompanhado por uma faixa de 33 metros, como representação dos Terrenos de Marinha,
visto que esta Carta representa uma realidade mais próxima ao ano de 1831.

Figura 2. Carta-imagem do Rio Perequê, divisa Itapema-Porto Belo(SC), elaborada a partir da


Carta Náutica da Enseada de Porto Belo, de 1945, escala 1:27.000, sobre a qual foi adicionada a
configuração do Rio Perequê (ressaltado com linhas diagonais em vermelho) constante da
Folha Camboriú do IBGE, de 1986, escala 1:50.000.
65

Por expressa disposição legal, já comentada, a Linha de Preamar Média a ser utilizada
para a demarcação dos Terrenos de Marinha é aquela de 1831. Mudando o rio o seu curso, a
delimitação destes terrenos deverá considerar a posição deste rio naquele ano.

Retornando a atenção para a carta-imagem da Figura 2 percebe-se que, ao mudar o rio


o seu curso, surgem questões práticas imprevistas na legislação, qual seja, a de existir
Terrenos de Marinha dissociados do rio que lhe serve de parâmetro para o estabelecimento.
Na prática, configuram-se duas situações estranhas: a) a existência de Terrenos de Marinha
dissociados, afastados, do rio que os estabelece (ou estabeleceu); b) a existência de rio que
sofre influência de marés sem que haja Terrenos de Marinha em suas margens.

As duas situações retratadas destoam completamente dos objetivos que criaram o


instituto Terrenos de Marinha: a garantia de um espaço para defesa ao longo da costa e dos
rios e lagoas (lagunas), bem como de um espaço para serviços de embarque e desembarque de
coisas públicas ou particulares.

A perda de sua função primeira faz com que muitos propaguem a idéia da extinção dos
Terrenos de Marinha. Entretanto, este instituto pode cumprir um papel muito mais importante
na atualidade, qual seja, e de servir como área de preservação ambiental em uma região do
País (o litoral) objeto de intensa especulação imobiliária.

Especificamente com respeito aos Terrenos de Marinha ao longo dos rios que sofram
influência de marés, sua extinção não traria maiores conseqüências com relação a preservação
ambiental, já que margens de rios são consideradas Áreas de Preservação Permanente em uma
faixa mínima de 30 metros, segundo disposto no artigo 2º, alínea a, da Lei nº. 4.771/65117.

Verificados alguns dos problemas de ordem prática para a delimitação dos Terrenos de
Marinha e seus acrescidos, tanto ao longo da consta, como junto às lagunas (lagoas) e rios que
sofrem influência das marés, analisar-se-ão, a seguir, alguns problemas de ordem jurídica que
cercam estes institutos.

117
BRASIL. Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Leis/L4771.htm>. Acesso em: 20 abr. 2008.
5 DOS PROBLEMAS DE ORDEM JURÍDICA

5.1 INTRODUÇÃO

No transcurso deste trabalho restou claro que, a par de disposições legais de fácil
entendimento e perfeitamente inseridas no ordenamento jurídico pátrio, há dispositivos
relacionados aos Terrenos de Marinha e seus acrescidos que conduzem a um emaranhado de
dificuldades de ordem prática.

Tal situação não difere, em essência, quando se observa, em uma rápida pesquisa nos
sítios da internet dos Tribunais de Justiça Federais o número, e o cerne, das demandas
judiciais que têm como objeto principal estes terrenos. Ou seja, mesmo que o dispositivo seja
claro e objetivo, pode conduzir a demandas judiciais.

Comentou-se, também, que os processos judiciais que versam sobre Terrenos de


Marinha e seus acrescidos discutem, basicamente, três assuntos: a) cobrança de foro anual e
da taxa de ocupação a serem pagos pelos detentores do domínio útil destas áreas (foreiros ou
ocupantes); b) inocorrência de Terrenos de Marinha e/ou inconformidades na sua delimitação;
e c) demandas ambientais decorrentes da utilização destas áreas sem o devido licenciamento
ambiental.

As demandas relacionadas estritamente aos itens a) e c) supra mencionados, em regra,


não contestam a existência dos Terrenos de Marinha, aceitando-os. Por tal razão, não serão
tratados neste trabalho. Os problemas debatidos em juízo, foco deste trabalho, são aqueles
que, em essência, questionam a existência de tais terrenos em determinada localização e, em
existindo, se a sua delimitação atendeu às prescrições legais.

5.2 DEMARCAÇÃO DOS TERRENOS DE MARINHA

Sendo um problema de ordem eminentemente fática, natural seria que a delimitação


dos Terrenos de Marinha suscitasse questionamentos ao Judiciário. Entretanto, o que se
observa é que os questionamentos são mais decorrentes do procedimento legal adotado para a
67

demarcação de que, propriamente, a demarcação em sí. Por outro lado, ao ser argüida a forma
pela qual se deu a demarcação, pode-se estar apenas querendo ganhar tempo para o posterior
questionamento da demarcação propriamente dita.

Neste sentido, de questionar procedimentos adotados durante o processo de


demarcação, um item importante é o referente à falta de citação adequada aos interessados
diretos para que, querendo, se manifestem no processo administrativo de demarcação.

O art. 11 do Decreto-Lei n. 9.760/1946 determina que devam ser convidados os


interessados “certos e incertos, pessoalmente ou por edital”, para que apresentem
documentação concernente a seu direito sobre o imóvel, isso em obediência aos princípios do
contraditório e da ampla defesa. Diz o citado artigo:

Art. 11 - Para a realização do trabalho, o SPU convidará os interessados


certos e incertos, pessoalmente ou por edital, para que no prazo de 60
(sessenta) dias ofereçam a estudo, se assim lhes convier, plantas,
documentos e outros esclarecimentos concernentes aos terrenos
compreendidos no trecho demarcado.

Os interessados diretos teriam, portanto, oportunidade de tomar conhecimento do


procedimento administrativo em andamento e poderiam, a fim de resguardar direitos que
julgassem ter, apresentar plantas, documentos e esclarecimentos adequados e necessários ao
bom andamento do procedimento.

Observa-se, entretanto, que muitos interessados diretos somente tomam ciência da


demarcação efetuada após a sua conclusão. Em alguns casos, quando acionados para
pagamentos de foros ou taxas de ocupação atrasados. A razão para tal é que, geralmente, a
SPU tem promovido a convocação por edital, tanto para os interessados diretos, como
indiretos.

Pessoas nesta situação, interessados diretos convocados por edital, recorrem ao


Judiciário para que seja revisto o procedimento demarcatório. O Superior Tribunal de Justiça
já se posicionou, entendendo que de fato, a convocação pessoal dos interessados diretos é
necessária. Veja-se a ementa da seguinte decisão que envolve a demarcação dos Terrenos de
Marinha no Município de Joinville, Estado de Santa Catarina.

RECURSO ESPECIAL. ALEGADA VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 458 E


535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. TERRENO DE MARINHA.
PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE FIXAÇÃO DA LINHA DE
68

PREAMAR DE 1831. CONVOCAÇÃO DOS INTERESSADOS


MEDIANTE EDITAL. ART. 11 DO DECRETO-LEI N. 9.760/46. OFENSA
AOS PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO.
AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO NO QUE TOCA À
QUALIFICAÇÃO DO IMÓVEL COMO TERRENO DE MARINHA.
INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 07/STJ.
A função teleológica da decisão judicial é a de compor,
precipuamente, litígios. Não é peça acadêmica ou doutrinária, tampouco
destina-se a responder a argumentos, à guisa de quesitos, como se laudo
pericial fora. Contenta-se o sistema com a solução da controvérsia observada
a res in iudicium deducta.
A interpretação do artigo 11 do Decreto-lei n. 9.760/46, em
consonância com os princípios do contraditório e ampla defesa, leva à
conclusão de que o legislador determinou que, quando certos os interessados
no procedimento demarcatório de terras de marinha, na delimitação da Linha
Preamar Média de 1831, sua convocação ´deverá ser pessoal, ao contrário do
que ocorre quanto aos interessados incertos, convocados por edital.
Como bem ponderou o r. Juízo de primeiro grau, “não se pode
permitir que através de edital sejam convocados quaisquer interessados para
a determinação da posição das linhas de preamar médio, pois é consabido
que após a demarcação, a propriedade passa ao domínio público e os antigos
proprietários passam à condição de ocupantes irregulares, sendo instados a
regularizar sua situação e a pagar o foro pela utilização do bem.”
In casu, a Administração, ao convocar por edital a recorrente,
proprietária com título registrado no Cartório de Imóveis, sem ao menos
incluir seu nome no instrumento convocatório, não lhe concedeu
oportunidade de defesa e sequer lhe deu ciência do procedimento
administrativo que culminou na perda de sua propriedade.
Nulidade do procedimento administrativo, por não ter sido a exigência
legal de convocação pessoal da recorrente, interessada certa na demarcação,
para que, em conformidade com o disposto no Decreto-lei n. 9.760/46,
pudesse oferecer esclarecimentos concernentes aos terrenos compreendidos
no trecho demarcado, ou quaisquer impugnações à demarcação.
Ausência de prequestionamento da questão relativa à qualificação do
imóvel da recorrente como terreno de marinha (Súmulas ns. 282 e 357/STF).
Ainda que assim não fosse, referida questão escapa do âmbito de cognição
do recurso especial, pois envolve reexame de matéria fático-probatória, o
que encontra óbice no enunciado da Súmula n. 07 deste Sodalício.
Recurso especial provido118.

Percebe-se, da ementa apresentada, duas situações distintas: a primeira é a do


inconformismo com a identificação de uma propriedade que se julgava particular como sendo
bem da União. O STJ não entrou no mérito desta questão, qual seja: a da qualificação do
imóvel, por não ter sido previamente questionada e por demandar reexame de matéria fático-
probatória, que não cabe em recurso especial. A segunda é a busca de uma tutela jurídica,
amparada na garantia constitucional do devido processo legal, não observada, no caso, pela

118
BRASIL, STJ, Recurso Especial 545.524 – SC (2003/0092927-3), 2ª Turma, Rel. Min. Franciulli Netto, j.
23.09.2003, DJU 13.10.2003.
69

falta de convocação pessoal. Esta tutela é, exatamente, a que permite ganhar-se o tempo e os
meios adequados para, em um novo procedimento administrativo demarcatório, intentar
assegurar aquilo que de fato se julga justo, qual seja, de que a área objeto da demanda não
compõe o patrimônio dominical da União, não é Terreno de Marinha.

O questionamento sobre o fato de uma determinada área ser ou não Terreno de


Marinha depende da disposição geográfica desta área. Quando localizada na faixa litorânea,
questiona-se, unicamente, se a Linha de Preamar Média de 1831 encontra-se corretamente
e/ou se foi corretamente demarcada, uma vez que é inegável a existência de tais terrenos no
ambiente litorâneo, aquele entendido como de frente ou próximo ao mar. Já se a área em
questão está disposta junto a um Rio Estadual, que sofra influência da maré, o questionamento
envolve a própria existência dos Terrenos de Marinha. Tratar-se-á desta questão na seqüência.

5.3 EXISTÊNCIA DE TERRENOS DE MARINHA AO LONGO DE RIO ESTADUAL

Rio Estadual é entendido como aquele que tem todo o seu curso em território de um só
Estado, desde sua nascente até a foz. Esta é a interpretação que se obtém da análise dos
artigos 20, III e 26, I da CRFB/1988, a seguir transcritos:

Art. 20. São bens da União:


III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio,
ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou
se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os
terrenos marginais e as praias fluviais;
[...]
Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:
I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito,
ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União;119

Assim, verifica-se que um rio será de domínio de um Estado por exclusão, se não
atender umas das seguintes situações: a) estar em domínio da União; b) banhar mais de um
Estado; c) servir de limites com outros países; d) estender-se a território estrangeiro; e) provir
de território estrangeiro. Atendendo uma dessas determinações o rio será Federal120.

119
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
120
VALENTE, Manoel Adam Lacayo. O domínio público dos terrenos fluviais na Constituição Federal de 1988.
Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 37 n. 147, jul./set. 2000. p.242.
70

A matéria foi objeto de um parecer datado de 25/8/1982, assinado por Paulo César
Cataldo, então Consultor-Geral da República. A conclusão do parecer foi a seguinte:

Em conclusão, desde que não estejam situados totalmente em terrenos do


domínio da União, não banhem mais de um Estado nem constituam limite
com outros países, os rios que tenham nascente e foz localizadas nos limites
geográficos do mesmo Estado ou Território incluem-se entre os bens dessas
unidades federadas, ainda que deságüem no oceano121.

Analisando a existência, ou não, de Terrenos de Marinha ao longo das margens de um


Rio Estadual, Manoel Valente assim se manifesta:

Por último, cabe arrematar que os terrenos de marinha, independentemente


de sua localização geográfica no território nacional, pertencem, na sua
totalidade, à União. Dessa forma, a propriedade dessas áreas, em rios
estaduais, inscreve-se no patrimônio federal122.

A Justiça Federal, de outro lado, entendendo que a Constituição de 1946, bem como as
subseqüentes, não recepcionaram a conceituação de Terrenos de Marinha do Decreto-Lei
9.760/1946 no que toca àqueles situados nas margens dos rios e lagoas até onde se faça sentir
a influência das marés, tem decidido no sentido de que não existem Terrenos de Marinha e
Terrenos Acrescidos de Marinha ao longo de Rio Estadual. Veja-se a decisão em apelação
cível, por unanimidade, da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região – Porto
Alegre, Estado do Rio Grande do Sul:

ADMINISTRATIVO. TAXA DE OCUPAÇÃO. TERRENO E


ACRESCIDOS DE MARINHA. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO.
PRECEDENTES DA CORTE.
1. Possuindo o Rio Tramandaí nascente e foz no Estado do Rio Grande do
Sul, não fazendo limite com outro Estado e nem se estendendo até outro
território, pertence ele ao Estado, por força da Constituição Federal.
2. A definição do domínio dos Estados não está condicionada a
considerações outras que não aquelas expressamente previstas, não sendo
possível alterá-lo por fatores desvinculados da previsão legislativa, como o
de que os rios que tenham nascente e foz dentro de um determinado Estado
sejam atribuídos ao domínio da União, pelo simples fato de desaguar no
oceano.
3. Foz de um rio que deságua no mar nada mais é do que foz do próprio rio,

121
PARECER Nº P-23. Dúvida sobre a inclusão, entre os bens dos Estados e dos Territórios, dos rios que não
ultrapassam os respectivos limites geográficos, desaguando no oceano. Paulo César Cataldo. DOU, 23 set. 1982.
pp. 17927-17933.
122
VALENTE, Manoel Adam Lacayo. O domínio público dos terrenos fluviais na Constituição Federal de 1988.
Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 37 n. 147, jul./set. 2000. p. 245
71

e não do oceano.
4. A Constituição de 1946, bem como as subseqüentes, não recepcionaram a
impropriedade do decreto-lei 9.760/46, no que conceituou como terreno de
marinha aqueles situados nas margens dos rios e lagoas até onde se faça
sentir a influência das marés, resultando certo que nenhum texto
constitucional tratou de estabelecer tal fenômeno determinante do domínio.
5. Se houve acréscimos às margens do Rio Tramandaí, sendo ele um rio
estadual, passam eles também ao seu domínio, e a União não pode
considerar-se dona das margens que não lhe pertencem, pelo simples fato de
haver assentado a barra do rio.
6. O domínio dos Estados constitui conquista destes frente à descentralização
do poder após a República, o que foi primeiramente previsto por exclusão e,
depois, de forma expressa.
7. O que a Constituição fixa em dispositivo auto-aplicável, sem ressalvas
nem remessa à lei regulamentadora, não pode ser ampliado nem restringido,
muito menos por um decreto-lei.
8. Entendimento embasado em Parecer do Procurador-Geral da Fazenda
Nacional, aprovado pelo Consultor-Geral da República, após manifestação
do Secretário do Meio Ambiente, do Diretor-Geral do Serviço do Patrimônio
da União, da Consultoria do Ministério do Interior e do Procurador do
Ministério da Fazenda, que afastam a tese consubstanciada na sentença.
9. Mantida a sentença de procedência da ação que declarou a nulidade dos
atos administrativos que impliquem inscrição, lançamento e cobrança,
relativos à taxa de ocupação sobre o imóvel descrito na inicial.
10. Precedentes da Corte.
11. Remessa Oficial e apelação improvidos123.

A União opôs embargos de declaração, que foram rejeitados. Interpôs, também,


recurso especial junto ao Superior Tribunal de Justiça e a este foi negado seguimento, com a
fundamentação de que: “Não se conhece de recurso especial quando a decisão atacada
baseou-se, como fundamento central, em matéria de cunho eminentemente constitucional”124.

A decisão é bastante clara no sentido de que as margens dos rios estaduais pertencem
ao Estado em que se encontra o rio, não sendo possível, portanto, a existência de bens da
União nestas mesmas margens. Veja-se que consta do acórdão supracitado a informação “10.
Precedentes da Corte” a indicar que não se trata de decisão única.

123
BRASIL, TRF4, Apelação Cível nº 2004.71.00.035996-6/RS, 3ª Turma, Rel. Des. Federal Carlos Eduardo
Thompson Flores Lenz, j. 26.06.2006, DJU 06.09.2006.
124
BRASIL, STJ, Recurso Especial 963.910 – RS (2007/0148241-9), Rel. Min. José Delgado, decisão
16.08.2007, DJU 31.08.2007.
72

A Secretaria do Patrimônio da União parece ter entendimento no mesmo sentido,


quando informa que são imóveis da União: “Terrenos de marinha e seus acrescidos; os
terrenos às margens de rios federais; ilhas etc”125.

Considerando-se as dificuldades de ordem prática para a delimitação dos Terrenos de


Marinha e dos Terrenos Acrescidos Marinha ao longo dos rios, como demonstrado alhures, e
o entendimento da Justiça Federal da não existência deste terrenos ao longo de Rio Estadual,
o melhor caminho a seguir seria o de adequar a legislação para retirar a expressão “e nas
margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés” constante no artigo
2º, a) do Decreto Lei 9.760/1946126, promovendo-se as adequações necessárias.

Tal supressão não traria maiores prejuízos à causa ambiental que se pretende para os
Terrenos de Marinha e seus acrescidos, vez que as margens dos rios continuariam a contar
com a proteção que lhes empresta o Código Florestal127. Por outro lado, tiraria da SPU a
inglória tarefa de tentar delimitar tais terrenos, seguindo todos os procedimentos e cuidados
necessários para, após, ver seu trabalho desconsiderado por uma decisão judicial.

As duas jurisprudências apresentadas são claras o suficiente para demonstrar as


dificuldades jurídicas que cercam a delimitação dos Terrenos de Marinha e seus acrescidos ou
a existência de tais terrenos em determinada localização, conforme proposta deste trabalho.
Certamente que existem outras demandas judiciais que envolvem tais institutos, mas que
fugiam ao escopo da presente monografia, razão pela qual não foram pesquisadas e passa-se,
a seguir, para as considerações finais do trabalho.

125
BRASIL. MPOG-SPU. Cartilha SPU: Tudo o que você precisa saber sobre laudêmio, taxa de ocupação e
foro. p. 6.
126
BRASIL. Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946. Dispõe sôbre os bens imóveis da União e dá outras
providências. Art. 2º São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos
horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831: a) os situados no
continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés.
127
BRASIL. Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965. Institui o novo Código Florestal. Art. 2º Consideram-se de
preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: a)
ao longo dos rios ou qualquer curso d’água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima
será: 1) de 30 (trinta) metros [...].
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os Terrenos de Marinha e seus acrescidos são bens da União que estão listados no
artigo 20, inciso VII, da CRFB/1988. Correspondem a uma faixa com 33 metros de largura,
medidos horizontalmente, em direção a terra, contados da linha de preamar média de 1831.
Encontram-se localizados em áreas, normalmente, limítrofes com as praias brasileiras, o que
os tornam valiosos para a indústria imobiliária, assim como para a União, que os tem como
fonte de recursos, através de foros, taxas de ocupação e laudêmios.

O primeiro documento conhecido que faz menção a estes terrenos remonta à época do
Brasil colônia. É a Carta Régia, de 21/10/1710, de lavra de D. João V. Já a primeira lei que
tratou expressamente sobre Terrenos de Marinha foi a Lei Orçamentária de 15 de novembro
de 1831. A partir desta lei, o que era para ser um instrumento que garantisse um espaço livre
para a defesa e para serviços públicos e particulares, tais como o embarque e desembarque de
pessoas e mercadorias, passou a adquirir importância como fonte de renda, desvirtuando sua
origem primária e destoando da sua condição atual de bem com expressão constitucional.
Atualmente, os Terrenos de Marinha e seus acrescidos são regidos, basicamente, pela
CRFB/1988, pelo Decreto-Lei n. 9.760/1946, pela Lei n. 9.636/1988 e o pelo Decreto n.
3.725/2001.

O regime patrimonial a que estão sujeitos tais terrenos é, em regra, o de bens


dominicais da União. Podem, ainda, constituírem-se em bens de uso comum do povo, na
porção que apresentam praias, ou bens de uso especial, quando ocupados por alguma
edificação pública. Mesmo quando bens dominicais, os Terrenos de Marinha e seus
acrescidos, se situados na faixa de segurança, não são suscetíveis de alienação total, por
expressa disposição constitucional, aplicando-se aos mesmos o instituto da enfiteuse (ADCT,
art. 49, § 3º).

A utilização de Terrenos de Marinha e seus acrescidos por particulares faz-se por ato
administrativo, sob o regime da enfiteuse ou Aforamento, pelo qual fica a União com o
domínio direto e transfere ao enfiteuta o domínio útil mediante pagamento de foro
correspondente a 0,6% (seis décimos por cento) do valor do respectivo domínio pleno,
74

anualmente atualizado. Caso o foreiro pretenda a alienação de seu domínio, incidirá o


laudêmio, correspondente a 5% do valor do terreno e benfeitorias existentes.

Os ocupantes de Terrenos de Marinha que não estão devidamente regularizados como


foreiros, sujeitam-se ao pagamento de taxa anual de ocupação equivalente a 2%, para as
ocupações já inscritas e para aquelas cuja inscrição tenha sido requerida até 30/9/1988, ou
5%, para as ocupações requeridas ou promovidas a partir de 1º/10/1988, com base no valor de
avaliação atualizada do imóvel e das benfeitorias existentes.

O foro e o laudêmio são créditos fiscais cujo não pagamento pode gerar ação executiva
por parte da União (execução fiscal), e que, embora tributos, são de natureza distinta dos
impostos, com os quais não se confundem. Desta maneira, os Terrenos de Marinha e seus
acrescidos estão sujeitos, ainda, ao imposto predial e territorial urbano – IPTU ou ao imposto
territorial rural – ITR, a depender de sua localização.

O instituto da enfiteuse no direito civil está fadado ao desaparecimento. Tanto a


CRFB/1988 como o CC/2002 encaminham para esta extinção. No entanto, o regime de
Aforamento dos Terrenos de Marinha e seus acrescidos permanece. O parágrafo 2º do artigo
2.038 do CC/2002 estabelece que a enfiteuse dos Terrenos de Marinha e acrescidos será
regulada por lei especial. Esta lei especial, na verdade são duas: o Decreto-Lei n. 9.760/1946 e
a Lei n. 9.636/1998.

Em que pese sua origem remota no ordenamento jurídico pátrio, e a importância


decorrente de sua localização, os Terrenos de Marinha e os Terrenos Acrescidos de Marinha
apresentam uma elevada carga de incerteza quanto a sua determinação, fruto da necessidade
de se estabelecer a Linha de Preamar Média de 1831 para que eles possam ser definidos. Esta
incerteza atinge grau ainda mais elevado quando se trata de estabelecê-los ao longo de rios ou
lagoas que sofrem a influência de marés.

A competência para determinar a posição da Linha de Preamar Média do ano de 1831


ao longo dos 8.698 km de extensão da costa brasileira, sem contar as reentrâncias e os rios e
lagoas que sofram influência das marés, é da Secretaria do Patrimônio da União – SPU. Tal
determinação é condição necessária, e fundamental, para a delimitação dos Terrenos de
Marinha e seus acrescidos, podendo se valer, a SPU, de documentos da época ou de período
próximo a ela, de autenticidade irrecusável, de depoimentos de moradores e/ou pescadores
antigos, da participação dos interessados diretos ou indiretos, bem como formar convênios ou
75

contratos com Estados, Municípios e particulares. Após identificar, demarcar, cadastrar e


registrar, junto ao cartório de registro de imóveis competente, cabe ainda a SPU fiscalizar,
regularizar as ocupações e promover a utilização ordenada destes bens imóveis da União.

A correta demarcação da Linha de Preamar Média de 1831 é um problema tão


complexo que ela ainda não está totalmente estabelecida em todo o litoral brasileiro. Esta
situação levou o Judiciário, os particulares e a SPU a aceitar critérios outros para sua
determinação, como é o caso da linha do jundu, vegetação existente nas proximidades das
praias, como marco substituto da Linha de Preamar Média de 1831. Tal expediente, além de
ilegal, pois desconforme com a norma (Decreto-Lei 9.760/1946), não conduz a demarcação da
linha necessária. A linha de jundu pode identificar é a linha de costa, mas esta não se
confunde com a Linha de Preamar Média. Ademais, a linha de jundu é feição de costa atual e
a Linha de Preamar Média a ser demarcada é aquela de 1831.

A utilização de expedientes outros, como a previsão astronômica das marés de 1831


ou a determinação da Linha de Preamar Média atual e a sua retrovisão a 1831, embora mais
aceitáveis, encontram também óbices de difícil solução, tais como: a falta de um marco de
referência para a espacialização da linha calculada; o desconhecimento da real configuração
da costa em 1831; a assunção de valores para a variação do nível médio do mar de difícil
comprovação; e, finalmente, a condição extremamente dinâmica da costa brasileira,
especialmente as praias, o que faz com que a linha de preamar possa mudar até mesmo
diariamente.

A delimitação da Linha de Preamar Média de 1831 para a demarcação dos Terrenos de


Marinha e seus acrescidos ao longo dos rios e lagoas que sofram influência das marés, além
de todas as dificuldades acima citadas, soma-se, ainda, as dinâmicas evolutivas bastante
acentuadas destes ambientes, notadamente em lagoas, ou mais propriamente lagunas, que
recebem grande influência de bacias hidrográficas importantes, como o caso da Lagoa dos
Patos, no Estado do Rio Grande do Sul, ou em rios altamente meandrantes, como no caso do
Rio Perequê, na divisa de Porto Belo e Itapema, Estado de Santa Catarina.

Este conjunto de incertezas, aliado à falta de documentação de autenticidade


irrecusável relativa a Linha de Preamar Média de 1831, fornece a resposta adequada para o
questionamento levantado no início deste trabalho, qual seja: “a) É possível, no presente,
definir-se a Linha de Preamar Média de 1831 com segurança, tanto ao longo da costa
litorânea, como ao longo dos rios e lagoas que sofrem influência das marés?”A resposta
76

adequada é a da hipótese b) Não, não é possível a determinação com o necessário grau de


acuidade da Linha de Preamar Média de 1831.

A utilização da Linha de Preamar Média de 1831 para a delimitação de Terrenos de


Marinha e seus acrescidos ao longo de rios que apresentam mudanças na posição de sua calha
ao longo do tempo (rios meandrantes, a exemplo do Rio Perequê), traz a possibilidade da
demarcação de tais terrenos em um local que hoje não mais se limita com o rio e, de outra
parte, que ao longo deste rio que sofre influência das marés, não ocorram Terrenos de
Marinha e/ou Terrenos Acrescidos de Marinha. Tais possibilidades destoam completamente
dos objetivos que criaram o instituto Terrenos de Marinha: a garantia de um espaço para
defesa ao longo da costa e dos rios e lagoas, bem como para serviços de embarque e
desembarque de pessoas ou coisas, públicas ou particulares.

As dificuldades na delimitação da Linha de Preamar Média de 1831, os procedimentos


adotados pela SPU para sua delimitação, a cobrança de foro anual ou taxa de ocupação em
valores atualizados, são fatores que acabam por gerar insatisfações aos diretamente atingidos,
que buscam a Justiça Federal com o intuito de resguardar direitos que julgam ter. Dentre os
diversos pedidos dirigidos ao Judiciário que tem como mote central os Terrenos de Marinha e
seus acrescidos, há os que questionam a existência de fato de tais terrenos em determinada
localização ou, em existindo, se a sua delimitação atendeu às prescrições legais.

Com relação ao atendimento às prescrições legais, questiona-se, principalmente, a


falta de citação adequada dos interessados diretos para que, querendo, se manifestem no
processo administrativo de demarcação, momento em que teriam a oportunidade de apresentar
plantas, documentos e esclarecimentos adequados e necessários ao bom andamento do
procedimento, a fim de resguardar direitos que julgassem ter. O Superior Tribunal de Justiça
já se posicionou no sentido de que a convocação pessoal dos interessados diretos é essencial e
os procedimentos que não observaram esta condição são declarados nulos, devendo ser
refeitos.

Os questionamentos sobre o fato de uma determinada área ser ou não Terreno de


Marinha depende da disposição geográfica desta área. Quando localizada na faixa litorânea,
questiona-se, unicamente, se a Linha de Preamar Média de 1831 encontra-se corretamente
e/ou se foi corretamente demarcada, uma vez que é inegável a existência de tais terrenos no
ambiente litorâneo.
77

Entretanto, se a área em questão está disposta junto a um Rio Estadual, entendido


como aquele que tem nascente, curso e foz inteiramente no território do Estado, o
questionamento envolve a própria existência dos Terrenos de Marinha. A Justiça Federal tem
entendido que a Constituição Federal de 1946, bem como as subseqüentes, não recepcionaram
o Decreto-Lei 9.760/1946 quanto a conceituação de Terrenos de Marinha e seus acrescidos
situados nas margens dos rios e lagoas até onde se faça sentir a influência das marés. Com
fundamento neste entendimento, tem decido no sentido da não existência de Terrenos de
Marinha e Terrenos Acrescidos de Marinha ao longo de Rio Estadual, concluindo que as
margens destes rios pertencem ao Estado em que o mesmo se encontra, não sendo possível,
portanto, a existência de bens da União nestas mesmas margens.

Este entendimento da Justiça Federal fornece a resposta ao segundo questionamento


expresso na introdução deste trabalho, qual seja: “b) Há, do ponto de vista estritamente
jurídico, Terrenos de Marinha e Terrenos Acrescidos de Marinha, que são bens da União, ao
longo daqueles rios e lagoas que são, constitucionalmente, definidos como bens dos Estados?”
De acordo com o entendimento da Justiça Federal, ao qual se expressa inteira concordância, a
resposta adequada é a hipótese d) Não, tal hipótese, não é, constitucionalmente amparada.

Destarte, considerando-se as imensas dificuldades de ordem prática para a delimitação


da Linha de Preamar Média de 1831, acrescidas das dificuldades inerentes à demarcação dos
Terrenos de Marinha e acrescidos ao longo de rios e lagoas que sofram influência das marés, e
o entendimento da Justiça Federal da não existência destes terrenos ao longo de Rio Estadual,
o melhor caminho a seguir seria o de adequar a legislação para retirar a expressão “e nas
margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés” constante no artigo
2º, a) do Decreto Lei 9.760/1946, promovendo-se as adequações necessárias. Não há lógica na
geração de um bem para a União a partir de um bem Estadual. O Rio Estadual e as suas
margens pertencem ao Estado no qual está inserido.

Tal supressão não traria maiores prejuízos à causa ambiental que se pretende para os
Terrenos de Marinha e seus acrescidos, vez que as margens dos rios continuariam a contar
com a proteção que lhes empresta o Código Florestal. Por outro lado, tiraria da SPU a inglória
tarefa de tentar delimitar tais terrenos, seguindo todos os procedimentos e cuidados
necessários para, após, ver seu trabalho desconsiderado por uma decisão judicial. Impediria,
também, a identificação de Terrenos de Marinha e seus acrescidos em áreas afastadas dos rios
78

que lhes justificam a origem, bem como a existência de rios, ou trechos destes, que sofram
influência de mares sem que acha a delimitação de tais terrenos em suas margens.

Apresentadas e comentadas as principais dificuldades de ordem prática e jurídica para


a delimitação dos Terrenos de Marinha e dos Terrenos Acrescidos de Marinha, quer ao longo
da costa litorânea, quer ao longo de rios e lagoas que sofram influência de marés, ressaltando-
se a condição do Rio Estadual, é de se concluir que o presente trabalho atingiu plenamente seu
objetivo geral.

Com relação as variáveis expostas na introdução deste trabalho, elas não se


concretizaram, ainda, e espera-se que, ao menos aquela que prevê a retirada dos Terrenos de
Marinha do rol de bens constitucionais da União, nunca se verifique, apenas que se altere
fundamentalmente a função destes terrenos.

As mudanças apontadas pela SPU no sentido de que o patrimônio da União deve ser
utilizado com estrita observância de sua função sócio-ambiental são indicativos importantes
quando se avaliam as mudanças pretendidas na legislação. Se a intenção é de fato dar a estes
bens, notadamente aos Terrenos de Marinha e seus acrescidos, importância ambiental elevada,
as mudanças propostas devem ser sempre analisadas no sentido de garantir a propriedade da
União sobre tais terrenos no ambiente litorâneo, como fator facilitador das ações de
preservação e/ou recuperação ambiental.

Em conclusão, que os Terrenos de Marinha e os Terrenos Acrescidos de Marinha


deixem de representar meras fontes de arrecadação de recursos para a União e constituam-se
em um importante instrumento de preservação ambiental em uma região do País (o litoral)
objeto de intensa especulação imobiliária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Ambiental - EIA Implantação da Avenida Beira-Mar: Município de Itapema/SC.
Florianópolis, 2006.

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BRASIL. Câmara dos Deputados. PEC-603/1998. Revoga o § 3º do art. 49 do Ato das


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preamar na fixação dos terrenos de marinha e dá outras providências. Deputado Alceu
Collares. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/285125.pdf>. Acesso em:
10 mar. 2008.

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de 31 de dezembro de 1973, e dos Decretos-Leis nos 9.760, de 5 de setembro de 1946, 271, de
28 de fevereiro de 1967, 1.876, de 15 de julho de 1981, e 2.398, de 21 de dezembro de 1987;
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